Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
867/12.0TBTVR.E1
Relator: VÍTOR SEQUINHO
Descritores: DESERÇÃO DA INSTÂNCIA
PODERES DO JUIZ
Data do Acordão: 03/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 – Se o autor é convidado a suprir a hipotética falta de um pressuposto processual susceptível de sanação e nada faz dentro do prazo que para o efeito lhe foi concedido, o impulso processual subsequente cabe ao tribunal.
2 – Se, nessas circunstâncias, o tribunal, em vez de prosseguir a tramitação processual legalmente prevista, mantiver o processo parado durante mais de seis meses, não se verificam os pressupostos da deserção da instância.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 867/12.0TBTVR.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Juízo de Competência Genérica de Tavira
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Acordam na secção cível do Tribunal da Relação de Évora:

Nesta acção declarativa, proposta sob a forma sumária, a autora, (…) pediu a condenação da ré Companhia de Seguros (…) Portugal, SA no pagamento de uma indemnização no montante de € 15.750,00 ou, caso o tribunal entenda que a responsabilidade por esse pagamento não cabe a essa ré por inexistência de seguro válido, vigente e eficaz, a condenação dos réus (…), (…) Mendonça e (…), Lda. e Fundo de Garantia Automóvel no pagamento da referida indemnização.
A autora pediu ainda que, em qualquer dos casos:
- A sentença tenha em consideração, no montante indemnizatório, o índice de inflação até à sua prolação;
- Sobre o montante indemnizatório que for fixado, o tribunal condene no pagamento de juros de mora, à taxa legal, desde a prolação da sentença até integral pagamento;
- O tribunal condene no pagamento de juros compulsórios, à taxa de 5% ao ano, desde o trânsito em julgado da sentença até integral e efectivo pagamento, nos termos do artigo 829.º-A, n.º 4, do Código Civil.
Findos os articulados, por despacho proferido em 06.07.2016 (fls. 192-193), o tribunal recorrido, ao abrigo do disposto nos artigos 6.º, n.º 2, 261.º e 316.º e seguintes do CPC, convidou a autora a, no prazo de 10 dias, suprir uma hipotética – porque ainda não comprovada – falta de legitimidade passiva.
A requerimento da autora, foi-lhe concedido, através de despacho proferido em 17.10.2016, novo prazo de 10 dias (fls. 199). Este despacho foi notificado à autora em 18.10.2016.

Sem qualquer outro processado, o tribunal recorrido proferiu, em 18.05.2017, despacho com o seguinte teor:
“O A. foi notificado em 18Out2016 para impulsionar os autos corrigindo falha processual, nada mais tendo feito nos autos. Prescreve a norma contida na al. c) do art. 277.º que a instância se extingue com a deserção. Por seu turno, esclarece o enunciado do n.º 1 do art. 281.º que “considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses”.
Nessa conformidade, declaro extinta a presente instância por deserção e ordeno o oportuno arquivamento dos autos.
Notifique.”

A autora recorreu deste último despacho, formulando as seguintes conclusões:
1. A instância não deverá considerar-se deserta.
2. Não foi endereçada à Recorrente uma ordem para corrigir uma falha processual, mas sim um convite para suprir uma hipotética falta de legitimidade passiva.
3. A falta de legitimidade não se encontrava provada nos autos.
4. O Meritíssimo Juiz “a quo” reconhece que não pode concluir-se, com grau de certeza, e atendendo ainda a que a Recorrente não aceita esse facto, que o veículo em causa fosse propriedade da “Constituir” à data do acidente dos autos, e que essa certeza só poderá ser obtida através de prova a produzir em sede de instrução.
5. A Recorrente não era obrigada a corresponder ao convite que lhe fora endereçado.
6. Decorrido que foi o prazo concedido pelo Meritíssimo Juiz “a quo” para que a Recorrente correspondesse ao seu convite, sem que esta o tivesse feito, cabia o impulso processual seguinte ao Julgador, mandando o processo seguir os trâmites normais, nomeadamente para produção de prova e para apreciação, entre outras, da questão da (i)legitimidade passiva.
7. O Meritíssimo Juiz não deveria ter considerado que o comportamento da Recorrente constituía uma negligência, ao invés de uma determinação consciente no sentido de manter o entendimento, manifestado nos autos, de que a “Constituir” não era a dona do veículo na data do acidente em causa.
8. Na petição inicial, a Recorrente menciona a existência de uma decisão proferida em processo-crime relacionado com a presente acção cível, transitada em julgado, na qual é dado como provado que o veículo 83-02-(…) era, à data do sinistro em apreço, propriedade de “(…) Mendonça e (…), Lda.”.
9. Não deveria o Exmº Sr. Juiz da 1.ª Instância ter aguardado que decorressem seis meses sem andamento no processo, para de seguida decretar a sua deserção.
10. Ao arrepio, passados os 10 dias que tinha concedido, deveria ter ordenado o prosseguimento dos autos, para produção de prova e apreciação, entre outras, da questão da (i)legitimidade passiva.
11. Com a referida conduta, o Meritíssimo Juiz da 1ª Instância violou ou fez errada interpretação do art.º 281.º, nº 1, do CPC..
Termos em que deverá ser julgado procedente, por provado, o presente recurso, substituindo-se o despacho recorrido que ordene que os autos prossigam os seus trâmites normais, assim se fazendo Justiça.

Nenhum dos recorridos contra-alegou.
Foi admitido o recurso.

É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o objecto deste e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal de recurso (artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2, ex vi artigo 663.º, n.º 2, do CPC). Acresce que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.
A única questão a resolver consiste em saber se se verificam os pressupostos da deserção da instância.

O artigo 277.º, n.º 1, al. c) do CPC (diploma ao qual pertencem todas as disposições legais adiante referidas) estabelece que a instância se extingue com a deserção. O artigo 281.º, n.º 1, dispõe que, sem prejuízo do disposto no n.º 5, se considera deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses. Portanto, os pressupostos da deserção da instância são a paragem do processo, devido a falta de impulso das partes, durante mais de seis meses e que essa falta de impulso possa ser considerada negligente.
No caso dos autos, o tribunal recorrido proferiu despacho mediante o qual convidou a recorrente a, no prazo de 10 dias, suprir uma hipotética falta de legitimidade passiva. A requerimento da recorrente, foi concedido, a esta última, novo prazo 10 dias para o referido efeito. Este despacho foi notificado à recorrente em 18.10.2016. A recorrente não correspondeu ao convite, remetendo-se ao silêncio. O processo só voltou a ser concluso ao juiz em 18.05.2017 e, nessa mesma data, foi proferido o despacho recorrido, que declarou a instância extinta por deserção.
Não há dúvida de que o processo esteve parado durante mais de seis meses. Cumpre apurar a quem cabia o impulso processual cuja omissão foi causa da referida paragem.
Importa ter presente, como ponto de partida, que o juiz não pode remeter-se a um papel passivo, próprio de uma ultrapassada concepção liberal do processo civil, antes devendo dirigir activamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, embora sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes (artigo 6.º, n.º 1). O mesmo é dizer que, proposta a acção, o impulso processual é, em regra, tarefa do juiz, apenas não sendo assim quando exista norma que faça depender o andamento do processo da prática de determinado acto pelas partes (ónus de impulso subsequente).
No caso dos autos, o tribunal convidou a recorrente a suprir uma hipotética falta de legitimidade passiva, em determinado prazo. Findo tal prazo e dada a inexistência de norma atributiva do ónus de impulso subsequente à recorrente, o impulso processual cabia ao tribunal, através da prática dos actos subsequentes e levando, obviamente, em consideração o silêncio daquela perante o convite que lhe dirigira. Logo, a omissão do impulso processual que determinou a paragem do processo durante mais de seis meses proveio do próprio tribunal recorrido e não da recorrente. Após o decurso do prazo concedido a esta última para suprir a hipotética falta de legitimidade passiva, a secretaria judicial devia ter aberto conclusão ao juiz, em vez de o manter parado durante mais de seis meses. O juiz, por seu turno, devia ter prosseguido a tramitação processual legalmente prevista, em vez de, imputando indevidamente a paragem do processo às partes, declarar a instância deserta.
Em conclusão, não se verificam os pressupostos da deserção da instância, devendo, consequentemente, o despacho recorrido ser revogado.
Não deixaremos, contudo, de observar que, independentemente do que referimos na exposição anterior, sempre o despacho recorrido teria de ser revogado devido à ausência de cumprimento, pelo tribunal recorrido, do contraditório.
O artigo 3.º, n.º 3, estabelece que o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem. Procura-se, assim, salvaguardar as partes contra as denominadas decisões-surpresa e conferir-lhes uma efectiva possibilidade de influírem activamente no desenvolvimento do processo.
Num caso, como o dos autos, em que, até à prolação do despacho recorrido, a recorrente não foi advertida de que a sua inactividade poderia determinar a deserção da instância, era, em face do disposto no referido artigo 3.º, n.º 3, indispensável conceder o contraditório, dando àquela a possibilidade de se pronunciar sobre a verificação dos pressupostos da referida deserção. Não tendo isso sido feito, o tribunal recorrido violou aquele preceito legal, assim cometendo uma nulidade secundária nos termos do artigo 195.º, n.º 1, que sempre determinaria a anulação da decisão recorrida.
Em conclusão, o recurso deverá ser julgado procedente, revogando-se o despacho recorrido e ordenando-se que a acção prossiga os seus termos.

Sumário:
(…)

Decisão:
Acordam os juízes do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso procedente, revogando o despacho recorrido e ordenando que a acção prossiga os seus termos.
Custas a cargo da parte vencida a final.
Notifique.

Évora, 8 de Março de 2018

Vítor Sequinho dos Santos (Relator)

Maria da Conceição Ferreira

Rui Machado e Moura