Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
466/13.9GGSTB-B.E1
Relator: ANA BARATA BRITO
Descritores: PENA DE PRESTAÇÃO DE TRABALHO A FAVOR DA COMUNIDADE
REVOGAÇÃO
LEI PENAL MAIS FAVORÁVEL
REGIME DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO
Data do Acordão: 10/18/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO EM PARTE
Sumário:
I - A entrada em vigor da Lei n.º 94/17, na pendência do recurso, obriga à ponderação do regime penal concretamente mais favorável, pois o artigo 43.º do CP, norma que disciplina o regime de permanência na habitação, veio prever no n.º 1, al. c), a execução em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância da “pena de prisão não superior a dois anos, em caso de revogação de pena não privativa de liberdade…”.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Criminal:
1. No Processo n.º 466/13.9GGSTB-B, do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, foi proferido despacho em que se decidiu revogar a pena substitutiva de prestação de trabalho a favor da comunidade e, em consequência, foi determinado o cumprimento, pela arguida IC, da pena de 8 meses de prisão, ao abrigo do disposto no artigo 59.º, n.º 2, alínea c) do Código Penal.

Inconformada com o decidido, recorreu a arguida, concluindo:
“A) A arguida sempre se mostrou disponível para cumprir o trabalho a favor da comunidade.

B) Não é a arguida responsável pelo atraso dos serviços de reinserção social.

C) Neste momento a arguida está impossibilitada de cumprir o trabalho a favor da comunidade, uma vez que está em regime de permanência na habitação.

AA) Deverá ser feito o cúmulo jurídico das duas penas existentes.

BB) Nos termos do artigo 44º do Código Penal, ser de aplicar à arguida a manutenção do regime de permanência na habitação.”

O Ministério Público respondeu ao recurso pronunciando-se no sentido da improcedência, e concluindo:

“1. No presente recurso a recorrente/arguida omitiu nas suas conclusões (e na motivação) a indicação das normas jurídicas violadas, pelo que deve o recurso ser rejeitado, ou caso assim não se entenda, deve ser convidado ao aperfeiçoamento, nos termos do disposto no artigo 417.º, n.2 3do Código de Processo Penal.

2. Bem andou o Tribunal a quo ao determinar a revogação da pena substitutiva de 24 horas de trabalho a favor da comunidade, pela pena de 8 meses de prisão, uma vez que, cerca de um ano após esta condenação (antes ainda do início da execução da pena de substituição), a arguida praticou um crime de condução sem habilitação legal, no qual foi condenada em pena de prisão a cumprir em regime de permanência na habitação.

3. A prática deste novo ilícito criminal abalou irremediavelmente o juízo de prognose favorável efetuado, e demonstrou que as finalidades que estiveram na base da decisão de substituição da pena de prisão não puderam ser alcançadas.

4. Recorde-se que ainda que arguida detém 7 condenações anteriores e 2 das quais pela prática de factos como os dos presentes autos.

5. Não se verificam os requisitos exigidos pelo artigo 78.2, n.2 1 do Código Penal, quanto ao cúmulo jurídico, porquanto a arguida praticou o crime de condução sem habilitação legal após o trânsito em julgado da condenação proferida no âmbito dos presentes autos (e não em momento anterior à condenação como exige o artigo 78.º Código Penal.”

Neste Tribunal, a Sra. Procuradora-geral Adjunta emitiu parecer no sentido de que a decisão recorrida deve ser revogada e substituída por outra que designe data para audição presencial da arguida nos termos do artº 495, nº 2 do Cód. Proc. Penal.

Não houve resposta ao parecer. Colhidos os vistos, teve lugar a conferência.

2. O despacho recorrido é do seguinte teor:
“Por sentença proferida nos presentes autos e transitada em julgado em 24.02.2016, foi a arguida IC condenada, pela prática de um crime de furto, na pena 8 meses de prisão, substituída por 240 horas de prestação de trabalho a favor da comunidade.

A fls. 491 e ss., o Ministério Público promoveu a revogação da pena de prestação de trabalho a favor da comunidade aplicada ao arguido e que se ordene o cumprimento da pena de prisão que lhe foi imposta na sentença – o que reiterou aquando da audição de condenado.

Procedeu-se à audição de condenado, ao abrigo do disposto no artigo 495º, nº 2 ex vi do artigo 498º, nº 3 do Código de Processo Penal.

Cumpre apreciar e decidir.
Dispõe o artigo 59º, nº 2 do Código Penal que “O tribunal revoga a pena de prestação de trabalho a favor da comunidade e ordena o cumprimento da pena de prisão determinada na sentença se o agente, após a condenação:

a) Se colocar intencionalmente em condições de não poder trabalhar;
b) Se recusar, sem justa causa, a prestar trabalho, ou infringir grosseiramente os deveres decorrentes da pena a que foi condenado; ou
c) Cometer crime pelo qual venha a ser condenado, e revelar que as finalidades da pena de prestação de trabalho a favor da comunidade não puderam, por meio dela, ser alcançadas”.

Por seu turno, estatui o artigo 498º, nº 1 do Código de Processo Penal que “O tribunal pode solicitar informação aos serviços de reinserção social para o efeito do disposto no n.º 1 do artigo 59.º do Código Penal”.

Analisado o certificado de registo criminal da arguida e a certidão judicial junta a fls. 477 e ss., verifica-se que esta foi julgada e condenada no processo n.º 77/17.0GCSTB, do Juízo Local Criminal do Tribunal Judicial de Setúbal – Juiz 1, por sentença transitada em julgado em 12.05.2017, por factos reportados a 17.03.2017, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 8 meses de prisão, a cumprir regime de permanência na habitação com vigilância eletrónica.

Constata-se, assim, que a arguida cometeu novo crime, cerca de um ano após o trânsito em julgado da sentença condenatória proferida nos presentes autos.

As condutas anteriores e agora a posterior por parte da arguida (com condenação em pena privativa da liberdade) são mais do que suficientes para elucidar o Tribunal da concreta ineficácia, no caso sub judice, das penas de substituição aplicadas pelos tribunais, em particular nestes autos, beneficiando a arguida, evitando uma reclusão prisional efetiva, fazendo-lhe sucessivos e renovados juízos de prognose favoráveis.

Entende-se que nenhum elemento existe no processo que demonstre que a arguida, de forma efetiva, interiorizou o desvalor das suas ações, de modo que o Tribunal conseguisse formular um juízo de prognose positivo, bem pelo contrário.

A mera ameaça de prisão, com a substituição pela prestação de trabalho comunitário, não realizou de forma adequada as finalidades da punição, não dissuadindo a arguida da prática de novos ilícitos criminais, sendo revelador de uma postura em desconformidade com a Ordem Jurídica, demonstrando uma personalidade alheadora das regras sociais e jurídicas que nos regem.

Com as suas condutas (delituosas e reiteradas), após a condenação nestes autos sofrida, a arguida revelou que as finalidades de reprovação e de prevenção que estiveram subjacentes à aplicação da pena substitutiva de prestação de trabalho a favor da comunidade não puderam, por meio dela, ser satisfeitas.

Pelo exposto, declaro revogada a pena substitutiva de prestação de trabalho a favor da comunidade aplicada nestes autos à arguida IC e, em consequência, determino cumprimento da pena de 8 meses de prisão, fixada por sentença, a fls. 302, ao abrigo do artigo 59º, nº 2, al. c) do Código Penal.

Notifique, e após trânsito, passe mandados de detenção e condução a Estabelecimento Prisional.”

3. Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, a questão a apreciar circunscreve-se à sindicância dos fundamentos da decisão de revogação da pena de prestação de trabalho a favor da comunidade inicialmente aplicada à arguida na sentença.

Perante nova recidiva criminosa no decurso do período de cumprimento da pena de substituição - pena de substituição que havia sido aplicada numa situação limite (ou de fronteira) dados os antecedentes criminais da arguida -, o tribunal considerou que resultaram frustradas as expectativas colocadas na pena de substituição. E procedeu por isso à revogação, por via do despacho recorrido, ordenando o cumprimento da prisão.

Adianta-se que o despacho seria inteiramente de confirmar, não fora a sucessão de lei penal no tempo e a alteração entretanto operada no então art. 44º do CP e actual art. 43º do CP.

Argumentou a arguida, num recurso com graves deficiências (designadamente, como nota o Ministério Público, mas não só, por ausência de indicação nas conclusões das normas jurídicas violadas) que “tem estado a aguardar que lhe fosse comunicado o início do trabalho a favor da comunidade e que, o atraso no cumprimento das horas de trabalho não são da sua responsabilidade”, que “não pode ser prejudicada pelo facto de, na altura em que praticou o crime de condução de habilitação legal, o que ocorreu em 17.03.2017, ou seja, um ano após o trânsito em julgado da condenação proferida nos presentes autos (que ocorreu em 24.02.2016), ainda não lhe ter sido definido o plano”, que se encontra a cumprir pena em regime de permanência de habitação (no âmbito do processo n.º ---/17.0GCSTB), o que impossibilita o cumprimento de trabalho a favor da comunidade”, que “lhe deve deve ser feito o cúmulo jurídico das referidas penas”.

A isso contrapôs o Ministério Público, após pronúncia no sentido da rejeição e sempre com uma pertinência que justifica integral acompanhamento aqui, que na sentença condenatória foram ponderados todos os circunstancialismos, entre os quais o facto de a arguida ter sofrido sete condenações anteriores, duas delas por crimes de igual natureza (furto); que perante a postura de desconformidade com a ordem jurídica, o Tribunal considerou que apenas uma pena privativa da liberdade acautelaria de forma suficiente as finalidades da punição e fixou uma pena de prisão de oito meses; que tendo ponderado e afastado justificadamente todas as outras penas de substituição, dado que no relatório social da arguida se ter considerado que “se encontram razoavelmente reunidas as condições para o cumprimento de uma pena na comunidade”, substituiu a pena de 8 meses de prisão aplicada à arguida por 240 horas de prestação de trabalho a favor da comunidade.

Refere o Ministério Público que “o Tribunal a quo ponderou devidamente todas as circunstâncias e que, apesar dos antecedentes criminais da arguida, decidiu, ainda assim, e agarrando-se ao único ponto positivo no emaranhado de registos negativos que constituem a sua história de vida: o relatório social, dar mais uma oportunidade à arguida de compreender o desvalor das suas condutas e da necessidade de adotar um comportamento social conforme com a Ordem Jurídica, através da aplicação de uma pena de substituição (de trabalho a favor da comunidade) da pena de prisão efetivamente aplicada. Pese embora este voto de confiança a arguida não soube aproveitar e voltou a delinquir.”

É de reconhecer que, no presente contexto, a nova recidiva criminosa que conduziu à revogação da pena de substituição revela uma frustração total das expectativas (já limitadas) colocadas na pena de substituição. O comportamento posterior da arguida demonstra claramente que a prestação de trabalho a favor da comunidade não garantiu, nem garante, as finalidades da punição.

Assim, a revogação está amplamente sustentada no despacho, tanto factual como juridicamente, despacho que não é beliscado pela argumentação do recorrente. Desde logo porque não foi nenhuma situação de incumprimento do plano de trabalho comunitário que motivou a revogação. Plano cujo atraso na elaboração também não pode servir de justificação para a delinquência posterior.

Assim, nenhuma argumentação colhe que conduza à substituição do despacho recorrido por outro a manter a pena de substituição aplicada na sentença, como pretendido.

A arguida, um ano após a condenação proferida nos autos, voltou a delinquir. E o art. 59º, nº.2, al. c) do CP preceitua que “o tribunal revoga a pena de prestação de trabalho a favor da comunidade e ordena o cumprimento da pena de prisão determinada na sentença se o agente, após a condenação cometer crime pelo qual venha a ser condenado, e revelar que as finalidades da pena de prestação de trabalho a favor da comunidade não puderam, por meio dela, ser alcançadas”.

É certo que, à semelhança do que sucede com as outras penas de substituição previstas na lei, não basta o cometimento de um novo crime para que seja revogado o regime da prestação de trabalho a favor da comunidade. Inexiste uma revogação automática das penas de substituição, como temos afirmado em inúmeros acórdãos (como o de 25.09.2012, citado pelo recorrido na resposta). Cumpre aferir sempre, e em concreto, se as finalidades da pena ainda podem ser, por meio dela, asseguradas.

Nesse acórdão referimos que, nos casos de recidiva criminosa no decurso do prazo de cumprimento de penas de substituição, tendencialmente será apenas a condenação em pena efectiva de prisão a revelar que as finalidades que estiveram na base da decisão prévia não puderam ser alcançadas. O Tribunal da segunda condenação, ao optar por nova pena de substituição, fá-lo conhecendo a anterior decisão, e possui mais elementos, e mais atualizados, sobre a personalidade do arguido. Pelo que se encontra seguramente mais bem posicionado para fazer uma apreciação global da situação em concreto.

Daqui decorre que o juízo efectuado por este tribunal (da condenação posterior) deve ser tido em conta pelo tribunal que decide sobre a eventual revogação de uma pena de substituição. Assim o temos dito em inúmeras decisões e repetimo-lo aqui.

A arguida cometeu novo ilícito criminal após a condenação proferida nos autos, tendo-lhe sido aplicada uma pena de prisão.

Justifica-se em concreto, por tudo o que se disse já, a revogação da pena de trabalho a favor da comunidade. No entanto, o regime de cumprimento fixado na condenação posterior foi o de permanência na habitação e não o cumprimento em estabelecimento prisional. E este é um elemento importante de ponderação que, associado à lei no tempo, será determinante na decisão do recurso.

A entrada em vigor da Lei 94/17, na pendência do recurso, obriga à ponderação do regime penal concretamente mais favorável (art. 2º, nº 4, do CP). Pois o art. 43º do CP, norma que disciplina o regime de permanência na habitação, veio prever no nº 1, al. c), a execução em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância da “pena de prisão não superior a dois anos, em caso de revogação de pena não privativa de liberdade…”.

E esta execução é agora de determinar “sempre que o tribunal concluir que por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da execução da pena de prisão e o condenado nisso consentir”.

O tribunal que julgou a arguida em último lugar apostou ainda nesta forma de cumprimento da prisão, como se disse. Também a arguida a veio pedir em recurso, pelo que é de considerar que prestou o consentimento.

Está já a cumprir domiciliarmente uma outra pena de prisão, a que esta deverá suceder então, visto que é a forma de execução que se mostra em concreto mais adequada.

Na verdade, e quanto à realização do pretendido cúmulo jurídico entre a pena aplicada nos autos, agora a executar domiciliarmente com vigilância, e a aplicada no processo n.º --/17.0GCSTB que a arguida se encontra a cumprir, a pretensão formulada no recurso é ilegal.

Só o concurso de crimes dá lugar a cúmulo jurídico de penas. E a essa situação de concurso (que não ocorre aqui) contrapõe-se a da sucessão de crimes. Esta dá lugar a uma sucessão de penas.

O art. 78º, nº 2 do CP, que regula o conhecimento superveniente do concurso, preceitua que "Se, depois de uma condenação transitada em julgado, se mostrar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes, são aplicáveis as regras do artigo anterior, sendo a pena que já tiver sido cumprida descontada no cumprimento da pena única aplicada ao concurso de crimes". O caso presente não se enquadra na previsão da norma, porquanto a arguida praticou o crime de condução sem habilitação legal após o trânsito em julgado da condenação proferida nos autos (e não em momento anterior à condenação, como exige o artigo 78.º CP).

Por último, de referir que não se verifica a nulidade apontada pela Senhora Procuradora-geral Adjunta no parecer, pois o tribunal procedeu efectivamente à audição presencial da arguida (acompanhada do defensor) antes de proferir o despacho que revogou a pena de substituição. É certo que não convocou o técnico da DGRS para estar também presente nessa audição. Mas atendendo às concretas circunstâncias do caso, designadamente não estando em causa nenhuma situação de incumprimento de plano (que nem chegou a ser elaborado) e tendo os autos já um relatório social da arguida elaborado por técnico da DGRS, resulta claro que dessa ausência nada resultou em prejuízo da defesa. Note-se que esta falta nem sequer foi mencionada no recurso.

4. Face ao exposto, acordam na Secção Criminal em julgar parcialmente procedente o recurso, mas por diferentes fundamentos, alterando-se o despacho recorrido na parte em que ordenou o cumprimento da pena prisão no estabelecimento prisional, antes se determinando o cumprimento da pena de prisão em regime de permanência na habitação, nos termos do art. 43º, nº1, al. c) do CP.

Sem custas.

Évora, 18.10.2018

(Ana Maria Barata de Brito)
(Maria Leonor Vasconcelos Esteves)