Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
180/19.1GHSTC.E1
Relator: JOSÉ PROENÇA DA COSTA
Descritores: COMUNICAÇÕES TELEFÓNICAS
TELECOMUNICAÇÕES
CRIME INFORMÁTICO
PROVA
CIBERCRIME
PROVA ELETRÓNICA
FURTO QUALIFICADO
Data do Acordão: 10/08/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
i) a conservação e a transmissão dos dados têm por finalidade exclusiva a investigação, deteção e repressão de crimes graves.
ii) entendendo-se por dados, os dados de tráfego e os dados de localização, bem como os dados conexos necessários para identificar o assinante ou o utilizador.
iii) e por crime grave, crimes de terrorismo, criminalidade violenta, criminalidade altamente organizada, sequestro, rapto e tomada de reféns, crimes contra a identidade cultural e integridade pessoal, contra a segurança do Estado, falsificação de moeda ou títulos equiparados a moeda e crimes abrangidos por convenção sobre segurança da navegação aérea ou marítima.
iv) o crime de furto qualificado não se integra no conceito de crime grave, a que se reporta a al.ª g), do n.º 1, art.º 2.º, da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho.
v) o regime processual das comunicações telefónicas previsto nos artigos 187.º a 190.º do Código de Processo Penal deixou de ser aplicável por extensão às "telecomunicações eletrónicas", "crimes informáticos" e "recolha de prova eletrónica (informática) " desde a entrada em vigor da Lei n.º 109/2009, de 15.09 (Lei do Cibercrime), como regime regra.
vi) esse mesmo regime processual das comunicações telefónicas deixou de ser aplicável à recolha de prova por "localização celular conservada" - uma forma de "recolha de prova electrónica" - desde a entrada em vigor da Lei n.º 32/2008, de 17.07.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em Conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora.
No âmbito dos autos de Inquérito, com o n.9180/19.1GHSTC, a correrem termos pela Comarca de Setúbal - Instância Local de Santiago do Cacém - veio o Ministério Público requerer fossem solicitadas às operadoras MEO, NOS e VODAFONE todos os eventos de rede e dados de tráfego relativamente ao período compreendido entre as 19h00 do dia 07/05/2019 e as 05h00 do dia 08/05/2019, captados pelas células das operadoras de telecomunicações móveis que cobrem a zona da prática do ilícito, nos termos do disposto nos art.ºs 189.º n.º 2 e 187.s, n.ºs 1, al. a) e 4, do Cód. Proc. Pen.
Porquanto se investiga o cometimento de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos art.ºs 203.s n.º 1 e 204.º nº 1, al. a), por referência ao 200.3, 1, al. a), todos do Cód.Pen.

O M.mo Juiz de Instrução, por despacho datado de 30 de Maio de 2019, veio indeferir o requerido.

Inconformada com o assim decidido traz a Magistrada do Ministério Público o presente recurso, onde formula as seguintes conclusões:
1. Recorre-se da decisão judicial que indeferiu a promoção de obtenção de dados de tráfego e eventos de rede, ao abrigo do disposto nos artigos 189.º, n.º 2, e 187. n.º 1, alínea a), e n.º 4, do CPP, ocorridos num determinado contexto espaciotemporal inexistindo suspeito identificado, porque se entende que não se fez uma adequada apreciação do circunstancialismo excecional dos factos que subjaz à promoção de meio de obtenção de prova.
2. Considera-se absolutamente indispensável à continuação da investigação a diligência promovida, não se vislumbrando que outras diligências se possam desenvolver no sentido da descoberta da verdade.
3. A informação pretendida refere-se a um local que se insere numa área rural, em que a habitação mais próxima dista a mais de 700m.
4. Não se olvida o entendimento jurisprudencial segundo o qual não é admissível solicitar-se a um operador de comunicações que forneça os dados de localização celular relativos a um número indeterminado de pessoas, uma vez que a obtenção indiscriminada de dados de localização celular afronta o direito à inviolabilidade das telecomunicações.
5. Todavia, julga-se que esta posição não se adapta às circunstâncias do presente caso, que sé considera diferente daqueles dos quais resultou a construção daquela posição jurisprudencial tendo em conta as circunstâncias temporais e (sobretudo) espaciais dos factos em investigação: o período entre as 19h00 do dia 07/05/2019 e as 05h00 do dia 08/05/2019, num monte alentejano repleto de sobreiros, onde a casa mais próxima dista a mais de 700m.
6. Em consequência, não será errado concluir que as antenas BTS terão sido ativadas apenas pelos autores do ilícito (e eventualmente raras pessoas mais), tendo em conta que o local em causa é de baixíssima densidade populacional.
7. A promoção formulada não revela, pois, uma pretensão que fira os ditames legais, na medida em que não se apresenta desprovida de razoabilidade, desproporcionalidade ou adequação, considerando a baixíssima densidade populacional e entendendo-se que a perseguição do crime em investigação pela diligência promovida se justifica, tendo em conta o modo de atuação dos autores que impede a sua identificação ou qualquer medida de prevenção e a frequência com que tem ocorrido com total impunibilidade.
8. Por tudo isto, entende-se que deve a decisão de indeferimento de obtenção de dados de tráfego ser revogada e substituída por outra que a determine nos precisos termos promovidos.

Nesta lnstância; a Sra. Procuradora Geral-Adjunta emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

É do seguinte teor o despacho recorrido:
Em face do disposto no art. 9.ºn.º1 e 2 da Lei n.g 32/2008 de 17 de Julho e, bem assim, do art 187.º n.º 4 do Código de Processo Penai, a transmissão dos dados apenas deve ser autorizada em relação ao suspeito ou arguido, a pessoa que sirva de intermediário, relativamente à qual haja fundadas razões para crer que recebe ou transmite mensagens destinadas ou provenientes de suspeito ou arguido, ou a vítima de crime, mediante o respetivo consentimento, efetivo ou presumido.
Suspeito é "toda a pessoa relativamente à qual exista indício de que cometeu ou se prepara para cometer um crime, ou nele participa ou se prepara para participar" (cfr. art 1.º alínea e) do Código de Processo Penal) sendo que, a lei não exige que o suspeito seja pessoa determinada ou identificada, mas apenas que seja determinável ou identificável.
Ora, no presente inquérito não existem arguidos ou suspeitos, pessoas determináveis ou identificáveis, nem se verifica a previsão das alíneas b) e c) do n. ° 2, do artigo .9.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho.
Por outro lado, não se verifica perigo para a vida ou ofensa à integridade física grave que (art. 9.º nº5 da Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho) poderia justificar se determinasse às indicadas operadoras o fornecimento de todos os eventos de rede e dados de tráfego no período assinalado, com respeito dos princípios da proporcionalidade e da adequação cuja observância o n.º 4 desse normativo e o art. 18.º; n.º 2, da CRP impõem.
A ser deferida a realização da diligência, atingiria a diligência um universo ilimitado e indiferenciado de cidadãos que a lei não permite.
Pelo exposto, considerada a fase embrionária do inquérito, sem prejuízo de poder ser determinada a preservação de dados, atenta a falta de fundamento legal, indefiro o requerido.
Notifique.

Como consabido, são as conclusões retiradas pelo recorrente da sua motivação que definem o objecto do recurso.
No âmbito dos autos de inquérito acima identificados e que correm termos pela Comarca de Setúbal - Instância Local de Santiago do Cacém - veio o Ministério Público requerer fossem solicitadas às operadoras MEO, NOS e VODAFONE todos os eventos de rede e dados de tráfego relativamente ao período compreendido entre as 19h00 do dia 07/05/2019 e as 00h00 do dia 08/05/2019, captados pelas células das operadoras de telecomunicações móveis que cobrem a zona da prática do ilícito, nos termos do disposto nos art.ºs 189.º n.º 2 e 187.2, n.ºs 1, al.ª a) e 4, do Cód. Proc. Pen.
Porquanto se investiga o cometimento de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos art.ºs 203.ºn.º 1 e 204.º, n.ºs 1, al.ª a), por referência ao 200.º n.º 1, al a), todos do Cód. Pen.
Tudo, por na Herdade das F…, propriedade do ICNF, desconhecidos terem arrancado e levado consigo a cortiça amadia de 54 sobreiros, com cerca de 10 anos de idade, que rondará as 162 arrobas, valendo no total € 8748,00 (€ 60, por arroba).
Sendo que no local dos factos não é possível recolher qualquer indício que conduza à identificação dos autores e que os únicos vestígios deixados são as marcas dos rodados dos pneus dos veículos que os autores dos factos utilizaram para transportar as cortiças e que não têm características suficientemente identificativas.
No fundo o que se pretende é a obtenção de dados de tráfego e de localização conservada pelas operadoras e de forma a serem utilizados no âmbito da investigação em curso e, dessa feita, poder-se obter a identificação do autor, ou autores, do furto das 162 arrobas de cortiça.
Daí que se tenha de trazer à liça o que se diz na Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho, que versa sobre a conservação e a transmissão dos dados de tráfego e de localização relativos a pessoas singulares e a pessoas colectivas, bem como dos dados conexos necessários para identificar o assinante ou o utilizador registado, para fins de investigação, detecção e repressão de crimes graves por parte das autoridades competentes, transpondo para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2006/24/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março, relativa à conservação de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações electrónicas publicamente disponíveis ou de redes públicas de comunicações, e que altera a Directiva n.º 2002/58/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Junho, relativa ao tratamento de dados pessoais e à protecção da privacidade no sector das comunicações electrónicas, cfr. art.º 1.º, n.º 1.
Sendo que a conservação e a transmissão dos dados têm por finalidade exclusiva a investigação, detecção e repressão de crimes graves por parte das autoridades competentes- cfr. art.º 3.º, n.º 1, da mesma Lei 32/2008.
Entendendo-se por dados, os dados de tráfego e os dados de localização, bem como os dados conexos necessários para identificar o assinante ou o utilizador, art.º 2.º, n.º 1, al.2 a), da citada Lei.
E por crime grave, crimes de terrorismo, criminalidade violenta, criminalidade altamente organizada, sequestro, rapto e tomada de reféns, crimes contra a identidade cultural e integridade pessoal, contra a segurança do Estado, falsificação de moeda ou títulos equiparados a moeda e crimes abrangidos por convenção sobre segurança da navegação aérea ou marítima, art.º 2.º, n.º 1, al.ª g), da Lei n.9 32/2008.
Decorrendo do estatuído nos arts. 3.º, n.º 2 e 9.º, n.º 1, da mesma Lei que a transmissão de dados - referentes às categorias previstas no art.º 4.º, - às autoridades competentes só pode ser autorizada, por despacho fundamentado do juiz de instrução, se houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter no âmbito da investigação, detecção e repressão de crimes graves.
Como mencionado, investiga-se no âmbito destes autos a prática de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos art.ºs 203.º, n.º 1 e 204.º, n.º 1, al.ª a), por referência ao 200.º, n.º 1, al.ª a), todos do Cód. Pen.
Desde logo, o crime em causa não se integra no conceito de crime grave, a que se reporta a al.ª g), do n.º 1, art.º 2.º, da Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho.
O bastante para que se não possa deferir a pretensão deduzida pelo Ministério Público.
Nem para o seu deferimento vale trazer a terreiro quer o estatuído no art.º 187.º, do Cód. Proc. Pen., por inaplicável ao caso em apreço.
Porquanto somos de entendimento, no seguimento do expendido no Acórdão desta Relação de 20.01.2015, no Processo n.9 648/14.6GCFAR-A.E1, relatado pelo Sr. Desembargador João Gomes de Sousa e em que interviemos na qualidade de adjunto, que o regime processual das comunicações telefónicas previsto nos artigos 187.º a 190.º, do Código de Processo Penal deixou de ser aplicável por extensão às "telecomunicações electrónicas", "crimes informáticos" e "recolha de prova electrónica (informática) " desde a entrada em vigor da Lei n.º 109/2009, de 15.09 (Lei do Cibercrime) como regime regra.
Que esse mesmo regime processual das comunicações telefónicas deixara de ser aplicável à recolha de prova por "localização celular conservada" - uma forma de "recolha de prova electrónica" - desde a entrada em vigor da Lei n.º 32/2008, de 17.07.
Tratando-se de obter prova por "localização celular conservada", isto é, a obtenção dos dados previstos no artigo 4.º, n.º 1, da Lei n.º 32/2008, de 17.07, o regime processual aplicável assume especialidade nos artigos 3 e 9.º desta Lei.
Pelo que e sem curar de outras delongas ou considerandos, embora com fundamentação algo diversa, se tenha de indeferir a pretensão recursiva e, em consequência, confirmar o despacho recorrido.

Termos são em que Acordam em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar o despacho recorrido, nos moldes mencionados.

Sem custas, por não devidas.

(texto elaborado e revisto pelo relator).

Évora, 8 de Outubro de 2019

José Proença da Costa (relator)

Alberto Borges