Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | ISABEL DE MATOS PEIXOTO IMAGINÁRIO | ||
Descritores: | ACÇÃO DE HONORÁRIOS SIGILO PROFISSIONAL DEPOIMENTO DE PARTE | ||
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Data do Acordão: | 03/02/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | - Os factos que constituem causa de pedir em ação declarativa de condenação ao pagamento de crédito de honorários não estão abrangidos pelo segredo profissional; - Seria desprovido de sentido impedir o A. de prestar declarações sobre os factos que alegou na petição inicial com fundamento na preservação do segredo profissional uma vez que os factos foram já revelados no referido articulado. (Sumário da Relatora) | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Évora I – As Partes e o Litígio Recorrente / Autor: (…) Recorrido / Réu: (…) Os autos consistem em ação declarativa de condenação pretendendo o A obter a condenação do R a pagar-lhe a quantia de € 105.000,00 acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, o que corresponde a crédito decorrente da prestação de serviços de advocacia a (…) que, sendo credor do R, declarou ceder o crédito de que era titular ao A, com vista ao pagamento dos honorários. O que obteve o acordo do R. Cessão de créditos que o R impugna, sustentando nada dever ao A. O A requereu seja admitido a prestar declarações de parte relativamente a factos por si alegados na p.i. O R requereu que o A preste depoimento de parte a toda a matéria da contestação. II – O Objeto do Recurso Em sede de audiência prévia, foi proferido despacho do qual consta, designadamente, o seguinte: «Admito os depoimentos de parte do autor e do réu nos termos requeridos. Admito as declarações de parte do autor tal como foi requerido por este.» No âmbito da audiência final, o R declarou opor-se ao depoimento de parte e às declarações de parte do A sobre factos da petição inicial, salvo se já tiver obtido prévia autorização do Presidente do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados. Em resposta, o A sustentou que o sigilo não releva na presente ação, já que se propõe agir em defesa e no exercício de um direito próprio e ainda porque os factos descritos na petição inicial foram previamente narrados nos embargos de executado apresentados pelo R. Foi, então, proferido o seguinte despacho: «(…) deverá o Autor na qualidade de Advogado suscitar a intervenção da Ordem dos Advogados nos termos e para os efeitos do artigo 92.º do Estatuto da Ordem dos Advogados.» Foi interposto recurso de tal despacho, tendo sido indeferido o respetivo requerimento. O A informou nos autos não ter lançado mão do mecanismo previsto no art. 92.º/4 do EOA por não estar em causa o sigilo profissional, atento o objeto do processo. Para o caso de assim não ser entendido, peticionou seja suscitado o incidente de quebra de sigilo profissional previsto no artigo 135.º do CPP. Foi proferido despacho que contempla, designadamente, o seguinte: «Encontrando-se, pois, o autor sujeito ao sigilo profissional, a sua audição como depoente ou como declarante terá de ser precedida de autorização do Presidente do Conselho Regional a que o mesmo pertence, requisito que não se mostra verificado, não havendo intenção de o obter. Pretende o autor que, em caso de não admissão da sua audição, seja aplicado o disposto no artigo 135.º, n.º 3, do CPP, aplicável por força do artigo 417.º, n.º 4, do CPC. Também nesta sede o autor não tem razão. Como bem salienta o réu, o incidente de levantamento do sigilo profissional aplica-se aos casos de recusa de prestação de depoimento. O que se verifica no nosso caso é precisamente uma situação contrária à que está prevista nas hipóteses dos artigo 135.º, n.º 3, do CPP e 417.º, n.º 4, do CPC: o autor não invoca o sigilo profissional para se recusar a prestar depoimento; o autor quer, isso sim, prestar depoimento / declarações e entende não estar sujeito ao sigilo profissional. Pelo exposto e de harmonia com a fundamentação que antecede: - não admito a prestação de depoimento de parte ou de declarações de parte do autor, por inexistência de prévia autorização do respetivo Presidente do Conselho Regional da OA; - indefiro o pedido de instauração do incidente de quebra do sigilo profissional.» Inconformado, o A apresentou-se a recorrer, pretendendo que: i) seja declarada a ineficácia da decisão recorrida ao abrigo do disposto no artigo 625.º do CPC, substituindo-a por outra que admita as declarações e o depoimento de parte do Recorrente, sem restrições decorrentes do regime do segredo profissional, uma vez que o objeto das mesmas se cinge aos factos constitutivos do direito do Recorrente que é objeto dos autos; ou caso assim não se entenda, o que se admite por mera hipótese, ii) seja revogada a decisão recorrida, com fundamento em erro de interpretação do disposto no artigo 92.º do EOA, substituindo-a por outra que admita as declarações e o depoimento de parte do Recorrente, sem restrições decorrentes do regime do segredo profissional, uma vez que o objeto das mesmas se cinge aos factos constitutivos do direito do Recorrente que é objeto dos autos; ou, caso não proceda o que fica requerido, o que se admite por mera hipótese, iii) seja revogada a decisão recorrida, na parte em que indefere o pedido de instauração do incidente de quebra de segredo previsto no artigo 417.º, n.º 4, do CPC, substituindo-a por outra que, no cumprimento do dever de adequação formal, determine a instauração e prosseguimento do referido incidente, com a tramitação definida no artigo 135.º, n.º 3, do CPP. Concluiu a alegação de recurso nos seguintes termos: «Do objeto do recurso I. O presente recurso tem por objeto o despacho proferido nos autos em 11/10/2022, que indeferiu os pedidos de depoimento de parte e de declarações de parte pelo Autor “por inexistência de prévia autorização do respetivo Presidente do Conselho Regional da OA”, bem como o pedido de instauração do incidente de quebra do sigilo profissional, previsto no artigo 417.º, n.º 4, do CPC, por remissão para o artigo 135.º do CPP. C.2) Dos fundamentos do recurso II. O Tribunal a quo já se pronunciou acerca das declarações de parte e do depoimento de parte do Recorrente, tendo decidido, expressamente, admitir esses meios de prova, na sessão da audiência prévia de 27/11/2019, por despacho já transitado em julgado. III. O despacho proferido em 27/11/2019 adquiriu, assim, força de caso julgado formal, tornando-se vinculativo para todas as partes no presente processo. IV. O despacho recorrido, ao rejeitar esses mesmos meios de prova nos termos acima referidos, incorre numa frontal contradição com o despacho proferido anteriormente, em 27/11/2019. V. O despacho recorrido deverá, nessa parte, ser declarado ineficaz ao abrigo do disposto no artigo 625.º do CPC, valendo, para todos os efeitos, o despacho proferido em 27/11/2019, que determinou a admissão e a produção das declarações de parte e do depoimento de parte do Recorrente – o que se requer. Caso assim não se entenda, o que se concebe sem conceder, por mera hipótese de raciocínio, sempre se considere o seguinte: VI. Atenta a conformação jurídico-factual da causa de pedir, temos que o pedido deduzido nos presentes autos pelo Recorrente consubstancia a pretensão do mesmo em ver cumprido um seu crédito por honorários, vencidos e não pagos, sobre o ex-Réu (…), mediante a concretização duma dação pro solvendo, traduzida numa cessão, a favor do Recorrente, de crédito do ex-Réu (…) sobre o Recorrido. VII. Esses direitos de crédito do Recorrente, quer sobre o ex-Réu (…), quer sobre o Recorrido, têm fundamento constitucional no direito fundamental à propriedade privada, previsto no artigo 62.º da CRP, cujo âmbito de tutela tem sido pacificamente considerado, pela jurisprudência do Tribunal Constitucional, extensível aos direitos de crédito. VIII. A posição do Recorrente entra também no âmbito de tutela do direito fundamental à iniciativa económica privada, prevista no artigo 61.º, n.º 1, da CRP, porquanto o direito à remuneração pelos serviços prestados é um elemento estruturante da própria atividade de profissional liberal que o mesmo exerce, quer individualmente, quer através de uma sociedade de Advogados. IX. As declarações de parte e o depoimento de parte do Recorrente representam um meio de prova essencial quanto aos factos constitutivos do seu pedido alegados na PI e, simultaneamente, um meio de contraprova quanto à (falsa) versão dos factos apresentada na contestação. X. A faculdade processual do Recorrente à produção dos referidos meios de prova tem fundamento constitucional no direito fundamental à prova, que por sua vez promana do direito fundamental ao acesso à Justiça e à tutela jurisdicional efetiva e do direito fundamental ao processo equitativo, previstos respetivamente no artigo 20.º, n.º 1 e n.º 4, da CRP. XI. O direito fundamental à prova permite a apresentação e produção de todos os meios de prova aptos a demonstrar os factos constitutivos do direito do Recorrente e, como tal, afirma-se neste caso com especial acuidade, porquanto o mesmo tem o ónus processual de provar esses factos. XII. A decisão recorrida, ao rejeitar as declarações de parte e o depoimento de parte do Recorrente consiste numa grave e inadmissível limitação do respetivo direito fundamental à prova e, conexamente, do respetivo direito fundamental à propriedade privada subjacente ao direito de crédito que integra o objeto dos autos. XIII. O despacho recorrido afirma um suposto dever de guardar segredo quanto aos factos que são objeto da lide, colocando-o no contraponto dos direitos do Recorrente, quer ao pagamento do seu crédito, quer à produção de prova. XIV. O dever de guardar segredo aplicável aos Advogados, previsto no artigo 92.º, n.º 1, do EOA, radica na relação de confiança estabelecida com cada cliente e, bem assim, na credibilidade devida à profissão da Advocacia – mas não é, em si mesmo, um dever absoluto. XV. Um dos casos típicos de relativização do dever de segredo é aquele em que os factos putativamente sujeitos a segredo são também factos constitutivos de um direito subjetivo do Advogado, mormente um direito de crédito por honorários devidos pelo seu trabalho prestado ao beneficiário do dever de segredo em causa. XVI. Nessas situações, o direito subjetivo do Advogado em causa entre em conflito com o dever de guardar segredo – contudo, sempre que em causa esteja um direito de crédito por honorários, a relação de confiança da qual emerge o dever de segredo é previamente quebrada pelo próprio cliente/beneficiário, em virtude da falta de pagamento da remuneração devida pelos serviços prestados. XVII. Impor, nessas circunstâncias, um dever de segredo que impeça o Advogado-credor de alegar judicial ou extrajudicialmente a causa do seu direito e de fazer prova dos respetivos factos constitutivos, equivaleria a negar-lhe liminarmente um direito de ação para fazer valer o seu direito e a retirar-lhe o atributo da exigibilidade, convolando a correspetiva obrigação jurídica de pagar… numa obrigação natural, apenas pagável, mas não exigível, nos termos do artigo 402.º do Código Civil. XVIII. Um tal entendimento cifrar-se-ia ainda em premiar o putativo beneficiário do dever de segredo pelo seu incumprimento do dever de pagar honorários, permitindo-lhe bloquear qualquer tentativa de cobrança dos mesmos por parte do Advogado, mediante a mera invocação do dever de segredo. XIX. Analisando o caso concreto à luz das conclusões anteriores, temos que o Recorrente move a presente ação com vista à tutela judicial de um direito próprio, a saber, o seu direito de crédito sobre o Recorrido, que lhe foi cedido pelo ex-Réu (…), a título de dação pro solvendo do crédito preexistente do Recorrente sobre o referido ex-Réu por honorários vencidos e não pagos. XX. E as declarações de parte e do depoimento de parte do Recorrente são meios de prova essenciais dos factos constitutivos do direito do Recorrente. XXI. O despacho recorrido, ao rejeitar as declarações e o depoimento de parte do Recorrente, fez uma aplicação do dever de segredo em termos de limitar, ab initio, a possibilidade de o Recorrente alegar e fazer prova dos fundamentos de facto do seu direito de crédito. XXII. Uma tal aplicação do artigo 92.º do EOA afigura-se inadmissível no confronto com uma interpretação constitucionalmente integrada desse normativo: XXIII. Primeiro, porque impossibilitaria o Recorrente de produzir prova essencial quanto aos factos constitutivos do seu direito, numa limitação absoluta ao direito fundamental à prova e, conexamente, aos seus direitos fundamentais à tutela jurisdicional efetiva e à propriedade privada. XXIV. Segundo, porque tal limitação, além de inadmissível em si mesma, não teria como contraponto um eventual interesse legítimo e constitucionalmente tutelado, à luz dos critérios de necessidade, adequação e proporcionalidade previstos no artigo 18.º, n.º 2, da CRP. XXV. Terceiro, porque desse entendimento decorreria uma discriminação injustificável dos Advogados em relação aos demais cidadãos que exercem outras atividades profissionais, impondo àqueles restrições absolutas e liminares à tutela jurisdicional dos respetivos direitos de crédito sobre clientes, em contravenção ao princípio da igualdade presente no artigo 13.º da CRP. XXVI. A jurisprudência dos Tribunais Superiores, incluindo do Supremo Tribunal de Justiça corrobora sem reserva as conclusões alcançadas a respeito da inaplicabilidade do segredo profissional ao caso dos autos e quanto ao dever do Tribunal a quo de admitir a produção do depoimento e das declarações de parte do mesmo, por aí se tratar de um meio de prova relevante para a demonstração da causa de pedir. XXVII. A eventual interpretação do artigo 92.º, n.º 1, do EOA, no sentido de impor ao Advogado um dever de segredo quanto a factos conhecidos no âmbito do exercício da sua profissão quando os mesmos venham a assumir a qualidade de factos constitutivos do seu direito de crédito por honorários em relação ao cliente beneficiário do referido segredo, sempre seria manifestamente inconstitucional, por consubstanciar uma restrição desnecessária, desadequada e desproporcional aos direitos fundamentais do Advogado à tutela jurisdicional efetiva e à propriedade privada previstos respetivamente nos artigos 20.º, n.º 1 e 62.º da CRP, em conjugação com o artigo 18.º, n.º 3, da CRP, bem como uma violação do princípio da igualdade previsto no artigo 13.º da CRP – o que desde já se argui para todos os efeitos. XXVIII. A mera possibilidade de o dever de segredo ser dispensado, caso a Ordem dos Advogados emita decisão nesse sentido, mediante a aplicação discricionária do conceito indeterminado previsto no artigo 92.º, n.º 4, do EOA (“…absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado …”) não obsta à manifesta inconstitucionalidade da interpretação que propugnasse a aplicabilidade do referido segredo em termos gerais e abstratos. XXIX. Além disso, seria desconforme ao artigo 112.º, n.º 5, da CRP a interpretação do artigo 92.º, n.º 4, do EOA que daí extraísse uma delegação do legislador na Ordem dos Advogados – uma entidade administrativa, recorde-se – o poder de decidir, por ato administrativo discricionário, se em cada caso concreto um Advogado poderia obter a tutela jurisdicional dos seus direitos subjetivos, mormente a receber honorários, conformando em absoluto a mera possibilidade de o mesmo alegar e comprovar os respetivos factos constitutivos em juízo. XXX. A eventual interpretação do disposto no artigo 92.º, n.º 1 e n.º 4, do EOA, no sentido de obrigar, em termos gerais e abstratos, o Advogado a guardar segredo quanto a factos conhecidos no âmbito do exercício da sua profissão quando os mesmos venham a assumir a qualidade de factos constitutivos do seu direito de crédito por honorários contra o beneficiário do referido segredo, permitindo apenas que esse dever de segredo seja derrogado por decisão discricionariamente tomada de órgão inserido na Ordem dos Advogados ao abrigo de um conceito indeterminado, sempre seria manifestamente inconstitucional, por violar do disposto no artigo 112.º, n.º 4, da CRP e, conexamente, por consubstanciar uma restrição desnecessária, desadequada e desproporcional aos direitos fundamentais do Advogado à tutela jurisdicional efetiva e à propriedade privada previstos respetivamente nos artigos 20.º, n.º 1 e 62.º da CRP, em conjugação com o artigo 18.º, n.º 3, da CRP, bem como uma violação do princípio da igualdade previsto no artigo 13.º da CRP – o que desde já se argui para todos os efeitos. XXXI. Fica, assim, evidenciado que a decisão recorrida incorre num manifesto erro interpretativo, devendo ser revogada e substituída por outra que admita, sem reservas, as declarações e o depoimento de parte do Recorrente, por terem por objeto os factos constitutivos do seu direito subjetivo que integra o objeto dos autos. Ainda que assim não se entendesse, o que se concebe por mera cautela e sem conceder, sempre haveria que considerar o seguinte: XXXII. Ao quebrar a relação de confiança com o Advogado, o cliente inadimplente quanto à obrigação de pagar honorários, não poderia legitimamente valer-se de posições jurídicas ativas emergentes dessa relação. XXXIII. O incumprimento da obrigação de pagar honorários comporta uma perturbação da relação jurídica subjacente, em especial quanto à relação que confiança que a conforma, tornando inexigível a manutenção do dever de segredo ao Advogado, na medida em que o mesmo possa limitar o exercício, mormente judicial, do seu direito de crédito por honorários e, dessa forma, beneficiar indevidamente o cliente-devedor, com fundamento em abuso do direito, na modalidade de tu quoque, nos termos do artigo 334.º do Código Civil. XXXIV. Razão pela qual a decisão recorrida sempre deveria ser revogada, com fundamento em erro interpretativo, e substituída por outra que admitisse, sem reservas, as declarações e o depoimento de parte do Recorrente, por terem por objeto os factos constitutivos do seu direito subjetivo que integra o objeto dos autos. XXXV. Ainda que assim não se entendesse, e se considerasse que o objeto do depoimento de parte e das declarações de parte do Autor está coberto por dever de segredo profissional, sempre deveria ser admitida a instauração, também requerida, do incidente de quebra de segredo, previsto no artigo 417.º, n.º 4, do CPC, por remissão para o artigo 135.º do CPP, senão vejamos: XXXVI. O Tribunal a quo entende que a aplicação do incidente previsto no artigo 417.º, n.º 4, do CPC depende, estritamente, da prévia verificação duma recusa em prestar determinado depoimento ou em apresentar determinado meio de prova. XXXVII. O incidente de quebra de segredo, previsto no artigo 417.º, n.º 4, do CPC tem em vista tutelar e concretizar o direito fundamental à prova – que por sua vez surge ancorado no princípio do processo equitativo, previsto no artigo 20.º, n.º 4, da CRP – por parte do sujeito processual onerado com a prova de certo facto constitutivo da sua pretensão, sempre que a observância desse ónus seja, em concreto, impedida pela invocação de um dever de segredo. XXXVIII. A aparente exigência de uma recusa / escusa, para fazer operar o incidente em questão, não decorre da teleologia do incidente previsto no artigo 417.º, n.º 4, CPC, antes se tratando de um requisito meramente formal assente no pressuposto – que na prática nem sempre se verifica – de que a parte obrigada a produzir certo meio de prova em juízo, nomeadamente um depoimento, não é também a parte que requer esse meio de prova. XXXIX. Além disso, a (aparente) exigência de uma prévia escusa / recusa para fazer operar o incidente de quebra de segredo, se aplicada às declarações de parte, culminaria numa exigência impossível de concretizar: a de que a parte requeira as suas declarações de parte e, simultaneamente, se recuse / escuse a prestá-las com fundamento num dever de segredo. XL. A única forma de permitir que o sujeito processual que requer as suas próprias declarações de parte beneficie do mecanismo de tutela do direito à prova previsto no artigo 417.º, n.º 4, do CPC, consiste numa interpretação adaptada dos requisitos de aplicação desse preceito: deixando se se exigir que o putativo declarante se escuse / recuse a prestar declarações, e antes bastando que o Tribunal reconheça, oficiosamente ou a requerimento da parte contrária, que o objeto das declarações de parte requeridas se encontram a coberto de um dever legal de segredo. XLI. A interpretação acima propugnada quanto ao artigo 417.º, n.º 4, do CPC é, de resto, plenamente admissível à luz do dever de adequação formal, previsto no artigo 547.º do CPC, cuja finalidade é justamente a de permitir a adaptação das exigências formais dos atos processuais às finalidades substantivas prosseguidas pelos mesmos. XLII. Em conformidade com a interpretação propugnada, quanto aos requisitos de aplicação do incidente de quebra de segredo às declarações de parte, requer-se, subsidiariamente, que o despacho recorrido seja revogado nessa parte, e substituído por outro que ordene a instauração do referido incidente, com a tramitação prevista no artigo 135.º do CPP, tomando como pressuposto processual o juízo, constante de despacho proferido em 6/9/2021. XLIII. Sempre se acrescente que uma eventual interpretação do disposto no artigo 417.º, n.º 4, do CPC, em conjugação com o artigo 135.º do CPP, que julgue exigível uma prévia recusa, ou escusa, de prestação de declarações de parte pelo sujeito processual que as requereu, enquanto pressuposto de aplicação do incidente de quebra de segredo profissional ali previsto, sempre se traduziria numa restrição desnecessária, inadequada e desproporcional ao direito fundamental à prova e, conexamente, ao princípio do processo equitativo consagrado no artigo 20.º, n.º 4, da CRP, sendo, por isso manifestamente inconstitucional, nos termos do artigo 18.º, n.º 2, da CRP – o que desde já se argui para todos os efeitos.» Não foram apresentadas contra-alegações. Cumpre conhecer das seguintes questões: - da ineficácia da decisão recorrida; - da inaplicabilidade do regime atinente ao sigilo profissional. III – Fundamentos A – Dados a considerar: aqueles que constam supra relatados. B – O Direito Da ineficácia da decisão recorrida Reportando-se a casos julgados contraditórios, o artigo 625.º/2, do CPC, conjugado com o n.º 1, estabelece que havendo contradição entre duas decisões que, dentro do processo, versem sobre a mesma questão concreta da relação processual, cumpre-se a que passou em julgado em primeiro lugar. Resulta do referido regime legal a prevalência da decisão que transitou em julgado em primeiro lugar, prevalência essa que redunda na ineficácia da decisão coberta por trânsito em julgado posterior.[1] Decorre, desde logo, da extinção do poder jurisdicional a que alude o artigo 613.º do CPC. É que, proferida a sentença (o que se aplica aos despachos – cfr. n.º 3), fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa. Mediante a prolação de decisão, o tribunal fica vinculado à decisão que proferiu, pelo que não pode tomar a iniciativa de a modificar ou revogar. No entanto, o caso julgado apenas se forma relativamente às questões que tenham sido concretamente apreciadas e dentro dos limites dessa apreciação. No caso em apreço, a decisão proferida admitiu a prestação de depoimento e de declarações pelo A, deferindo a pretensão formulada quer pelo A quer pelo R. Contudo, não apreciou a concreta questão alusiva ao sigilo profissional, nem se pronunciou sobre a necessidade de o depoente/declarante estar provido de prévia autorização para a quebra do sigilo pelo organismo competente da Ordem dos Advogados. Uma vez que o R, posteriormente, invocou que a intervenção do A na audiência final, numa e noutra posição, carecia dessa autorização, a decisão que aprecia tal questão não se reveste de ineficácia por prevalência de decisão anterior. Da inaplicabilidade do regime atinente ao sigilo profissional O segredo profissional do advogado encontra-se regulado no artigo 92.º do Estatuto da Ordem dos Advogados (Lei n.º 145/2015, de 9 de setembro), constando dos n.ºs 1 a 5 o seguinte: 1 - O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente: a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste; b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados; c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração; d) A factos comunicados por coautor, corréu ou cointeressado do seu constituinte ou pelo respetivo representante; e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respetivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio; f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo. 2 - A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, direta ou indiretamente, tenham qualquer intervenção no serviço. 3 - O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo. 4 - O advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respetivo, com recurso para o bastonário, nos termos previstos no respetivo regulamento. 5 - Os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo. A prévia autorização pela ordem profissional apenas é exigível caso os factos a revelar estejam abrangidos pelo segredo profissional, autorização essa que aferirá da absoluta necessidade dessa revelação para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do seu cliente ou seus representantes. No caso que temos em mãos, o advogado é Autor na ação. Pretende obter do R o pagamento de um crédito que lhe foi cedido para pagamento de um crédito de honorários. Os factos sobre os quais pretende prestar declarações e sobre os quais o R pretende seja o A chamado a prestar depoimento são factos plasmados na petição inicial e na contestação. É manifesto que os factos que estão em causa já o Autor, advogado, os revelou na petição inicial que apresentou. Ainda que se entenda, como se entendeu na decisão proferida em 1.ª Instância, que o A está sujeito ao sigilo profissional, então a violação já se consumou com a apresentação do articulado subscrito em nome do A, no qual estão narrados os factos sobre os quais pretende prestar declarações. É que o dever se sigilo profissional não é circunscrito à prestação de declarações com finalidade probatória, antes se estendendo a qualquer revelação dos factos a ele sujeitos, por exemplo, nos articulados de uma ação judicial.[2] Pôde o A articular os factos, assim os revelando, sem autorização da respetiva ordem profissional, e não pode expô-los verbalmente em audiência, tendo-se disponibilizado a fazê-lo, submetendo-se ao imediato contraditório pela parte contrária e ao inquisitório do tribunal? Que sentido tem impedir que o A preste declarações sobre factos que articulou? Pretende-se salvaguardar o segredo profissional, impedi-lo de revelar os factos sujeitos ao segredo? Mas se já os revelou… Na verdade, os factos que constituem causa de pedir em ação declarativa de condenação ao pagamento de crédito de honorários não estão abrangidos pelo segredo profissional.[3] O que bem se conclui da análise atenta do n.º 1 e das suas diversas alíneas do citado artigo 92.º do EOA: a situação em apreço não se enquadra em nenhuma delas, não estão em causa factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente nem se reconduz a factos cujo conhecimento lhe adveio do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços; não são factos que se reportam a condutas de outros sujeitos e que lhe tenham sido relatados; são antes factos que circunstanciam o modo de prestação dos seus serviços e a forma que foi acordada para remuneração dos mesmos. Ainda que assim não fosse, sempre seria de considerar a alegação do A no sentido de que os factos que descreveu na petição inicial foram previamente revelados nos embargos de executados apresentados pelo ora R na execução que lhe foi movida para cobrança da quantia aqui reclamada. Em face do exposto, inexiste fundamento para fazer depender a prestação de declarações e a tomada de depoimento ao A. à prévia autorização, pela ordem profissional, para revelar factos abrangidos pelo segredo profissional. Note-se que o R., que se opôs à produção do meio de prova sem prévia autorização pela AO, poderá sempre prescindir do requerido depoimento de parte do Autor. As custas recaem sobre o Recorrido, na vertente de custas de parte – artigo 527.º, n.º 1, do CPC. Sumário: (…) IV – DECISÃO Nestes termos, decide-se pela procedência do recurso, em consequência do que se revoga a decisão recorrida, admitindo-se a prestação de depoimento de parte do A. e a tomada de declarações ao A. sem necessidade de prévia autorização pela respetiva ordem profissional a coberto do disposto no artigo 92.º do EOA. Custas pelo Recorrido, na vertente de custas de parte. * Évora, 2 de março de 2023 Isabel de Matos Peixoto Imaginário Maria Domingas Simões Ana Margarida Leite __________________________________________________ [1] Abrantes Geraldes e outros, CPC Anotado, Vol. I, 2.ª edição, pág. 774. [2] Ac. TRL de 17/09/2009, Farinha Alves. [3] Neste sentido, cfr. Acórdãos do TRP de 29/01/2008, Carlos Moreira; TRL de 17/09/2009, Farinha Alves; TRP de 10/11/2015, Tomé Ramião. |