Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2622/19.7T8PTM.E1
Relator: MÁRIO BRANCO COELHO
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
LOCAL DE TRABALHO
Data do Acordão: 10/27/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1. O art. 8.º n.º 1 da LAT, consagra a teoria do risco económico ou de autoridade, ao considerar acidente de trabalho todo o evento lesivo ocorrido no local e no tempo de trabalho, não exigindo, assim, uma relação de causa e efeito entre o acidente e o trabalho.
2. Estando demonstrado que o sinistrado exercia as funções de empregado polivalente do condomínio, desempenhando funções de porteiro, vigilante e serviço de limpeza, fazendo ainda alguns serviços de manutenção geral do edifício e do espaço envolvente, é acidente de trabalho o ocorrido quando auxiliava trabalhos de colocação de cartaz publicitário no telhado de uma das fracções do edifício.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora:

No Juízo do Trabalho de Portimão, foi participado acidente de trabalho, ocorrido no dia 14.05.2019 ao trabalhador I…, quando desempenhava as funções de porteiro, vigilância e limpeza sob a autoridade e direcção de Condomínio do Prédio Aquazul da Praia da Rocha, a qual não tinha a sua responsabilidade infortunística transferida para qualquer Seguradora.
Infrutífera a tentativa de conciliação, prosseguiram os autos para a fase contenciosa, com o trabalhador – patrocinado pelo Digno Magistrado do Ministério Público – a apresentar a respectiva petição inicial e a empregadora a contestar, sob a seguinte argumentação:
- o acidente deve ser descaracterizado, pois o sinistrado caiu de uma plataforma, quando se encontrava a auxiliar dois trabalhadores que colocavam um painel publicitário numa das fracções do prédio, agindo com negligência grosseira;
- o acidente ocorreu fora do contexto espacial e do âmbito funcional das tarefas exercidas pelo autor;
- e impugnou o modo e as circunstâncias do sinistro, o valor da remuneração auferida, bem como os períodos, natureza e grau de incapacidade.
Procedeu-se ao exame por junta médica, no âmbito do respectivo apenso, onde foi fixada a natureza e as incapacidades do sinistrado.
Realizado o julgamento, a sentença decidiu:
a) julgar o sinistrado, por via do acidente de trabalho ocorrido a 14.05.2019, afectado de:
i. uma Incapacidade Temporária Absoluta (ITA) de 15.05.2019 a 16.10.2019 (155 dias);
ii. a partir de 16.10.2019, data da alta clínica, uma Incapacidade Permanente Parcial (IPP) de 44,0143%;
b) condenar o R. Condomínio do Prédio Aquazul da Praia da Rocha a pagar a pensão anual e vitalícia de € 3.327,48, devida desde 17.10.2019, acrescida dos juros de mora contados à taxa legal de 4%;
c) condenar o R. a pagar a quantia de € 2.210,41, a título de remanescente da indemnização pelas incapacidades temporária, absoluta e parcial, sofridas, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, contados sobre cada importância diária desde o dia respectivo em que é devida; e,
d) condenar o R. a pagar a quantia de € 88,25, relativa a despesas decorrentes do acidente (médicas, medicamentosas e de tratamentos), acrescida de juros de mora, à taxa anual de 4%, contados desde a data da notificação para contestar e até efectivo e integral pagamento.

Inconformado, o R. recorre e conclui:
I. Vem o presente recurso interposto da sentença pelo qual o tribunal a quo julgou procedente a acção emergente de acidente de trabalho.
II. O Apelante não se conforma com a decisão.
III. Por um lado, o Apelante entende que os factos foram julgados incorrectamente, face à produção de prova realizada em sede de audiência de discussão e de julgamento.
IV. Por outro lado, considera que mesmo dos factos julgados provados, mas também não provados, a conclusão teria de ser diversa: a de que o Sinistrado não sofreu um acidente que possa ser qualificado como de trabalho.
V. É que dos factos provados resulta, mormente do facto provado n.º 6, que o trabalhador caiu do telhado do edifício.
VI. Porém, quer da inspecção ao local – bem assim, do registo fotográfico junto aos autos – quer da prestação das declarações da legal represente do Apelante, foi possível retirar que o telhado de que caiu o Sinistrado não pertence ao condomínio.
VII. Na verdade, o Sinistrado caiu de um telhado de chapa, que serve de cobertura a um Anexo que está afecto à fracção autónoma onde está inserido o “Restaurante Mira”.
VIII. Anexo, esse, construído pelo próprio dono do restaurante.
IX. Como tal, o telhado em causa não se subsume à al. b) do art. 1421.º do CC.
X. O telhado de que caiu o Sinistrado, constitui uma parte integrante de uma inovação, levada a cabo pelo dono do “Restaurante Mira”.
XI. Nesse sentido, o que deverá constar do ponto 6 dos factos dados como provados pelo Tribunal a quo deverá ser o seguinte: “[d]e forma não concretamente apurada, o autor caiu do telhado que serve de cobertura ao anexo da fracção autónoma onde está instalado o “Restaurante Mira”, construído pelo respectivo dono, para o piso térreo, de uma altura de cerca de 3 metros”.
XII. Por outro lado, considerando os factos dados como provados, não se nos afigura possível concluir como na sentença: de que o trabalhador sofreu um acidente de trabalho.
XIII. O Trabalhador interrompeu a sua actividade para auxiliar dois outros trabalhadores, estranhos ao condomínio, que pretendiam colocar um cartaz publicitário relativo a um Restaurante.
XIV. Restaurante, esse, que não pertence ao condomínio, antes sim a um dos condóminos.
XV. Do que se apurou, o Trabalhador apenas pretendeu fornecer o seu escadote aos trabalhadores.
XVI. Para tanto, subiu à cobertura, através da plataforma existente, e entregou o escadote aos trabalhadores que lá se encontravam.
XVII. Sem que se saiba porquê, desceu, entretanto, ao Telhado do Anexo afecto à fracção autónoma do Restaurante e caiu para o piso térreo.
XVIII. Daqui resulta, de forma inequívoca, que o Sinistrado interrompeu a sua actividade laboral.
XIX. Que o fez com o intuito de emprestar um escadote a terceiros, estranhos ao condomínio.
XX. Que, por seu turno, prestavam um serviço a um privado.
XXI. Fê-lo por sua iniciativa e sem que a sua entidade patronal o tivesse ordenado.
XXII. Para tanto, acedeu a uma zona comum que nunca cuidou e/ou tratou e acabou num telhado sem que se tenha apurado o motivo.
XXIII. O sinistro ocorreu num local que estava fora do controlo do condomínio.
XXIV. O Sinistrado não estava a desempenhar quaisquer funções ligadas ao condomínio.
XXV. O Sinistrado acedeu à cobertura para auxiliar terceiros numa tarefa que nada tinha que ver com o edifício, antes sim para ajudar terceiros estranhos ao condomínio, e em benefício de outrem – Restaurante Mira.
XXVI. O infortúnio não se verificou no seguimento de qualquer ordem ou consentimento do empregador.
XXVII. Não foi consequência de um trabalho relacionado – directa ou indirectamente – com a actividade desenvolvida pelo Sinistrado.
XXVIII. Nem se verificou na execução de uma tarefa espontânea de que pudesse o empregador legitimamente retirar qualquer benefício.
XXIX. In casu, além de não se verificar uma relação entre a conduta do Sinistrado que motivou o acidente e as suas funções (não há conexão com o trabalho), também não se constata que o acidente tenha ocorrido no local e no tempo de trabalho.
XXX. Deverá, por isso, a sentença ser revogada e substituída por outra que absolva o Demandado do pedido.

Na respectiva resposta, o sinistrado sustenta a manutenção do julgado.
Dispensados os vistos, cumpre-nos decidir.

Da impugnação da matéria de facto:
Afirma o Recorrente que ocorreu errada apreciação da matéria de facto, uma vez que outra deveria ser a redacção do ponto 6 do elenco fáctico, ali se devendo mencionar que a queda ocorreu “do telhado que serve de cobertura ao anexo da fracção autónoma onde está instalado o Restaurante Mira, construído pelo respectivo dono”.
No entanto, como bem se nota na sentença recorrida, “nenhuma testemunha inquirida em audiência presenciou a queda e as circunstâncias que a rodearam, só chegando ao local após a sua verificação e perante o pedido de socorro do sinistrado.”
Do depoimento do sinistrado, o tribunal recorrido não logrou concluir o exacto modo como se deu a queda, o que pode ser atribuível aos efeitos traumáticos do sinistro.
De todo o modo, do ponto 5 já resulta que o trabalhador subiu à cobertura do restaurante, e foi do respectivo telhado que ocorreu a queda, como consta do ponto 6.
Neste contexto, este tribunal de recurso considera não existirem fundamentos suficientes para alterar a decisão recorrida, face aos critérios prescritos no art. 662.º n.º 1 do Código de Processo Civil – a prova impor “decisão diversa” – pelo que a impugnação fáctica não procede.

Fica assim estabelecida a matéria de facto:
1. I… nasceu no dia 09-02-1968.
2. O autor foi admitido em 2010 ao serviço do réu “Condomínio do Prédio Aquazul da Praia da Rocha”, como empregado polivalente para, sob a orientação e direcção deste, desempenhar funções de porteiro, vigilante e serviço de limpeza, fazendo ainda alguns serviços de manutenção geral do edifício e do espaço envolvente (trabalhos esporádicos de pedreiro, pinturas e jardinagem).
3. No dia 14-05-2019, pelas 16:45 horas, quando se encontrava a trabalhar, o autor avistou dois trabalhadores de uma empresa externa que pretendiam colocar um cartaz publicitário do «Restaurante Mira» na plataforma do telhado do edifício, que fica imediatamente por cima deste estabelecimento de restauração, que funciona numa fracção do rés-do-chão do prédio.
4. Tendo-se apercebido que o escadote que se preparavam para utilizar estava em mau estado, o autor prontificou-se a emprestar-lhes um escadote que lhe pertencia e que habitualmente utilizava nos serviços de manutenção do edifício.
5. Para esse efeito, o autor foi buscar o escadote à casa da bomba de água do edifício e subiu à cobertura do restaurante, através da plataforma existente, e entregou-o aos trabalhadores que lá se encontravam a montar o referido cartaz/painel publicitário.
6. De forma não concretamente apurada, o autor caiu do telhado do edifício, que fica imediatamente por cima do «Restaurante Mira», para o piso térreo, de uma altura de cerca de 3 metros.
7. Em consequência da queda o autor sofreu fractura do colo do fémur esquerdo, traumatismo crânio-encefálico e traumatismo do punho, anca e pé esquerdos.
8. Quando caiu, o autor ficou inconsciente, tendo sido assistido pelo INEM e transportado para o Centro Hospitalar Universitário do Algarve – Hospital de Portimão.
9. Nesta unidade de saúde, o autor foi operado a uma fractura do colo do fémur esquerdo, com colocação de uma prótese, e ficou internado durante cerca de 3 semanas.
10. Dessas lesões resultou as seguintes sequelas: rigidez do punho esquerdo prótese total da anca esquerda, com limitação da respectiva mobilidade e acentuada limitação da articulação subastragalina esquerda.
11. Desse acidente resultou para o autor:
a) uma Incapacidade Temporária Absoluta (ITA) de 15-05-2019 a 16-10-2019 (155 dias);
b) A partir de 16-10-2019, data da alta clínica, uma Incapacidade Permanente Parcial (IPP) de 44,0143%
12. Nas circunstâncias descritas, o autor não tinha recebido da sua entidade empregadora qualquer ordem ou instrução para emprestar a terceiros o referido escadote ou para subir ao telhado do edifício.
13. Em 14-05-2019, ao serviço de “Condomínio do Prédio Aquazul da Praia da Rocha”, o autor auferia a retribuição anual de € 10.800,00 [(retribuição base: € 600,00×14) + (suplemento: € 200,00×12)].
14. Nessa data, a responsabilidade infortunística por acidentes de trabalho ocorridos com o autor não se encontrava transferida para qualquer entidade legalmente autorizada a celebrar seguros de acidentes de trabalho.
15. Para tratamento das lesões sofridas, o autor suportou o montante global de € 88,25 em medicamentos, consultas e tratamentos.
16. O autor recebeu do réu a quantia de € 1.000,00 relativa a indemnização pelo período de incapacidade temporária sofrido.

APLICANDO O DIREITO
Da caracterização do acidente
Carlos Alegre[1], discutindo a questão da relação entre o evento lesivo e o trabalho, nota o seguinte:
«Discutiu-se muito, quer na Doutrina, quer na Jurisprudência, a necessidade da causa da lesão ser ou não um risco inerente ao trabalho, ou seja, da necessidade da existência de um nexo de causalidade entre o trabalho e o evento lesivo.
A necessidade desse nexo foi defendida com êxito enquanto se raciocinou em termos de teoria do risco profissional, em que se exigia um risco específico de natureza profissional, uma relação de causa e efeito entre o acidente (evento lesivo) e o trabalho em execução. Apontaram-se já as deficiências na aplicação prática dessa teoria, deixando de contemplar muitas situações que, claramente, reclamavam reparação. Basta pensar-se, por exemplo, que a verificação fortuita de um acidente (isto é, independente do trabalho em execução), no tempo e no lugar do trabalho, segundo esta posição, não implica, necessariamente, essa relação de causalidade e, por isso, não qualifica o acidente como de trabalho.
A desnecessidade do nexo de causalidade entre o evento lesivo e o trabalho em execução é uma decorrência natural da teoria do risco económico ou risco da autoridade, em que o risco assumido não tem a natureza do risco específico, mas a de um risco genérico, ligado ao conceito amplo de autoridade patronal.
Nascida sob o signo desta teoria, à luz do espírito que a enforma, qualquer interpretação que pudesse ser dada à Base V, da Lei n.º 2127/65 e, agora, ao artigo 6.º da Lei actual, tem que assentar em que a autoridade do empregador, sendo corolário da relação de subordinação (jurídica e/ou económica) do trabalhador, substitui a simples relação entre o trabalho e o acidente.
Em França, por exemplo, a Cour de Cassation, tem vindo, explicitamente, a decidir que constitui “un accident du travail, tout accident survenu à un travailleur alors qu’il est soumis à l’autoritè ou à la sourvelliance de son employer” (…).»
O art. 8.º n.º 1 da LAT (Lei 98/2009, de 4 de Setembro), consagra a teoria do risco económico ou de autoridade, ao considerar acidente de trabalho todo o evento lesivo ocorrido no local e no tempo de trabalho, não exigindo, assim, uma relação de causa e efeito entre o acidente e o trabalho.
Mas a lei vai mais longe, ao equiparar a “tempo e lugar de trabalho” outras situações, como a “execução de serviços espontaneamente prestados e de que possa resultar proveito económico para o empregador” – art. 9.º n.º 1 al. b) da LAT.
No caso, está demonstrado que o sinistrado exercia as funções de empregado polivalente, desempenhando funções de porteiro, vigilante e serviço de limpeza, fazendo ainda alguns serviços de manutenção geral do edifício e do espaço envolvente (trabalhos esporádicos de pedreiro, pinturas e jardinagem).
Neste quadro, não se pode afirmar que o serviço espontaneamente prestado pelo sinistrado não se enquadrasse nas suas funções, pois realizando também trabalhos de manutenção geral do edifício e do espaço envolvente, cabia-lhe verificar se os trabalhos de colocação do cartaz publicitário na plataforma do telhado eram executados de forma a não causar dano ao edifício.
Neste aspecto, acompanhamos plenamente as judiciosas observações da sentença recorrida:
“Neste contexto de funções muito amplas e de uma já longa relação laboral, potenciadora de uma relação de estreita confiança, o autor assumia-se como um verdadeiro zelador das áreas comuns do prédio, situação que nenhuma oposição vinha a merecer por parte da sua entidade empregadora de que – repete-se – beneficiava muito legitimamente.
Por tal motivo, não se estranha que, perante uma intervenção de terceiros que pretendiam implantar numa zona comum do prédio um painel publicitário referente a um dos condóminos, o autor se tivesse abeirado, com o propósito de se inteirar sobre a natureza da intervenção a realizar e de prestar a colaboração de que viessem a necessitar.
Com efeito, todos esses elementos que se identificaram, conjugados entre si, permitem a conclusão de que o autor não se afastou, relevantemente, do desempenho habitual dos seus afazeres profissionais, quer sob o ponto de vista de um critério de conexão espacial, quer sob o ponto de vista de uma conexão funcional com as mesmas.
Só assim não seria se o autor tivesse recebido da sua entidade empregadora ordens ou instruções expressas para não prestar qualquer auxílio aos ditos funcionários, o que manifestamente não sucedeu.”
Por tais motivos, e porque outras questões não são colocadas nas alegações de recurso, resta confirmar a – de resto, muito bem fundamentada – sentença recorrida.

DECISÃO
Destarte, nega-se provimento ao recurso e confirma-se a sentença recorrida.
As custas pela Recorrente.

Évora, 27 de Outubro de 2022

Mário Branco Coelho (relator)
Paula do Paço
Emília Ramos Costa
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[1] In Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, 2.ª ed., Almedina, 2005, pág. 41.