Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
654/16.6T8ABT.E1
Relator: ISABEL PEIXOTO IMAGINÁRIO
Descritores: SEGURO DE ACIDENTES PESSOAIS
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Data do Acordão: 04/11/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: - o contrato de seguro desportivo obrigatório constitui um seguro de pessoas, integra a categoria dos seguros de acidentes pessoais, pelo que tem natureza distinta do contrato de seguro de responsabilidade civil;
- a obrigatoriedade de «pagamento de um capital por morte ou invalidez permanente, total ou parcial, por acidente decorrente da atividade desportiva» no âmbito desse contrato não implica a obrigatoriedade de pagamento de compensação de danos de natureza não patrimonial;
- o incumprimento da obrigação de celebrar e manter vigente contrato de seguro desportivo com o âmbito de cobertura previsto no regime legal do contrato de seguro desportivo obrigatório acarreta, em caso de acidente decorrente da atividade desportiva, a responsabilidade das entidades que tenham incorrido nesse incumprimento nos mesmos termos em que responderia o segurador, caso o seguro tivesse sido contratado ou tivesse sido contratado nos termos legais.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes no Tribunal da Relação de Évora


I – As Partes e o Litígio

Recorrente / Ré: Companhia de Seguros (…) Portugal, SA

Recorrido / Autor: (…)

Trata-se de uma ação declarativa de condenação através da qual o A peticionou o pagamento da quantia de € 30.000 a título de indemnização dos danos de natureza não patrimonial que sofreu bem como a quantia de € 9.600 de indemnização pela perda de rendimentos, danos decorrentes da lesão que sofreu no decurso de um jogo de futebol. A responsabilidade pelo pagamento de tais indemnizações recai, na ótica do A, sobre a R por via do contrato de seguro celebrado com a Associação de Futebol de (…).
Em sede de contestação, a R seguradora invocou, designadamente, a falta de cobertura na apólice para a perda de rendimentos e danos morais, pugnando pela sua absolvição dos pedidos.

II – O Objeto do Recurso

Decorridos os trâmites processuais legalmente previstos, foi proferida sentença julgando a ação parcialmente procedente, condenando a Companhia de Seguros (…) Portugal, S.A. no pagamento ao Autor (…) da quantia total de vinte e sete mil e quinhentos euros (€ 27.500), sem prejuízo da dedução da franquia contratualmente estabelecida, a título de compensação pelos danos não patrimoniais sofridos pelo Autor em consequência do acidente dos autos, absolvendo-a do restante pedido.
Inconformada, a R apresentou-se a recorrer, pugnando pela revogação da decisão recorrida, a substituir por outra que a absolva dos pedidos. Conclui a sua alegação de recurso nos seguintes termos:
«1) A Apelante não se conforma com a Douta Sentença proferida tendo em conta que condena a Apelante a pagar uma indemnização superior ao que está previsto na Apólice de Acidentes Pessoais Grupo dos autos.
2) Na realidade, a Apelante foi condenada a pagar Euros 27.500,00, que corresponde à totalidade do capital por invalidez permanente por morte e por acidente, com fundamento em danos morais sofridos pelo A. em consequência do acidente desportivo dos autos.
3) Concretamente, de acordo com a condenação dos autos, a Sentença prevê que o Apelado tenha direito a uma indemnização por todos os danos aplicáveis quando ocorre responsabilidade civil, nomeadamente danos morais, sem qualquer enquadramento nas coberturas e exclusões da Apólice de acidentes pessoais dos autos.
4) Nem mesmo a Apólice de acidentes de trabalho contempla os danos morais.
5) Nessa medida, o MMª juiz considerou que a Apólice dos autos cobre mais danos que uma apólice de acidentes de trabalho, o que não se aceita.
6) A Apelante pretende a alteração à matéria de facto da alínea AF) no sentido de dar como integralmente reproduzido todo o clausulado da Apólice dos autos – Doc. 1 junto com a Contestação, pois, não foi a mesma colocada em crise pelo A.
7) A Apelante pretende também a alteração aos Pontos S) e AN) dos Factos Provados no sentido de se eliminar que o A. coxeia (S) e que apresenta marcha claudicante (AN), tendo em conta o teor do relatório pericial final datado de 5 de Junho 2018 fls., onde consta que “O examinando é dextro e apresenta marcha normal, sem apoio nem claudicação”.
8) Em sede de direito, a Douta Sentença contém errada interpretação dos arts 5 e 6 do Decreto-Lei n.º 10/2009, de 12 de Janeiro que estabelece o regime jurídico do seguro desportivo obrigatório.
9) É certo que tal diploma contém normas imperativas mas não ao ponto de obrigar a Apelante a pagar a totalidade do capital previsto por morte ou invalidez total no caso de apenas 8 pontos de invalidez.
10) O diploma na parte obrigatória estipula apenas mínimos para a cobertura de morte e invalidez permanente, e obriga a que o seguro tenha dois tipos de cobertura – morte e invalidez permanente e despesas médicas, que está integralmente cumprido pela Apólice dos autos.
11) Na douta Sentença, o MMº Juiz condena a Apelante a pagar 27.500,00 apenas com fundamento nos danos morais peticionados.
12) E tal ocorre porque faz incluir os danos morais, previstos apenas em sede de responsabilidade civil, na cobertura de invalidez Permanente por acidente.
13) A invalidez permanente tal como definida pela Apólice e também pela Tabela aplicada no relatório pericial dos autos fls., prevê perda anatómica ou impotência de membros ou órgãos e não danos morais, aliás, expressamente excluídos pela Apólice.
14) E a Apólice dos autos não limita qualquer percentagem, prevê apenas que a (…) pagará parte do capital correspondente ao grau de desvalorização atribuído segundo a tabela nacional para avaliação das incapacidades permanentes em direito civil.
15) Tratando-se no caso do A. de uma invalidez parcial não existe norma imperativa que obrigue a seguradora a pagar a totalidade do capital que se paga em caso de morte ou invalidez total.
16) Com a interpretação que faz ao diploma do seguro desportivo obrigatório o MMº Juiz acaba por equiparar 8 pontos de incapacidade – incapacidade parcial – ao dano morte ou à incapacidade total.
17) Pois, caso tivesse ocorrido a morte do atleta, seria esse o capital atribuído, o que é manifestamente desproporcional, ilegal e errado em termos de interpretação do diploma do seguro desportivo.
18) Assim, a Apólice dos autos é integralmente válida, não contendo nulidades ou outros vícios que impeçam de se aplicar todo o clausulado aos factos provados, incluindo o artº 2º que prevê a cobertura de Invalidez Permanente das Condições Particulares e o artº 2º das Condições Gerais, ponto 1 que excluí as indemnizações por danos morais, tudo em doc. 1.
19) Nem a exclusão dos danos morais esvazia o objecto do contrato de seguro em causa, não violando assim o artº 6º do já citado diploma.
20) Neste sentido, Acórdão da Relação do Porto de 7-04-2016, in www.dgsi.pt/jtrp.nsf.
21) Ora, sendo que nos presentes autos o A. pede Euros 9.600,00 por alegada perda de rendimentos, cfr. pedido formulado em 5, o que não se provou, e pede euros 30.000.00 por alegados danos morais, cfr. pedido formulado em 6. 25, atendendo ao clausulado do artº 2 Invalidez Permanente – Das Condições Particulares e artº 2 ponto 1 das Condições Gerais, tudo em Doc. 1, o Autor não tem direito a qualquer dos pedidos.
22) Sem conceder, e mesmo não estando expressamente pedido, para que não fique a situação do A. desatendida em termos de Invalidez Permanente, no limite, o Autor teria direito a 8 pontos sobre o capital total, o que, de acordo com o artº 2º das Condições Particulares, doc. 1, perfaz Euros 2.200,00.
23) Com a interpretação vertida na sentença pelo MMº Juiz, que faz incluir danos morais no âmbito da cobertura de invalidez permanente, o MMº Juiz violou os artºs artsº 5 e 6 do DL nº 10/2009, de 12/01, ignorou os limites da Apólice constantes dos artºs 2 das Condições Particulares e as exclusões do artº 2º ponto 1 das Condições Gerais da Apólice, Doc. 1 e nos artºs 405º e 406º do C.C., que permite às partes a livre fixação do conteúdo do contrato, não tendo sido violada qualquer normal imperativa.
24) Ao violar disposições da Apólice, o MMº Juiz violou os artº 11º e 32º, nº 2, do DL n.º 72/2008, de 16 de Abril (Regime Jurídico do Contrato de Seguro), e artº 238º do Código Civil, aplicável nos negócios formais, entre outros.
25) A Douta Sentença também erra na aplicação do DL nº 146/93, de 26/04, tendo em conta que se trata de um diploma revogado e que não estava em vigor à data do contrato de seguro dos autos.
26) Por fim, a Douta sentença erra na aplicação e interpretação do 496º do C.C., que se deve aplicar apenas sem sede de responsabilidade civil, quando ocorre facto ilícito, o que não acontece no acidente desportivo dos autos, que se enquadra no âmbito dos acidentes pessoais.
27) E, sem conceder, mesmo que tivesse o Autor direito a ser compensado por danos morais, ao abrigo do artº 496º do C.C., o que não se aceita, em qualquer caso afigura-se excessivo e fora dos valores praticados pela Jurisprudência fixar a quantia de Euros 27.500,00 por danos morais tratando-se de uma invalidez de 8 pontos, em 100.
28) Impõe-se, assim, face ao alegado, a revogação da Douta sentença recorrida e a absolvição da Apelante, ou a condenação em quantia não superior a Euros 2.200,00 a título de invalidez Permanente por Acidente, tendo em conta os pagamentos já efectuados ao abrigo do sinistro dos autos e o grau de invalidez fixado ao Autor em 8 pontos, e os limites da apólice, com as legais consequências.»
O Recorrido apresentou contra-alegações sustentando que o recurso deverá ser julgado improcedente, mantendo-se a decisão recorrida, já que os danos não patrimoniais estão incluídos nas coberturas legais obrigatórias por acidente decorrente da atividade desportiva, devendo ser avaliados nos termos previstos no art. 496.º do CC, designadamente através do critério da equidade, critério que deve presidir a atribuição de indemnizações.

Cumpre conhecer das seguintes questões:
- da impugnação da decisão relativa à matéria de facto;
- do direito do A a obter pagamento pela R de € 27.500,00, atento o âmbito de cobertura do contrato de seguro.


III – Fundamentos

A – Os factos provados em 1.ª Instância
A) O Autor nasceu no dia 10/9/1978.
B) O Autor foi praticante de futebol amador, como jogador federado, desde os seis anos de idade.
C) Iniciou-se no Benfica de (…), tendo efetuado, como jogador, todos os escalões de prática, até sénior.
D) Sem qualquer interrupção, jogou futebol por várias equipas, sendo reconhecido por jogadores, treinadores e clubes.
E) Era um jogador titular das equipas onde jogava e era capitão de equipa.
F) Foi selecionado, durante vários anos, para a seleção distrital de Santarém, por ser um dos melhores jogadores do Distrito de Santarém.
G) A carreira de futebolista do Autor consolidou-se, ao longo do tempo, tendo o mesmo a expectativa de ingressar em outros clubes.
H) Na época 2013/2014, o Autor encontrava-se a representar a Associação Desportiva de (…), como jogador de futebol sénior, desempenhando as funções de capitão de equipa, sendo um jogador titular.
I) Encontrava-se a representar esse clube, desde o ano de 2005.
J) No dia 6/4/2014, durante o jogo de futebol do Campeonato Distrital de Futebol Sénior da 1ª Divisão Distrital da Associação de Futebol de (...), disputado entre a Associação Desportiva de (…) e o Grupo Desportivo de (…), no Campo (…), em (…), o Autor lesionou-se, com gravidade, enquanto disputava uma bola.
K) Tendo abandonado, de imediato, o recinto do jogo e sido transportado à Urgência do Centro Hospitalar do Médio Tejo, Unidade de Abrantes.
L) O Autor sofreu uma luxação tíbio társica esquerda e uma luxação do tornozelo da perna esquerda, bem como uma lesão parcial dos ligamentos e do perónio astragalino anterior, perónio calcâneo e ligamento Deltoideu.
M) Iniciou, então, tratamento, através de rede de assistência médica da Ré.
N) Andou com o pé engessado, aproximadamente durante 30 dias.
O) Após os exames, designadamente as radiografias e ecografias, foi ponderada a possibilidade de operação, em face das lesões sofridas.
P) Os serviços médicos da Ré optaram, antes, por engessar a perna do Autor, sem promoverem qualquer operação.
Q) Posteriormente, o Autor acabou por ser intervencionado cirurgicamente, por duas vezes, em Lisboa, cerca de um ano após se ter lesionado no referido jogo de futebol, após ter efetuado verias consultas médicas e ter sido sujeito a tratamentos médicos.
R) Após as operações, o que já tinha também sucedido antes, o Autor locomoveu-se com o apoio de canadianas, durante um período de tempo não concretamente apurado.
S) Atualmente, mesmo locomovendo-se sem o apoio de canadianas, o Autor ainda coxeia e tem dores.
T) Desde a data do acidente, o Autor está praticamente impedido de praticar desporto, em face das limitações físicas resultantes das lesões sofridas.
U) A data da consolidação médico-legal das lesões sofridas pelo Autor em consequência do acidente dos autos, é fixável em 1/2/2017.
V) O Autor teve um período de défice temporário total, fixável em 2 dias.
W) O Autor teve um período de défice funcional temporário parcial fixável em 1032 dias.
X) O Autor teve um período de repercussão temporária na atividade profissional total fixável em 1034 dias.
Y) O «quantum doloris» do Autor é de 6 graus em 7.
Z) O dano estético permanente do Autor é de 2 graus em 7.
AA) O défice funcional permanente da integridade físico-psíquica do Autor, é fixável em 8 pontos, pela Tabela de Avaliação e Incapacidades Permanentes em Direito Civil.
AB) As sequelas do acidente, em termos de repercussão permanente na atividade profissional do Autor, são compatíveis com o exercício da atividade habitual, mas importam esforços suplementares.
AC) A repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer do Autor é fixável é de 6 graus em 7.
AD) A Ré «(…) – Rede Nacional de Assistência», não é uma companhia de seguros, tendo por objeto a prestação de serviços, gestão, assistência e consultadoria a pessoas e bens, no ramo de qualquer sinistro, bem como a gestão de quadros clínicos e outros e a prestação de serviços médicos e outros.
AE) A Ré «(…) – Rede Nacional de Assistência» é a entidade prestadora de serviços de regularização dos sinistros desportivos, por conta e ordem da «(…) Seguros – Companhia de Seguros (…) Portugal, S.A.».
AF) Entre a interveniente e a Associação de Futebol de (…), como tomadora, foi celebrado um contrato de seguro do ramo «acidentes pessoais grupo», titulado pela apólice nº (…), com início às 00.00 h. do dia 1/7/2013 e termo às 24.00 h. do dia 30/6/2014.
AG) Este seguro teve por objeto a garantia do risco de acidente resultante da prática desportiva, ou da prática de outras atividades culturais e recreativas, desenvolvida pelas pessoas seguras, entre as quais o Autor, em qualquer parte do mundo, desde que em representação ou sob o patrocínio do tomador do seguro, em competição ou atuação, treino ou ensaio, estágio ou preparação, bem como das deslocações para e dos locais onde são exercidas as atividades referidas.
AH) O seguro cobre a invalidez permanente por acidente, com capital para cada pessoa segura, até € 27.500,00, e despesas de tratamento por acidente, com capital de € 7.500,00, com franquia de € 100,00, por pessoa.
AI) No âmbito dos tratamentos e assistência médica prestada pela Ré, ao Autor, relativamente ao sinistro dos autos, a interveniente gastou a quantia de € 5.840,00.
AJ) No âmbito dos tratamentos e assistência médica prestada pela Ré, ao Autor, relativamente ao sinistro dos autos, os serviços clínicos da Ré concluíram pela falta de necessidade de internamento e de cirurgia, tendo sido prescrita a realização de sessões de fisioterapia ao Autor, às quais o mesmo se submeteu, inicialmente em número de 15; posteriormente 70, porque existiram complicações na evolução do tratamento das lesões e, posteriormente, 80 sessões, após a realização de artroscopia.
AK) Após avaliação médica, pelos serviços clínicos da Ré, o Autor teve alta clínica, sem desvalorização no dia 12/5/2016.
AL) O Autor não concordou com a data desta alta, uma vez que continuava com dores e marcha claudicante, o que ainda hoje acontece.
AM) Em resultado das lesões sofridas no acidente, o Autor deixou de receber a quantia mensal de € 350 que recebia da Associação Desportiva de (…), enquanto prestador de serviços.
AN) O Autor, ao longo de todo o processo de tratamentos, ficou perturbado e ansioso, sobretudo pelo facto de não poder continuar a praticar desporto, face às dores e marcha claudicante que ainda hoje apresenta, tendo tido várias consultas de psicologia.
AO) No âmbito do contrato de seguro estão excluídas quaisquer indemnizações por danos morais.
AP) No âmbito do mesmo contrato, quanto à invalidez permanente por acidente, a mesma surge, contratualmente prevista como sendo, a situação irreversível, resultante da perda anatómica ou impotência funcional de membros ou órgãos, suscetível de constatação médica objetiva, sobrevinda em consequência de lesões corporais produzidas por um acidente coberto pelo presente contrato, sendo que o capital seguro, a este título, é de € 27.500,00 por pessoa.

B – O Direito

Da impugnação da decisão relativa à matéria de facto
A Recorrente pretende a alteração à matéria de facto da alínea AF) no sentido de dar como integralmente reproduzido todo o clausulado da Apólice constante dos autos.
O documento não foi objeto de impugnação. Trechos há que foram conduzidos ao elenco dos factos provados. Certo é que se tem como assente ter sido celebrado o contrato titulado pela referida apólice, com o teor dela constante (o que decorre da al. AF) dos factos provados), não se revestindo de utilidade nem carecendo de dar-se como reproduzido o respetivo teor.
Mantém-se, pois, a al. AF) nos seus precisos termos.
A al. S) apresenta a seguinte redação: Atualmente, mesmo locomovendo-se sem o apoio de canadianas, o Autor ainda coxeia e tem dores.
A Recorrente pugna pela eliminação da menção de que o A coxeia. Alude, para tanto, ao relatório pericial final, onde consta que «O examinando é dextro e apresenta marcha normal, sem apoio nem claudicação.» Relatório pericial que é invocado na motivação da decisão atinente à matéria de facto, exarando-se «o Autor não está curado, ele ainda tem dores e coxeia.»
Ora, analisado tal elemento probatório, constata-se que efetivamente consta, no âmbito do exame objetivo, que «O examinando é dextro e apresenta marcha normal, sem apoio nem claudicação.» No que respeita a queixas referidas pelo examinando no item das «posturas, deslocamentos e transferências», consta «dificuldade em percorrer terrenos irregulares»; e no item «outras queixas a nível funcional» consta «manqueja quando fica a doer.» Inexiste menção de que o A apresente marcha claudicante, que coxeie na sua marcha regular.
Por via disso, a al S) dos factos provados vai alterada, passando a contemplar a seguinte redação: Atualmente, mesmo locomovendo-se sem o apoio de canadianas, o Autor tem dores.
Em face do que, conforme pretendido pela Recorrente, da al. AN) cabe retirar a menção à marcha claudicante, passando a contemplar a seguinte redação: O Autor, ao longo de todo o processo de tratamentos, ficou perturbado e ansioso, sobretudo pelo facto de não poder continuar a praticar desporto, face às dores que ainda hoje apresenta, tendo tido várias consultas de psicologia.

Do direito do A a obter pagamento pela R de € 27.500, atento o âmbito de cobertura do contrato de seguro
A Recorrente foi condenada no pagamento de tal quantia monetária ao Recorrido a título de compensação pelos danos de natureza não patrimonial sofridos em consequência do acidente referido nos autos. O que assentou nos seguintes vetores:
- trata-se de um contrato de seguro desportivo celebrado entre uma Associação de Futebol Distrital e a seguradora, seguro do ramo de acidentes pessoais de grupo;
- contrato esse que se rege pelo disposto no DL n.º 146/93, de 26/04 e pelo DL n.º 10/2009, de 12/01;
- configura um seguro desportivo obrigatório que há de cobrir os riscos previstos na referida legislação;
- o risco por invalidez permanente, total ou parcial, decorrente da atividade desportiva constitui um risco obrigatoriamente coberto pelo contrato de seguro desportivo;
- nesse risco incluem-se os danos de natureza não patrimonial;
- a cláusula contratual de exclusão de indemnizações por danos de natureza não patrimonial é nula por contrária à lei.
A Recorrente sustenta que a incapacidade de 8 pontos nunca pode consentir uma indemnização por danos não patrimoniais que consuma a totalidade do capital seguro, previsto para a invalidez permanente total ou para a morte. Sustenta ainda a validade da cláusula de exclusão porquanto não estamos no domínio de um contrato de seguro de responsabilidade civil.
Ora vejamos.
Efetivamente, o contrato de seguro aqui chamado à colação consiste num contrato de acidentes pessoais. Integra-se na categoria do seguro de pessoas (cfr. arts. 175.º e ss do RJCS aprovado pelo DL n.º 72/2008, de 16/04), cobrindo “riscos relativos à vida, à saúde e à integridade física de uma pessoa” e que pode garantir “prestações de valor predeterminado não dependente do efetivo montante do dano e prestações de natureza indemnizatória.” Nos termos do art.º 210.º do referido diploma, “no seguro de acidentes pessoais, o segurador cobre o risco da verificação de lesão corporal, invalidez, temporária ou permanente, ou morte da pessoa segura, por causa súbita, externa e imprevisível”. O seguro de pessoas “é um desenvolvimento recente, tecido a partir do seguro de vida”, estando em causa “valores humanos de natureza não-patrimonial”, distinguindo-se do seguro de danos, onde é prevista “uma prestação, isto é, uma aportação patrimonial destinada a suprimir um dano”.[1]
É, pois, diverso do contrato de seguro de responsabilidade civil, que tem acolhimento no âmbito da disciplina do seguro de danos (cfr. arts. 123.º e ss do RJCS), em que “o segurador cobre o risco de constituição, no património do segurado, de uma obrigação de indemnizar terceiros” e garante “a obrigação de indemnizar, nos termos acordados, até ao montante do capital seguro por sinistro, por período de vigência do contrato ou por lesado”, atendendo-se ao disposto na lei geral para aferir o dano a atender para efeito do princípio indemnizatório, salvo convenção em contrário” – cfr. arts. 137.º e 138.º do RJCS. Inclui-se no âmbito da disciplina do seguro de danos, que “pode respeitar a coisas, bens imateriais, créditos e quaisquer outros direitos patrimoniais” – cfr. art.º 123.º do RJCS.
Ora, a questão que se coloca neste concreto recurso consiste em saber se a cláusula de exclusão de indemnização de danos de natureza não patrimonial, prevista no contrato de seguro celebrado com a Recorrente, deve considerar-se nula por contrária à lei. Ou seja, não se trata de aferir se o regime legal aplicável consente na indemnização de danos de natureza não patrimonial (o que seria relevante caso o contrato celebrado não previsse nem excluísse a prestação de indemnização por danos não patrimoniais), mas antes se esse regime relativo aos seguros de acidentes pessoais impõe essa indemnização, que foi contratualmente excluída.
O regime em causa é o que decorre do DL n.º 10/2009, de 12/01, que revogou o DL n.º 146/93, de 26/04. Trata-se de um seguro que visa acautelar a responsabilidade objetiva inerente à atividade desportiva.[2] Do respetivo preâmbulo consta que estabelece a obrigatoriedade do seguro desportivo para os agentes desportivos, para os praticantes de atividades desportivas em infra-estruturas desportivas abertas ao público e para os participantes em provas ou manifestações desportivas, sendo que a responsabilidade pela celebração do contrato de seguro desportivo cabe às federações desportivas, às entidades que explorem infra-estruturas desportivas abertas ao público e às entidades que organizem provas ou manifestações desportivas. Consagra ainda a proibição de as apólices de seguro desportivo conterem exclusões que, interpretadas individualmente ou consideradas no seu conjunto, sejam contrárias à natureza da atividade desportiva ou provoquem um esvaziamento do objeto do contrato de seguro.
A imposição da contratação deste seguro radica na necessidade de garantir que os praticantes desportivos e outros agentes por ele abrangidos disporão de recursos financeiros para custear as despesas em que incorram com tratamentos ocasionados por lesões decorrentes do desporto ou assegurar-lhes o pagamento de um valor em caso de óbito ou invalidez permanente, almejando-se uma cobertura dos acidentes pessoais ocorridos no decurso da atividade desportiva que seja adequada aos seus riscos mas também aos encargos gerados.[3]
E por se tratar de um contrato de seguro de pessoas e não já de responsabilidade civil, a obrigação de prestação por parte da seguradora, verificado que seja o sinistro, não assenta na responsabilidade civil por factos ilícitos, não sendo de convocar normas e critérios que são considerados nesse âmbito, designadamente a equidade, para alcançar o quantum da quantia a atribuir à pessoa segura. E uma vez verificado o sinistro prevenido pelo contrato de seguro, a seguradora fica incumbida de entregar ao segurado uma certa atribuição de cariz patrimonial. Mesmo nos casos em que essa atribuição se traduza no pagamento de uma quantia em dinheiro, a mesma corresponde ao mero funcionamento do contrato de seguro, não adquirindo, pelo simples facto de se traduzir, para o beneficiário na supressão/minoração de um dano por si sofrido, uma natureza indemnizatória.[4]
Do regime jurídico do seguro desportivo obrigatório importa, neste caso, salientar o seguinte:
- a responsabilidade pela celebração do contrato de seguro cabe às federações desportivas, às entidades que explorem infra-estruturas desportivas abertas ao público e às entidades que organizem provas ou manifestações desportivas – art. 2.º, n.º 2;
- o seguro desportivo cobre os riscos de acidentes pessoais inerentes à respetiva atividade desportiva, nomeadamente os que decorrem dos treinos, das provas desportivas e respetivas deslocações, dentro e fora do território português – art. 5.º, n.º 1;
- as coberturas mínimas abrangidas pelo seguro desportivo são as seguintes:
a) pagamento de um capital por morte ou invalidez permanente, total ou parcial, por acidente decorrente da atividade desportiva;
b) pagamento de despesas de tratamento, incluindo internamento hospitalar, e de repatriamento – art. 5.º, n.º 2;
- as apólices de seguro desportivo não podem conter exclusões que, interpretadas individualmente ou consideradas no seu conjunto, sejam contrárias à natureza da atividade desportiva ou provoquem um esvaziamento do objeto do contrato de seguro – art. 6.º;
- às federações desportivas cabe instituir um seguro desportivo de grupo, mediante contrato celebrado com os seguradores, ao qual é obrigatória a adesão dos praticantes desportivos federados – art.º 7.º, al. a) e 8.º, n.º 1;
- no âmbito das «infra-estruturas e provas ou manifestações desportivas», estabelece-se que às entidades prestadoras de serviços desportivos, públicas ou privadas, cabe celebrar um contrato de seguro desportivo, com as coberturas mínimas previstas no n.º 2 do artigo 5.º, a favor dos utentes ou clientes desses serviços – art. 14.º, n.º 1;
- as entidades que incumpram a obrigação de celebrar e manter vigentes os contratos de seguro desportivo previstos no citado diploma respondem, em caso de acidente decorrente da atividade desportiva, nos mesmos termos em que responderia o segurador, caso o seguro tivesse sido contratado – art. 20.º.
No caso em apreço, importa levar em linha de conta que o A era jogador de futebol amador federado. Lesionou-se durante um jogo de futebol do Campeonato Distrital de Futebol Sénior da 1.ª Divisão Distrital da Associação de Futebol de (…). Ora, o contrato de seguro que o Recorrido invocou foi o celebrado com a Associação de Futebol de (…), como tomadora, tendo por objeto a garantia do risco de acidente resultante da prática desportiva, ou da prática de outras atividades culturais e recreativas, desenvolvida pelas pessoas seguras, entre as quais o Autor, em qualquer parte do mundo, desde que em representação ou sob o patrocínio do tomador do seguro, em competição ou atuação, treino ou ensaio, estágio ou preparação, bem como das deslocações para e dos locais onde são exercidas as atividades referidas. Sendo o A, à altura, um praticante desportivo federado, o contrato de seguro desportivo obrigatório que deve reger-se pelo regime legal é aquele que tenha por tomadora a federação e não já outra entidade, nomeadamente a Associação de Futebol de … (cfr. Capítulo II vs. Capítulo III do regime jurídico do seguro desportivo obrigatório – DL n.º 10/2009). Atenta a identidade da concreta tomadora neste contrato de seguro, não é de afirmar que o mesmo consubstancie o contrato de seguro obrigatório previsto no DL n.º 10/2009.
De todo o modo, a obrigatoriedade de «pagamento de um capital por morte ou invalidez permanente, total ou parcial, por acidente decorrente da atividade desportiva»[5] não contende com a indemnização de danos de natureza não patrimonial. Atenta a natureza do contrato em causa, já evidenciada supra, a atribuição do capital seguro (e não já de indemnização) depende da morte ou do grau de invalidez da pessoa segura. Atentos os direitos e interesse acautelados pelo seguro obrigatório por acidentes na atividade desportiva que, assentando na responsabilidade objetiva associada à prática desportiva, não almeja prover a responsabilidade aquiliana, não há como afirmar a obrigatoriedade de compensação de danos de natureza não patrimonial. Não obstante a integridade física respeite ao bem-estar psicossomático, certo é que a previsão de pagamento de capital por morte ou por invalidez constitui item distinto relativamente a compensação por danos de natureza não patrimonial, ainda que decorrentes da morte ou da invalidez.[6]
Por conseguinte, ainda que se aplicasse o regime jurídico do seguro desportivo obrigatório ao contrato versado nos autos, a cláusula de exclusão de pagamento de indemnização por danos de natureza não patrimonial não se revelaria contrária ao mesmo.
E ainda que assim não fosse, inexistiria fundamento para a condenação da R seguradora na indemnização de tais danos. É que o art. 20.º do regime legal em apreço determina que são as entidades que tenham incumprido a obrigação de celebrar e manter vigentes os contratos de seguro desportivo previstos no citado decreto-lei que respondem, em caso de acidente decorrente da atividade desportiva, nos mesmos termos em que responderia o segurador, caso o seguro tivesse sido contratado. O que se aplica se estiver em causa o âmbito de cobertura obrigatória.

Termos em que se conclui pela procedência do presente recurso.

As custas recaem sobre o Recorrido – art. 527.º, n.º 1, do CPC.

Concluindo:
(…)

IV – DECISÃO

Nestes termos, decide-se pela procedência do recurso, em consequência do que se revoga a decisão recorrida, absolvendo a R Companhia de Seguros (…) Portugal, SA do pedido em que foi condenada em 1.ª Instância.
Custas pelo Recorrido.
Évora, 11 de Abril de 2019
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria Domingas Simões
Vítor Sequinho dos Santos
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[1] Menezes Cordeiro, Direito dos Seguros, pág. 839.
[2]
[3] Ana Brilha “O novo regime do seguro desportivo – Verdadeira inovação” in “Desporto & Direito”, ano VI, n.º 17, pág. 293.
[4] Cfr. Ac. já citado do STJ.
[5] Cfr. art. 5.º, n.º 2, al. a), do DL n.º 10/2009.
[6] Cfr, Ac. STJ de 08/09/2016 (Orlando Afonso), TRG de 15/01/2015 (Heitor Gonçalves), TRP de 07/04/2016 (Maria José Costa Pinto).