Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
35/15.9JAPTM.E2
Relator: SÉRGIO CORVACHO
Descritores: CRIME DE DIFAMAÇÃO
CAUSA DE EXCLUSÃO DA ILICITUDE
Data do Acordão: 06/23/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: -Só se verifica uma contradição insanável entre um juízo probatório afirmativo e um negativo se houver uma relação de identidade entre os objectos factuais de um e de outro juízo, ou seja, dito de outra maneira se se tratar do mesmo facto.

- Em tese geral, não repugna que o exercício dos direitos e liberdades consagrados no art. 37º nº 1 da Lei Fundamental possa funcionar como clausula de justificação de condutas lesivas da honra e consideração alheias, pelo menos por via do disposto no art. 31º nº 2 al. b) do CP, que exclui a ilicitude criminal do facto praticado no exercício de um direito.

- Contudo, entende-se também que a referida causa de exclusão da ilicitude só funciona autonomamente em relação a condutas típicas do crime de difamação, que não se traduzam na imputação de factos concretos.

- A demonstração dos pressupostos da «exceptio veritatis» da al. b) do nº 2 do art. 180º do CP, não pode passar pela revelação da fonte de onde proveio a informação em que se apoiaram as imputações, pois tal exigência seria manifestamente atentatória do direito de informar, constitucionalmente garantido.

Decisão Texto Integral: ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

I Relatório

No processo comum nº 35/15.9JAPTM, que correu termos no Juízo de Competência Genérica de Lagos do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, por sentença depositada em 12/2/2019, foi decidido:

Julgar a acusação improcedente, por não provada e, em consequência,

1. absolver o arguido JMFF do crime de Difamação, agravado, previsto e punido pelos Art.º 180º, n.º 1, Art.º 183º, n.º 1, alínea a) e b) e n.º 2 e Art.º 184º, todos, do Código Penal por que vinha acusado;

2. absolver o arguido JMFF do crime de Injúria, agravada, previsto e punido pelos Art.º 181º, n.º 1, 182º, Art.º 183º, n.º 2, e Art.º 184º, por referência ao Art.º 132º, n.º 2, alínea l), todos, do Código Penal por que vinha acusado.

3. condenar a Assistente CFAC no pagamento de custas criminais, com taxa de justiça fixada em quatro UC – cfr. artigos 515.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal e 8.º, n.º 5, do Regulamento das Custas Processuais.

Julgar o pedido de indemnização civil formulado por CFAC totalmente improcedente, por não provado e, em consequência,

1. absolver o demandado JMFF do pedido.

2. condenar a demandante CFAC no pagamento das custas cíveis.

Com base nos seguintes factos, que se julgaram provados:

1. A assistente, CFAC, exerceu e exerce as seguintes funções na CM de ….:

.no período de 2004 a 2005, foi Directora de Departamento de Administração Geral,

.no período de 2007 a 2008, foi Directora de Suporte Técnico e Administrativo,

.no período de 2008 a 2011 foi Directora de Departamento de Suporte Técnico e Administrativo,

. desde 2012 até à presente data é Chefe de Divisão de Suporte Técnico e Administrativo.

2. Desde 2004 até à presente data (há pelo menos 12 anos, portanto), foram atribuídas à assistente, entre outras, responsabilidades técnicas de controlo financeiro relativamente a todos os sectores de actividade da autarquia entre as quais, “exercer as funções de responsável pelas execuções fiscais”, sendo tal facto do conhecimento do arguido.

3. O controlo financeiro de que é responsável inclui garantir que a CM de... paga o que deve, mas que também recebe o que tem de lhe ser pago, voluntária ou coercivamente.

4. Foi com esse sentido de serviço público e no exercício dessas funções, que a assistente implementou uma dinâmica diferente da maior parte das Câmaras, que consistiu em concreto no seguinte: a partir do momento em que termina o prazo de pagamento das facturas (da água por exemplo), emitem uma certidão de dívida, e citam o munícipe relapso para pagar em 24 horas no âmbito desse processo executivo.

5. Este procedimento está previsto no Código de Procedimento e Processo Tributário, e a assistente limitou-se a implementar estas regras, na CM de …….

6. O arguido sabe que a assistente é responsável pelas execuções fiscais da CM de……..

7. No mês de Maio de 2015, no Suplemento Informativo do Jornal “…………..” (Edição nº 295), na página 17, sob o título “A IMORALIDADE E ILEGALIDADE NAS COBRANÇAS DE ÁGUA”, o arguido escreveu, assinou e publicou um artigo, com o seguinte teor:

“…. com Futuro, desde que tomou posse, teve como uma das primeiras preocupações, introduzir alterações ao sistema de cobrança de água, uma das mais caras do país e por não vermos qual o motivo de, nos casos dos atrasos, se recorrer logo a citação para execução fiscal, e além dos normais juros moratórios se impor o pagamento de custas do processo.

Nada na lei impõe que a Câmara tenha de recorrer às execuções fiscais para cobrar tais dívidas, e muito menos, que possa cobrar custas na execução fiscal, independentemente de haver lugar a oposição ou impugnação judicial da dívida, únicas situações que justificam tal pagamento no âmbito das Execuções Fiscais, com isso obrigando o consumidor a pagar, por vezes, mais do dobro do valor da factura e dos juros que são legalmente devidos.(…)

Na sequência de informação da C viemos a saber que os resultados das cobranças por via da execução fiscal, eram distribuídos em quantias elevadas, sobretudo pelas chefias do serviço em causa, que chegam a atingir valores superiores a € 10.000,00/ano e uma média anual e que, desde 1998 até 2014, atingem valores superiores a € 140,000,00, tendo distribuído por todos os funcionários afectos a este serviço mais de € 450.000,00, o que além de ilegal é da mais ignóbil imoralidade.

Estamos a falar de facturas que, em média, não devem ir além dos € 30,00/mês, e as chefias e funcionários que recebem estes montantes nem sequer são os do Departamento que cuida das redes de Abastecimento de água e que zela pelas suas infra-estruturas e tentam prevenir as fugas e os desperdícios.

Nesta matéria, quer a CCDR – Lisboa e Vale do Tejo, quer a própria Associação Nacional de Municípios e outros, são claros em defender a ilegalidade desta participação nas supostas custas das Execuções Fiscais.

O argumento para se manter e continuar com esta situação, é o de que a Câmara não queria, então, nem sequer agora, comprar uma guerra com estas Chefias. Deduzimos nós, até para as ter sobre controlo e para elas fecharem os olhos para alguns processos e procedimentos para os quais os deveriam ter bem abertos e, como técnicos superiores, usarem, realmente, a sua autonomia técnica para imporem o respeito pela lei e cumprirem o seu dever de funcionários públicos, que é o de colocarem o seu trabalho ao serviço público, sejam as populações as empresas ou outros.

Tudo faremos para que estas verbas, indevidamente recebidas, por este naipe de chefias e mesmo os míseros euros com que adoçam as consciências dos auxiliares e sejam devolvidas àqueles que ilegalmente as pagaram.

Agiremos, por todos os meios, incluindo no âmbito regulamentar para mudar esta imoralidade vergonhosa e repor a legalidade e a justiça nesta matéria.

JF”

8. O jornal "………", era então (e ainda é) um jornal com periodicidade mensal, de âmbito local, mas com expansão por todo o País.

9. Inúmeras pessoas e cidadãos, compradores ou não daquele jornal, visionaram as citadas insinuações nele expostas.

10. O arguido, podia ter-se oposto à publicação do referido artigo, no entanto, não o fez.

11. O arguido sabia que as afirmações e imputações por si proferidas iriam ser consideradas como credíveis pelo leitor normal.

12. O arguido agiu livre e conscientemente.

13. O arguido ao utilizar as exposições e expressões que utilizou tinha plena consciência do carácter ofensivo e de insinuações implícitas contidas em todas elas.

14. O arguido sabia que, tais afirmações e imputações por si proferidas iriam ser vistas por inúmeras pessoas, compradores ou não daquele jornal.

15. A assistente é reconhecidamente pessoa que tem pautado o exercício da sua actividade profissional pela honestidade, o profissionalismo e a prossecução máxima do interesse público.

16. Razões pelas quais se sentiu profundamente ofendida na sua honra e consideração pessoal e profissional, pelas afirmações constantes no artigo em causa.

17. A assistente goza de prestígio no meio dos seus pares, dos cidadãos do Município de …….., dos senhores deputados da Assembleia Municipal, dos funcionários da CM de ……, e das demais autoridades locais com quem tem de trabalhar, no exercício das suas funções públicas.

18. Em consequência do artigo supra referido a assistente sentiu-se obrigada a justificar-se perante o público por ter sido um tema reiteradamente abordado.

19. O artigo em causa teve consequências devastadoras para a assistente - causou-lhe sofrimento e perturbação no seu dia a dia, a saber: no período compreendido entre Junho de 2015 e Março/Abril de 2016, esteve medicada com antidepressivos e ansiolíticos, neste momento é uma sombra do que era, tem episódios de choro compulsivo e de depressão, que ainda hoje tem dificuldade em controlar.

20. O arguido sabia que a assistente era a responsável pelas execuções fiscais da CML de ………. e que, com a imputação de tais factos, mesmo sob a forma de suspeita, praticados pela assistente no exercício das suas funções públicas e por causa delas, iria ofender a honra, o bom nome e a consideração pessoal e profissional desta, enquanto Chefe de Divisão de Suporte Técnico Administrativo da CM de ……. desde 2004, e responsável pelas execuções fiscais da CM de …...

21. A assistente sentiu-se vexada e humilhada perante todas as pessoas que leram aquele artigo de jornal, designadamente, todos os funcionários que trabalham consigo na Divisão de Suporte Técnico Administrativo da CM de …… e perante todos os Munícipes desta cidade de …………..

22. A assistente é reputada, no meio onde vive e onde trabalha, como sendo pessoa de porte irrepreensível, por todos considerada, gozando de boa reputação social, desde logo como Chefe de Divisão de Suporte Técnico Administrativo da CM de …………..

23. Sabia também o arguido que tais imputações, e suspeições, eram susceptíveis de atingir a honra, dignidade e consideração pessoal e profissional da assistente, que sabia ter actuado no exercício das funções que por lei lhe estão confiadas mas, ainda assim fê-lo, sobretudo e por causa do exercício da profissão da assistente.

24. Actuou o arguido deliberada, livre e conscientemente.

A mesma sentença julgou os seguintes factos não provados:

a. Toda a gente sabe, a cidade é muito pequena, que a assistente é responsável pelas execuções fiscais da CM de……;

b. Não foi publicado qualquer desmentido nesse jornal [C………… de……] ou outro;

c. Na circunstância descrita em 12., o arguido tinha a única intenção de levantar dúvidas sobre a honorabilidade pessoal e profissional da assistente e de questionar a sua ética pessoal e profissional, atingindo-a como pessoa e como responsável dos processos de execução fiscal da CM de………, funções públicas essas que, o arguido bem conhecia;

d. O arguido tinha a obrigação de conhecer a falsidade dos factos que imputou à Assistente, desde logo na sua qualidade de Advogado e de Membro da Assembleia Municipal da CM de ………….., não estando a assistente a cometer qualquer ilegalidade, como o arguido bem sabe, sendo falsas as imputações que lhe são feitas naquele artigo de opinião;

e. O arguido, com a sua actuação, imputando à assistente a prática de actos ilegais (referindo-se às execuções fiscais, à cobrança de custas processuais nesses processos executivos e à participação das chefias e funcionários afectos às execuções fiscais, nas taxas de justiça desses processos de execução fiscal), alegadamente com o intuito de auferir rendimentos a que não tinha direito, à custa dos munícipes de ………., actuou com o propósito concretizado de ofender a honra e consideração da Assistente, não só pessoais mas, também e principalmente, enquanto Chefe de Divisão de Suporte Técnico Administrativo da CM de …………. e, nessa qualidade, responsável pelos processos de execução fiscal, actuando com o propósito de fomentar junto daqueles a quem o conteúdo da notícia foi dado a conhecer, um sentimento de dúvida sobre a idoneidade – pessoal da Assistente, desde logo enquanto Chefe da Divisão de Suporte Técnico Administrativo da CM de……………. e, nessa qualidade, responsável pelas execuções fiscais;

f. Ao escrever e publicar aquele artigo de opinião do “C…… de……”, pretendia o arguido denegrir a imagem pública da Assistente e descredibilizar a sua actuação enquanto responsável pelas execuções fiscais da CM de ….., criando na opinião pública a ideia de que a sua actuação é ilegal, o que conseguiu;

g. O teor daquele artigo supra referido enraizou-se em muitos cidadãos.

h. Actuou o arguido bem sabendo a sua conduta proibida e punida por lei, tendo a liberdade necessária para se determinar de acordo com essa avaliação.

Da sentença proferida o MP e a assistente CFFC vieram separadamente interpor recurso devidamente motivado, tendo formulado, cada um, as seguintes conclusões:

MP

1. O Ministério Público vem interpor recurso sentença proferida nos autos que determinou a absolvição do arguido pela prática do crime de difamação agravado.

2. Em relação à matéria de direito, pretende-se impugnar a decisão do Tribunal A Quo que considerou que a conduta do arguido, aí descrita, não correspondia à descrição jurídico-penal legalmente prevista nos artigos 180.º n.º 1, 183.º n.º 2 e 184.º, por referência ao artigo 132.º n.º 2, al. l), todos do Código Penal, e que determinou a absolvição do Arguido.

3. O tipo subjectivo deste crime de difamação admite qualquer modalidade do dolo, pelo que, ainda que o arguido não tenha agido com dolo directo, basta que este tenha agido com a consciência de que com a sua conduta atingiria, necessária ou eventualmente, a honra e consideração de terceiro, aqui confiando que tal ocorreria, o que consideramos que aconteceu no caso em apreço.

4. A imputação a terceiro, sob a forma de suspeita, da prática de um crime, é suficiente para lesar a honra e dignidade dessa pessoa, desde que, como aconteceu no presente caso, não exista fundamento sério para a creditar como verdadeira.

5. O levantamento deste tipo de suspeita, é particularmente eficaz em lesar o bom nome e reputação de qualquer funcionário público, particularmente camarário, uma vez que a população está especialmente atenta a todos os casos de suposta corrupção ou favorecimento por parte das pessoas que exercem este tipo de funções, sendo também bem conhecido que a confiança depositada na isenção de quem exerce este tipo de cargos é culturalmente negativa.

6. A liberdade de expressão tem limites, limites estes traçados no ponto em que esta liberdade atinge o conteúdo essencial de outro direito ou em que lesa intoleravelmente a moral social ou os valores e princípios fundamentais da ordem constitucional, limites esses que no presente caso foram ultrapassados.

7. O Tribunal A Quo ao considerar a atipicidade da conduta do arguido dada como provada, violou o disposto no artigo 180.° do Código Penal.

8. Pelo exposto, deve a sentença recorrida ser revogada por outra que dê como provada a tipicidade da conduta do Arguido, que considere a acção deste como atentatória da honra, consideração e bom nome do Assistente e, em consequência, o condene pela prática, em autoria imediata e na forma consumada, de um crime de difamação agravado.

Pelo exposto, concedendo provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra que condene o Arguido JMFF pela prática, em autoria imediata e na forma consumada, de um crime de difamação agravado, previsto e punido pelo artigo 180.º, n.º 1, 183.º n.º 2 e 184.º, por referência ao artigo 132°, n.º2, al. I), todos do Código Penal, farão V. Exas. JUSTIÇA.

- CC

1. Vem o presente recurso interposto da douta sentença, de fls… que absolveu o arguido JMFF do crime de difamação agravada p.p. pelos arts 180º nº 1 alínea a) e b) e art 184º todos do Código Penal e do crime de injúria agravada, pp pelos arts 181º nº 1. 182, 183º n 2 184º, por referência ao art 132º nº 2 alínea l todos do Código Penal, absolvendo-o ainda do pedido de indemnização civil formulado pela assistente, aqui recorrente;

2. A sentença ora recorrida padece do vício de contradição insanável da fundamentação previsto no art. 410º, nº2, al. b), do CPP.

3. Como pode simultaneamente dar-se como provado que o arguido JF escreveu, assinou e publicou aquele artigo de opinião onde proferiu afirmações, imputações e suspeições que foram criteriosamente direccionadas para a assistente, atingindo-a pessoalmente na sua honra e consideração, bem sabendo que as mesmas eram susceptíveis de atingir a honra e a dignidade e consideração pessoal e profissional da assistente que sabia ter actuado no exercício das suas funções que por lei lhes estão confiadas mas, ainda assim fê-lo, sobretudo e por causa da profissão da assistente;

4. E dar como não provado que o arguido agiu com a única intenção de levantar dúvidas sobre a honorabilidade pessoal e profissional da assistente e de questionar a sua ética pessoal e profissional, atingindo-a como pessoa e responsável nos processos de execução fiscal da CM de ………, funções públicas essas que, o arguido bem conhecia, ante o lastro instrutório granjeado reunir.

5. Não se percebe também como é que na própria fundamentação de facto o Tribunal “a quo” dê como provado que;

“O arguido ao utilizar as exposições e expressões que utilizou tinha plena consciência do carácter ofensivo e de insinuações implícitas contidas em todas elas” (ponto 13); que “sabia que as afirmações e imputações por si proferidas iriam ser consideradas como credíveis pelo leitor normal.” (ponto 11); e que “Sabia também o arguido que tais imputações, e suspeições, eram suscetíveis de atingir a honra, dignidade e consideração pessoal e profissional da assistente, que sabia ter atuado no exercício das funções que por lei lhe estão confiadas mas, ainda assim fê-lo, sobretudo e por causa do exercício da profissão da assistente.” (ponto 23.);

6. E, ao mesmo tempo, dê como não provado que, “Ao escrever e publicar aquele artigo de opinião do “C… de……….., pretendia o arguido denegrir a imagem pública da Assistente e descredibilizar a sua atuação enquanto responsável pelas execuções fiscais da CM de ……….., criando na opinião pública a ideia de que a sua atuação é ilegal, o que conseguiu” (ponto f).

7. Ou seja, como pode afirmar-se que o arguido tinha plena consciência do caracter ofensivo de tais afirmações e imputações, que sabia serem suscetíveis de atingir a honra, dignidade e consideração pessoal e profissional da assistente, e ao mesmo passo, na matéria de facto não provada, afirmar que ao escrever e publicar tais afirmações não

8. Dada a factualidade que ficou vertida na sentença, é inexplicável que o tribunal tenha considerado que não tenha o arguido com a sua conduta tido a intenção de levantar dúvidas sobre a honorabilidade pessoal e profissional da assistente e de questionar a sua ética pessoal e profissional, como pessoa responsável pelas execuções fiscais,

9. Quando, provou que a assistente se tenha sentido profundamente ofendida na sua honra e consideração pessoal e profissional, pelas afirmações, insinuações, suspeitas constantes no artigo de opinião escrito, assinado e publicado pelo arguido, sob a conduta da assistente enquanto chefe de divisão e responsável pelas execuções fiscais, sabendo bem o arguido que ofendia a honra e consideração da assistente, não só enquanto funcionária pública, mas na qualidade de cidadão comum, formulando um juízo ofensivo da sua honra e consideração pessoal humilhando-a, sentindo-se assim esta vexada e humilhada perante todas as pessoas que leram aquele artigo de jornal, designadamente, todos os funcionários que trabalham consigo na Divisão de Suporte Técnico Administrativo da CM de………… e perante todos os Munícipes da cidade de ……….., tendo tal artigo de opinião consequências devastadoras para a assistente, causando-lhe sofrimento e perturbação no seu dia-a-dia.

10. A douta sentença recorrida padece, nos termos do art 410º nº 2 al. b), do Código de Processo Penal, de contradição insanável entre a matéria dada como provada e a não provada, bem como entre a matéria dada como provada e a fundamentação e consequente decisão.

11. Pelo que, nos termos dos artigos 410º n 2 al. b), 426º e 426ª A, todos do Código de Processo Penal, deverá ser declarada nula e substituída por outra que condene o arguido pela prática do crime de difamação, dado que os factos dados como provados permitem decidir a causa, pois integram indubitavelmente o crime de difamação imputado ao arguido, ou caso assim V. Exas. o não entendam, deverão proceder ao reenvio do processo para novo julgamento

12. O arguido foi acusado pelo cometimento de um crime de difamação agravada p.p pelos arts 180º nº 1, art 182º, art. 183º nº 2 e art.184º, com referência ao art 132º n 2, al. l) todos do Código Penal e um crime de injúria agravada, p.p pelos arts 181º nº 1, art 182º, art. 183º nº 2 e art.184º, com referência ao art 132º n 2, al. l) todos do Código Penal, por em síntese ter no mês de Maio de 2015 ter escrito, assinado e publicado no suplemento Informativo do jornal “C…….. de …….” um artigo com o título “A Imoralidade e Ilegalidade nas Cobranças de Água”, onde acusa a assistente de “ (…) como Chefe fechar os olhos para alguns processos e procedimentos para os quais deveriam ter bem abertos e, como técnicos superiores, usarem realmente, a sua autonomia técnica para imporem o respeito pela lei, e cumprirem o seu dever de funcionários públicos, que é o de colocarem o seu trabalho ao serviço público, sejam as populações as empresa ou outras”

13. Submetido a Julgamento, o arguido foi absolvido do cometimento dos aludidos crimes, por ter sido considerado pelo Tribunal a quo que o artigo subscrito pelo arguido se insere no âmbito do direito à liberdade de expressão, à opinião e à crítica, não preenchendo desta forma a tipicidade do art 180º nº 1 do Código Penal, considerando o direito à liberdade de expressão, crítica e opinião à luz dos artigos 18ºn 2, 25º n 1, 26º n. 1 e 37ºnºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa.

14. A liberdade de expressão na variante do direito de crítica, mesmo que objectiva, não é um direito ilimitado, absoluto, sem restrições, estabelecendo a lei, ao invés, garantias efectivas contra a sua utilização abusiva e contrária à dignidade humana (arts. 37º e 18º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa),

15. A concessão de dignidade penal a condutas que ofendem a honra ou a consideração das pessoas visa proteger o direito reconhecido constitucionalmente à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, ao bom-nome e à reputação que constam do art.º 26º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa pois que, como se refere no seu art.º 1º, Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana.

16. O legislador optou por consagrar um limite à liberdade de expressão nos casos em que essa liberdade ponha em causa a honra de terceiros, só assim se explicando a necessidade de criminalizar as condutas lesivas deste bem jurídico, admitindo, porém, que o crime de difamação possa não ser punível desde que se verifiquem duas condições cumulativas, a saber:

(a) que a imputação seja feita para realizar interesses legítimos e

(b) que o agente faça a prova da verdade da mesma imputação (“exceptioveritatis”), ou tiver fundamento sério para, em boa-fé, a considerar verdadeira, traduzindo, aqui sim, uma clara prevalência sobre o direito à honra do lesado.

17. À face da ordem jurídica interna (lei ordinária), o direito de expressão deve ceder, em regra, perante o direito à honra, excepcionando-se aquelas situações em que a prossecução de um interesse legítimo e a verdade dos factos justifiquem a imputação, ou em que a gravidade da situação – avaliada caso a caso – mereça a sua denúncia pública.

18. Estando em causa o núcleo essencial do direito ao bom – nome e reputação, não há, em bom rigor, um conflito com a liberdade de expressão, no caso da difamação, dado que não está coberto pelo âmbito normativo – constitucional português da liberdade de expressão o “direito à difamação”, o “direito à calúnia” ou o “direito à injúria”.

19. In casu a autoria das expressões contidas naquele artigo de opinião, sempre foram assumidas pelo arguido, JF, advogado, e membro da assembleia municipal, sendo certo que o aqui exercício profissional não pode ser despiciendo em termos da importância de que para um advogado se reveste o significado das palavras “ ... a Câmara não queria, então nem sequer agora comprar uma guerra com estas Chefias (..) para as ter sobre controlo e para elas fecharem os olhos para alguns processos e procedimentos para os quais os deveriam ter bem abertos e, como técnicos superiores, usarem, realmente a sua autonomia técnica para imporem o respeito à lei (...)”, através das quais acusa a assistente, que bem sabe ser ela a Chefe de Divisão de Suporte Técnico e Administrativo da CM de …., e responsável pelas execuções fiscais da CM de ….., de actos passíveis de preencher ilícitos criminais (actos de corrupção), não ignorando, enquanto advogado, o sentido axiológico das palavras que utilizou e dirigiu à assistente, enquanto Chefe de Divisão de Suporte Técnico e Administrativo da CM de ……… e responsável pelas execuções fiscais, visando-a pessoal e profissionalmente.

20. Estas imputações não aparecem isoladas, encontram-se contextualizadas no conjunto mais vasto das afirmações igualmente produzidas pelo arguido, nomeadamente de que a assistente:

Recebia através dos resultados das cobranças por via da execução fiscal quantias elevadas que para além de “ilegal” é da “mais ignóbil imoralidade”.

21. Tais expressões exprimem juízos de apreciação e valoração pessoais pejorativos que ultrapassam o âmbito da crítica objectiva, visando o núcleo essencial das qualidades morais da assistente, uma vez que, caso fosse verdadeira tal imputação, tornaria a assistente funcionalmente “inapta” para o exercício do referido cargo por ausência de características morais consideradas essenciais para a prossecução das funções inerentes ao cargo que desempenha.

22. As expressões usadas pelo arguido extravasam claramente o âmbito da crítica objectiva pois não se ativeram à obra, realizações ou prestações da funcionária pública ora assistente, antes situando-se as mesmas no âmbito das relações pessoais, atingindo a honra da pessoa visada, razão porque tais expressões não caem fora da tipicidade do crime de difamação.

23. O crime de difamação é um crime doloso, “o que quer significar que só estão arredadas do seu âmbito subjectivo as condutas negligentes, sendo, por isso, suficiente a imputação baseada tão só em dolo eventual”, como afirma o Professor José de Faria Costa, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo I, pág. 612.

24. Independentemente da intenção do agente, o tipo basta-se com verificação da susceptibilidade das expressões para ofender, porquanto o crime em causa é um crime de perigo, sendo suficiente a idoneidade da ofensa para produzir o dano, como acontece neste caso.

25. Não está aqui em causa o incómodo, a ofensa a uma “sensibilidade embotada” por contraposição com uma “sensibilidade tolerante, ou até o exercício acalorado da critica política inserida no amplo debate político democrático, ou até, nos limites da jurisprudência do Tribunal Europeu, o conflito de ideias que “melindrem”, choquem ou “inquietem” personalidades menos tolerantes, com menos “poder de encaixe”.

26. Não, o que aqui está em causa, é que o arguido referiu que a assistente, enquanto responsável pelas execuções fiscais, implementou um procedimento ilegal para receber participação “ilegal” e “da mais ignóbil imoralidade”, nas custas das execuções fiscais e que tais participações apenas lhe são pagas para ela “fechar os olhos” às ilegalidades praticadas pelo executivo camarário, ou seja, o que o arguido afirma e quis transmitir a todos quanto leram o artigo, é que a assistente é pessoa corruptível.

27. A conduta do arguido preenche, assim, o tipo legal de crime de difamação, não se verificando qualquer causa de exclusão da ilicitude nem a causa de justificação prevista no nº 2 do art. 180º do Código Penal, de harmonia com a qual a conduta não é punível quando a imputação for feita para realizar interesses legítimos e o agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver fundamento sério para, em boa – fé, a reputar verdadeira.

28. No caso concreto as palavras proferidas pelo arguido “... a Câmara não queria, então nem sequer agora comprar uma guerra com estas Chefias (..) para as ter sobre controlo e para elas fecharem os olhos para alguns processos e procedimentos para os quais os deveriam ter bem abertos e, como técnicos superiores, usarem, realmente a sua autonomia técnica para imporem o respeito à lei (...)”, não são verdadeiras, pois não se demonstraram quaisquer factos concretos que sustentem uma adequação material com os juízos de (des)valor emitidos ou que, com base nos mesmos (factos), o arguido tivesse fundamento sério para, em boa fé, os reputar (os juízos desonrosos) como verdadeiros, não existindo nos autos elementos no sentido de que a assistente tivesse sido sequer indiciada e muito menos acusada ou condenada pelo “crime” de corrupção.

29. A matéria de facto dada como provada é suficiente para impor a condenação do arguido e que a sentença seja publicada no mesmo jornal, isto é, no “C……. de ……….” porquanto somente a publicação de uma sentença neste sentido com a mesma divulgação da notícia inicial fará justiça à pessoa ao nome e à profissão da assistente.

30. Deverá ainda o arguido ser igualmente condenado no pedido de indemnização civil conta si formulado pela prática do crime de difamação agravada.

Nestes termos e sem prescindir do douto suprimento de Vossas Excelências, deve o presente recurso merecer provimento e, em consequência:

a) ser a presente sentença declarada nula nos termos do disposto nos art. 410º n 2 al. b), do Código do Processo Penal, em virtude da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

b) ou caso assim não se entenda deverá ser proferida douta decisão, em substituição da ora recorrida, que condene o arguido pela prática do crime de difamação agravada, devendo ser também ordenada a publicação da sentença condenatória no Jornal “C…… de ……….”, e devendo ainda o arguido ser igualmente condenado no pedido de indemnização civil contra si formulado.

Porém Vossas Excelências decidirão como for de JUSTIÇA.

Os recursos interpostos foram admitidos com subida imediata, nos próprios autos, e efeito devolutivo.

O arguido JMFF exerceu o seu direito ao contraditório, tendo formulado, por seu turno, as seguintes conclusões:

1. Que o conteúdo do texto da publicação em apreço não é susceptível de poder ter relevância criminal por não ofender a honra e dignidade pessoal e profissional da Assistente. Enquadrar tal texto e punir o seu autor do modo pretendido pelos recorrentes, seria interpretar a norma jurídico-penal que tipifica e pune os crimes de Difamação agravado e de Injúria agravado (artºs 180º, nº 1; 183º, nºs 1, als. a) e b); 184º e artºs 181º, nº1; 182º; 183º, nº 2, e 184º, por referência ao artº 132º, nº 2, al. l), todos o C. Penal) de uma forma não consentida e desconforme aos direitos e liberdades pessoais, de cidadania e políticos, bem como os direitos de liberdade de opinião e de expressão pessoal e política do arguido (entre outros, artºs 25º, nº 1; 26º, nº 1, 36º nº 1 e 48º, todos da C. R. Portuguesa )

2. Que o comportamento que se criticou e se pretendeu colocar em crise, no texto publicado, foi o dos responsáveis políticos (Presidente e vereadores) da CM de………… que optaram pelo modelo de cobrança de água criticado, quando, segundo a Lei dos Serviços Públicos Essenciais (Lei nº 23/96, de 26 de Julho), que considera ser de aplicar ao caso um modelo civilístico, sendo a recomendação da Entidade Reguladora dos Serviços de Água e Residuos (ERSAR) no mesmo sentido.

3. Que o arguido, com o mesmo objectivo crítico, se debruçou sobre a decisão da Câmara Municipal em afetar automaticamente uma parte da receita arrecadada com a cobrança da Taxa de Justiça efectuada nos Processos de Execução não prevista em qualquer lei aplicável como era, também, o entendimento de umaboa parte da doutrina e jurisprudência sobre o assunto acima invocadas, incluindo os invocados pareceres da Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos, Comissão Coordenadora Regional de Lisboa e Vale do Tejo e, bem assim, da Associação Nacional dos Municípios Portugueses.

4. O único objectivo do arguido e da força política que publicou o texto (L…… ……) era a mudança do modelo de cobrança de água que, segundo o seu ponto de vista, era ilegal, injusto e imoral para os contribuintes e consumidores e sem dele haver vantagem financeira visível para o Município de ………………. posto ser legal e aconselhável seguir o modelo de cobrança decorrente da Lei dos Serviços e Bens Essenciais e a recomendação da ERSAR, o que permitiria vantagens financeiras semelhantes para o Município, sem necessidade de sobrecarregar o consumidor.

5. Foi com esta única motivação e intenção que o arguido dirigiu a sua critica, veemente e frontal, ao modelo adoptado pela CM de………… – e não, à Assistente ou a qualquer das outras Chefias e funcionários subalternos do seu corpo administrativo, por isso rematando o texto publicado, aqui em causa, dizendo: “Agiremos por todos os meios, incluindo no âmbito regulamentar para mudar esta imoralidade vergonhosa e repor a legalidade e a justiça nesta matéria.” Sendo claro que a intenção manifestada no texto em causa era, apenas, a de fazer critica política aos responsáveis pelos órgãos de gestão municipal e a de lograr a alteração do modelo de cobrança de água, mormente alterando o “Regulamento Municipal” aplicável.

6. Não se pode, com todo o respeito, extrair do texto, subscrito pelo arguido na qualidade de autarca do movimento L……………por…….., publicados juntamente com mais outros quatro ou cinco textos apócrifos, por ela colectivamente analisados e aprovados, todos com a mesma motivação, os mesmos objectivos e semelhante teor, de cujo contexto se retira o exclusivo propósito de expressar o posicionamento político desse movimento de cidadãos e dos seus autarcas face à actuação da CM de ……. e demais órgãos autárquicos municipais (entre fls. 306 e 307, dos autos).

7. Como se disse no corpo das presentes contra-alegações, a ilegalidade e ignóbil imoralidade, referida no texto, releva da ética política e é, em exclusivo, dirigida à CM de …….. em virtude das opções políticas tomadas na decisão adoptar um modelo de cobrança coerciva da água assente no procedimento de execução fiscal – quando a Lei de Fornecimento de Serviços Públicos impõe um modelo de direito privado e civilista, como a entidade reguladora do sector (ERSAR), que tomou posição sobre o assunto, recomendou às autarquias.

8. Estando em causa a não adopção desse modelo civilista, e, também a opção da CM de………., ter decidido optar por manter o modelo de recurso às execuções fiscais, e ao abrigo dessa decisão, optar, igualmente, por distribuir parte da receita de custas judiciais, relativas às execuções fiscais para cobrança das facturas de água, pelas chefias e funcionários do serviço, nunca tendo, directa ou por via de insinuação, sido imputado à Assistente qualquer intervenção ou responsabilidade por tais decisões.

9. De modo algum, se imputando, à Assistente, qualquer facto ou comportamento que pudesse ter sido tido por desonesto ou ilegal, ou que ela agiu com algum fito de receber parte de alguns desses quantitativos para “fechar os olhos para alguns processos e procedimentos contrários à lei e às suas funções de funcionária pública”, sendo “uma forma de dizer que a assistente é uma pessoa corruptível”.

10. Por conseguinte, a imoralidade de que se fala no texto releva da ética política que devia ter sido tida em conta na actuação dos órgãos autárquicos no processo de formação das decisões administrativas aqui em apreço, não releva, de modo algum, da ética profissional e pessoal da Assistente, ou de quem quer que seja.

11. Apesar da alteração ao texto da douta sentença recorrida na parte relativa à matéria de facto e sua fundamentação, com todo o respeito e salvo melhor opinião, ainda sim, continuam a subsistir vícios processuais que a inquinam de nulidade, decorrentes de terem sido introduzidas alterações na sentença sem prévia audição do arguido e demais partes intervenientes para se pronunciarem sobre as alterações que nela foram introduzidas, bem como o princípio da publicidade do julgamento terminar com a leitura da sentença em audiência pública, o que significa , também, a violação do direito de defesa e do contraditório legal e constitucionalmente consagrados (entre outros, artºs 61º, 321º, 322º, 327º do C. P. Penal e artºs 2º, 9º, al. b), 29º, 32º da C. R. Portuguesa.

12. Ocorre, ainda e salvo melhor a nulidade decorrente de o Tribunal a quo não ter apreciado a invocada questão de o arguido ter sido objecto de um segundo julgamento sobre os mesmos factos, conforme invocado na contestação e era do conhecimento processual (certidão de sentença de fls. 429 a 440) e pessoal do Mtº Juiz, que procedeu, igualmente, ao julgamento no Procº nº ……….., pois o nosso ordenamento jurídico acolhe o princípio de ne bis in indem, consagrado no artº 29º, nº 5, da C. R. Portuguesa.

13. Em qualquer caso, contando com o douto suprimento deste suprimento deste venerando Tribunal da Relação, devem ser julgados não provados e improcedentes os recursos e manter-se a decisão de absolvição do arguido. Tudo como é de Justiça!

O Digno Procurador-Geral Adjunto em funções junto desta Relação emitiu parecer sobre os recursos, defendendo procedência do encabeçado pela assistente, no sentido de a sentença recorrida enfermar do vício previsto na al. b) do nº 2 do art. 410º do CPP e serem os autos reenviados à primeira instância.

O parecer emitido foi notificado aos sujeitos processuais, a fim de se pronunciarem, o que não fizeram.

Foram colhidos os vistos legais e procedeu-se à conferência.

II. Fundamentação

Nos recursos penais, o «thema decidendum» é delimitado pelas conclusões formuladas pelos recorrentes, as quais deixámos enunciadas supra.

Encontramo-nos perante dois recursos interpostos da sentença, um pela assistente/ofendida e o outro pelo MP, versando este último exclusivamente sobre a impugnação do juízo de enquadramento jurídico-criminal dos factos provados, no sentido de estes serem típicos do crime agravado de difamação por que o arguido vinha acusado.

A sindicância da sentença recorrida expressa nas conclusões da assistente é multiforme e desdobra-se nas seguintes questões:

a) Invocação do vício da decisão previsto no art. 410º nº 2 al. b) do CPP;

b) Impugnação do juízo de qualificação jurídico-criminal dos factos, pedindo-se a condenação do arguido pela prática do crime de difamação agravada e no pedido de indemnização civil.

Assim, antes entrarmos na apreciação da impugnação, por assim dizer, «substantiva» da sentença, deduzida por ambos os recorrentes, conheceremos a questão de ordem processual suscitada pela assistente.

Na parte que pode interessar, o nº 2 do art. 410º do CPP dispõe:

Mesmo nos casos em que a lei restringir a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum:

a) …;

b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

c) ….

A contradição na fundamentação verifica-se sempre que a motivação da decisão contenha asserções logicamente incompatíveis entre si, como seja julgar o mesmo facto simultaneamente provado e não provado ou julgar provados factos que mutuamente se excluam.

Já a contradição entre a fundamentação e a decisão tem lugar quando estas se encontrem em oposição lógica entre si, como seja no caso em que, depois de julgar não provados os factos alegados na acusação, o Tribunal condene o arguido pela prática do crime por que vinha acusado.

Qualquer dos vícios tipificados no nº 2 do art. 410º do CPP terá de ser inferido do próprio texto da sentença, por si ou conjugado com as regras de experiência comum, não podendo ser tomados em consideração elementos exteriores, nomeadamente, meios de prova cujo conteúdo não esteja de alguma forma reflectido no texto da decisão.

No entender da assistente, a sentença recorrida enferma do vício previsto na al. b) do normativo em referência, nas suas duas vertentes da contradição na fundamentação e da contradição entre a fundamentação e decisão.

Assim, segundo a assistente, encontramo-nos perante uma contradição na fundamentação, quando o Tribunal «a quo julgou provados os factos dos pontos 11, 13 e 13 da matéria assente e, ao mesmo tempo, deu como não demonstrados os dos pontos e. e f. da matéria não provada.

Por outro lado, a sentença em crise incorreu, de acordo com a mesma recorrente, em contradição entre a fundamentação, por ter julgado provados factos idóneos a integrar o cometimento pelo arguido de um crime de difamação, por que vinha acusado, e tê-lo ainda assim absolvido.

Quanto à contradição na fundamentação, diremos desde já que se nos afigura que a assistente carece de razão.

De acordo com o critério que vimos seguindo e que deixámos enunciado, só se verifica uma contradição insanável entre um juízo probatório afirmativo e um negativo se houver uma relação de identidade entre os objectos factuais de um e de outro juízo, ou seja, dito de outra maneira se se tratar do mesmo facto.

Ora, os factos descritos nos pontos e. e f. da matéria não provada são elementos intencionais que situam claramente «mais além» do que os factos subjectivos que foram julgados demonstrados.

No que se refere à invocada contradição entre a fundamentação e a decisão, importa considerar que o arguido foi absolvido do crime de difamação por que vinha acusado, não obstante os factos que se provou ter praticado, por razões que constam da fundamentação jurídica da sentença, como adiante melhor se verá.

Seguramente, a assistente discordará dos juízos jurídicos que estiveram na origem da absolvição do arguido e teve o ensejo de os discutir em sede própria.

Em todo o caso, tais juízos têm o condão de eliminar qualquer oposição entre a fundamentação da sentença no seu conjunto e a respectiva conclusão decisória.

Cumpre agora apreciar as pretensões recursivas, em matéria de enquadramento jurídico-criminal dos factos.

Nesta parte, tanto o MP como a assistente peticionam a condenação do arguido pelo cometimento de um crime de difamação p. e p. pelos arts. 180º nº 1, 183º nº 2 e 184º, com referência ao art. 132º nº 2 al. l) todos do CP, por que vinha acusado.

Assim sendo, ambos os recorrentes «deixaram cair», implicitamente, a imputação de um crime de injúrias tipificado pelo art. 181º nº 1 do CP, sujeito a idêntica agravação, pelo qual o arguido vinha igualmente acusado.

Como tal, a cognição deste Tribunal ficará restrita ao crime de difamação, dela se excluindo o crime de injúrias, a não ser, eventualmente como incriminação alternativa ao crime de difamação e não em concurso efectivo com este, que era a qualificação jurídica constante do libelo acusatório.

O tipo criminal fundamental da difamação é assim definido pelo nº 1 do art. 180º do CP:

Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias.

Por sua vez, o nº 2 do art. 183º do estatui:

Se o crime for cometido através de meio de comunicação social, o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa não inferior a 120 dias.

O art. 184º do CP reza:

As penas previstas nos artigos 180.º, 181.º e 183.º são elevadas de metade nos seus limites mínimo e máximo se a vítima for uma das pessoas referidas na alínea l) do n.º 2 do artigo 132.º, no exercício das suas funções ou por causa delas, ou se o agente for funcionário e praticar o facto com grave abuso de autoridade.

Finalmente, a al. l) do nº 2 do art. 132º do CP é do seguinte teor:

l) Praticar o facto contra membro de órgão de soberania, do Conselho de Estado, Representante da República, magistrado, membro de órgão do governo próprio das regiões autónomas, Provedor de Justiça, membro de órgão das autarquias locais ou de serviço ou organismo que exerça autoridade pública, comandante de força pública, jurado, testemunha, advogado, solicitador, agente de execução, administrador judicial, todos os que exerçam funções no âmbito de procedimentos de resolução extrajudicial de conflitos, agente das forças ou serviços de segurança, funcionário público, civil ou militar, agente de força pública ou cidadão encarregado de serviço público, docente, examinador ou membro de comunidade escolar, ministro de culto religioso, jornalista, ou juiz ou árbitro desportivo sob a jurisdição das federações desportivas, no exercício das suas funções ou por causa delas.

Seguidamente, reproduzimos o trecho da fundamentação da sentença recorrida dedicado ao enquadramento jurídico dos factos (reprodução com diferente tipo de letra):

B) DE DIREITO

A primeira questão que se coloca consiste em apreciar se as condutas que foram descritas e imputadas ao arguido, correspondem à descrição jurídico-penal legalmente prevista, de modo que o mesmo possa ser responsabilizado pela sua infracção, pelo que se deverá ter em atenção os respectivos normativos, aos quais está subjacente a tutela de um determinado bem jurídico – F. Muñoz Conde alude a propósito que “a norma jurídico-penal pretende a regulação de condutas humanas e tem por base a conduta humana que pretende regular”, acrescentando ainda que “a norma selecciona uma parte que valora negativamente e que comina com uma pena” in Teoria General del Delito, 1984, p. 9.

***

Ora, o arguido encontra-se acusado da prática de um crime de Difamação, agravada.

Prescreve-se no Art.º 180º, n.º 1, do Código Penal, que comete o crime de difamação “quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração”.

Por força do disposto no Art.º 182º, da mesma sede legal, à difamação verbal é equiparada a feita por escrito, gestos, imagens ou qualquer outro meio de expressão.

Se a ofensa for praticada através de meios ou circunstâncias que facilitem a sua divulgação ou, em se tratando de imputação de factos, se se provar que o agente conhecia a falsidade da imputação, assume o crime agravação, por via da elevação das penas aplicáveis – cfr. Art.º 183º, n.º 1, alínea a), da Lei Substantiva Penal.

Se cometido através de meio de comunicação social, a moldura penal é diversa, podendo ser agravada se a vítima for, de entre outros, membro de órgão das autarquias locais – cfr. Art.º 183º, n.º 1, Art.º 184º e Art.º 132º, n.º 2, alínea l), todos, do Código Penal.

O bem jurídico protegido com o tipo legal de que vem de se falar, é a honra ou consideração do visado.

Segundo o ensinamento do Sr. Prof. Beleza dos Santos, in Algumas considerações jurídicas sobre crimes de difamação e de injúria, RLJ, 92º-164, a honra é aquele mínimo de condições, especialmente de natureza moral, que são razoavelmente consideradas essenciais para que um indivíduo possa com legitimidade ter estima por si, pelo que é e vale.

A consideração é aquele conjunto de requisitos que razoavelmente se deve julgar necessário a qualquer pessoa, de tal modo que a falta de algum desses requisitos possa expor essa pessoa à falta de consideração ou ao desprezo público.

A honra refere-se ao apreço de cada um por si, à auto-avaliação no sentido de não ser um valor negativo, particularmente do ponto de vista moral, a consideração ao juízo que forma ou pode formar o público no sentido de tomar alguém como um bom elemento social, ou ao menos, de o não julgar um valor negativo.

Salienta ainda, "os delitos contra a honra não são crimes de dano. Para se considerarem consumados não é necessário que o ofendido tenha sofrido, de facto, uma diminuição na sua honra, ou na consideração social; basta que haja o perigo de que as ofensas que constituem aquelas infracções possam atingir esses dois valores. [...] Basta portanto, a imputação de facto donde resulte o perigo de ferir esses valores. A lei não exige que eles sejam realmente prejudicados, isto é, que os ofendidos, de facto, sejam avaliados socialmente como pessoas indignas ou com menor dignidade do que a que tinham, ou com menor consideração do que aquela que lhes era atribuída antes da ofensa em questão", estudo citado, RLJ, 95º-35, o que situa a honra, afinal, como objecto ideal.

Diz-nos Silva Dias, que as valorações sociais não intervêm na ocasião de definir o conteúdo da honra, mas apenas no momento de apreciar o que constitui ofensa à honra, ou seja, no momento da determinação da amplitude da tutela do bem jurídico - in Alguns aspectos do regime jurídico dos crimes de difamação e de injúrias, AAFDL, 1989, pág. 20.

Mas o crivo rigoroso da objectivação do modo como se olha a honra, o sentimento médio de honra da comunidade, “aquilo que razoavelmente, isto é, segundo a sã opinião da generalidade das pessoas de bem, deverá considerar-se ofensivo daqueles valores individuais e sociais”, Aut. Cit. in RLJ, 97º - 167, se absoluta, contrariaria a própria afirmação inicial que postula o conceito normativo de honra, como intrínseca ao indivíduo, substituindo-se-lhe pela aferição da dignidade fora do indivíduo, se lha achassem - e a honra, a final, seria de todos e de ninguém.

Ponto assente, é que a honra não só é um bem jurídico pessoalíssimo, como é um bem cuja afirmação da dignidade penal resulta inequívoca da mens legislatoris, que a inclusão da sua tutela em capítulo próprio denuncia.

Provou-se que o arguido, publicou em órgão de imprensa escrita um artigo de sua autoria, versando sobre dado status quo na participação de funcionários municipais em emolumentos e custas judiciais, reputando-o ilegal e imoral, alvitrando uma motivação para o mesmo que, apenas por excessiva bondade, se não teria por torpe.

Mas certo é que, como já vem este este Tribunal defendendo, o escrito lavrado pelo mesmo – não se pode olvidar a globalidade do texto – tem um desiderato político, repristinando uma questão que não é, de todo em todo, nova – Saldanha Sanches, já no ano de 2005, em artigo publicado in Fiscalidade, Revista de Direito e Gestão Fiscal, n.º 23, doutrinava que “este problema emerge, aliás tal como o outro, de uma sucessão de leis na matéria em causa, que provocou dúvidas, ainda não resolvidas, acerca da continuação da vigência de determinadas normas na ordem jurídica”, assinalando que “mercê de sucessivas alterações legislativas, a subsistência de tal direito tornou-se discutível a partir de 1990 e insustentável desde 1998”, concluindo que “a supressão, provavelmente preterintencional, do direito à percepção de emolumentos volta a ganhar actualidade numa conjuntura de grande celeuma em torno da problemática dos direitos adquiridos” – e recentemente voltou, em diversos pontos do país, à discussão no plano público e político.

Nessa medida – e não cabendo a este Tribunal sindicar dos efectivos contornos legais na participação de funcionários de autarquias locais em emolumentos e custas judiciais – é imperativo e legítimo, em democracia, o debate, a crítica, a expressão livre de opinião, com o inerente juízo valorativo em torno de um estado de coisas com o qual se não concorda.

Já não é a primeira vez que se escreve, no plano fundamental, a todos é reconhecido o direito ao bom nome e reputação – vd. Art.º 26º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.

E nesse mesmo plano, todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de serem informados, sem impedimentos nem discriminações – vd. Art.º 37º, n.º 1.

Escora o Art.º 18º, n.º 2, da Lei Fundamental, o doutrinado princípio da subsidiariedade do Direito Penal, também denominado princípio da mínima intervenção do Estado em matéria penal ou da máxima restrição das penas, tendo todas as indicadas expressões como conteúdo comum a asserção de que a cominação de sanções penais há-de constituir sempre a ultima ratio da política social.

Vale por dizer que, só é lícito incriminar certo comportamento quando a tutela do bem ou bens jurídicos que ele tem em vista proteger com a incriminação não poder ser conseguida através do recurso a outros meios menos gravosos.

Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, 1993, § 41, doutrina que “o direito penal só pode intervir onde se verifiquem lesões insuportáveis, das condições comunitárias essenciais de livre desenvolvimento e realização da personalidade de cada homem”.

As sanções penais constituem a mais intensa intromissão do Estado na esfera de liberdade dos indivíduos e são também aquelas que têm efeitos estigmatizantes mais acentuados.

Apenas deverão encontrar eco criminal os comportamentos tão gravemente lesivos de direitos fundamentais que impedem as condições mínimas essenciais de vida em sociedade, desde que não possam ser combatidos eficazmente através do recurso a meios menos gravosos do que os que são próprios do Direito Penal.

Quid que ora nos deve tomar atenção, é a velada motivação para o estado de coisas criticado pelo autor do artigo.

Resvala para a ofensa do núcleo essencial íntimo dos visados, transpondo as intransponíveis fronteiras da esfera da vida privada, obliterando a dignidade da pessoa humana?

A resposta não deve deixar de ser negativa.

Efectivamente, o innuendo vertido no artigo escrito pelo arguido, não desloca o universo de potenciais visados do plano público para o plano pessoal, transmutando a opinião que livremente expressa num ataque aos mesmos enquanto pessoas.

Apenas se está ante uma conduta difamatória, quando mais nenhum propósito à mesma preside, que não o de vexar, humilhar, atingir a esfera íntima do visado, sem qualquer contexto que a enquadre. Gratuitamente.

Já assim o não sucede, quando o propósito é diverso e quando se considera o contexto em que tem lugar.

Quando o fito seja a crítica, a opinião, a expressão livre.

Quando o contexto seja o combate político, sindical, a discussão académica, filosófica, teológica, ideológica e mesmo jurídica.

É oportuna, ante o thema decidendum, a transcrição de segmentos do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 81/84, de 18 de Julho, disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19840081.html, onde se exara que “a liberdade de expressão - como de resto, os demais direitos fundamentais - não é um direito absoluto, nem ilimitado. Desde logo, a protecção constitucional de um tal direito não abrange todas as situações, formas ou modos pensáveis do seu exercício. Tem, antes, limites, imanentes. O seu domínio de protecção pára, ali onde ele possa pôr em causa o conteúdo essencial de outro direito ou atingir intoleravelmente a moral social ou os valores e princípios fundamentais da ordem constitucional (v. neste sentido: J. C. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, 1983, pp. 213 e segs.). Depois, movendo-se num contexto social e tendo, por isso, que conviver com os direitos de outros titulares, há-de ele sofrer as limitações impostas pela necessidade de realização destes. E, então, em caso de colisão ou conflito com outros direitos - designadamente com aqueles que se acham também directamente vinculados à dignidade da pessoa humana [v. g. o direito à integridade moral (artigo 25º, nº 1) e o direito ao bom nome e reputação e à reserva da intimidade da vida privada e familiar (artigo 26º, nº 1)] -, haverá que limitar-se em termos de deixar que esses outros direitos encontrem também formas de realização. Dizer isto é reconhecer que, sendo proibida toda a forma de censura (artigo 37º, nº 2), é, no entanto, lícito reprimir os abusos da liberdade de expressão […]”.

“O artigo 37º aponta - segundo cremos - no sentido de que se não devem permitir limitações à liberdade de expressão para além das que forem necessárias à convivência com outros direitos, nem impor sanções que não sejam requeridas pela necessidade de proteger os bens jurídicos que, em geral, se acham a coberto da tutela penal. Mas, não impede que o legislador organize a tutela desses bens jurídicos lançando mão de sanções de outra natureza (civis, disciplinares...). Não terá, assim, que haver apenas sanções criminais. É que, o direito criminal deve limitar-se à tutela de bens jurídicos essenciais para a livre realização e desenvolvimento, em comunidade, da personalidade de cada homem. Só deve intervir quando os meios não criminais da política social se mostrem insuficientes para tutela daqueles bens jurídicos. Dizendo de outro modo: só deverá recorrer-se a sanções penais para tutelar os bens jurídicos mais importantes e fazer frente aos ataques mais graves. As sanções penais surgem, assim, como ultima ratio. É o princípio da subsidiariedade ou - como se expressa certa doutrina - o princípio da liberdade máxima - intervenção mínima (v. Munõz Conde, Introducción al Derecho Penal,Barcelona, 1975, pp. 59 e segs.)”.

As pessoas investidas em funções públicas, naturalmente se encontram mais expostas à crítica e à sindicância do seu agir, exposição que se amplia consoante o patamar de responsabilidades e o grau ocupado na hierarquia.

Olhando ao escrito do arguido, é o mesmo um exercício de liberdade de expressão, criticando um status quo com o qual não concorda, não resvalando para a sindicância da esfera íntima da Assistente ou de quem quer que seja, nem para um ataque infundado, gratuito, de ofensa pela ofensa, apenas com o fito de rebaixar, humilhar, devassar ou ofender a sua honra e reputação, quer pessoal, quer profissional.

Não é uma ode de vilipêndios ou considerações em torno de um alvo, mas expressão de uma crítica. Empolada, é certo.

Mas a crítica no contexto dos autos, não tem necessariamente que ser exercida por via do meio menos lesivo, sendo normal que se hiperbolize e se faça uso do modo mais eficaz de marcar pontos de vista, não se divisando na conduta do arguido considerações de pura malquerença pessoal.

Verifica-se pois atipicidade da sua conduta, não configurando qualquer violação aos tipos legais que ora nos ocupam a sciencia, ante o princípio mínimo de intervenção do Direito Penal, no conflito prevalecendo a liberdade de expressão, pois que tal prevalência não põe em causa as fronteiras intransponíveis da esfera da vida privada, nem sai obliterada a dignidade da pessoa humana, a honra ou reputação do visado, pois que o seu núcleo essencial se mostrou inatingido.

Impõe-se, por tudo de quanto se vem de dizer e no âmbito do crime que ora nos ocupa a sciencia, a absolvição do arguido.

Se bem compreendemos, o Tribunal «a quo» decidiu absolver o arguido por ter entendido que a sua apurada conduta era atípica do crime de difamação e se encontrava coberta pelo exercício da liberdade de expressão e do direito de informar consagrados no art. 37º nº 1 da CRP

Salvo o devido respeito, a fundamentação da sentença em crise incorre, neste ponto, em confusão de dois níveis de raciocínio que não devem ser misturados.

Num primeiro momento, o Tribunal ajuíza se determinada conduta humana, dada como provada, preenche ou não os elementos constitutivos de determinado tipo legal de crime.

Num segundo momento, verifica se ocorre alguma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, ou outras que afastem responsabilidade criminal do agente.

Ambos os recorrentes defendem que a conduta do arguido, dada como provada em julgamento, preenche a tipicidade do crime de difamação e a assistente alega ainda que não se mostram reunidos os pressupostos do tipo justificativo previsto no nº 2 do art. 180º do CP, que é do seguinte teor:

A conduta não é punível quando:

a) A imputação for feita para realizar interesses legítimos; e

b) O agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver tido fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira.

Na motivação jurídica da sentença sob recurso, o Tribunal «a quo»» não discutiu da aplicabilidade do normativo legal agora enunciado à situação em apreço.

Resumidamente, o tipo criminal da difamação, tal como o define o nº 1 do art. 180º do CP, pode ser desdobrado nos seguintes elementos constitutivos:

a) Uma declaração humana consistente na imputação de um facto a determinada pessoa ou na formulação de um juízo sobre ela;

b) Ser essa declaração dirigida a um terceiro;

c) Uma ofensa à honra ou consideração da pessoa visada, causada pela declaração;

d) O dolo do agente.

Dispensamo-nos de tecer mais considerações sobre a concretização dogmática do bem jurídico «honra e consideração», tutelado pela norma incriminadora em referência, o que se nos afigura satisfatoriamente efectuado pelo Tribunal «a quo».

O artigo de jornal, pelo qual o arguido responde, mostra-se integralmente transcrito no ponto 7 da matéria provada e o ajuizamento da sua potencialidade lesiva da honra e consideração da assistente terá de ser efectuado no contexto das funções por ela exercidas na CM de……., que estão relatadas nos pontos 1 a 4 da mesma sequência factual.

Todo o conteúdo do artigo em causa consubstancia uma forte crítica à praxis político-administrativa CM de ………., relativa ao procedimento de cobrança das importâncias devidas pelos munícipes pelo fornecimento de água, que o articulista equipara ao das execuções fiscais, e só secundariamente atinge a assistente, enquanto funcionária dessa CM, com a categoria de Chefe de Divisão, responsável por esses procedimentos de cobrança.

O texto em análise colide com a honra e consideração da assistente na parte em que lhe imputa ter recebido quantias que lhe não eram devidas, pelo seu trabalho de funcionária da CM, e que este órgão autárquico estaria promovendo ou compactuando com essa situação, na esperança que a assistente «fechasse os olhos» a eventuais actuações suas, contrárias à lei.

Nesta parte, teremos de concordar com os recorrentes no sentido que o artigo incriminado deixa entender que a assistente é pessoa corruptível, independentemente de ela ter ou não aceite a «troca de favores», que, segundo o articulista. estaria implícita na postura da CM.

Ser «corruptível» não é o mesmo que ser «corrupto», mas já é suficiente para lesar o bem jurídico a que nos reportamos.

O texto em apreço foi publicado num jornal destinado a ser lido pela generalidade das pessoas, pelo que as expressões e afirmações dele constantes são necessariamente dirigidas a terceiros.

O nexo de imputação subjectiva do crime em causa pode concretizar-se em qualquer das variantes do dolo previstas no art. 14º do CP, estando hoje posta de parte a ideia da exigência de um dolo específico, o chamado «animus diffamandi», para o preenchimento do tipo – vd., nesse sentido, José de Faria Costa, «Comentário Conimbricense do Código Penal. Parte Especial. Tomo I», pág. 612.

Ao ter-se dado como provado, no ponto 23, que o arguido sabia que as imputações e suspeições, constantes do artigo incriminado, eram susceptíveis de atingir a honra, dignidade e consideração pessoal e profissional da assistente, e ainda assim fê-lo (publicar o artigo), termos de verificar que o elemento constitutivo consistente no dolo do agente se encontra reunido, pelo menos na modalidade do dolo necessário, a que se refere o nº 2 do art. 14º do CP.

Nesta conformidade, conclui-se que a apurada conduta do arguido é típica do crime de difamação, tipificado pelo nº 1 do art. 180º do CP.

Aqui chegados, importa averiguar se ocorre alguma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa do arguido, desde logo, a referida na fundamentação da sentença sob recurso, qual seja o exercício das liberdades e direitos consagrados no art. 37º nº 1 da CRP.

Em tese geral, não nos repugna que o exercício dos direitos e liberdades consagrados no art. 37º nº 1 da Lei Fundamental possa funcionar como clausula de justificação de condutas lesivas da honra e consideração alheias, pelo menos por via do disposto no art. 31º nº 2 al. b) do CP, que exclui a ilicitude criminal do facto praticado no exercício de um direito.

Contudo, temos entendido também que a referida causa de exclusão da ilicitude só funciona autonomamente em relação a condutas típicas do crime de difamação, que não se traduzam na imputação de factos concretos.

Nesta última hipótese, o afastamento da ilicitude só ocorre quando se mostrem reunidos os pressupostos do tipo justificativo do nº 2 do art. 180º do CP, que é mais exigente.

Tal diferença de tratamento justifica-se em função de a imputação de factos concretos assumir uma potencialidade lesiva do bem jurídico tutelado pela norma que prevê e pune o crime de difamação, muito maior que a dos meros juízos valorativos.

Ora, na parte em que colide com a honra e consideração da assistente o artigo incriminado claramente imputa factos.

O tipo justificativo do nº 2 do art. 180º do CP abrange cumulativamente dois requisitos distintos, que são, por um lado, que a imputação tenha sido feita para realizar interesses legítimos e, por outro lado, que o agente prove a verdade dos factos imputados ou, pelo menos, tenha motivo sério para acreditar, de boa fé, na sua veracidade.

O referido tipo legal impõe ao agente um dever de se informar e o nº 4 do mesmo artigo do CP exclui a boa fé, para o efeito previsto no nº 2, se esse dever não tiver sido cumprido.

O artigo de jornal, por cuja publicação o arguido responde, tem por finalidade criticar a política seguida pela CM de ……….. no domínio da cobrança das prestações devidas pelos munícipes pelo serviço de fornecimento de água, da qual o arguido profundamente discorda.

Consequentemente, as imputações factuais feitas no mesmo artigo, que lesam a honra e consideração da assistente, inserem-se nesse mesmo propósito de crítica da política camarária, e só secundariamente são dirigidas contra ela, enquanto funcionária superior responsável pela implementação dessa política.

Nesta perspectiva, podemos concluir que a imputação foi feita por motivo legítimo para o efeito previsto na al. a) do nº 2 do art. 180º do CP, independentemente da correcção ou incorrecção substancial da crítica formulada pelo arguido à política camarária em causa.

Quanto ao requisito previsto na al. b) da disposição legal a que nos reportamos, importa constatar que não foi feita qualquer prova dos factos imputados.

No que se refere à eventualidade de o arguido se encontrar de boa fé convencido da veracidade desses factos, teremos de ter em atenção que o parágrafo, em que é dito que o resultado das cobranças por via de execução fiscal está a ser distribuído, em quantias elevadas, pelas chefias do serviço em causa, foi introduzido pela seguinte locução: «Na sequência de informação da Câmara viemos a saber que…».

Neste contexto, as imputações feitas pelo arguido nessa sequência apoiam-se em informação a que o arguido teve acesso, proveniente dos serviços da CM de ………, e à qual deu crédito.

Não se sabe se o arguido detém a qualidade profissional de jornalista e se foi nesse pressuposto que escreveu e publicou o artigo incriminado, sendo certo que, na hipótese afirmativa, poderia arrogar-se as garantias do acesso às fontes e do sigilo profissional, a que se refere a al. b) do nº 2 do art. 38º da CRP.

Em todo o caso, a demonstração dos pressupostos da «exceptio veritatis» da al. b) do nº 2 do art. 180º do CP, não pode passar pela revelação da fonte de onde proveio a informação em que se apoiaram as imputações, pois tal exigência seria manifestamente atentatória do direito de informar, constitucionalmente garantido.

Nesta ordem de ideias, à falta de melhores elementos em contrário, teremos de pressupor que o arguido cumpriu minimamente o dever de se assegurar da credibilidade da informação, que lhe foi transmitida por fonte interior aos serviços camarários e por ele transposta.

Como tal, teremos que concluir que se mostram reunidos no caso concreto, os requisitos do tipo justificativo do nº 2 do art. 180º do CP, pelo que terão de improceder os recursos interpostos, confirmando-se a sentença absolutória, ainda que com fundamentos jurídicos distintos.

III. Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento aos recursos e manter a decisão recorrida.

Sem custas o recurso interposto pelo MP.

Custas do recurso interposto pela assistente a cargo da recorrente, fixando-se em 3UC a taxa de justiça

Notifique.

Évora 23/6/20 (processado e revisto pelo relator)

(Sérgio Bruno Póvoas Corvacho)

(João Manuel Monteiro Amaro)