Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
257/20.0T8TMR.E1
Relator: MÁRIO BRANCO COELHO
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
DESCARACTERIZAÇÃO DO ACIDENTE
VIOLAÇÃO DAS REGRAS DE SEGURANÇA NO TRABALHO
NEGLIGÊNCIA GROSSEIRA
CULPA EXCLUSIVA
Data do Acordão: 02/09/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1. A violação das regras de segurança, quer legais quer estabelecidas pela entidade patronal, deve ser voluntária ou com elevado grau de negligência, estando excluídos da descaracterização os actos ou omissões que resultem de inadvertência, imperícia, distracção, esquecimento ou outros actos involuntários, resultantes ou não da habituação ao risco.
2. Não deve ser descaracterizado o acidente de trabalho que ocasionou a morte do operador que entrou na zona móvel perigosa de uma máquina industrial, contornando os portões cuja abertura faria a máquina parar, se também estiver apurado o seguinte:
- a máquina era inadequada ao trabalho que estava a executar, por estar a ser utilizada na produção de objectos de dimensão inferior para a qual foi fabricada;
- tal obrigava à constantemente interrupção da máquina, para o operador se deslocar à zona perigosa, para manualmente rodar as peças;
- o acesso à zona perigosa não havia sido impedido de modo eficaz, porquanto tal acesso era possível por outros locais que não os portões, e tal não impedia a máquina de funcionar.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora:

No Juízo do Trabalho de Tomar, foi participado acidente de trabalho que vitimou mortalmente AA, o qual faleceu no estado de solteiro e sem descendentes.
Infrutífera a tentativa de conciliação, prosseguiram os autos para a fase contenciosa, com a mãe do sinistrado, BB, a demandar a entidade empregadora Paviprel – Sociedade de Materiais de Construção, Lda., e a seguradora Caravela – Companhia de Seguros, S.A., invocando a violação de regras de segurança e saúde no trabalho por parte da empregadora.
Nas respectivas contestações, as Rés afirmaram que o acidente de trabalho se deveu a falta de observação, pelo sinistrado, das regras sobre segurança e saúde no trabalho e por ter agido com negligência grosseira.
Após julgamento, a sentença concluiu não ter existido violação de regras de segurança por parte da empregadora e também afirmou que o acidente não estava descaracterizado.
E ponderando que a retribuição não se encontrava integralmente transferida para a seguradora, a sentença condenou a Ré empregadora no pagamento da pensão obrigatoriamente remível de € 1.067,04, e a Ré seguradora na pensão obrigatoriamente remível de € 2.060,88, devidas desde 12.02.2020 e acrescidas de juros de mora.
A Ré seguradora foi também condenada no pagamento de € 1.728,86, a título de despesas com o funeral, acrescida de juros.

Ambas as Rés recorreram, sendo que as conclusões apresentadas pela seguradora – que não são exemplo da capacidade de síntese exigida pelo art. 639.º n.º 1 do Código de Processo Civil – podem ser resumidas ao seguinte:
1. O acidente deve ser descaracterizado, por ter ocorrido por negligência grosseira do sinistrado.
2. A sentença baseia-se em suposições, valorações, interpretações e citações (sobretudo, legais e jurisprudenciais), sem qualquer fundamento/nexo factual e/ou legal.
3. O acidente proveio, exclusivamente, da negligência grosseira do sinistrado, nos termos definidos pela al. b) do n.º 1 e pelo n.º 3 do art. 14.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro.
4. Existe negligência grosseira quando qualquer Sinistrado actua com (total) desconsideração pelas mais elementares regras de prudência, de forma, absolutamente, temerária, arriscada, inútil, indesculpável e reprovável, pelo mais elementar senso comum.
5. Não se vislumbrando uma ligação entre o seu comportamento e a execução das tarefas de trabalho.
6. Trata-se de um comportamento temerário em alto e relevante grau, que tem de ser aferido não em relação a um tipo abstracto de conduta, mas, em concreto, em face da particularidade de cada caso, traduzido numa assunção do perigo dispensável e escusada.
7. Naquele dia, o sinistrado operava uma máquina de fabrico de artefactos de betão, na zona designada como “pinça transportadora”.
8. Na data dos factos, a referência em produção eram lajetas de betão, com a dimensão de 60x40cm.
9. Estas, depois de saírem da estufa, são conduzidas, através de tapete rolante até à zona da “pinça transportadora” que, de forma automática, as agarra e as empilha para, posterior, encaminhamento, para o armazém de produto acabado.
10. A referida “pinça transportadora” está preparada, apenas, para peças com 1x1m, pelo que, no caso das lajetas, é necessário posicionar 4 (quatro) peças, de modo a obter aquela medida.
11. Pelas 14h00m, daquele dia 10 de Fevereiro de 2020, o sinistrado foi encontrado por um colega de trabalho, que se deparou com o mesmo inconsciente, aprisionado entre a “pinça transportadora” e a bandeja de recolha das peças.
12. Este, de imediato, desactivou a máquina – que se encontrava em modo automático, pelo que, desde logo, accionou o modo manual e subiu a “pinça transportadora” – e libertou aquele, alertando outros colegas e chamando os meios de emergência necessários para o seu socorro (vindo a falecer, no dia seguinte).
13. A máquina possui marcação CE, estando dotada de blindagem dos seus elementos móveis e de comando de paragem de emergência.
14. A zona de acção da “pinça transportadora” está delimitada por barreiras metálicas, com portas de protecção activa (sensores), que interrompem o seu funcionamento, quando abertas, evitando, assim, o acesso à zona perigosa.
15. A “pinça transportadora” pode funcionar em modo manual ou automático.
16. Uma vez seleccionado o modo manual, o operador pode comandar a “pinça transportadora”, através dos comandos existentes no painel, em modo automático, o material é empurrado no tapete rolante, ficando posicionado na bandeja, por baixo da “pinça transportadora”, que, automaticamente, desce e recolhe a peça, movimentando-a para a palete de material empilhado.
17. Atendendo a que a dimensão das lajetas não permite a acção da “pinça transportadora” e a paletização do material, é necessário posicioná-las em conjuntos de 4 (quatro) unidades, de modo a obter a dimensão de 1x1m requeridas para a sua devida e respectiva utilização (da “pinça transportadora”).
18. Neste cenário, sempre que chega material ao tapete rolante, o trabalhador deve passar a máquina para o modo manual (para não desactivar todas as fases) e rodar o manípulo de paragem, interrompendo, assim, o circuito da “pinça transportadora”.
19. De seguida, deve aceder à zona perigosa, posicionar as lajetas, conforme pretendido, e voltar a sair para ligar novamente o circuito da “pinça transportadora”.
20. Sucede que, após a ocorrência de tal acidente/sinistro, verificou-se que a referida máquina se encontrava em modo automático e que as portas de protecção activa estavam fechadas.
21. Assim, o seu circuito não estava a funcionar, uma vez que a “pinça transportadora”, ao detectar um corpo estranho, parou, automaticamente, encontrando-se sobre o sinistrado.
22. Este passou/saltou sobre a vedação da máquina, numa zona interdita para o efeito, uma vez que, em modo automático, a abertura das portas teria interrompido o funcionamento do circuito.
23. Por outro lado, atendendo à localização do painel de controlo, não é possível accionar a máquina a partir da zona perigosa.
24. O sinistrado era um trabalhador muito experiente, designadamente na utilização daquela máquina, e tinha-lhe sido ministrada a formação necessária para a realização daquelas tarefas.
25. O acidente resultou do incumprimento, pelo sinistrado, do procedimento de trabalho estipulado.
26. O sinistrado sabia que não podia galgar/saltar, em zona interdita, aquela máquina, como fez.
27. O sinistrado também se encontrava alcoolizado.
28. O sinistrado contrariou, negligente e grosseiramente, as instruções e as normas de segurança impostas pela sua entidade patronal.

Quanto à Ré entidade empregadora, coloca as seguintes questões no seu recurso:
1. Na petição inicial pede-se a condenação, apenas, da Ré seguradora caso se entenda que no acidente de trabalho não houve actuação culposa da empregadora.
2. Visto que este pedido só foi dirigido contra a seguradora e já não contra a entidade empregadora, esta em circunstância alguma devia ter sido condenada.
3. A Recorrente aceita toda a matéria de facto julgada provada.
4. Mas não aceita que, face aos elementos documentais que constam dos autos, a sentença não tenha julgado também como provado o que fez constar das alíneas k) e n) dos factos “não provados”, que por isso impugna.
5. Não pode aceitar que a sentença tenha fundamentado a sua resposta por, como refere “não ter sido apurada a razão que determinou que o sinistrado se colocasse ao pé da bandeja de recolha das peças, local onde a pinça descia para as recolher e transportar para a palete de material empilhado”.
6. Na verdade, dos factos que deu como provados e dos elementos constantes dos autos – desde o manual de instruções da máquina até aos relatórios periciais efectuados – impõe-se concluir que a bandeja que dista cerca de 1 metro do local onde se rodam as lajetas, se situa dentro da parte balizada, a qual é sempre obrigatório parar;
7. O sinistrado, qualquer que fosse a circunstância que o levasse a estar naquele local da máquina, tinha sempre de recorrer ao mesmo procedimento de parar a pinça, para poder estar ali;
8. Mesmo se fosse caso de afinação da máquina ou da pinça, tal faz-se sempre e obrigatoriamente com a máquina parada, como resulta do manual de instruções junto aos autos, e como resulta da resposta por email de 20 de Fevereiro de 2020 da Ilmar, Lda., fabricante e vendedora da máquina, como resposta àquele que em 14 de Fevereiro de 2020, lhe fora enviado pelo Eng.º (…);
9. O trabalhador sinistrado estava a rodar lajetas, pois essa era a tarefa que à data desempenhava. Mas, mesmo que não fosse e, fosse pelo que fosse, tinha sempre, mas sempre, que parar o sistema para aceder ou se manter na zona onde se encontrava;
10. Acontece que aquele só pode ter saltado as barreiras de segurança da máquina, contra todas as regras que lhe eram impostas, nomeadamente pela ora Recorrente, como sua entidade patronal;
11. Existiu negligência grosseira do sinistrado, que agiu contra os seus próprios interesses, consubstanciada que foi num comportamento perigoso, temerário, indesculpável e inútil, inaceitável à luz de um elementar juízo de prudência e cautela, causador em exclusivo do acidente, fruto até de, como técnico especializado, não ter ele próprio previsto o risco a que a sua conduta o expunha – o que ambas as RR. alegaram em sede de contestação;
12. À ora Recorrente, como entidade patronal, não pode ser imputado qualquer comportamento negligente, por não ter previsto tal risco, o qual de todo lhe era imprevisível, dado que os sistemas de protecção estavam, na altura do acidente, em condições de funcionamento, tal como consta documentado nos relatórios de peritagem juntos aos autos. Sistemas de protecção que não eram, em circunstância alguma, para contornar pelo trabalhador sinistrado;
13. Impunha-se, face à prova produzida, que a decisão recorrida tivesse descaracterizado o acidente, por ter ocorrido por negligência grosseira do sinistrado e nos exactos termos do art. 14.º n.ºs 1 al. b) e 3 da Lei 98/2009 de 4/9.

Na respectiva resposta, a A. sustenta a manutenção do julgado.
Nesta Relação de Évora, o Digno Magistrado do Ministério Público produziu parecer no sentido da manutenção do julgado.
Cumpre-nos decidir.

Da impugnação da matéria de facto:
Nas suas alegações, a Ré empregadora afirma pretender impugnar a decisão de facto quanto às alíneas k) e n) dos factos não provados, que tinham a seguinte redacção: “k.- O sinistrado actuou sem causa justificativa” e “n.- O sinistrado actuou contra os interesses da R. Paviprel.”
Para além daquela Ré não ter cumprido o ónus de especificar os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa sobre aquela matéria – o que desde logo importa a rejeição da impugnação, por assim o determinar o art. 640.º n.º 1 al. b) do Código de Processo Civil – também diremos que naquelas alíneas estão em causa meras conclusões ou juízos de valor, não susceptíveis de prova.
De todo o modo, rejeita-se a impugnação da matéria de facto.

Fica assim estabelecida a matéria de facto:
1. O Sinistrado AA, nascido em …1963, era filho da A..
2. Faleceu no dia 11 de Fevereiro de 2020, no estado de solteiro, sem descendentes.
3. A A. é a única herdeira do sinistrado.
4. A A. recebe uma pensão mensal de 189,12€, sendo este o seu único rendimento mensal.
5. No dia 10 de Fevereiro de 2020, pelas 14h, na Estrada do Castelo do Bode, sita em Tomar, enquanto trabalhava sob ordem e direcção da R. PAVIPREL, e nas instalações desta, o sinistrado AA ao posicionar lajetas, ficou preso entre a pinça transportadora e a bandeja, sofrendo traumatismos múltiplos.
6. Como consequência directa e necessária do acidente, o Sinistrado faleceu no dia seguinte.
7. À data dos factos acima descritos, o Sinistrado trabalhava como operador de fabrico para a R. PAVIPREL.
8. E, à data do acidente, o Sinistrado auferia a remuneração ilíquida anual de 15.639,62€ = 650€ x 14 + 13,43€ x 14 + 4,25€ x 22 x 11 + 93,75€ x 12 + 349,80€ x 12, discriminada da seguinte forma:
- 650,00€ referentes ao ordenado base mensal;
- 13,43€ referentes a diuturnidades;
- 4,25€ referentes ao subsídio de refeição diário;
- 93,75€ relativo à média do prémio de assiduidade mensal;
- 349,80€ referentes à média do trabalho suplementar mensal..
9. A R. PAVIPREL tinha transferida a responsabilidade por acidentes de trabalho, através de contrato de seguro celebrado com a R. CARAVELA, titulado pela apólice nº 10/120882..
10. Não foi possível acordo extrajudicial entre os interessados, quanto à fixação da reparação devida.
11. Realizada a tentativa de conciliação, nos termos dos arts. 108º e seguintes do Cód. Proc. Trabalho, viria esta a frustrar-se porquanto:
- A R. CARAVELA apenas aceita transferida a responsabilidade pelo contrato de seguro, no total de 10.304,42€ e recusa a responsabilidade por ter havido violação de regras de segurança.
- A R. PAVIPREL considerou não ter havido violação de regras de segurança da sua parte, mas sim da parte do sinistrado e não se pronunciou em relação ao salário.
12. Do auto de tentativa de conciliação, consta ainda que houve acordo expresso quanto aos seguintes factos:
a) O acidente ocorreu no dia 10.2.2020, na Estrada de Castelo do Bode, em Tomar, e o sinistrado ao posicionar lajetas, ficou preso entre a pinça transportadora e a bandeja, sofrendo traumatismos múltiplos.
b) O acidente ocorreu enquanto trabalhava como operador de fabrico por conta de R. PAVIPREL.
c) O acidente está coberto por contrato de seguro de riscos emergentes de acidentes de trabalho, titulado pela apólice 10/120882.
d) Houve acordo quanto ao nexo de causalidade entre a morte e o acidente.
e) Bem como, que é beneficiária do sinistrado a sua mãe, aqui A., com quem vivia desde sempre e que tem como rendimento único a pensão mensal de 189,12€.
13. O sinistrado desempenhava habitualmente e já há vários anos fazia, a tarefa de operador da máquina Vibropensa Rapide 1250, tendo, por isso, experiência no manuseamento da mesma.
14. No dia dos factos, o sinistrado, enquanto operador da referida máquina, encontrava-se a posicionar lajetas, para que as mesmas ficassem em posição paletizável, ou seja, que fossem agarradas pela pinça tipo “robot” e colocadas numa palete de carga.
15. O sinistrado ficou preso entre a pinça transportadora e a bandeja, ocorrendo o acidente que, de forma directa e necessária, lhe provocou a morte.
16. A máquina Viboprense Rapide, que o sinistrado utilizava aquando do acidente, foi construída pela empresa ILMAR – Fábrica de Máquinas para Artigos de Cimento, Lda..
17. A máquina em modo automático, sem rotação manual das lajetas, não permitia à pinça agarrar peças tão pequenas.
18. Com o funeral, a A. teve despesas no valor de 1.728,86€, que suportou integralmente.
19. A A. vivia com o sinistrado, sendo que era este que financeiramente a ajudava.
20. Era o sinistrado que comprava comida, que pagava as contas da casa (água, luz, gás), que ajudava a mãe com as despesas médicas e medicamentosas.
21. Pois que com os seus parcos rendimentos a A. não conseguia viver de forma condigna.
22. Com a morte do seu filho, a A. nunca mais foi a mesma, e, desde aí, tem vivido num estado depressivo, não tendo vontade e motivação para realizar as tarefas do dia-a-dia.
23. A morte do filho provocou-lhe angústia e tristeza imensurável.
24. A A. deixou de contar com o sustento do seu filho para sobreviver e tem passado por diversas dificuldades.
25. No sector da fábrica da R. onde ocorreu o acidente que vitimou o malogrado trabalhador, sempre existiram recomendações da R. Paviprel quanto aos procedimentos, inclusive de segurança a adoptar por parte dos trabalhadores envolvidos, para acederem à zona da pinça por forma a serem rodadas as lajetas, quando tal se tornasse necessário.
26. Bem como, recomendações para que fossem respeitados os esquemas de funcionamento e de segurança da máquina.
27. No local onde ocorreu o acidente, sempre que é necessário aos trabalhadores irem junto dos vários sectores, que se encontram balizados e que fazem parte da Máquina Vibroprensa Rapide 1250, têm de passar a zona a que pretendem aceder “a manual”.
28. De contrário, ao abrirem as portas, accionam as seguranças e todo o conjunto para.
29. Para se poder paletizar as lajetas, é necessário rodar duas por fiada, tornando-se necessário colocar a pinça em “manual”, aceder à zona da pinça pelo portão de acesso, rodar as lajetas, sair, fechando o portão e voltar a colocar a pinça em “automático”.
30. A máquina em causa trabalha de forma automática na zona da produção e semiautomática na zona em que o sinistrado estava, quando há necessidade de fazer a deslocação das lajetas, uma vez que estas, por serem mais pequenas, têm de ser rodadas manualmente, para que a pinça consiga agarrá-las.
31. Existem mecanismos de segurança que permitem parar o funcionamento da máquina enquanto se realiza esta operação, sendo certo que, durante o funcionamento da mesma, não é permitido que qualquer trabalhador esteja naquela zona.
32. Esse mecanismo de segurança e a necessidade de o accionar, só ocorre no fabrico de lajetas, sendo que a R. produz muitos outros materiais em que a pinça funciona de forma automática, sem aquela necessidade.
33. Quando o sinistrado foi encontrado pelo seu colega de trabalho Leonel Alves, estava entalado na pinça, com esta ligada na posição de “automático”.
34. Esse local, era a bandeja e não correspondia àquele onde eram rodadas as lajetas.
35. Para o sinistrado estar na zona onde ocorreu o acidente e estar o mecanismo todo ligado em “automático” sem as seguranças terem disparado, teve ele de ter entrado fora das portas, passando por uma zona interdita, face às normas de segurança a que devia obediência.
36. Normas, essas, que se encontram instituídas no manual do equipamento tendo o sinistrado recebido formação sobre a mesma pela Ré Paviprel.
37. Equipamento esse que era pelo sinistrado bem conhecido, tendo em conta que ele era o encarregado da referida secção e o mais antigo dos operadores da máquina em questão, com a qual trabalhou diariamente, durante vários anos.
38. A máquina Vibroprensa Rapide 1250 era e é provida de sistema de controlo, que permitia e permite a sua paragem geral, em condições de segurança, bem como de dispositivo de paragem de emergência.
39. Para além do posto de trabalho do sinistrado também dispor de um sistema de comando, que permite parar aquele equipamento de trabalho.
40. Tal equipamento dispunha e dispõe de protectores de construção robusta que impediam e impedem o acesso às zonas perigosas.
41. E ainda dispunha de dispositivo que interrompia e interrompe o seu movimento, antes do acesso a tais zonas.
42. Ao cabo de alguns anos de experiência de manobrar a máquina e das tarefas que esta permite, foi o sinistrado formador de outros trabalhadores da R. Paviprel.
43. O sinistrado agiu de forma voluntária e como operador da máquina bem sabia como ela funcionava, como é constituída e tinha o pleno conhecimento da forma como desempenhar as suas funções, conhecendo os riscos inerente às mesmas, da mesma forma que conhecia os dispositivos de segurança a que devia obediência, face ao sistema de funcionamento da máquina e às instruções quer desta, quer do manual desta, quer da aqui R. para com os seus trabalhadores.
44. A produção de lajetas pela R. sempre foi reduzida.
45. O molde das lajetas, tal como todos os outros produtos, também foi comprado pela R. à ILMAR, Lda., como fabricante.
46. E o arranque do molde, foi inclusive feito na presença do então legal representante da empresa ILMAR, Lda., Sr. (…), que à data transmitiu os ensinamentos, tanto para as afinações durante o fabrico, como para serem paletizadas.
47. O contrato de seguro referido em 9) abrangia, à data do acidente em causa nos presentes autos, o aqui Sinistrado, AA, em função da retribuição mensal de €: 650,00 x 14 meses + €: 92,40 x 11 meses, a título de subsídio de alimentação + €: 13,43 x 14 meses, a título de diuturnidades, o que dá, assim, o salário anual transferido para a ora 2.ª Ré, de €: 10.304,42.
48. A Apólice do contrato de seguro, aqui em causa, vigorava na modalidade de prémio variável (Folhas de Férias).
49. A máquina utilizada de modelo Vibroprensa Rapide 1250 possui marcação CE.
50. Está dotada de blindagem dos seus elementos móveis e de comando de paragem de emergência.
51. A zona de acção da “pinça transportadora” está delimitada por barreiras metálicas, com portas de protecção activa (sensores), que interrompem o seu funcionamento, quando abertas.
52. A “pinça transportadora” pode funcionar em modo manual ou automático.
53. Uma vez seleccionado o modo manual, o operador pode comandar a “pinça transportadora”, através dos comandos existentes no painel.
54. Em modo automático, o material é empurrado no tapete rolante, ficando posicionado na bandeja, por baixo da “pinça transportadora”, que, automaticamente, desce e recolhe a peça, movimentando-a para a palete de material empilhado.
55. Atendendo a que a dimensão das lajetas não permite a acção da “pinça transportadora” e a “paletização” do material, é necessário posicioná-las em conjuntos de 4 unidades, de modo a obter a dimensão de 1x1m requeridas para a sua devida e respectiva utilização (da “pinça transportadora”).
56. Neste cenário, sempre que chega material ao tapete rolante, qualquer 1 dos trabalhadores deve passar a máquina para o modo manual (para não desactivar todas as fases) e rodar o manípulo de paragem, interrompendo, assim, o circuito da “pinça transportadora”.
57. De seguida, deve aceder à zona perigosa, posicionar as lajetas, conforme pretendido, e voltar a sair para ligar novamente o circuito da “pinça transportadora”.
58. Aquando do acidente, a máquina encontrava-se em modo automático e as portas de protecção activa estavam fechadas.
59. Em modo automático, a abertura das portas teria interrompido o funcionamento do circuito.
60. Atendendo à localização do painel de controlo, não é possível accionar a máquina a partir da zona perigosa.
61. Para se encontrar na zona perigosa, com a máquina em modo automático, o sinistrado passou as barreiras de protecção da máquina que impedem o acesso à zona perigosa.
62. Se tivesse utilizado as portas de protecção activa, os sensores teriam interrompido o seu funcionamento, e, desta forma, o acidente não ocorreria.
63. Não foi detectada qualquer anomalia no funcionamento da máquina.
64. O estudo toxicológico realizado ao Sinistrado, AA, feito aquando da realização da sua autópsia, identificou a presença de álcool etílico – com 1 concentração de 0,26g/l – e de substâncias medicamentosas sedativas/hipnóticas e antiepilépticas no sangue do mesmo, estas últimas em quantidades consideradas terapêuticas e ministradas na sequência da prestação de cuidados médicos ao mesmo.

APLICANDO O DIREITO
Da descaracterização do acidente
Argumentam as Recorrentes que se deve proceder à descaracterização do acidente, por negligência grosseira do sinistrado, nos termos do art. 14.º n.º 1 al. b) e n.º 3 da LAT (Lei 98/2009, de 4 de Setembro), embora invoquem que este também violou as condições de segurança estabelecidas pela empregadora, ao entrar na zona interdita por fora dos portões, onde estão colocadas seguranças que fariam todo o conjunto parar.
Esta última alegação enquadra-se na al. a) do n.º 1 do aludido art. 14.º, o qual estabelece quatro requisitos cumulativos para a descaracterização do acidente: 1 – existência de específicas condições de segurança, sejam elas estabelecidas pelo empregador, ou pela lei; 2 – violação de tais condições, por acto ou omissão do trabalhador; 3 – inexistência de causa justificativa para tal violação; 4 – e nexo causal entre a violação da regra e o acidente.[1]
Quanto à descaracterização do acidente que provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado, Carlos Alegre argumenta que «ao qualificar a negligência de grosseira, o legislador está a afastar implicitamente a simples imprudência, inconsideração, irreflexão, impulso leviano que não considera os prós e os contras.»[2] Nota ainda o mesmo autor, que o acto descaracterizador do acidente deve resultar de culpa exclusiva, logo, sem concurso de qualquer outra acção de terceiros ou da entidade patronal.
Como também refere o mesmo autor, a gravidade da culpa haverá de traduzir-se em imprudências ou temeridades inúteis, de todo inexplicáveis – embora fossem de afastar as temeridades resultantes do hábito de lidar com o risco, por força do trabalho, porquanto comportaria uma certa dose de habituação ao risco, em consequência do próprio exercício da actividade profissional. Sendo que os actos de abnegação, regra geral temerários, não poderiam ser tidos como indesculpáveis, sob pena de se punirem tais actos, em vez de os galardoarem.
Não basta, pois, para os fins de descaracterização do acidente de trabalho, a mera culpa. É necessária a negligência grosseira, próxima do dolo eventual, que o art. 14.º n.º 3 da LAT afirma ser um “comportamento temerário em alto e relevante grau”, equivalente a «…um comportamento temerário, reprovado por um elementar sentido de prudência, uma improcedência e temeridade inútil e indesculpável, mas voluntária, embora não intencional.»[3]
Expostos os requisitos gerais da descaracterização invocada pelas Recorrentes, está demonstrado que, na data dos factos, a máquina estava a produzir lajetas, de dimensão inferior àquela que permitiria a operação automática – na verdade, a “pinça transportadora” não trabalha com peças de dimensão inferior a 1x1m e, pelos dados que constam dos autos, as lajetas tinham a dimensão de 60x40cm.
Deste modo, o operador tinha de se deslocar à zona perigosa para posicionar as lajetas em conjuntos de 4 unidades, de modo a obter a dimensão de 1x1m que permitia a operação da pinça. Para o efeito, deveria aguardar o fabrico de pelo menos quatro lajetas, parar a máquina, entrar na zona perigosa para as posicionar, sair, fechar os portões e rearmar a máquina.
Aguardava o fabrico de mais quatro lajetas, e repetia todo o procedimento, as vezes que fossem necessárias.
Daqui ressalta desde logo que a máquina não era adequada à operação de paletização daquelas lajetas, dado que a dimensão destas era inferior àquela para a qual havia sido preparada, obrigando assim à intervenção manual do operador. Ademais, a circunstância do processo de funcionamento da máquina dever ser interrompido de quatro em quatro lajetas, mostra-se apta à adopção de comportamentos arriscados, provocada pela necessidade de cumprir os ritmos de produção exigidos numa instalação industrial como a pertencente à 1.ª Ré.
De acordo com o art. 3.º al. a) do DL 50/2005, de 25 de Fevereiro, para assegurar a segurança e a saúde dos trabalhadores na utilização de equipamentos de trabalho, o empregador deve assegurar que os mesmos “são adequados ou convenientemente adaptados ao trabalho a efectuar e garantem a segurança e a saúde dos trabalhadores durante a sua utilização.”
Acrescenta o art. 16.º n.º 1 do mesmo diploma que “os elementos móveis de um equipamento de trabalho que possam causar acidentes por contacto mecânico devem dispor de protectores que impeçam o acesso às zonas perigosas ou de dispositivos que interrompam o movimento dos elementos móveis antes do acesso a essas zonas.”
Finalmente, o n.º 2 exige que os protectores e os dispositivos de protecção sejam de construção robusta, não ocasionem riscos suplementares, estar situados a uma distância suficiente da zona perigosa e: “c) Não devem poder ser facilmente neutralizados ou tornados inoperantes.”
A máquina em causa não era adequada nem convenientemente adaptada ao trabalho que estava a ser executado. Estava preparada para trabalhar com peças de dimensão não inferior a 1x1m, mas a Ré empregadora utilizava-a na produção de lajetas de dimensão inferior, obrigando à deslocação do operador à zona perigosa, para rodar manualmente as lajetas – pelo que se apura a violação daquele art. 3.º al. a) do DL 50/2005.
Também os protectores não satisfaziam as exigências impostas pelo art. 16.º n.º 1 e n.º 2 al. c) do dito diploma: podiam ser neutralizados ou tornados inoperantes, pois apesar de existirem portões na entrada para a zona perigosa, o acesso podia fazer-se por outros locais, como sucedeu na data do acidente.
Não bastava colocar portões, era preciso garantir que a entrada não se fazia por qualquer outro modo, pois só assim é que o equipamento é seguro e satisfaz aquela exigência legal.
Deve-se ponderar que os protectores devem ser eficazes quanto ao objectivo pretendido, de impedimento de acesso às zonas perigosas, e certo é que os existentes na máquina em questão não cumpriam essa missão. Deviam ter impedido a entrada do sinistrado com a máquina em funcionamento, e não impediram.
Mais, deviam ter imposto a paragem da máquina com a presença de uma pessoa na zona perigosa, e tal também não sucedeu.
O acto descaracterizador do acidente deve resultar de culpa exclusiva do trabalhador, sem concurso de qualquer outra acção de terceiros ou da entidade patronal – e tal culpa exclusiva não ocorre, dada a inadequação da máquina ao trabalho que estava a ser executado e à ineficácia dos protectores.
Haverá a dizer, por último, que a violação das regras de segurança, quer legais quer estabelecidas pela entidade patronal, deve ser voluntária ou com elevado grau de negligência, estando excluídos da descaracterização os actos ou omissões que resultem de inadvertência, imperícia, distracção, esquecimento ou outros actos involuntários, resultantes ou não da habituação ao risco.[4]
A propósito, Júlio Gomes escreve o seguinte: «a privação da reparação por acidente de trabalho é uma consequência desproporcionada, a não ser para comportamentos dolosos ou com um grau de negligência muito elevado que sejam, eles próprios, a causa do acidente, de tal modo que verdadeiramente se quebre o nexo etiológico entre o trabalho e o acidente.»[5]
E acrescenta: «Não pode ser o mero facto da violação das regras de segurança que opera a descaracterização, devendo exigir-se um comportamento subjectivamente grave, ao que acresce que outras “justificações” poderão ser relevantes. Terá, por conseguinte, que verificar-se, também aqui, uma culpa grave do trabalhador, tão grave que justifique a sua exclusão, mesmo que ele esteja a trabalhar, a executar a sua prestação, do âmbito de tutela dos acidentes de trabalho. Essa culpa deve ser aferida em concreto e não em abstracto, e não poderá deixar de atender a factores como o excesso de confiança induzido pela própria profissão, a passividade do empregador perante condutas similares no passado (…) e, simplesmente, factores fisiológicos e ambientais como o cansaço, o calor ou o ruído existente no local de trabalho, Destarte, deve considerar-se (…) que a violação das regras de segurança pode ter outras causas justificativas para além da dificuldade em conhecer ou entender a norma legal ou estabelecida pelo empregador.»[6]
Nesta perspectiva, não se sabe porque estava o sinistrado na zona perigosa com a máquina em funcionamento. Certo é que ali tinha de se deslocar para fazer o trabalho que lhe estava atribuído – embora o devesse fazer após seguir um procedimento minucioso e que provocava constantes interrupções no funcionamento da máquina, circunstância que se mostra incompatível com a necessidade de intensa produção de uma instalação industrial.
Mas certo é que o sinistrado era uma pessoa experiente e sabia bem como a máquina funcionava, de tal maneira que dava formação a outros trabalhadores.
Tal proporciona o “excesso de confiança” de que nos fala Júlio Gomes, provocado pelo hábito de lidar com o risco, por força do trabalho, e pela necessidade de cumprir a produção estipulada, o que também obsta à descaracterização do acidente.

Finalmente, quanto à observação da Recorrente empregadora, de não poder ser condenada por o pedido subsidiário não lhe ter sido dirigido, esquece que estamos perante preceitos imperativos da lei, aplicando princípios com consagração constitucional (o direito à reparação das vítimas de acidente de trabalho, previsto no art. 59.º n.º 1 al. f) da Constituição), e que conferem direitos inalienáveis e irrenunciáveis – art. 78.º da LAT.
E porque assim se trata, a sentença recorrida bem procedeu ao efectuar uma condenação extra vel ultra petitum, ao abrigo da faculdade legal concedida pelo art. 74.º do Código de Processo do Trabalho, pelo que também esta parte do recurso merece ser desatendida.

DECISÃO
Destarte, nega-se provimento ao recurso e confirma-se a sentença recorrida.
As custas pelas Recorrentes, na proporção do respectivo decaimento.

Évora, 9 de Fevereiro de 2023

Mário Branco Coelho (relator)
Paula do Paço
Emília Ramos Costa

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[1] Vide, a propósito, o Acórdão da Relação de Guimarães de 12.02.2015 (Proc. 679/11.8TTVNF.P1.G1), e o Acórdão desta Relação de Évora de 23.02.2016 (Proc. 390/14.8TTSTB.E1), ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
No Supremo Tribunal de Justiça, vide o Acórdão de 13.10.2021 (Proc. 3574/17.3T8LRA.C1.S1), na mesma base de dados.
[2] In Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, 2.ª ed., Almedina, 2005, págs. 62 e 63.
[3] Cruz de Carvalho, in Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, 1980, pág. 42.
[4] Neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.12.2017 (Proc. 2763/15.0T8VFX.L1.S1), igualmente na página da DGSI.
[5] In O Acidente de Trabalho – O Acidente In Itinere, Coimbra Editora, 2013, págs. 232-234.
[6] Loc. cit., págs. 240-246.