Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
192/11.3TBCUB.E1
Relator: MÁRIO SERRANO
Descritores: IMPUGNAÇÃO PAULIANA
LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO PASSIVO
CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
Data do Acordão: 01/26/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: De forma indirecta, o artº 611º do C.Civil indicia, desde logo, que devem figurar na respectiva acção de impugnação pauliana, do lado passivo, não apenas o devedor, mas terceiros interessados na manutenção do acto impugnado – como será, seguramente, o caso do cônjuge do R., enquanto comproprietário do bem e parte no contrato de doação celebrado e ora impugnado.
Decisão Texto Integral: Proc. nº 192/11.3TBCUB.E1-2ª (2017)
Apelação-1ª
(Acto processado e revisto pelo relator signatário: artº 131º, nº 5 – NCPC)

ACORDAM NA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:

I – RELATÓRIO:

Na presente acção ordinária, actualmente a correr termos na Secção Cível da Instância Central de Beja da Comarca de Beja (depois de iniciada no Tribunal da Comarca de Cuba), intentada como acção de impugnação pauliana, por (…) contra (…) e (…), invocou aquela a sua titularidade de quatro créditos sobre o primeiro R., reconhecidos em sentenças proferidas por tribunais britânicos, num total correspondente a 83.110,49 € de dívida de capital, a que acrescem juros de mora vencidos e vincendos, e alegou ter esse R., em momento posterior à constituição de parte desses créditos, e com o intuito de provocar a diminuição da sua garantia patrimonial, procedido à doação de prédio urbano de sua pertença em favor do seu filho, o segundo R., sem que se lhe conheça a titularidade de outros bens – e, nessa base, formulou a A. pedido de declaração da ineficácia do acto jurídico de doação do referido prédio e de reconhecimento da possibilidade de executar esse prédio no património do segundo R..

Na contestação, deduzida apenas pelo 1º R., opôs-se este ao pedido, começando por suscitar a excepção de ilegitimidade, por ambos os RR. serem casados e alegadamente ocorrer uma situação de litisconsórcio necessário passivo, que imporia igualmente a demanda dos respectivos cônjuges, e sustentando de seguida a não-ocorrência dos pressupostos de procedência da impugnação pauliana.

Na sequência de normal tramitação processual, veio o tribunal de 1ª instância a prolatar saneador-sentença em que, para além de se julgar não verificada a excepção de ilegitimidade suscitada pelo 1º R. – com o essencial argumento de que o prédio doado é bem próprio do 1º R. e foi doado apenas ao 2º R., pelo que não se verificaria qualquer das situações previstas no artº 34º do NCPC (correspondente, sem diferenças significativas, ao artº 28º-A do anterior CPC, vigente à data da propositura da presente acção), que define as acções que devem ser propostas por ambos e contra ambos os cônjuges –, se decidiu ainda julgar integralmente procedente a acção, em termos de: a) declarar ineficaz quanto à A. a referida doação; e b) reconhecer o direito da A. de executar o prédio objecto da doação no património do 2º R. e de praticar actos de conservação da sua garantia patrimonial.

Dessa decisão foi interposto pelo 1º R. recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:

«A. Foi preterida uma situação de litisconsórcio passivo necessário, tendo a douta decisão recorrida violado o art. 28º-A do CPC, os artigos 1403º, 1405º e 1682º-A do Código Civil, o art. 3º do NCPC, o art. 20º da CRP e o art. 6º da CEDH, pelo que, salvo melhor entendimento, se impõe concluir pela alteração da resposta à matéria de facto e absolvição dos Réus da instância ou pela necessidade da Recorrida suscitar o incidente de intervenção provocada das esposas dos Réus.

B. Não foi apurado correctamente o momento do nascimento das obrigações que deram origem a cada um dos créditos fundamento, tendo sido acatada a data de 2006-11-29 devido a um erro do Tribunal a quo na interpretação dos títulos judiciais que os sustentam, tendo a decisão recorrida violado o art. 610º do Código Civil, uma vez que o nascimento das obrigações ocorreu após ou pelo menos maioritariamente após a doação e não foi provado o dolo dos Réus, pelo que, salvo melhor entendimento, se impõe concluir pela improcedência do pedido ou pelo menos pela improcedência parcial do pedido.»


Como é sabido, é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (cfr. artos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do NCPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (cfr. artº 608º, nº 2, ex vi do artº 663º, nº 2, do NCPC).

Do teor das alegações do apelante resulta que as questões a decidir, e segundo a sua precedência lógica, se resumem à apreciação da suscitada ilegitimidade por preterição de litisconsórcio necessário passivo, de um eventual julgamento errado da matéria de facto (concretamente quanto à qualificação do prédio objecto da doação em causa como casa de morada de família do recorrente, também com alegada consequência em termos de ilegitimidade litisconsorcial) e de uma arguida interpretação deficiente dos factos quanto à verificação do requisito da anterioridade do crédito invocado relativamente ao acto de disposição sob impugnação (que o apelante sustenta não ocorrer, contrariamente ao entendimento do tribunal a quo, com o que aquele pretende obter a improcedência do pedido formulado pela A.).

Cumpre apreciar e decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO:
A) DE FACTO:

O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos, que se passam a reproduzir:

«A. Por decisão proferida, em 9 de Outubro de 2008, pelo High Court of Justice, Queen’s Bench Division, Royal Courts of Justice, no âmbito do processo n.º HQ06X03436, foi determinado que: “O Requerente (ora Réu …) terá de pagar os custos suportados pela demandante na acção ouvida a 17 de Março de 2008 e da presente acção, sumariamente avaliada em £ 5,000.00 mais IVA pagável a partir das 16h de 23 de Outubro de 2008” – cfr. certidão para execução de sentença estrangeira emitida, em 29 de Abril de 2010, pelo High Court of Justice, Queen’s Bench Division, Royal Courts of Justice junto como documento n.º 1 e se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

B. Consta da referida certidão “Data da citação ou notificação do acto que determinou o início da instância, no caso da decisão ter sido proferida à revelia 29 de Novembro de 2006”.

C. Em 19.05.2011 a Autora requereu a declaração de executoriedade de sentença estrangeira proferida, em 9 de Outubro de 2008, pelo High Court of Justice, Queen’s Bench Division, Royal Courts of Justice, cujo processo correu termos, sob o número 136/11.2TBCUB, no extinto Tribunal Judicial de Cuba.

D. No âmbito deste processo foi reconhecida a executoriedade da sentença, por decisão transitada em julgado no dia 02.12.2013 – cfr. doc. junto a fls. 306 e seguintes, que se dá por integralmente reproduzido.

E. Por decisão proferida em 29 de Outubro de 2009, pelo High Court of Justice, Queen’s Bench Division, Royal Courts of Justice, no âmbito do processo n.º HQ06X03436, foi determinado que: “(…) O Requerente (ora R. …) tem de pagar £ 5.000 mais IVA em conta dentro de 14 dias (29 de Outubro de 2009)” – cfr. certidão para execução de sentença estrangeira emitida, em 16 de Março de 2010, pelo High Court of Justice, Queen’s Bench Division, Royal Courts of Justice junta como documento n.º 2 e se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

F. Consta da referida certidão “Data da citação ou notificação do acto que determinou o início da instância, no caso da decisão ter sido proferida à revelia 29 de Novembro de 2006”.

G. Em 19.05.2011 a Autora requereu a declaração de executoriedade de sentença estrangeira proferida, em 29 de Outubro de 2009, pelo High Court of Justice, Queen’s Bench Division, Royal Courts of Justice, cujo processo corre termos, sob o número 135/11.4TBCUB, no extinto Tribunal Judicial de Cuba.

H. No âmbito deste processo foi reconhecida a executoriedade da sentença, por decisão transitada em julgado no dia 18.04.2013 – cfr. doc. junto a fls. 316 e seguintes, que se dá por integralmente reproduzido.

I. Por decisão proferida, em 27 de Setembro de 2010, pelo High Court of Justice, Queen’s Bench Division, Royal Courts of Justice, no âmbito do processo n.º HQ06X03436, foi determinado que: “(…) os custos da reclamação foram autorizados e o pagamento da quantia global de £ 27.987,75 é, agora, exigível. O pagamento deverá ser realizado à Terceira Parte/… dentro de 14 dias a contar da data da presente decisão. A data a partir da qual são devidos juros de acordo com a presente certidão é:

1. Quanto ao montante da nota de débito avaliado, excluindo os custos da avaliação [a data da Decisão] 29 de Outubro de 2009.

2. Quanto aos £ 140 relativos aos custos fixos da avaliação, a data da certidão [datada de 27 de Setembro de 2010]…”

J. Consta da referida certidão “Data da citação ou notificação do acto que determinou o início da instância, no caso da decisão ter sido proferida à revelia 29 de Novembro de 2006”.

K. Em 19.05.2011, a Autora requereu a declaração de executoriedade de sentença estrangeira proferida, em 27 de Setembro de 2010, pelo High Court of Justice, Queen’s Bench Division, Royal Courts of Justice, cujo processo correu termos, sob o número 134/11.6TBCUB, no extinto Tribunal Judicial de Cuba.

L. No âmbito deste processo foi reconhecida a executoriedade da sentença, por decisão transitada em julgado no dia 30.05.2013 – cfr. doc. de fls. 301v e seguintes, que se dá por integralmente reproduzido.

M. Por decisão proferida, em 18 de Janeiro de 2011, pelo High Court of Justice, Queen’s Bench Division, Royal Courts of Justice, no âmbito do processo n.º HQ06X03436, foi determinado que: “(…) os custos da reclamação foram autorizados e o pagamento da quantia global de £ 35.1187,62 é, agora, exigível. O pagamento deverá ser realizado à Terceira Parte/… dentro de 14 dias a contar da data da presente decisão. A data a partir da qual são devidos juros de acordo com a presente certidão é:

1. Quanto ao montante da nota de débito avaliado, excluindo os custos da avaliação [a data da Decisão] 29 de Outubro de 2009.

2. Quanto aos £ 140 relativos aos custos fixos da avaliação, a data da certidão [datada de 18 de Janeiro de 2011]…” – cfr. certidão para execução de sentença estrangeira emitida, em 9 de Março de 2011, pelo High Court of Justice, Queen’s Bench Division, Royal Courts of Justice que ora se junta como documento n.º 4 e se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

N. Consta da referida certidão “Data da citação ou notificação do acto que determinou o início da instância, no caso da decisão ter sido proferida à revelia 29 de Novembro de 2006”.

O. Em 19.05.2011 a Autora requereu a declaração de executoriedade de sentença estrangeira proferida, em 18 de Janeiro de 2011, pelo High Court of Justice, Queen’s Bench Division, Royal Courts of Justice, cujo processo correu termos, sob o número 133/11.8TBCUB, no extinto Tribunal Judicial de Cuba – cfr. doc. junto a fls. 300 e seguintes, que se dá por integralmente reproduzido.

P. O Réu (…) doou ao seu filho, o Réu (…), o prédio urbano, sito no Largo dos (…), n.º …, em Alvito, descrito na Conservatória do Registo Predial de Alvito sob o número (…) – cfr. certidão junta a fls. 325 e seguintes e se dá por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais.

Q. A aquisição a favor do Réu (…) foi registada no dia 9 de Dezembro de 2008 – cfr. documento junto a fls. 44 que se dá por integralmente por reproduzido.

R. Pelo High Court of Justice de Inglaterra e País de Gales, na acção HQ06X03436 em que foi autor (…) e réu (…), foi proferida decisão, em 19 de Janeiro de 2007, com o seguinte teor: “Por transacção:

1. Proferir sentença a favor do autor, no montante de £ 116,000, incluindo os custos.

2. A dita quantia de £ 116,000 deve ser paga pelo réu no prazo de 15 dias.

3. (…).

S. Por sentença transitada em julgado no dia 23.05.2011, proferida no âmbito da Acção Pauliana com o n.º 104/09.4TBFAL, que correu termos no extinto Tribunal Judicial de Ferreira do Alentejo, foi declarada a ineficácia em relação ao A. (…) do acto jurídico de doação celebrado entre os Réus (…) e (…), em 14 de Junho de 2007 do prédio rustico descrito na Conservatória do Registo Predial de Ferreira do Alentejo sob o nº …/19930518 e inscrito na matriz da freguesia de Ferreira do Alentejo com o art. (…), secção G, e reconhecido o direito do Autor de executar o mencionado prédio no património do 2ª réu na medida do seu direito de crédito e a praticar todos os actos legais de conservação da sua garantia patrimonial – cfr. documento de fls. 202 e seguintes, que se dá por integralmente reproduzido.

T. O ora R. (…) instaurou acção executiva em 29.06.2011 com vista à cobrança da referida quantia, tendo nomeado à penhora o prédio indicado em S. – cfr. documento de fls. 195 e seguintes, que se dá por reproduzido.

U. O R. (…) e mulher (…) intentaram acção declarativa, com processo comum, contra (…) e (…), (ora A.) pedindo que sejam condenados a indemnizá-los, sendo o valor da indemnização a fixar em liquidação de sentença. O pedido foi julgado improcedente, os RR. foram absolvidos de todos os pedidos e os AA. condenados por litigância de má fé, por decisão já transitada em julgado – cfr. documento de fls. 372 e seguintes, que se dá por integralmente reproduzido.»


B) DE DIREITO:

Como vimos, o apelante suscita uma questão de ilegitimidade, reportada a uma alegada preterição de litisconsórcio necessário passivo, que decorreria de os RR. serem casados, sem que os respectivos cônjuges tivessem sido demandados.

Alega-se que se estará perante acção que deveria ser proposta contra ambos os cônjuges, nos termos do artº 34º do NCPC (ou seja, in casu, contra os casais integrados por cada um dos RR.), na medida em que da presente acção poderá resultar a perda de bens que só por ambos podem ser alienados (nº 1), essa acção emerge de facto praticado por ambos os cônjuges (nº 3) e, além disso, a acção terá por objecto a casa de morada de família do recorrente (nº 1, in fine) (sendo que este último ponto também se conecta com a pretensão de alteração da matéria de facto, de modo a ficar consignada essa condição do prédio objecto da doação em causa). Adita-se a indicação de que cada um dos RR. é casado em regime de separação de bens, mas também se argumenta que o referido prédio foi previamente adquirido pelo R. recorrente e pelo seu cônjuge em compropriedade, o que determinou a intervenção de ambos, como sujeitos passivos, na escritura de doação ora sob impugnação, conforme se extrai da certidão da escritura e da respectiva inscrição no registo predial – circunstância essa que não devidamente considerada pelo tribunal a quo.

Respondeu a A. a esta argumentação sustentando que apenas devem figurar na acção de impugnação pauliana o credor, o devedor e o adquirente, sem que da acção possa resultar a perda de bem que só por ambos os cônjuges possa ser alienado e sem que se esteja perante bem comum do casal, dado o regime de separação de bens vigente entre os casais integrados pelos RR..

Analisando os documentos invocados pelo apelante, extrai-se a conclusão de que, efectivamente, o prédio objecto da doação em causa era bem de que o R. recorrente era titular, não em exclusivo, mas em compropriedade com o seu cônjuge. Na escritura de doação, certificada a fls. 325-326, fez-se consignar que o outorgante (…), não obstante casado em regime de separação de bens com (…), intervinha «por si e em representação da sua referida mulher nos termos de uma procuração», sendo ambos doadores, mais se referindo que a «doação é feita por conta da legítima deles doadores». E, mais claramente ainda, resulta da respectiva inscrição do registo predial respeitante ao prédio em apreço (cfr. fls. 44 e 195-196) que os sujeitos passivos da referida doação (ou seja, os doadores) são os mencionados (…) e (…), confirmando assim que ambos eram comproprietários do prédio que doaram.

Isto significa, pois, que a doação cuja ineficácia se pretende obter com a presente acção de impugnação pauliana apresenta, do lado passivo, pessoa que não figura na acção como demandada. A questão que se coloca, então, é saber se podia esta acção ser proposta apenas contra um dos comproprietários do referido prédio, quiçá com base no argumento aventado pela A. que a impugnação pauliana apenas tem de ser deduzida contra o devedor e o adquirente, sendo que o alegado devedor é apenas o R. recorrente (e não o seu cônjuge).

Quanto a esta questão, diremos que, de forma indirecta, o artº 611º do C.Civil indicia, desde logo, que devem figurar na respectiva acção, do lado passivo, não apenas o devedor, mas terceiros interessados na manutenção do acto impugnado – como será, seguramente, o caso do cônjuge do R. recorrente, enquanto comproprietário do bem e parte no contrato de doação celebrado e ora impugnado.

Mas, além disso, há que ter em conta o disposto no artº 33º, nos 2 e 3, do NCPC: diz o primeiro preceito que é «necessária a intervenção de todos os interessados quando, pela própria natureza da relação jurídica, ela seja necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal»; e esclarece o segundo que «a decisão produz o seu efeito útil normal sempre que, não vinculando embora os restantes interessados, possa regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado». Ora, não se compreenderia que uma decisão de ineficácia de um contrato de doação pudesse produzir plenamente os seus efeitos sem que na respectiva acção figurasse uma parte desse mesmo contrato e um dos proprietários do bem objecto do contrato. Ou seja, afigura-se-nos que a decisão da presente acção só poderá produzir o seu efeito útil normal se puder vincular todos os titulares do bem a que a mesma se refere, o que postula necessariamente a intervenção do cônjuge do R. recorrente como demandada. Em rigor, pois, a intervenção de ambos os cônjuges deve-se, in casu, não à aplicação do artº 34º do NCPC, mas antes do artº 33º do mesmo Código, uma vez que está em causa bem que não é bem comum do casal, dado o regime de separação de bens do respectivo casamento, mas bem pertencente a ambos em compropriedade. Impõe-se, assim, o litisconsócio necessário passivo do R. recorrente e seu cônjuge.

Já no Ac. RP de 28/3/1995 (Proc. 9430727, in www.dgsi.pt) se afirmava, a propósito da impugnação pauliana de contrato de alienação de determinado bem (aí onerosa, mas com idêntica pertinência quanto a alienações gratuitas como a dos presentes autos), que «se o autor da acção pauliana visa impugnar um contrato de compra e venda, em que o direito alienado pertencia a vários titulares ou comproprietários, tem de os demandar a todos, sob pena de ilegitimidade, porque doutro modo não se logrará o efeito útil normal da sentença». E, a propósito de uma impugnação pauliana de alienação gratuita (por escritura de doação) de bem pertencente a ambos os cônjuges (aí enquanto bem comum do casal), em que ambos intervieram na respectiva escritura, mas sem que o cônjuge mulher fosse devedora do autor, se expressava, em sentido concomitante (e igualmente pertinente para o presente caso), o Ac. RL de 11/11/2014 (Proc. nº 775/12.4TCFUN.L1-1, idem), nos seguintes termos: «(…) “será sempre conveniente a dedução da acção contra todos os intervenientes na relação jurídica, cujo advento justifica a agressão do credor demandante, quer estejam em causa negócios onerosos ou gratuitos. Parece evidente que a estatuição do artigo 26º, n.ºs 1 e 2, do Código do Processo Civil estabelece a legitimidade de todos os envolvidos nas transmissões, para que a decisão pedida pelo autor venha a produzir o seu efeito útil normal nos termos do artigo 28º do mesmo diploma” – págs. 44 e 45 [citando PEDRO ROMANO MARTINEZ e PEDRO FUZETA DA PONTE, Garantias de Cumprimento, 5ª ed.]. Deste modo, a intervenção da chamada (…) [cônjuge do devedor], por ter sido um dos outorgantes do acto impugnado (escritura de doação), reputado contrário ao direito do autor, é necessária para que a decisão possa definir com força de caso julgado a relação controvertida, tal como é configurada pelo autor – arts. 28º do antigo CPC e 33º do Novo CPC».

De tudo isto se infere que ocorre uma manifesta situação de preterição de litisconsórcio necessário passivo (in casu, ao abrigo do artº 33º, nº 2, do NCPC), de que, em primeira linha, resultaria uma absolvição dos RR. da instância (cfr. artos 576º, nos 1 e 2, e 577º, al. e), do NCPC). Contudo, a lei processual é clara no sentido de ser concedida ao demandante, nessas situações, a possibilidade de fazer intervir o demandado em falta, através da oportuna dedução de incidente de intervenção principal provocada, nos termos dos artos 261º e 316º, nº 1, do NCPC (correspondentes aos artos 269º e 325º do anterior CPC), e de impor ao tribunal a prolação de despacho destinado a providenciar pelo suprimento de excepção dilatória, em conformidade com o disposto nos artos 6º, nº 2, e 590º, nº 2, al. a), do NCPC (correspondentes aos artos 265º, nº 2, e 508º, nº 1, al. a), do anterior CPC).

Sobre estas consequências, exprime-se de modo particularmente proficiente o Ac. RL de 29/5/2009 (Proc. 8120/2006-1, idem), prolatado na vigência do anterior CPC, mas perfeitamente transponível para as equivalentes normas do NCPC, e a propósito precisamente de uma situação de preterição de litisconsórcio necessário natural passivo (decorrente do artº 28º, nº 2, do anterior CPC), nos seguintes termos: «[…] A preterição desse litisconsórcio necessário natural passivo consequencia a ilegitimidade passiva do Réu/Apelado (cit. art. 28º, nºs 1 e 2, do CPC). Apesar dessa ilegitimidade passiva do Réu/Apelado, decorrente da preterição do litisconsórcio necessário natural imposto pelo cit. art. 28º-2 do CPC, faz-se mister que o tribunal “a quo” providencie, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 508º, nº 1, al. a), e 265º, nº 2, do C.P.C., pelo suprimento de tal excepção dilatória, em lugar de se julgar imediatamente verificada a excepção dilatória de ilegitimidade, com a consequente absolvição do R. da instância. Efectivamente, de acordo com o art. 508º, nº 1, al. a), do C.P.C., findos os articulados, deve o juiz proferir despacho destinado a providenciar pelo suprimento de excepções dilatórias. […] a constatação, por esta Relação, nesta fase processual, de que foi preterido o litisconsórcio necessário natural passivo imposto pelo cit. art. 28º-2 do CPC, […] não pode, sem mais, conduzir à procedência da excepção dilatória de ilegitimidade passiva e à consequente absolvição do Réu da instância, antes se impondo, nos termos das disposições conjugadas dos cits. arts. 508º, nº 1, al. a), e 265º, nº 2, do C.P.C., que seja proferido um despacho pré-saneador destinado a providenciar pelo suprimento daquela excepção dilatória, convidando o Autor ora Apelante a deduzir o pertinente incidente de intervenção principal provocada […] Como assim, a sentença recorrida […] não pode subsistir, impondo-se a sua substituição por um despacho pré-saneador com o conteúdo e a finalidade supra apontada.»

Neste conspecto, é de considerar que, no caso presente, se verifica a necessidade de prolação de despacho pré-saneador que convide a A. a suprir a verificada preterição de litisconsórcio necessário passivo, mediante a dedução do adequado incidente de intervenção principal provocada do cônjuge do R. recorrente. Assim procede a arguida questão de ilegitimidade – o que determina que fique prejudicada a apreciação de todas as demais questões suscitadas. E, nessa medida procede a presente apelação.

Consequentemente, deve ser revogada a sentença sob recurso (proferida na forma de saneador-sentença) e retomada a tramitação própria dos autos a partir do momento imediatamente antecedente a essa decisão, mediante a sua substituição pelo mencionado despacho pré-saneador, que providencie pelo suprimento da excepção dilatória de ilegitimidade, por preterição de litisconsórcio necessário natural passivo, convidando a A. a deduzir o devido incidente de intervenção principal provocada, nos termos conjugados dos artos 6º, nº 2, e 590º, nº 2, al. a), do NCPC, após o que prosseguirão os autos os trâmites processuais que no caso couberem e forem legalmente adequados.

III – DECISÃO:

Pelo exposto, decide-se julgar procedente a presente apelação, revogando a decisão recorrida (de fls. 407-413) e determinando a sua substituição por despacho pré-saneador, a proferir pelo tribunal de 1ª instância, que providencie pelo suprimento da excepção dilatória de ilegitimidade, por preterição de litisconsórcio necessário natural passivo, mediante convite à A. para deduzir o pertinente incidente de intervenção principal provocada, nos termos supra descritos.

Custas da apelação pela A. apelada (artº 527º do NCPC).

Évora, 26 / 01 / 2017

Mário António Mendes Serrano
Maria Eduarda Mira Branquinho Canas Mendes (dispensei o visto)
Mário João Canelas Brás (dispensei o visto)