Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
198/13.8TBSRP.E1
Relator: RUI MACHADO E MOURA
Descritores: ACÇÃO DE PREFERÊNCIA
DEPÓSITO DO PREÇO
Data do Acordão: 11/17/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário:
1. O preço devido, como condição do exercício do direito de preferência, é aquele que consta do teor da escritura pública inicial, único elemento disponível para a A., com base no qual instaurou a acção, satisfazendo a exigência legal do depósito preliminar do preço, aquele que ao preferente, em face dos elementos objectivos existentes, se revele como sendo o preço real do negócio.
2. Constituindo o preço real da venda matéria controvertida, não era exigível ao preferente - “in casu”, a A. - o depósito de outro preço que não fosse o declarado na primitiva escritura pública, pelo que sendo outro o valor real a fixar pelo Tribunal, tal não determinaria, sem mais, a caducidade da acção de preferência.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Évora:

AA, Lda. intentou a presente acção declarativa, sob a forma sumária, contra BB, Unipessoal, Lda., CC e mulher, DD, peticionando que a acção seja julgada procedente por provada e, por via dela:
a) Seja reconhecido à A. o direito de preferência na compra do prédio rústico denominado “…”, sito na freguesia de Santa Maria, concelho de Serpa, inscrito na respectiva matriz rústica sob parte do artigo …, Secção …, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Serpa sob o nº 1… da mencionada freguesia, alienado pelo preço de € 2.000,00;
b) Seja reconhecido à A. o direito de preferência na compra do prédio rústico denominado “…”, sito na freguesia de Santa Maria, concelho de Serpa, inscrito na respectiva matriz rústica sob parte do artigo …, Secção …, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Serpa sob o nº … da mencionada freguesia, alienado pelo preço de € 3.000,00;
c) Seja reconhecido à A. o direito de preferência na compra do prédio rústico denominado “…”, sito na freguesia de Santa Maria, concelho de Serpa, inscrito na respectiva matriz rústica sob parte do artigo …, Secção …, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Serpa sob o nº … da mencionada freguesia, alienado pelo preço de € 3.000,00;
d) Seja reconhecido à A. o direito de preferência na compra do prédio rústico denominado “…”, sito na freguesia de Santa Maria, concelho de Serpa, inscrito na matriz rústica sob o artigo …, Secção …, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Serpa sob o nº … da mencionada freguesia, alienado pelo preço de € 8.000,00;
e) Seja transmitida à A. a propriedade dos referidos prédios, substituindo-se aos 2º e 3º RR., e ordenado o cancelamento das inscrições prediais a favor dos RR. adquirentes.
Alegou a A., em síntese, ser dona e legítima proprietária do prédio rústico que identifica no art.2º da petição inicial, o qual confronta dos seus lados norte e nascente com o prédio rústico identificado na alínea a) supra, também do lado nascente com os prédios rústicos identificados nas alíneas b) e c) supra, e igualmente do lado norte com o prédio rústico identificado na alínea d) supra, sendo que por escritura pública outorgada em 29/01/2013 o 2º R. (casado com a 3ª R.) adquiriu à 1ª R. tais imóveis, não sendo os adquirentes, à data, donos de nenhum prédio confinante com aqueles que adquiriram. Mais alegou que nos prédios alienados é exercida actividade agrícola e silvícola, e todos têm área inferior à unidade de cultura, acontecendo que à A. não foi dada a possibilidade de exercer o direito de preferência.
Devidamente citados, vieram os RR. contestar.
Os 2º e 3º RR. excepcionaram a renúncia (ao direito) pela A., alegando que a mesma teve conhecimento dos contornos do negócio, nomeadamente do preço real (distinto do declarado) e até lhe foi a proposta a aquisição dos prédios, o que a A. recusou. Por outro lado, alegaram não estarem reunidos os pressupostos para o exercício do direito de preferência, pois que apenas dois dos prédios alienados são confinantes com o prédio da A., outro dos prédios alienados possui área superior à unidade de cultura, e o restante não está afecto à exploração agrícola, mas antes à habitação e actividades complementares. Em sede de reconvenção alegam que o preço real e efectivo pago por si foi de € 52.500,00, sendo que o preço declarado na escritura diverge (por defeito) do preço que efectivamente pagaram à 1ª R., pelo que o pedido formulado pela A. só poderá vingar com o pagamento correspondente ao preço da transacção, devendo a A. depositar o valor desse preço. Alegam ainda terem realizado benfeitorias nos prédios em causa, no montante global de € 66.068,99. Concluem deste modo pedindo a improcedência da acção, com todas as consequências legais. Assim não se considerando, pedem que a reconvenção seja julgada procedente e, em consequência, seja a A. condenada a pagar aos 2º e 3º RR. o valor de € 52.500,00 pelos prédios alienados, acrescido da quantia de € 66.068,99 a título de indemnização pelas benfeitorias necessárias e úteis.
Por seu lado, a 1ª R. também excepcionou a renúncia por parte da A., alegando que a contactou, propondo vender-lhe os prédios constantes da aludida escritura pelo valor de € 52.500,00 (preço posteriormente pago pelos 2º e 3º RR.), o que a A. recusou. Por outro lado, alega igualmente não estarem reunidos os pressupostos para o exercício do direito de preferência, pois que apenas dois dos prédios alienados são confinantes com o prédio da A., e outro dos prédios alienados - além de não ser confinante - possui área superior à unidade de cultura. Em sede de reconvenção alega que o preço real do negócio foi de € 52.500,00, sendo que o preço declarado na escritura diverge (por defeito) do preço pago pelos 2º e 3º RR., pelo que a A. deverá depositar o preço devido e não apenas o preço (falso) declarado. Conclui assim pedindo a improcedência da acção, com todas as consequências legais ou, caso assim não se entenda, seja declarado que o preço global do negócio é de € 52.500,00, sendo este o montante a pagar pela A. pelo exercício do direito de preferência.
Respondeu a A., impugnando a invocada excepção de renúncia ao direito, alegando que nunca teve conhecimento dos termos do negócio nem foi notificada para exercer o direito de preferência. Mais contesta o pedido reconvencional, alegando que o valor pago pelos 2º e 3º RR. quanto aos prédios cuja preferência pretende exercer foi de € 16.000,00, não tendo existindo qualquer simulação relativa, sendo que, mesmo que o preço tivesse sido superior (o que não admite), o valor da preferência não poderia ser o alegado pelos RR., uma vez que não pretende exercer direito de preferência relativamente a todos os prédios que foram objecto do contrato. No que concerne às benfeitorias, impugna a factualidade descrita a esse respeito, alegando ainda que o prejuízo invocado, a verificar-se, sempre se deveria à actuação em conluio da 1ª R. com os 2º e 3º RR., pelo que tal pedido teria que improceder por configurar abuso de direito. Termina pugnando que devem as invocadas excepções ser julgadas improcedentes, por não provadas, concluindo como na p.i., devendo ainda os pedidos reconvencionais serem julgados improcedentes por não provados.
Em requerimento autónomo, apresentado posteriormente, vieram os 2º e 3º RR. juntar aos autos uma escritura pública de rectificação à escritura em apreço, dela constando a declaração de que o preço global da venda (dos cinco prédios ali mencionados) foi de € 52.500,00, sendo os seguintes os valores parcelares dos prédios que constituem o objecto dos presentes autos: prédio supra identificado em a), € 30.000,00; prédio supra identificado em b), € 4.500,00; prédio supra identificado em c), € 4.000,00; e prédio supra identificado em d), € 9.000,00.
Em resposta a tal requerimento alegou a A. que o preço real de venda dos imóveis objecto da preferência é o que consta da escritura inicial, invocando a falsidade dos valores apostos na escritura de rectificação.
Em novo requerimento autónomo os 2º e 3º RR. alegam que procederam à rectificação da escritura pública por respeito ao princípio da verdade material, sendo que a A., não obstante conhecer a verdade, renunciou novamente ao exercício do alegado direito de preferência, desta vez quanto ao valor indicado na escritura de rectificação.
Na audiência prévia foram proferidos despachos admitindo os pedidos reconvencionais, tendo sido fixado à causa o valor de € 118.568,99. Em consequência, julgou-se incompetente a Instância Local de Serpa (da Comarca de Beja), em razão do valor, para a tramitação dos autos, sendo estes remetidos para a Instância Central de Beja (Secção Cível e Criminal), por ser a competente.
Reiniciada a audiência prévia, foi proferido despacho (ao abrigo do dever de gestão processual e tendo em consideração o disposto no artº 265, nº 2, do CPC) convidando a A. a, querendo, no prazo de 15 dias e em requerimento autónomo, formular pedido subsidiário de reconhecimento do direito de preferência pelo preço de € 47.500,00 (correspondente ao alegado pelos RR. em sede de contestação), acompanhado do comprovativo do depósito da quantia de € 29.880,16 (correspondente à diferença entre o preço alegadamente devido de € 47.500,00 e o valor de € 17.619,84 já depositado nos autos).
Em resposta a tal convite declarou a A. (não obstante manifestar a sua discordância quanto à exigibilidade da formulação do pedido subsidiário e consequente depósito do valor remanescente) não pretender preferir pelo valor alegado pelos RR. (relativamente ao preço do negócio), manifestando a sua intenção de preferir, apenas, se o preço invocado pelos RR. em sede de contestação não for dado como provado pelo Tribunal, pois, caso contrário, não pretende preferir.
Considerando que os elementos constantes dos presentes autos permitiam, desde logo, a prolação de decisão final, veio a Julgadora “a quo” a proferir, de imediato, decisão sobre o mérito da causa (que, para todos os efeitos, tem o valor de sentença – cfr. art. 595º nº1 alínea b) e nº3 do CPC), na qual se julgou procedente a excepção de caducidade, relativamente ao prazo para o exercício do direito de preferência invocado pela A. (cfr. nº1 do art.1410º do C.P.C.) e, em consequência, julgou-se totalmente improcedente a presente acção, absolvendo-se os RR. dos pedidos, bem como, julgou-se extinta a instância reconvencional, por impossibilidade superveniente da lide.
Inconformada com tal decisão dela apelou a A. tendo apresentado para o efeito as suas alegações de recurso e terminando as mesmas com as seguintes conclusões:
I - O presente recurso é interposto da decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância que julgou procedente a excepção de caducidade e julgou totalmente improcedente a acção, absolvendo os recorridos dos pedidos;
II - A recorrente não se conforma com a decisão, quer quanto à matéria de facto, quer quanto à matéria de direito, por entender que a mesma é contrária à Lei, visando com o recurso concluir-se que os autos reúnem todos os pressupostos para que a acção continue a correr os seus termos;
III - O Tribunal recorrido julgou erradamente os factos constantes dos pontos 1), 5) e 9) da matéria de facto dada como provada, pelo que o julgamento da referida matéria de facto deve ser alterado;
IV - Ao contrário do que consta do ponto 1) da matéria de facto dada como provada, as confrontações do prédio da recorrente constituem matéria controvertida nos autos, pelo que não pode julgar-se como provado que o prédio da recorrente confina apenas com os prédios identificados na descrição predial e caderneta predial rústica; deverão antes excluir-se da matéria de facto dada como provada as confrontações do referido prédio;
V - A presunção derivada do registo não opera relativamente às confrontações dos prédios, o que apenas reforça o entendimento da recorrente;
VI - Mesmo que se entenda que as confrontações dadas como provadas em 1) não excluem a existência de outros prédios confinantes, dever-se-á acrescentar no ponto 1) dos factos dados como provados, em relação às confrontações, a expressão “entre outras”, ou “designadamente” ou qualquer outra similar de onde resulte não serem as enumeradas taxativas;
VII - As regras legais sobre a força probatória dos documentos autênticos impõem que possa apenas dar-se como provado, no ponto 5) da matéria de facto dada como provada, que na referida escritura os outorgantes declararam rectificar a escritura inicial, declararam rectificar os valores da venda, declararam ser o valor global da venda de € 52.500,00 (cinquenta e dois mil e quinhentos euros) e declararam que tal valor correspondia à soma dos diversos valores parcelares atribuídos na escritura a cada um dos prédios;
VIII - O entendimento plasmado na decisão acerca da necessidade de depósito do preço apenas faz sentido, salvo o devido respeito, se já for fundamentado numa decisão de facto acerca do preço real do negócio;
IX - O ponto 5) da matéria de facto dada como provada constitui julgamento sobre o preço real do negócio, facto que não se encontra provado;
X - A recorrente invocou a falsidade do conteúdo ou teor das declarações prestadas na escritura de rectificação outorgada já após a instauração da acção;
\XI – Em face do disposto nos artigos 371.º e 372.º do Código Civil, a escritura de rectificação em causa nos autos apenas faz prova plena da respectiva celebração e do facto de os outorgantes terem declarado rectificar os termos do negócio; o conteúdo do negócio, designadamente a veracidade ou não das declarações das partes, não constitui matéria susceptível de percepção directa do notário ou qualquer acto que por este seja praticado, logo, a força probatória do documento não se estende ao conteúdo das declarações;
XII - Não está, nem nunca esteve, em causa que tal escritura enquanto acto existe e foi celebrada, bem como que as partes tenham declarado perante o notário aquilo que dela consta;
XIII - Assim, em 5) da matéria de facto dada como provada deverá dar-se como provado que por escritura de rectificação outorgada em 01/11/2013 os Réus declararam rectificar a escritura pública de compra e venda por si outorgada em 29/01/2013, tal como deverá dar-se como provado que os Réus declararam rectificar os valores da venda dos imóveis nesta mencionados, atribuindo-lhes nessa declaração o valor global de € 52.500,00 (cinquenta e dois mil e quinhentos euros) parcelados da forma constante de i.a v. do ponto 5) dos factos provados;
XIV - O preço real do negócio constitui matéria controvertida, ao contrário do julgamento constante de 5) dos factos provados;
XV - Ao contrário do que consta de 9) dos factos provados, a ora recorrente respondeu ao convite para formular pedido subsidiário de reconhecimento do direito de preferência alegado pelos Réus na contestação, bem como para proceder ao depósito da quantia de € 29.880,16 (vinte e nove mil oitocentos e oitenta euros e dezasseis cêntimos);
XVI - A ora recorrente não correspondeu ao convite formulado e fundamentou a sua posição, o que é manifestamente diferente do constante da decisão recorrida;
XV - A matéria de Direito foi incorrectamente julgada, pois ao decidir pela caducidade do prazo para o exercício do direito de preferência, por falta do depósito que a recorrente foi convidada a fazer, o Tribunal a quo fez uma incorrecta interpretação da lei, violando-a;
XVI - A decisão recorrida considera que a Autora tem a obrigação legal de depositar o “preço devido”, partindo do pressuposto – errado – de que o preço efectivamente pago corresponde ao preço declarado na escritura de rectificação e alegado pelos Réus nas suas contestações;
XVII - O Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães seguido de perto pela decisão recorrida, conforme consta da própria, versa sobre uma causa com contornos diferentes, pelo que a respectiva fundamentação é inaplicável a estes, já que nele está em causa uma situação em que foi já provado o preço real do negócio e, portanto, considera o Tribunal exigível que o preferente o deposite pelo valor real em cumprimento do artigo 1410.º, n.º 1 do Código Civil e os Autores naqueloutra situação pretendem protelar a decisão de preferir para final, ao contrário da ora recorrente;
XVIII - Não é verdade que a recorrente pretenda relegar para final a decisão de preferir, ou não, consoante a prova que venha a ser feita, sendo que tal nunca foi manifestado nos autos, ao contrário do que consta da decisão recorrida;
XIX - Nos articulados a recorrente sempre manifestou: que pretende exercer o seu direito de preferência pelo preço declarado na escritura pública inicialmente celebrada, em 29/01/2013, que invoca ser o preço real, decisão que tomou ao instaurar a presente acção e depositar o respectivo preço; e que não aceita o valor alegado pelos Réus como sendo o real, como que caso tal viesse a ser julgado provado não pretende exercer o direito de preferência, declaração que constitui renúncia ao direito de preferência caso se venha a demonstrar ser verdade que o valor real do negócio é o constante da escritura de rectificação outorgada e alegado pelos Réus;
XX - Não é conforme ao Direito pretender que a recorrente deduza um pedido subsidiário para o exercício do direito de preferência pela importância alegada pelos Réus, porquanto não pretende preferir por tal valor e já o manifestou nos autos;
XXI - Existindo controvérsia quanto ao preço real, não faz sentido exigir da ora recorrente o depósito da quantia correspondente à diferença entre o preço declarado na escritura inicial e o preço alegado pelos Réus;
XXII - O preço devido é o constante da escritura pública de compra e venda inicial, o único conhecido à data pela recorrente e o único que pode ser julgado provado;
XXIII - A mera alegação pelos Réus de um preço diferente não pode ter como efeito imediato a criação na esfera do preferente da obrigação de depositar o preço posteriormente declarado, sob pena de se verificar a caducidade do direito de preferência, por decurso do prazo para depósito do mesmo;
XXIV – Em face do disposto no artigo 1410.º, n.º 2 do Código Civil, na acção de preferência tudo se passa como se tal modificação da alienação não tivesse existido, ao contrário do que decidiu a decisão recorrida;
XXV - Não é exigível à recorrente o depósito de um preço superior ao inicialmente declarado, já no decorrer da acção, especialmente quando não se encontra provado ter sido outro o preço real e a recorrente já manifestou nos autos que não prefere caso venha a ser julgado provado que o preço real do negócio foi o preço rectificado;
XXVI - Não colhe o argumento de protecção do adquirente, pois caso venha a ser considerado provado que o preço real corresponde ao preço declarado na escritura de rectificação, a Autora não exerce o seu direito de preferência;
XXVII - Assim, encontrando-se controvertido o preço real do negócio, a ora recorrente cumpriu escrupulosamente o disposto no artigo 1410.º, n.º 1 do Código Civil ao instaurar a acção dentro do prazo de seis meses ali referido e depositar o preço pelo montante em que o fez, pelo que improcede totalmente a excepção peremptória de caducidade que determinou a improcedência da acção, ao contrário do que decidiu o Tribunal a quo;
XXVIII - Ao decidir como decidiu, o Tribunal de 1ª Instância violou designadamente os artigos 371.º, 372.º, 1380.º, n.º 1 e 1410.º, n.ºs 1 e 2 do Código Civil, pelo que deve a decisão recorrida ser revogada e, em consequência, substituir-se por outra que julgue improcedente a excepção peremptória de caducidade que determinou a improcedência da acção, ordenando-se que esta continue os seus termos.
XXIX - Nestes termos e nos mais de Direito, que V.ªs Ex.ªs doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se a decisão recorrida e, em consequência, substituindo-se por outra que julgue improcedente a excepção peremptória de caducidade que determinou a improcedência da acção, ordenando-se que esta continue os seus termos. Assim farão V.ªs Ex.ªs Justiça.
Pelos RR. foram apresentadas contra alegações de recurso, nas quais pugnam pela manutenção da decisão recorrida.
Atenta a não complexidade da questão a dirimir foram dispensados os vistos aos Ex.mos Juízes Adjuntos.
Cumpre apreciar e decidir:
Como se sabe, é pelas conclusões com que a recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: art. 639º nº 1 do C.P.C.) que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem [1] [2].
Efectivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável à recorrente (art. 635º nº3 do C.P.C.), esse objecto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (nº4 do mesmo art. 635º) [3] [4].
Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação da recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso.
No caso em apreço emerge das conclusões da alegação de recurso apresentadas pela A., ora apelante, que o objecto do mesmo está circunscrito, apenas, à apreciação da questão primordial de saber se, existindo controvérsia quanto ao preço real de aquisição dos imóveis por parte dos 2º e 3º RR., pode ser exigido à A. o depósito da quantia correspondente à diferença entre o preço declarado na escritura inicial e o preço alegado pelos RR. na sua contestação (e na escritura realizada posteriormente em que foi rectificado o dito preço), sem o que caduca o direito de preferência que a A. pretende exercer (cfr. art.1410º nº1 do Cód. Civil).
Apreciando de imediato a questão suscitada pela recorrente importa dizer a tal respeito que resulta do disposto no art.1410º nº1 do Cód. Civil (aqui aplicável por força do estatuído no nº4 do art.1380º do mesmo código) que o titular o direito de preferência “a quem se não dê conhecimento da venda ou da dação em cumprimento tem o direito de haver para si” o bem alienado, “contanto que o requeira dentro do prazo de seis meses, a contar da data em que teve conhecimento dos elementos essenciais da alienação, e deposite o preço devido nos 15 dias seguintes à propositura da acção”.
Assim, não cumprido o dever de comunicação ou, apesar do aviso ao preferente para preferir, a coisa for vendida a outrem, não obstante o preferente ter manifestado a vontade de preferir, pode este propor a respectiva acção de preferência para haver para si o bem alienado.
Não obstante, terá de o fazer, dentro dos seis meses subsequentes à data em que teve conhecimento dos elementos essenciais da alienação e, ainda, depositar o preço devido nos 15 dias seguintes à propositura da acção.
Se, porventura, não for proposta a acção nos seis meses seguintes ao conhecimento dos elementos essenciais da alienação ou, intentada a acção pelo preferente, não for depositado o preço devido nos 15 dias seguintes à propositura da acção, o direito de preferência caduca - cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Cod. Civil Anotado, Vol. III, 2ª ed., págs.371 e segs. e Luís Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. I, 4ª ed., pág.243.
A propósito da expressão “preço devido” a que alude o nº1 do já citado art.1410º entendemos que não poderá ser senão aquele que, “in casu”, consta da primitiva escritura pública de compra e venda, pois é o único conhecido à data pela A., nomeadamente quando por ela foi instaurada a presente acção contra os RR.
Além disso, a declaração pelos RR., nas contestações apresentadas, que o preço da alienação dos imóveis foi superior ao que consta da escritura pública inicial (tendo aqueles procedido, já no decurso da presente acção, a uma nova escritura onde vieram rectificar o preço declarado na primitiva escritura), não tem como efeito imediato a criação na esfera do preferente (a A.) da obrigação de depositar o preço posteriormente declarado, pois a isso obsta o disposto no nº2 do referido art.1410º, sendo tal normativo bem claro ao afirmar que o direito de preferência e a respectiva acção não são prejudicados pela modificação ou distrate da alienação, ainda que estes efeitos resultem de confissão ou transacção judicial”.

Neste sentido, pode ver-se o Ac. do STJ de 1/4/2014, disponível in dgsi.pt, onde, a dado passo, é afirmado o seguinte:
- O preço devido, como condição do exercício do direito de preferência, é aquele que consta do teor da escritura pública, único elemento disponível para os autores, com base no qual instauraram a ação, satisfazendo a exigência legal do depósito preliminar do preço, aquele que ao preferente, em face dos elementos objetivos existentes, se revele como sendo o preço real do negócio.
- Porquanto o direito de preferência não se adquire com a propositura da ação, uma vez que nasce logo que se efetua o contrato de compra e venda, radicando-se na pessoa a quem ele assiste, a retificação do contrato em que ela não interveio, não tem virtualidade para alterar a situação de direito, já criada, sendo, por isso, irrelevantes, em relação ao preferente, quaisquer acordos ulteriores dos contraentes, que alterem ou modifiquem o contrato primitivo.
- Os contraentes podem, em princípio, provar contra o preferente que, por engano, se declarou, na escritura de venda, um preço não correspondente à realidade, mas, apenas, quando, só por lapso, se tenha declarado um preço diferente do preço real.
- Retificado o preço pelos réus compradores, depois da ação ter sido instaurada, sobre estes recai o ónus de alegar e provar que a “alteração do preço” visou a emenda de um erro, involuntariamente, cometido ou a correção de um erro propositado (v. g., simulação do preço para pagar menos IMT), e, bem assim como, que o valor corrigido corresponde ao valor real, o que equivale a alegar e provar que o preço modificado foi, realmente, o preço praticado no negócio jurídico efetuado.
- Constituindo o preço real da venda matéria controvertida, não era exigível aos preferentes o depósito de outro preço que não fosse o declarado na escritura, pelo que sendo outro o valor real a fixar pelo tribunal, tal não determinaria, sem mais, a caducidade da ação de preferência.
Em sentido idêntico ou similar, veja-se ainda o recente Ac. do STJ de 8/9/2016, também disponível in dgsi.pt, onde se refere o seguinte:
- O depósito do preço, no âmbito da acção de preferência, cobre o risco do alienante se ver confrontado com a hipótese de perder o negócio com o adquirente e de não vir a celebrar qualquer contrato com o preferente, forçando-o a apresentar os meios para a aquisição que pretende efectuar.
- A expressão preço devido corresponde ao valor em dinheiro a pagar pelo preferente como contrapartida da aquisição do bem que constitui objecto da preferência (cfr. art. 874.º do CC). Trata-se da totalidade (e não somente aquela parcela que se acha paga ou vencida) do preço real já pago ou declarado para a transacção; apurando-se que o preço real é superior ao declarado e apesar de a simulação não ser oponível a terceiros, deve o preferente liquidá-lo sob pena de incorrer em injusto locupletamento.
- Tendo sido efectuado apenas o depósito do valor do preço declarado, valor inferior àquele que se apurou ser o preço real, tal não determina a caducidade do direito de preferência, justificando-se que se conceda aos autores, preferentes, a possibilidade de depositarem o remanescente.
No mesmo sentido o Ac. do STJ de 22/2/2005, revista nº 4669/04, onde se afirmou que “o preço objecto da preferência é o preço constante da escritura à data da instauração da acção de preferência que o preferente tem de depositar, embora, provado posteriormente ser superior o preço real, deva depositar a diferença, no prazo fixado pela sentença, sob pena de perder o direito”.
Sobre esta questão veja-se também o Ac. da R.C. de 11/12/2007, disponível in www.dgsi.pt. onde é referido que:
- É irrelevante para o modus de exercício do direito de preferência a rectificação da escritura posterior à notificação dos elementos essenciais do negócio, na qual se pretende corrigir o preço do contrato aumentando-o de € 25.000 para € 50.000. Na verdade os RR. exerceram o seu direito balizado pela notificação que lhes foi feita; e foi com base na mesma que procederam ao depósito da importância constante da escritura, i.e. € 25.000. Não havia assim neste caso que proceder ao acréscimo do depósito, o qual só teve lugar após a prolação da sentença em primeira instância, apurado que foi o valor real do prédio em causa, i.e. € 40.000.
Por último, pode ver-se ainda o Ac. desta Relação de 17/5/2007, também disponível in www.dgsi.pt, ,no qual se afirmou o seguinte:
- Se com o decorrer da prova em audiência se verificar que o valor da transacção foi superior àquela que figurava na escritura, deve o preferente depositar a diferença no prazo que lhe for concedido para o efeito, sem qualquer acréscimo (juros ou actualização).
Assim sendo, forçoso é concluir que, estando controvertido o preço real do negócio, a A. cumpriu integralmente o que dispõe o art.1410º nº1 do Cód. Civil, uma vez que, não só instaurou a presente acção dentro do prazo de 6 meses ali referido, como também depositou o preço pelo montante declarado na primitiva escritura (a única que existia quando da propositura da acção), pelo que improcede, “in totum”, a excepção peremptória de caducidade com base na qual o tribunal “a quo” julgou improcedente a presente acção.
Nestes termos, resulta claro que a decisão recorrida, não se poderá manter - de todo - revogando-se a mesma em conformidade e, em consequência, determina-se que os presentes autos prossigam os seus ulteriores termos na 1ª instância (onde, inexoravelmente, terá de ser apurado o preço real de venda dos imóveis, relativamente aos quais a A. pretende fazer uso do seu direito de preferência).
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Por fim, atento o estipulado no nº 7 do art. 663º do C.P.C., passamos a elaborar o seguinte sumário:
1. O preço devido, como condição do exercício do direito de preferência, é aquele que consta do teor da escritura pública inicial, único elemento disponível para a A., com base no qual instaurou a acção, satisfazendo a exigência legal do depósito preliminar do preço, aquele que ao preferente, em face dos elementos objectivos existentes, se revele como sendo o preço real do negócio.
2. Constituindo o preço real da venda matéria controvertida, não era exigível ao preferente - “in casu”, a A. - o depósito de outro preço que não fosse o declarado na primitiva escritura pública, pelo que sendo outro o valor real a fixar pelo Tribunal, tal não determinaria, sem mais, a caducidade da acção de preferência.

Decisão:

Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o presente recurso de apelação interposto pela A. e, em consequência, revogam a decisão recorrida nos exactos e precisos termos acima explanados.
Custas pelos RR., aqui apelados.

Évora, 17/11/2016
Rui Machado e Moura
Mário António Mendes Serrano
Maria Eduarda de Mira Branquinho Canas Mendes

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[1] Cfr., neste sentido, ALBERTO DOS REIS in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 362 e 363.
[2] Cfr., também neste sentido, os Acórdãos do STJ de 6/5/1987 (in Tribuna da Justiça, nºs 32/33, p. 30), de 13/3/1991 (in Actualidade Jurídica, nº 17, p. 3), de 12/12/1995 (in BMJ nº 452, p. 385) e de 14/4/1999 (in BMJ nº 486, p. 279).
[3] O que, na alegação (rectius, nas suas conclusões), o recorrente não pode é ampliar o objecto do recurso anteriormente definido (no requerimento de interposição de recurso).
[4] A restrição do objecto do recurso pode resultar do simples facto de, nas conclusões, o recorrente impugnar apenas a solução dada a uma determinada questão: cfr., neste sentido, ALBERTO DOS REIS (in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 308-309 e 363), CASTRO MENDES (in “Direito Processual Civil”, 3º, p. 65) e RODRIGUES BASTOS (in “Notas ao Código de Processo Civil”, vol. 3º, 1972, pp. 286 e 299).