Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2515/19.8T8STB.E1
Relator: JOSÉ ANTÓNIO MOITA
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
CAPITAL
ACTUALIZAÇÃO
SEGURO DE CRÉDITOS
Data do Acordão: 06/09/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1-O regime do artigo 7.º do Dec.-Lei n.º 222/2009, de 11/09, respeitante a actualização automática do montante do capital seguro em função das alterações do capital mutuado não se mostra aplicável aos contratos de seguro do ramo vida pendentes à data da entrada em vigor daquele diploma legal.
2-Os danos não patrimoniais reportam-se a valores de ordem moral, ideal, ou espiritual, sendo indemnizáveis apenas aqueles que se mostrem suficientemente graves para merecerem a tutela jurídica, incumbindo ao lesado a prova da verificação dos mesmos.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 2515/19.8T8STB.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal
Juízo Local Cível de Setúbal – Juiz 1
Apelantes: (…) e (…)
Apeladas: (…) – Companhia de Seguros, SA
Caixa Geral de Depósitos, SA
***
Sumário do Acórdão
(Da exclusiva responsabilidade do relator – artigo 663.º, n.º 7, do CPC)
(…)
*
Acordam os Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora no seguinte:
I – RELATÓRIO
(...) e (…), residentes na Rua Dr. (…), n.º 40, Cv.-Ft., 2910-586 Setúbal, instauraram acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra (…), Companhia de Seguros, S.A., com sede no Largo do (…), n.º (…), 1249-001 Lisboa e Caixa Geral de Depósitos, S.A., com sede na Av. (…), n.º (…), 1000-300, Lisboa.
Peticionaram o pagamento das quantias pagas em excesso que se apurarem no âmbito do contrato de seguro ramo vida, acrescidas de juros de mora à taxa legal de 4% ao ano, a contar do efectivo desembolso, até integral pagamento, bem como a quantia de € 5.000,00, a título de danos morais sofridos, acrescida de juros de mora à taxa legal de 4% ao ano, a contar da citação até integral pagamento.
Alegaram para o efeito, em suma, que celebraram com a 1.ª Ré um contrato de seguro de vida em Grupo por conta de contrato de crédito habitação existente com a 2.ª Ré com o n.º (…), cujo capital seguro no início do contrato (19/06/2009), correspondia a 100% do capital em dívida, ou seja, € 40.000,00, acrescentando que as Rés tinham o dever de ir actualizando os prémios dos seguros consoante a amortização do capital em dívida, esclarecendo que até Agosto de 2018 as mesmas mantiveram o capital seguro em apólice inalterado, data em que efetuaram a atualização do capital seguro, que foi reduzido de € 37.412,05 para € 14.446,64, não tendo, contudo, creditado, ou restituído, aos Autores as quantias entretanto pagas a mais no âmbito do contrato de seguro.
Notificadas para contestar, as Rés defenderam-se, em articulados autónomos, por impugnação, negando as razões invocadas pelos Autores, referindo, em suma, não terem a obrigação de efectuar a actualização automática do capital em dívida.
Realizou-se audiência prévia.
Após, proferiu-se despacho saneador-sentença, ao abrigo do disposto no artigo 595.º, n.º 1, alínea b), do CPC, do qual consta o seguinte dispositivo:
“Decisão final:
Pelo exposto, julgo a vertente acção improcedente, por não provada, e absolvo as Rés de tudo o quanto foi peticionado.
Custas pelos Autores.”
*
Inconformados com a decisão plasmada na sentença vieram os Autores apresentar requerimento de recurso para este Tribunal da Relação de Évora, alinhando as seguintes:
“III. CONCLUSÕES:
I. O presente recurso tem como objeto: toda a matéria de facto e de direito da Sentença proferida nos presentes autos.
II. No nosso país, é condição sine qua non para concessão de crédito à habitação, a contratação, em paralelo, de um contrato de seguro de vida que garanta àquelas o pagamento das importâncias devidas em caso de morte e ou invalidez do devedor.
III. O Decreto-Lei n.º 222/2009, de 11 de setembro, foi instituído justamente para assegurar a não imposição aos consumidores de contratos de seguros de vida associados ao crédito à habitação com condições que vão além do que justificaria a preocupação legítima de protecção do interesse dos credores.
IV. Não é legal, nem parece justo e razoável, que um contrato de seguro de vida associado a crédito à habitação, permaneça 7 anos sem atualização do capital seguro, em flagrante desrespeito ao que diz a Lei, bem como aos Recorrentes na qualidade de consumidores lesados.
V. Ora, nos termos da cláusula 9.ª do contrato de seguro de vida – (Doc. 2 da P.I.) –, tratando-se de um contrato de seguro com renovação periódica, associado a contrato de mútuo, o valor do seguro na data de início de cada adesão, deveria corresponder à totalidade do valor do capital em dívida informado ao segurador, sobre o qual seria calculado o prêmio.
VI. Não obstante, a previsão contratual acima mencionada, a Lei, através do Decreto-Lei n.º 222/2009, de 11 de setembro, em vigor desde 10/12/2009, também prevê no seu artigo 5.º, n.º 4, que o contrato de seguro de vida associado a contrato de mútuo, tem um capital seguro igual ao capital em dívida.
VII. Em idêntico sentido, o artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 222/2009, de 11 de setembro, indica ser dever da 2.ª Recorrida informar a 1.ª Recorrida, acerca da evolução do montante em dívida, sendo dever desta, proceder a imediata atualização do capital seguro, com efeitos reportados à data de cada alteração do montante em dívida ao abrigo do contrato de crédito à habitação, creditando ou restituindo aos Recorrentes as quantias entretanto pagas ao âmbito do contrato de seguro.
VIII. Dever esse que era conjunto das Recorridas nos termos do n.º 2, do artigo 8.º Decreto-Lei n.º 222/2009, de 11 de setembro, e que foram sempre descumpridos por estas.
IX. E nos termos do artigo 9.º do Decreto-Lei, de 11 de setembro, uma vez descumprido tais deveres de informação por parte das recorridas, faz incorrer em Responsabilidade Civil nos termos gerais, e confere aos recorrentes o direito de, a qualquer momento exigir a sua correção, bem como o ressarcimento dos danos causados.
X. A respeitável Sentença recorrida deixou de observar o Decreto-Lei n.º 222/2009, de 11 de setembro, e em especial os artigos acima citados.
XI. Ao contrário do que foi fundamentado na respeitável Sentença recorrida, o Decreto-Lei n.º 222/2009, de 11 de setembro, visa assegurar o cumprimento do imperativo constitucional de proteção dos direitos dos consumidores, tendo sem sombra de dúvidas um cariz protecionista, o que por si só já é suficiente para que seja aplicável aos contratos em curso.
XII. E não só, o contrato de seguro de vida discutido nestes autos, é renovado periodicamente mês a mês.
XIII. E também por esta razão, todos os benefícios posteriores, advindos com o advento
do Decreto-Lei n.º 222/2009, de 11/09, norma cogente (imperativa e de ordem pública), cujo interesse social subjacente – (é assegurar o cumprimento do imperativo constitucional de protecção dos direitos dos consumidores) –, exige sua aplicação imediata sobre todas as relações jurídicas de trato sucessivo, a exemplo do contrato de seguro de vida discutido nestes autos, merecendo também por esta razão a respeitável Sentença recorrida ser reformada.
XIV. Discorda da respeitável Sentença na parte em que afirma que: “o diploma em causa
nada prevê quanto à sua aplicação aos contratos vigentes, pelo que teremos de recorrer às normas gerais relativas à aplicação da lei no tempo”.
XV. A Lei geral dos contratos de Seguros, nos termos dos seus artigos 2.º e 3.º, indica sobre a aplicação imediata do conteúdo de natureza supletiva contido no Decreto-Lei n.º 222/2009, de 11 de Setembro, a partir da primeira renovação posterior à data da sua entrada em vigor em 11 de dezembro 2009.
XVI. Não se vislumbra antinomia entre o D.-L. n.º 72/2008, de 16 de Abril e o Decreto-Lei n.º 222/2009, de 11 de Setembro, os quais devem ser interpretados de modo a propiciar um diálogo coerente entre as fontes normativas, à luz dos princípios da boa-fé objetiva e da equidade, sem desamparar a parte vulnerável na contratação, ou seja, os Recorrentes.
XVII. Não pode prevalecer o ato ilícito das recorridas, praticados na vigência do contrato
de seguro em discussão, visto que, aquelas estavam cientes que descumpriam o contrato, a Lei, mantendo o capital seguro em apólice inalterado (Cfr. Doc. 3 da P.I.), pese embora, os recorrentes fossem amortizando o capital em dívida junto da 2.ª Recorrida regularmente, na forma que se verificou nestes autos.
XVIII. As Recorridas deverão, recalcular os prémios do contrato de seguro de vida, de acordo com as alterações do valor do capital em dívida à Entidade Mutuante, com efeitos reportados, mês a mês, à data de cada uma das atualizações do capital seguro, referente ao período compreendido entre 01-10-2009 à 31-07-2017, restituindo aos recorrentes as quantias entretanto pagas em excesso que se apurarem, no âmbito do contrato de seguro, acrescidas de juros de mora à taxa legal de 4% ao ano, a contar do efetivo desembolso, até integral pagamento;
XIX. De forma solidária, as recorridas devem ainda ser condenadas a pagar aos recorrentes a quantia de € 5.000,00, a título de danos morais sofridos, acrescida de juros de mora à taxa legal de 4% ao ano, a contar da citação até integral pagamento, conforme artigo 496.º do Código Civil;
XX. Deve, por isso, ser modificada a douta Sentença impugnada, no sentido de ser julgado totalmente procedente o pedido dos Recorrentes constante da Petição Inicial e que aqui se dá por integralmente reproduzido.
XXI. Disposições violadas: as referidas supra e as demais que V. Exias suprirão.
Face ao exposto, e muito que será suprido por vossas excelências, deverá ser concedido provimento ao presente recurso, revogando a douta Sentença, julgando a vertente acção procedente e condenando as recorridas de tudo o quanto foi peticionado pelos Recorrentes. Assim se fazendo a habitual e almejada, Justiça!”
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A Apelada (…) -Companhia de Seguros, SA, respondeu ao recurso alinhando as seguintes
“CONCLUSÕES:
1-O contrato de seguro que se discute nos autos, teve inicio em 16.09.2009, altura em que não se encontrava legalmente contemplada a atualização automática do capital de seguro.
2- Essa hipótese, apenas passou a estar consagrada no D.-L. 222/2009 de 11,09, em vigor a partir de 10.12.2009.
3-Com a entrada em vigor do D.-L. 222/2009 de 11.09, e uma vez que o contrato se vencia em Setembro de 2010, a recorrida (…), por meio de carta datada de 06.07.2010 já junta aos autos com a contestação como doc. 8, informou os recorrentes de que o capital do seu seguro de vida só era atualizado mediante pedido seu, acompanhado de documento comprovativo do capital em dívida ao Banco, caso pretendessem manter a situação então vigente.
4- Mais os esclareceu do que deviam fazer caso pretendessem alterar para atualização automática do capital (Opção1), acrescentando que “caso não pretenda alterar a forma de atualização do capital do seu seguro de vida, não necessita de efetuar qualquer comunicação”.
5- Tendo conhecimento dessa carta e do que constava dos certificados de adesão supra referidos, em 13.09.2010, (…) deslocou-se à agência de Setúbal da ora contestante e requereu a “redução do capital seguro nas adesões vida risco para o valor actualmente em dívida ao credor CGD conforme extracto da conta anexa para o efeito – Capital actual € 37.412,05” (doc. 9 junto com a contestação).
6- Em 26.07.2017, quer o Autor, quer a sua mulher, requereram junto da co-ré C.G.D. a “…actualização do capital seguro associada apólice 5001187-pessoa segura 3756 (contribuintes n.º … e contribuinte n.º …) para o actual capital em dívida do empréstimo n.º (…), no valor de 14.446,64 euros” (doc. 10 junto com a contestação).
7- Em 06.11.2017, foi requerido pelo Autor junto da co-ré CGD o seguinte: “Solicita-se a regularização dos valores pagos desde a adesão ao seguro de vida, relativamente à actualização de capital em divida, uma vez que não se encontrava a actualizar automaticamente. Mais se solicita que passe a ser actualizado automaticamente o capital em dívida” (doc. 11 junto com a contestação).
8- A atualização automática do capital foi, pois, solicitada em 06.11.2017, e não antes porque os recorrentes não quiseram, não tendo a recorrida (…) qualquer culpa ou responsabilidade no comportamento dos recorrentes.
9-Tal alteração foi efectuada, com efeitos a 01.12.2017, data a partir da qual o capital passou a ser atualizado automaticamente (doc.12 junto com a contestação)
10- Por essa razão, no Certificado de adesão com a data de emissão de 15.01.2018 junto pelo Autor, como doc. 1 (fls. 34 da p.i), na parte relativa ao Capital Seguro e Modalidades de Atualização de Capital, passou a constar que: “…O capital seguro será atualizado automaticamente de acordo com a informação prestada pela Instituição de Crédito mutuante…de acordo com o regime de atualização previsto no artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 222/2009, de 11 de Setembro…” .
11- Como se alegou, não assiste qualquer razão aos recorrentes.
Deste modo, face à matéria de facto dada como provada e à decisão proferida, e sem necessidade de mais considerações, entende a Recorrida que as alegações de recurso não beliscam sequer a douta decisão do tribunal a quo, razão pela qual, com o douto suprimento de Vossas Excelências, deve, ser negado provimento ao recurso, com a consequente confirmação da decisão recorrida com o que farão, como sempre, JUSTIÇA!”
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A Apelada Caixa Geral de Depósitos, SA, também respondeu ao recurso descriminando as seguintes
CONCLUSÕES:
I. O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do mesmo deduzidas nas alegações de recurso;
II. Pretendem os Recorrentes através do presente recurso atacar a matéria de facto provada e bem assim a aplicação do direito;
III. A impugnação da matéria de facto, não pode ser atendida porque não foi dado cumprimento ao disposto no artigo 640.º do C.P. Civil, o que inviabiliza o conhecimento do recurso quanto a tal ponto;
IV. Já quanto à questão da aplicação do direito, os Recorrentes limitam-se a afirmar uma posição de discordância da sentença proferida, sem, porém conseguirem justificar a real razão da mesma;
V. Em Portugal vigora o princípio da livre apreciação da prova, sendo que as impressões e interpretações que o julgador empresta à prova produzida, estão amplamente ligadas também à sua experiência de vida e à ordem natural das coisas, que conferem ou não credibilidade à prova que é produzida em cada processo;
VI. Sendo numerosa a jurisprudência proferida no sentido de caber ao juiz ou ao colectivo o poder de livremente apreciar a prova produzida e o poder de determinar o respectivo valor probatório, tendo sempre em atenção a totalidade da prova apresentada e as contradições que da mesma possam emanar, devendo a experiência de vida de cada um dos juízes que aprecie a prova concorrer para a formação da sua convicção;
VII. Entendem os Recorrentes que o D.-L. n.º 222/2009, de 11/09, é de aplicação obrigatória por “ter em vista assegurar o cumprimento do imperativo constitucional de proteção dos direitos dos consumidores, tendo sem sombra de dúvidas um cariz protecionista, o que por si só já é suficiente para que seja aplicável aos contratos em curso”;
VIII. Tal interpretação, porém, não só constitui um flagrante atropelo às regras do artigo 12.º, do Código Civil, de acordo com o qual a lei só dispõe para o futuro mas quando dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor;
IX. Como ainda um flagrante atropelo ao princípio da autonomia da vontade e da liberdade contratual prevista no artigo 406.º do Código Civil, princípio que é basilar do direito português;
X. O regime aprovado por tal diploma não prevê a obrigatoriedade da sua aplicação aos contratos vigentes, pelo que teremos de recorrer às normas gerais relativas à aplicação da lei no tempo;
XI. O contrato celebrado pelos Recorrentes com as Recorridas é anterior a Dezembro de 2009 e prevê expressamente nas suas condições particulares que a actualização do capital seguro teria de ser pedida pelo segurado;
XII. Resulta da prova produzida que tal facto era do perfeito conhecimento dos Recorrentes, razão pela qual, aliás, pediram por três vezes a alteração do valor seguro;
XIII. Para a procedência da presente acção, cujo objecto é a responsabilidade civil contratual, cabia aos Recorrentes o ónus de alegar e provar que ocorreu violação contratual por banda das Recorridas, por forma a poderem estas demonstrar o contrário;
XIV. Da prova carreada para os autos o que se conclui é que os Recorrentes tinham perfeito conhecimento de que as regras de actualização automática do valor seguro não eram as que vigoravam no seu contrato, tanto mais que tal menção constava expressamente dos respectivos certificados de seguro que anualmente recebiam;
XV. E a manutenção da condição de tal contrato de seguro, sem actualização automática de acordo com o valor em dívida não era obrigatória, cabendo na autonomia da vontade, então como actualmente, optar pela actualização automática ou não;
XVI. Cabia ainda aos Recorrentes o ónus de provar que tiveram efectivo prejuízo por consequência directa da violação contratual das Recorridas;
XVII. Não só os Recorrentes não provaram a violação contratual pelas Recorridas como igualmente não provaram quaisquer prejuízos por si sofridos que fossem causa directa e necessária da actuação das Recorridas;
XVIII. Razão pela qual é seguro afirmar que nenhum ilícito a Recorrida Caixa cometeu que seja susceptível de gerar obrigação de indemnizar;
XIX. Não se mostrando, assim, verificada a existência de qualquer nexo causal entre a actuação da Recorrida e os danos alegadamente sofridos pelos Recorrentes, o que sempre conduziria à declarada improcedência da acção;
XX. A sentença recorrida não merece qualquer censura, antes devendo ser integralmente confirmada.
Nestes termos, negando provimento ao recurso, mantendo na íntegra a decisão recorrida, e a absolvição dos pedidos, V. Exas. farão, como sempre, a costumada JUSTIÇA!”
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O recurso foi admitido na 1ª Instância como apelação, a subir de imediato, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
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O recurso é o próprio e foi admitido adequadamente quanto ao modo de subida e efeito.
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Colheram-se os Vistos.
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II – OBJECTO DO RECURSO
Nos termos do disposto no artigo 635.º, n.º 4, conjugado com o artigo 639.º, n.º 1, ambos do CPC, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recurso, salvo no que respeita à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas ao caso concreto e quando se trate de matérias de conhecimento oficioso que, no âmbito de recurso interposto pela parte vencida, possam ser decididas com base em elementos constantes do processo, pelo que as questões a apreciar e decidir traduzem-se objectivamente no seguinte:
1- Impugnação da decisão relativa à matéria de facto;
2- Reapreciação de mérito.
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III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Decorre da sentença recorrida a seguinte matéria de facto:
“Factos provados:
Estão provados os seguintes factos essenciais, com interesse para a decisão da causa:
1) Por conta do contrato de crédito habitação existente com a 2.ª Ré, com o n.º (…), os Autores aderiram ao contrato de seguro, titulado pela apólice n.º (…), do Ramo Vida Grupo, junto da 1.ª Ré.
2) A apólice teve o seu início com os boletins de adesão n.º (…) e n.º (…), datados de 07 de Abril de 2009, onde figuram como Pessoa Segura Principal, (…) e como Pessoa Segura Relacionada o Autor (…), tendo a apólice tido o seu início em 19/06/2009, com o capital seguro de € 40.000,00.
3) Consta das cláusulas gerais do contrato celebrado no «Artigo 9.º Valor Seguro (...)
3. Tratando-se de um seguro contributivo associado a contrato de mútuo:
i. O valor seguro na data de início de cada adesão, para cada cobertura, corresponde à totalidade do valor do capital em dívida informado ao Segurador ou, quando expressamente referido nas Condições Particulares, a uma percentagem deste valor, sobre o qual será calculado o prémio;
ii. A forma de ajustamento do capital seguro ao capital em dívida, ao longo do contrato, e as respetivas datas de atualização constam das Condições Particulares ou dos Certificados de Adesão;
iii. A alteração do valor do capital em dívida à Entidade Mutuante determina alteração do valor seguro com a consequente alteração do prémio».
4) Nos certificados de adesão emitidos em 15/01/2011 e nos seguintes, na parte relativa ao capital seguro e modalidades de actualização do capital consta:
«Redução de capital seguro em qualquer momento de vigência do contrato de crédito, apenas mediante pedido da pessoa segura (…)».
5) Em 13/09/2010, a Autora (…) requereu à 1.ª Ré a «redução do capital seguro nas adesões vida risco para o valor actualmente em divida ao credor CGD conforme extrato da conta anexa para o efeito».
6) Em 26/07/2017, os Autores requereram junto da 2.ª Ré CGD a «actualização do capital seguro associada apólice (…) – pessoa segura … (contribuintes n.º … e contribuinte n.º …) para o actual capital em dívida do empréstimo n.º (…), no valor de 14.446,64 euros».
7) Em 06/11/2017, foi requerido pelo Autor junto da 2.ª Ré CGD o seguinte: «Solicita-se a regularização dos valores pagos desde a adesão ao seguro de vida, relativamente à actualização de capital em dívida, uma vez que não se encontrava a actualizar automaticamente. Mais se solicita que passe a ser actualizado automaticamente o capital em dívida».
8) Tal alteração foi efectuada em 01/08/2017, data a partir da qual o capital passou a ser atualizado automaticamente.
9) E o prémio que antes era calculado no valor de € 137,28, reduziu para € 52,50.”
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IV- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Abordemos a primeira questão elencada no segmento II- deste acórdão:
1- Impugnação da decisão relativa à matéria de facto
Prevê o artigo 662.º, n.º 1, do CPC o seguinte:
1 – A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa“
Refere a propósito deste normativo o Conselheiro António Abrantes Geraldes (“ Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 5ª ed., 2018, pág. 287), que: “O actual artigo 662.º representa uma clara evolução no sentido que já antes se anunciava […] , através dos nºs 1 e 2, alíneas a) e b), fica claro que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do principio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia”.
Já o artigo 640.º do CPC, que se debruça sobre o ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, prevê que:
1 – Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 – No caso previsto na alínea b), do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
[…]”.
A este propósito sustenta o Conselheiro António Abrantes Geraldes (obra acima citada, a páginas 168-169), que a rejeição total ou parcial respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve ser feita nas seguintes situações:
“a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (artigos 635.º, n.º 4 e 641.º, n.º 2, alínea b));
b) Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (artigo 640.º, n.º 1, alínea a));
c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.);
d) Falta de indicação exata, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação”, esclarecendo, ainda, que a apreciação do cumprimento de qualquer uma das exigências legais quanto ao ónus de prova prevenidas no mencionado n.º 1 e 2, a), do artigo 640.º do CPC, deve ser feita “à luz de um critério de rigor”.
Descendo ao caso concreto percebemos da leitura das conclusões recursivas que o Apelante refere ter o recurso como objeto “toda a matéria de facto e de direito da sentença proferida nos presentes autos.”
Certo é, porém, que não especifica nas ditas conclusões os concretos pontos de facto que considerou incorrectamente julgados na sentença recorrida.
Acrescente-se, aliás, que também no segmento respeitante à motivação do recurso o Apelante não se dignou cumprir minimamente o ónus de obrigatória especificação previsto no artigo 640.º, nºs 1 e 2, a), do CPC, percebendo-se que a sua pretensão recursiva se orienta apenas no sentido de censurar o enquadramento jurídico seguido e a interpretação adoptada pelo Tribunal a quo na sentença recorrida.
Dito isto decide-se, ao abrigo do disposto na parte final do n.º 1 do mencionado artigo 640.º do CPC, rejeitar o enunciado recurso da matéria de facto, considerando-se como definitivamente assentes os factos descriminados na sentença recorrida.
3. Reapreciação de mérito.
Está em causa a reapreciação de duas questões que se reconduzem ao seguinte:
-Saber se as Apeladas tinham obrigação de restituir aos Apelantes o valor por estes últimos peticionado como alegado dano patrimonial sofrido, decorrente da não actualização do montante do capital seguro por referência à redução do capital mutuado, com fundamento em responsabilidade civil contratual, designadamente por incumprimento de regras contratuais e inobservância de normas imperativas aplicadas ao contrato existente entre as Partes;
-Saber se em função do alegado incumprimento as Apeladas estão ainda obrigadas a indemnizar os Apelantes por danos não patrimoniais sofridos pelos mesmos.
Comecemos por apreciar a primeira questão.
No essencial entendem os Apelantes que o valor do prémio respeitante ao contrato de seguro de vida firmado com a Apelada (…), S.A., associado ao contrato de mútuo na modalidade de crédito à habitação outorgado com a Apelada Caixa Geral de Depósitos, S.A., deveria ter sido automaticamente actualizado/recalculado no inicio de cada adesão em função das alterações do valor do capital em dívida informado ao segurador, sendo dever da Apelada Caixa Geral de Depósitos informar a Apelada (…), SA sobre a evolução do montante mutuado em dívida e dever desta última proceder a imediata actualização do capital seguro com efeitos reportados, mês a mês, à data de cada alteração do montante seguro em dívida referente ao período compreendido entre 01/10/2009 e 31/07/2017, pelo que devem as Apeladas restituir-lhes as quantias entretanto pagas em excesso por si, ora Apelantes, no âmbito do contrato de seguro do Ramo Vida, acrescidas de juros de mora à taxa de 4%, a contar do respectivo desembolso até integral pagamento, considerando que tal actualização do capital seguro esteve sete anos sem ser feita, o que constituiu violação do disposto no artigo 7.º, artigo 8.º, n.º 2 e artigo 9.º, todos do Decreto-Lei n.º 222/2009, de 11/09.
Nas respectivas respostas ao recurso entendem as Apeladas que os Apelantes carecem de razão, pugnando pela manutenção do decidido na sentença recorrida.
O Tribunal a quo entendeu na sentença recorrida que os Apelantes não lograram demonstrar a existência da obrigação contratual das Apeladas de actualizar no período temporal indicado pelos primeiros o valor do prémio de seguro em função da actualização (redução), que o montante do capital em dívida sofreu no referido hiato temporal, assim como o dano patrimonial invocado pelos Apelantes.
Compulsando o Dec.-Lei n.º 222/2009, de 11/09, que visou estabelecer medidas de protecção do consumidor na celebração de contratos de seguro de vida associados ao crédito à habitação, verificamos resultar expresso no preâmbulo do mesmo o seguinte:
Assim, sempre que as instituições de crédito subordinem a oferta do crédito à habitação à condição de contratação de um seguro de vida, ou que pretendam propor aos interessados a contratação, ainda que facultativa, de um seguro de vida, as instituições de crédito devem propor aos interessados a celebração de um contrato de seguro de vida com o conteúdo mínimo que agora se define, sem prejuízo de outros que entendam propor-lhes em acréscimo àquele. Entre esse conteúdo mínimo, sobressai a regra da identidade entre o capital seguro e o montante em dívida à instituição de crédito, com a actualização automática do primeiro pari passu com a evolução do segundo, com o consequente dever de fazer reflectir essa actualização no cálculo do prémio.
É precisamente esta actualização automática que os Apelantes entendem que deveria ter sido efectuada, por ser dever das Apeladas, durante o período temporal que se estendeu entre 01/10/2009 e 31/07/2017 e que por não o ter sido terá gerado na sua esfera jurídica um dano patrimonial traduzido no montante que pagaram em excesso a título de prémio de seguro do ramo vida no inicio de cada adesão durante aquele hiato temporal.
Decorre do artigo 2.º de tal diploma legal o seguinte.
Artigo 2.º
Âmbito de aplicação
1 - O presente decreto-lei aplica-se aos contratos de seguro de vida cuja contratação tenha por objectivo o reforço de garantia dos contratos de crédito à habitação, quer resultem de uma imposição das instituições de crédito como condição necessária à celebração destes últimos contratos quer resultem de uma opção do consumidor.
2 - O presente decreto-lei tem como objectivo estabelecer medidas que visam proteger o consumidor de crédito à habitação na sua relação com a instituição de crédito e com a empresa de seguros, assegurando uma maior transparência no processo de formação desses contratos, uma maior adequação dos mesmos à finalidade de garantia do empréstimo e o reforço da informação ao consumidor.”
Por seu turno resulta do artigo 5.º, n.º 4, do identificado Dec.-Lei o seguinte:
“4- O contrato de seguro de vida tem um capital seguro igual ao capital em dívida ao abrigo do contrato de crédito à habitação, ao longo de toda a sua vigência.”
Já no artigo 7.º, do diploma a que vimos aludindo, prevê-se que:
“Artigo 7.º
Alteração do montante em dívida
1 - A instituição de crédito deve informar a empresa de seguros em tempo útil acerca da evolução do montante em dívida ao abrigo do contrato de crédito à habitação, devendo a empresa de seguros proceder de imediato à correspondente actualização do capital seguro, com efeitos reportados à data de cada alteração do montante em dívida ao abrigo do contrato de crédito à habitação, creditando ou restituindo ao segurado as quantias entretanto pagas no âmbito do contrato de seguro.
[…]
3 - As seguradoras devem comunicar às instituições de crédito as alterações realizadas pelo consumidor aos contratos de seguro de vida utilizados como garantia do crédito à habitação.”
Estatui, ainda, o artigo 8.º, n.º 2, do mencionado Dec.-Lei o seguinte:
“2 - A empresa de seguros deve fazer reflectir no cálculo dos prémios todas as actualizações ao capital seguro, com efeitos reportados à data de cada uma das actualizações do capital.”
Sendo que decorre do artigo 9.º, sempre do referenciado diploma legal, que:
Artigo 9.º
Incumprimento
1 - O incumprimento dos deveres de informação e de esclarecimento da instituição de crédito estabelecidos no presente decreto-lei faz incorrer a instituição em responsabilidade civil, nos termos gerais.
[…]
3 - O incumprimento do dever de fazer reflectir no cálculo dos prémios todas as actualizações ao capital seguro, com efeitos reportados à data de cada uma das actualizações do capital seguro, por motivo imputável à empresa de seguros, faz incorrer esta empresa em responsabilidade civil, nos termos gerais, e confere ao mutuário os direitos de, a qualquer momento, exigir a sua correcção e de resolver o contrato de seguro, caso se trate de seguro individual, ou do vínculo resultante da sua adesão a um contrato de seguro de grupo.
4 - Quando o incumprimento previsto no número anterior for imputável à instituição de crédito é aplicável o previsto no n.º 1.
[…]”
Cumpre salientar ainda quanto ao diploma legal em causa a data da sua entrada em vigor prevista no seu derradeiro artigo, que possui a seguinte redacção:
“Artigo 12.º
Entrada em vigor
O presente Decreto-lei entra em vigor 90 dias após a data da sua publicação.”
Significa isto que o Dec.-Lei n.º 222/2009, de 11/09 entrou em vigor no dia 10/12/2009.
Decorre dos factos considerados como provados na sentença recorrida, alicerçado em pertinente documentação junta com os articulados da petição inicial e contestações, que o contrato de seguro em causa nestes autos iniciou a sua vigência às 00h00m do dia 19/06/2009, constando das respectivas condições particulares que o ajustamento do capital seguro ao capital mutuado dependeria de requerimento/pedido da pessoa segura.
Este regime não contrariava qualquer disposição legal absolutamente, ou relativamente, imperativa que se encontrasse naquela data em vigor, designadamente do Dec.-Lei n.º 72/2008, de 16/04 (Regime Jurídico do Contrato de Seguro), diploma esse que entrou em vigor em 01/01/2009, sendo, como tal, aplicável ao contrato de seguro em apreço.
Da leitura do Dec.-Lei n.º 222/2009, de 11/09 não resulta a existência de qualquer norma específica reguladora da sua aplicabilidade no tempo, ao contrário do que sucede no Dec.-Lei n.º 72/2008, de 16/04 que incorpora em si, designadamente no artigo 2.º, uma disposição legal respeitante a tal matéria.
Prevê o mencionado artigo 2.º, no seu n.º 1, o seguinte:
“1 - O disposto no regime jurídico do contrato de seguro aplica-se aos contratos de seguro celebrados após a entrada em vigor do presente decreto-lei, assim como ao conteúdo de contratos de seguro celebrados anteriormente que subsistam à data da sua entrada em vigor, com as especificidades constantes dos artigos seguintes.”
Resulta, assim, do normativo acabado de transcrever que o Dec.-Lei n.º 72/2008, de 16/04 previu a aplicação imediata do mesmo a contratos em vigor à data da sua entrada em vigor nas circunstâncias aí expressamente prevenidas.
No entanto, inexistindo norma idêntica, ou similar, no Dec.-Lei n.º 222/2009, de 11/09, mostra-se aplicável a regra constante da primeira parte do n.º 1 do artigo 12.º do Código Civil, que consagra o princípio geral de que “A lei só dispõe para o futuro”.
Por outro lado, sendo de subsumir a situação prevista no artigo 7.º, n.º 1, do Dec.-Lei n.º 222/2009, de 11/09, atinente à “Alteração do montante em dívida”, à previsão constante da 1ª parte do n.º 2 do artigo 12.º do CC e não à 2ª parte do dito preceito, dado que tal norma dispõe sobre os efeitos da evolução (alteração) do montante mutuado em dívida sobre o montante do capital seguro, tão pouco se mostra imediatamente aplicável ao contrato de seguro descrito nestes autos celebrado a 19/06/2009 o regime do mencionado artigo 7.º, com o sentido de actualização automática como defendem os Apelantes.
Sem embargo, será de equacionar, por estar em causa nos autos um contrato de seguro, ramo vida, com renovação periódica e face à circunstância de o Dec.-Lei n.º 222/2009, de 11/09 ter considerado logo no seu preâmbulo a actualização automática do capital seguro no quadro do conteúdo mínimo a respeitar no tocante aos contratos de seguro de vida que visou regular, impondo desse modo um toque de imperatividade à dita norma do seu artigo 7.º, se a manutenção no certificado de adesão emitido em 15/01/2011 e nos seguintes da menção de que a redução do capital seguro apenas ocorreria mediante pedido dos Apelantes (ponto 4 dos factos provados na sentença recorrida), poderá ter constituído uma violação ao regime de actualização automática previsto no artigo 7.º, em conjugação com o disposto no n.º 2 do artigo 8.º do aludido Dec.-Lei n.º 222/2009, de 11/09, uma vez que qualquer um dos ditos certificados foram emitidos posteriormente a 10/12/2009.
Entendemos que a resposta tem de ser negativa, desde logo porque a renovação periódica não pressupõe, em rigor, a celebração anual de sucessivos novos contratos de seguro.
O contrato a considerar, como decorre da respectiva apólice, resulta celebrado em 19/06/2009 e renovou-se anualmente de forma automática, sendo, como sabemos já, que naquela data não se encontrava em vigor o Dec.-Lei n.º 222/2009, de 11/09, mas sim o regime do Dec.-Lei n.º 72/2008, de 16/04.
Por outro lado, sendo verdade que o Dec.-Lei n.º 222/2009, de 11/09, visa assegurar a protecção do segurado, enquanto consumidor, na celebração de contratos de seguro de vida associados aos contratos de crédito à habitação, verifica-se, outrossim, uma particular preocupação em assegurar tal protecção na fase pré-negocial, o que está bem expresso no preâmbulo do diploma legal em causa, mormente no seguinte excerto que passamos a transcrever.
Importa, assim, na linha de recente regulamentação sectorial seguradora, garantir a transparência na prestação aos consumidores de informação completa e verdadeira, que contribua para o exercício efectivo da liberdade de contratar, na fase pré-contratual, e para a compreensão e o exercício informado dos direitos que lhes assistem, na pendência dos contratos.”
Certo é que a necessidade de protecção dos direitos dos consumidores não pode servir como argumento para obnubilar o principio da liberdade contratual e da autonomia da vontade na celebração de contratos, consagrado, designadamente, no artigo 405.º do CC.
De resto e no tocante ao caso concreto em apreço, quanto à questão de que nos temos vindo a ocupar, julgamos ainda acertada a argumentação aduzida pelo Tribunal a quo, mormente no trecho que passamos a reproduzir:
“[…] O contrato celebrado pelos Autores é anterior a Dezembro de 2009 e prevê expressamente nas suas condições particulares que a actualização do capital seguro teria de ser pedida pelo segurado. Este facto não lhe é de todo prejudicial, na medida em que no caso do seguro ser accionado sempre receberia o seu valor na totalidade, independentemente da divida do crédito à habitação ser inferior. Por esta razão, poderia interessar ao próprio segurado a sua não actualização. Assim, porque tal norma poderá não interessar ao próprio segurado (que é o visado com a protecção conferida no diploma em análise), concatenando o caracter protecionista da norma com a necessária autonomia contratual, será de concluir pela sua não aplicação automática aos contratos vigentes aquando da sua entrada em vigor”.
Importa ainda sublinhar que caso a posição sufragada no presente recurso pelos Apelantes tivesse vencimento sempre seria de considerar apenas o hiato temporal decorrido entre 01/10/2010 e 31/07/2017 uma vez que decorre do facto descrito sob o n.º 5 do segmento dos factos considerados como provados na sentença recorrida que as Apeladas procederam, mediante requerimento formulado pela Co-Apelante (…) a ajustamento (redução) do capital seguro ao capital mutuado em divida na data de 13/09/2010, o que voltou a suceder em 01/08/2017, por requerimento do Co-Apelante (…), data a partir da qual a actualização do capital seguro passou a ser efectuada automaticamente pelas Apeladas em face de pretensão deduzida expressamente nesse sentido pelos Apelantes em 06/11/2017.
Na conformidade exposta não tendo resultado provada a alegada obrigação contratual por parte das Apeladas, soçobra a pretensão de indemnização a título de dano patrimonial, improcedendo, em consequência, as conclusões recursivas no tocante à primeira questão a tratar em sede de reapreciação do mérito, enunciada supra.
Entrando na segunda questão alusiva à eventual obrigação das Apeladas indemnizarem os Apelantes a título de danos não patrimoniais compreende-se que não tendo resultado provado qualquer incumprimento contratual por banda das Apeladas, ou inobservância por estas de normas legais imperativamente aplicáveis a tal contrato atinentes à obrigação de actualização automática do capital seguro no período que decorreu entre 01/10/2010 e 31/07/2017, resulta prejudicada a apreciação da eventual produção de danos não patrimoniais ressarcíveis na pessoa dos Apelantes.
A talhe de foice, sempre se acrescentará a propósito da produção deste tipo de danos no quadro da responsabilidade civil contratual o seguinte:
Estatui o artigo 496.º do Código Civil, a propósito dos danos não patrimoniais, estabelecendo o seguinte:
1- Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.” […]
Os danos não patrimoniais reportam-se a valores de ordem moral, ideal, ou espiritual.
Trata-se, por conseguinte, de danos não susceptíveis de avaliação pecuniária e que não se reflectem no património do lesado.
“Constituem danos não patrimoniais, por exemplo, o sofrimento ocasionado pela morte de uma pessoa, o desgosto derivado de uma injúria, as dores físicas produzidas por uma agressão” (Mário Júlio de Almeida Costa, “Direito das Obrigações”, Almedina, 12ª edição, 2018, pág. 592).
Os danos não patrimoniais indemnizáveis são apenas aqueles que se mostrem suficientemente graves para merecerem a tutela jurídica.
Seguindo ainda Almeida Costa diz-nos o mesmo o seguinte (obra acima identificada, a páginas 603-604):
“Efectivamente, embora no domínio do incumprimento das obrigações em sentido técnico se produzam tais danos com menor frequência e intensidade, podem verificar-se hipóteses em que bem se justifique uma compensação por danos não patrimoniais, dentro do critério do artigo 496.º. É pouco convincente a alegação de uma dificuldade acrescida que exista, porventura, em certos casos, na prova e apreciação desses danos, ou a de eventuais factores de insegurança que se introduzam no comércio jurídico. Com efeito, sempre funciona o requisito de que os danos não patrimoniais apresentem suficiente gravidade. Muito menos se aceita a procedência do argumento sistemático derivado da colocação do artigo 496.º.
De resto, a lei refere-se apenas ao prejuízo causado ao credor pelo inadimplemento, sem que estabeleça distinção alguma entre danos patrimoniais e não patrimoniais (artigos 798.º e 804.º, n.º 1).”
Concordamos com esta posição, que, aliás, é maioritária quer no plano doutrinário, quer no plano jurisprudencial.
De todo o modo, no caso vertente, os Apelantes não lograram fazer prova de quaisquer danos pessoais, ou não patrimoniais, por si sofridos, conforme resulta cristalino da leitura da matéria de facto considerada como provada na sentença recorrida, improcedendo as conclusões recursivas igualmente quanto a esta questão
Isto dito, não merece qualquer censura a sentença recorrida.
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V- DECISÃO
Termos em que, face a todo o exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o presente recurso de Apelação interposto pelos Apelantes (…) e (…), decidindo, em consequência, o seguinte:
1- Confirmar a sentença recorrida;
2- Fixar as custas a cargo dos Apelantes (artigo 527.º, n.º 1 e 2, do CPC).
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Notifique.
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Évora, 09 de Junho de 2022
José António Moita (Relator)
Mata Ribeiro (1º Adjunto)
Maria da Graça Araújo (2ª Adjunta)