Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2294/21.9PAPTM-C.E1
Relator: EDGAR VALENTE
Descritores: MEDIDA DE COAÇÃO
IMUTABILIDADE DA DECISÃO
Data do Acordão: 06/21/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: No caso dos autos, para fundamentar o seu pedido de alteração da medida de coação de prisão preventiva aplicada, o recorrente não invoca quaisquer circunstâncias que tenham ocorrido ex novo após o despacho que decretou a medida, sendo, nuclearmente, tal despacho que o recorrente vem agora colocar em crise. As circunstâncias conhecidas ou cognoscíveis naquele momento, que podem ser sindicadas nomeadamente através de recurso daquela decisão não podem vir a ser invocadas posteriormente para fundamentar uma alteração do estatuto coactivo, sob pena de violação do caso julgado que se formou sobre tal decisão.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I - Relatório.

Nos autos de inquérito n.º 2294/21.9PAPTM (actos jurisdicionais) do Juízo de Instrução Criminal de Portimão (J2) do Tribunal Judicial da Comarca de Portimão, o arguido AA interpôs recurso do despacho do Sr. Juiz de Instrução Criminal que decidiu manter a medida de coacção de prisão preventiva que lhe foi aplicada.

Inconformado, o arguido apresentou recurso contra tal decisão, extraindo da motivação as seguintes conclusões (transcrição):

“1 - O Arguido, ora Recorrente requereu a substituição da medida de coação de prisão preventiva por obrigação de permanência na habitação.

2 - Por despacho datado de 10-02-2022 o tribunal "a quo" ponderando os princípios da legalidade, da adequação e da proporcionalidade e, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 191.°, 192.°, 193.°, 202.°, n.º 1, alíneas a) e b), por referência ao artigo 1.°, alínea m), 204.°, alíneas a) e c), 212.0 "a contrario" e 213.º, n.º 1, alínea a) todos do Código de Processo Penal decidiu manter a medida de coação de prisão preventiva aplicada ao arguido AA.

3 - O arguido ora Recorrente não se conforma com o despacho de que ora se recorre em primeiro lugar porque o tribunal "a quo" não ponderou que o arguido desde o primeiro interrogatório assumiu a responsabilidade nos atos indiciados referindo desde logo e sem que algum indício resultasse que o estupefaciente apreendido era parcialmente para seu consumo e outra parte para comerciar para sustentar o seu vício.

4 - Assim como não se ponderou que o arguido é toxicodependente.

5 - O despacho recorrido viola a nossa Constituição, nomeadamente o disposto no artigo 32.º 65.º e bem assim o nosso direito penal substantivo, o artigo 212.º, n.º 3 do Código de Processo Penal.

6 - O despacho recorrido é também violador de direitos fundamentais como são o direito à saúde.

7 - Termos em que deverá o despacho recorrido ser revogado por violação do disposto nos artigos 32.° e 65.° da nossa Constituição e do artigo 6.° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, dos direitos fundamentais.

8 - O arguido, ora Recorrente não se conforma com o despacho recorrido porquanto o tribunal" a quo" limitou-se a concluir que não se verifica uma atenuação das exigências cautelares, não se encontrando o mesmo devidamente fundamentado.

9 - O arguido não se conforma com o despacho recorrido pois a substituição da prisão preventiva pela prisão domiciliária, ou seja obrigação da permanência na habitação com vigilância eletrónica é mais do que suficiente para garantir as exigências cautelares.

10 - A Permanência na habitação com vigilância eletrónica (artigo nº 201°, nº 1 e 201º, nº 3 do C.P.P.) respeita todos os princípios já enunciados e elimina os perigos enunciados.

11 - A Prisão Preventiva é a medida de coação mais gravosa, mas o Juiz antes da sua aplicação, está obrigado a ponderar se as demais medidas de coação são suficientes para acautelar os perigos, o que não sucedeu nos presentes autos.

12 - Na verdade com a obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica deixam de existir a possibilidade de ocorrer o perigo da continuação da atividade criminosa, o perigo da perturbação do decurso do Inquérito e o perigo de perturbação na ordem e tranquilidade pública.

13 - O despacho recorrido ao não aplicar a medida de coação de obrigação de Permanência na Habitação com vigilância eletrónica violou os princípios da necessidade e Adequação nomeadamente artigos 191° 193° n.º 1, 2, 3 201º e 202º do CPP.

14 - O tribunal "a quo" ao não substituir a prisão preventiva pela obrigação de Permanência na Habitação com vigilância eletrónica violou os mesmos princípios e o artigo 193° nº3 do CPP, as medidas de coação a aplicar em concreto devem ser as necessárias e adequadas às exigências cautelares.

15 - O despacho recorrido viola ainda os princípios da proibição dos excessos, da necessidade e da proporcionalidade e bem assim o princípio da subsidiariedade, artigo nº 193° nº 2 e nº 3 do C.P.P., ou seja as medidas de coação detentivas só podem ser aplicadas quando as outras se revelam insuficientes e no caso em apreço a obrigação de permanência na habitação seria mais que suficiente para afastar os perigos alegados.

16 - Termos em que deverá o despacho recorrido ser revogado e deverá ser proferido outro que substituía a medida de coação de prisão preventiva pela medida de coação de obrigação de permanência na habitação.

17 - Sem prescindir, o despacho recorrido viola a interpretação dos artigos 202.º e 204.° do Código de Processo Penal.

18 - Motivos pelos quais requer-se a substituição da medida de coação de prisão preventiva por outra medida de coação menos gravosa.

19 - Termos em que e face ao supra exposto deverá o despacho ora recorrido ser revogado e consequentemente deverá ser substituída a medida de coação de prisão preventiva por obrigação de permanência na habitação.”

Termina pedindo:

“Nestes termos e nos melhores de direito deverá V. Exa. dar provimento ao presente recurso e revogar o despacho recorrido e consequentemente substituir a medida de coação de prisão preventiva pela obrigação de permanência na habitação, assim se fazendo Justiça!”

O recurso foi admitido.

O MP na 1.ª instância respondeu ao recurso, concluindo do seguinte modo (transcrição):

“1.º - Interpôs o arguido recurso do despacho proferido pelo Mmo. Juiz de Instrução Criminal que manteve a aplicação ao arguido da medida de coação de prisão preventiva, por considerar, em suma, que não se verificam os pressupostos que determinam a manutenção de tal medida, devendo ao invés ser aplicada a medida de coação de obrigação de permanência na habitação sendo, por conseguinte, a mesma excessiva e desproporcional. Alega ainda, que o despacho que manteve a medida de coação aplicada em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido, não se encontra devidamente fundamentado e viola o direito à saúde do arguido.

2.º -O arguido encontra-se fortemente indiciado da prática de um crime de tráfico de estupefacientes previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1 do DL n.º 15/93 de 22 de janeiro.

3.º - O artigo 212.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, consagra a possibilidade de substituição da medida de coação aplicada por outra menos gravosa, logo que, se verifique uma atenuação das exigências cautelares prevista no artigo 204.º do Código de Processo Penal, sendo este, aliás o entendimento perfilhado pelo Supremo Tribunal de Justiça no Acordão de Fixação de Jurisprudência n.º 3/96.

4.º - Ora, o recorrente em ponto algum do seu recurso invoca a superveniência de elementos susceptíveis de virem a ser tidos como atenuativos das exigências cautelares.

5.º - O arguido assume ser toxicodependente, não possuir fonte de rendimentos estável, tendo estabelecido contacto e conhecimentos que lhe permitem prosseguir a atividade de tráfico de estupefacientes que como é sabido proporciona lucros fácies e avultados, e perante a personalidade do arguido é patente o seu regresso ao tráfico, nem que seja para prover ao seu próprio consumo de tais substâncias, pelo que se verifica o perigo de continuação da atividade criminosa.

6.º - O recorrente não aduziu fundamentos que esbatessem o perigo de continuação da atividade criminosa, tendo o tribunal ad quo concluído de que, não obstante, de o arguido deter de apoio familiar, tal apoio, não se consubstancia numa razão que só de per si permita mitigar as exigências cautelares, visto que não impediu o arguido de anteriormente praticar tal facto ilícito.

7.º - O arguido não tem estabilidade profissional e residência em território nacional, face à elevada moldura penal abstrata (de 5 a 15 anos de prisão), não deixa de constituir um incentivo para que em liberdade, se municie das condições necessárias para se furtar à ação da justiça, pelo que se verifica perigo de fuga.

8.º - O arguido detinha consigo no momento da detenção o montante total de € 13.505 (treze mil, quinhentos e cinco euros), 549,44 gramas de liamba e 512,71 grama de haxixe.

9.º - Atenta a quantidade de produtos estupefaciente e quantias monetárias apreendidas, existe perigo para a realização e manutenção de prova, mormente, contatos com os seus clientes (potenciais testemunhas) e desta forma deturpar a dimensão da · dimensão do negócio de tráfico de estupefaciente de que detêm.

10.º - Atentos os fortes indícios da prática do crime que lhe é imputado e às aduzidas exigências cautelares, afigura-se-nos que o arguido deverá continuar a aguardar os ulteriores termos do processo sujeito à medida de coação de prisão preventiva, pelo que, concordando integralmente com a Mui Douta decisão do Mmo. Juiz de Instrução Criminal que manteve a prisão preventiva do arguido, pois, tal decisão respeita os princípios da legalidade, necessidade, adequação e proporcionalidade (artigos 191.º 192.º e 193.º do Código de Processo Penal), bem como, as exigências cautelares que no caso se fazem sentir (requisito geral de aplicação das medidas de coação cfr. alíneas a) e c) do artigo 204. ° do mesmo Código), não sendo a mesma excessiva e desproporcional.

11.º - De facto, o artigo 205.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e artigo 97.º do Código de Processo Penal, impõe o dever de fundamentação dos atos decisórios. Contudo, no que concerne ao despacho de revisão ou reexame dos pressupostos das medidas de coação, tal exigência demostra-se atenuado, conforme vem entendendo a jurisprudência de forma pacífica.

12.º - A título meramente exemplificativo no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 14/09/2016, exara-se “[n]ão se pode confundir um despacho de aplicação de medida de coação (art. 194º Código de Processo Penal) com aquele que procede ao reexame dos pressupostos da prisão preventiva ou da obrigação de permanência na habitação (art. 213º Código de Processo Penal)…Neste último, quando o juiz verifica que não ocorreu, entretanto, alguma alteração nos pressupostos que determinaram a aplicação originária de uma dessas medidas de coação, a fundamentação exigida para a boa compreensão do despacho basta-se no enunciado dessa inexistência”

13.º - O despacho recorrido dá nota da inexistência de alteração dos pressupostos que determinaram a fixação da medida de prisão preventiva e, nessa medida, nada mais lhe é exigível para se considerar que a fundamentação é adequada ao cumprimento do disposto nos artigos 97.º Código de Processo Penal, 204.º e 205.º, da Constituição da República Portuguesa.

14.º - Ao contrário do que a recorrente quer fazer crer, o Mmo. Juiz de Instrução Criminal, ponderou as razões de saúde alegadas, tendo concluído que tal circunstância relaciona-se com a execução da medida de coação e nada tem e nada tem de conexo com os pressupostos que motivaram a manutenção da prisão preventiva.

15.º - A conjugação do artigo 32.º do Código de Execução de Penas e dos artigos 10.º e 19.º, n.º 1 al. b) do Regulamento Geral dos Estabelecimentos Prisionais consagra o acesso a cuidados de saúde aos reclusos que se encontrem a cumprir pena ou medida privativa da liberdade, sendo este garantido pelos serviços prisionais ou unidades de saúde externas, não se mostrando violado o direito à saúde previsto no artigo 64.º da Constituição da República Portuguesa.

16.º - A decisão recorrida encontra-se devidamente fundamentada e inexiste outra medida de coacção que se mostre adequada a colmatar o forte perigo de continuação da actividade criminosa, mas também o perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, de perturbação do inquérito, sendo por isso a medida de coacção adequada, necessária e proporcional à gravidade dos factos, à situação do arguido e às necessidades cautelares dos autos, a decisão sob censura não violou o disposto nos artigos 18.º, n.º 2, 28.º, n.º2 e 32.º, n.º 2, todos da Constituição da República Portuguesa e artigos 191.º, n.º 1, 192.º, n.º 2, 193.º, 202.º e 204.º, todos do Código de Processo Penal, nem instrumentos internacionais.”

Termina do seguinte modo:

“Termos em que, deve ser mantido o estatuto processual do arguido, negando-se provimento ao recurso apresentado.”

A Exm.ª PGA neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido de que “o recurso não merece provimento, devendo o despacho recorrido ser mantido na sua íntegra.”

Procedeu-se a exame preliminar.

Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do CPP (1), sem resposta.

Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

Reproduz-se a decisão recorrida, na parte que interessa:

“Requerimento do arguido para substituição da medida de coacção

Veio o arguido requerer a substituição da medida de coacção de prisão preventiva por medida de coacção de O.P.H., alegando para o efeito razões de jaez médica, bem como que colaborou no 1.ºinterrogatório judicial, para além de que está inserido socialmente, tendo não só apoio familiar pleno como sítio onde cumprir a medida de coacção sem voltar a prevaricar.

O M.P. pugnou pelo indeferimento da pretensão.

Cumpre decidir.

*

No âmbito do primeiro interrogatório de arguido detido efectuado a 6 de Novembro de 2021, foi aplicada ao arguido AA, a medida de coacção de prisão preventiva, com os fundamentos de facto e de direito constantes de fls. 56 seguintes, mas onde, em súmula, se considera de forma vincada existirem os perigos de fuga, de continuação da actividade criminosa e de perturbação do inquérito.

O arguido foi sujeito à medida de coacção de prisão preventiva por se encontrar fortemente indiciada a prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punível pelo artigo 21.º, n.º 1 do D.L. n.º 15/93.

Note-se que ainda há oito dias, por despacho proferido por este Tribunal o signatário procedeu à revisão da medida de coacção, tendo mantido a prisão preventiva aplicada ao arguido. Não se nos afigura que neste curto ínterim facto algum tenha emergido de modo tão súbito que, sem mais, justifique alguma alteração.

Acresce que se encontra pendente recurso interposto do despacho de aplicação inicial da medida de coacção, estando o mérito da aplicação da mesma a ser analisado pelo Venerando Tribunal da Relação de Évora.

Os fundamentos apresentados pelo arguido, ainda que respeitáveis não podem fundamentar uma alteração da medida de coacção, sendo que por um lado, nesta sede, não se cuida de efectuar um estudo sociológico ou abonatório do arguido e, por outro, quaisquer questões médicas podem e devem ser dirimidas no Estabelecimento Prisional, tendo o arguido direito a tratamento médico como qualquer cidadão português.

A existência de apoio familiar ou de uma qualquer integração social não bulem com os argumentos em que se estribou o Tribunal para aplicar a medida de coacção, sendo que tal integração não impediu que o arguido praticasse anteriormente os factos, nem, por razões de lógica, impedirá no futuro. Em todo o caso reiteramos que esta não é a sede para efectuar uma análise aos comportamentos sociais do arguido nem uma imagem à sua integração familiar, que em nada interferem com a existência dos perigos elencados no despacho inicial de aplicação de medidas de coacção.

Atentos os fundamentos do despacho proferido em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido e que aqui damos por integralmente reproduzido, verifica-se que, não foram ilididos os fortes indícios da prática do ilícito.

Recorde-se e tal ponto é assaz relevante, que às medidas de coacção é aplicável a cláusula rebus sic stantibus, não devendo as mesmas ser sujeitas a alteração quando inexistir fundamento factual ou jurídico que o justifique, situação totalmente aplicável ao caso.

Ora, os fortes indícios existentes da prática do ilícito supra referido e os concretos perigos que se pretende acautelar com a sujeição do arguido a prisão preventiva, fazem-nos concluir, como já em sede de primeiro interrogatório judicial, que nenhuma outra medida de coacção, que não a prisão preventiva, é adequada e suficiente a acautelar tais necessidades.

De referir que também não se mostra excedido o prazo máximo de duração previsto para a medida cautelar, conforme decorre do estatuído no art.º 215.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.

Face ao exposto, ponderando os princípios da legalidade, da adequação e da proporcionalidade e, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 191.º, 192.º, 193.º, 202.º, nº 1, alíneas a) e b), por referência ao artigo 1.º, alínea m), 204.º, alíneas a) e c), 212.º “a contrario” e 213.º, nº 1, alínea a), todos do Código de Processo Penal, decido manter a medida de coacção de prisão preventiva aplicada ao arguido AA.”

2 - Fundamentação.

A. Delimitação do objecto do recurso.

A motivação do recurso enuncia especificamente os fundamentos do mesmo e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do seu pedido (art.º 412.º), de forma a permitir que o tribunal superior conheça das razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida e que delimitam o âmbito do recurso.

A questão (única) a decidir no presente recurso reside em decidir se estão reunidos os pressupostos legais para a aplicação da medida de obrigação de permanência na habitação com meios de controlo à distância, em substituição (ou alternativa) à prisão preventiva (2) decretada.

B. Decidindo.

Questão (única) – Estão reunidos os pressupostos legais para a aplicação da medida de obrigação de permanência na habitação com meios de controlo à distância, em substituição (ou alternativa) à prisão preventiva decretada?

Para realizar o processo penal são indispensáveis ingerências na esfera individual dos cidadãos (materializadas na intromissão num direito fundamental) “tanto para assegurar o processo de conhecimento como para assegurar a sua execução” (3). As medidas de coacção têm, por conseguinte, uma natureza instrumental quanto às finalidades prosseguidas pelo processo penal (4).

Têm requisitos formais e substanciais:

A - Requisitos formais:

I - Prévia constituição como arguido (art.º 192.º, n.º 1);

II – Prévia existência de um processo criminal.

B - Requisitos substanciais:

I - Juízo indiciário do cometimento de infracção criminal (5) (artigos 197.º, 198.º, 199.º, 200.º, 201.º, n.º 1 in fine, 202.º);

II – Previsibilidade da aplicação de uma pena (art.º 193.º, n.º 1).

“Por último, do princípio da presunção de inocência (afirmado nos art. 11º da D.U.D.H., art. 6º, nº 2 da C.E.D.H., art. 14º, nº 2 do P.I.D.C.P. e art. 32º, nº 2 da C.R.P.) resulta que seja sempre aplicada a medida de coacção menos gravosa de entre todas as admissíveis, com respeito pelos princípios da necessidade, adequação, proporcionalidade (art. 193º, nº 1 do CPP) e intervenção mínima (num critério de concordância prática). (…)

Assim, exige-se uma adequação qualitativa (aptidão à realização dos fins cautelares visados) e quantitativa (quanto à sua duração) da medida, a qual deve ser ainda proporcional à gravidade do crime e à sanção que previsivelmente será aplicada ao arguido. Esta proporcionalidade obrigará à antecipação de um juízo de previsão quanto à sanção a proferir na decisão final. (6)” “A aplicação desta medida está sujeita a um critério de adequação ou de insuficiência para os fins cautelares visados, das outras medidas de coacção. Resulta deste modo, que a obrigação de permanência, à semelhança da prisão preventiva, tem um carácter subsidiário relativamente às restantes medidas, i.e., só pode ser aplicada se as outras por si próprias, não alcançarem os fins próprios.” (7) As considerações tecidas supra devem ser levadas em conta na decisão que decreta uma medida de coacção, sendo certo que, nos presentes autos está em causa, não a decisão que decretou a PP quanto ao arguido, mas a decisão que recaiu sobre requerimento do arguido para substituição da medida de coacção, ou seja, para alteração da medida inicialmente decretada. A este propósito, importa aqui referir o teor do Acórdão da Relação de Évora de 31.08.2016 proferido no processo 27/15.8GBSTB-A.E1 (Relator João Gomes de Sousa):

“Quanto às medidas de coacção, com sua natureza cautelar, a jurisprudência tem sido (…) abundante. De onde decorrem duas claras asserções lógicas: a medida de coacção altera-se se ocorrer alteração das circunstâncias; mantém-se caso tal não ocorra.

De tudo se deduz a imutabilidade da decisão caso não ocorram circunstâncias de facto e de direito entre a primeira tomada de decisão e a sua revisão que impliquem uma alteração da decisão, sem prejuízo dos deveres oficiosos e do prazo de reanálise dos pressupostos de aplicação das medidas.

É ver o acórdão deste Tribunal da Relação de Évora de 20-12-2012 (30/10.4PEBJA-C.E1, rel. Ana Bacelar Cruz) “as decisões que aplicam medidas de coação estão sujeitas à condição rebus sic stantibus, no sentido de se manter a sua validade e eficácia enquanto permanecerem inalterados os pressupostos em que assentam”.

Di-lo, de forma clara, o acórdão da TRP de 22-09-1999 (rel. Teixeira Mendes): “Enquanto não ocorrerem alterações fundamentais ou significativas da situação existente à data em que foi decidido aplicar a prisão preventiva (admitindo que concorriam nessa altura as hipóteses ou condições previstas na lei) não pode o tribunal reformar essa decisão sob pena de, fazendo-o, provocar a instabilidade jurídica decorrente de julgados contraditórios com inevitáveis reflexos negativos no prestígio dos tribunais e nos valores da certeza ou segurança jurídica que constituem os verdadeiros fundamentos do caso julgado”.”

No caso dos autos, porém, para fundamentar o seu pedido, o recorrente não invoca quaisquer circunstâncias que tenham ocorrido ex novo após o despacho que decretou a medida, sendo, nuclearmente, tal despacho que o recorrente vem agora colocar em crise. As circunstâncias conhecidas ou cognoscíveis naquele momento, que podem ser sindicadas nomeadamente através de recurso daquela decisão (8), não podem vir a ser invocadas posteriormente para fundamentar uma alteração do estatuto coactivo, sob pena de violação do caso julgado que se formou sobre tal decisão.

Com efeito, o recorrente vem alegar (conclusão 3) que o tribunal a quo não ponderou que o arguido “desde o primeiro interrogatório assumiu a responsabilidade nos atos indiciados”. Trata-se, pois, de circunstância conhecida ou cognoscível pelo tribunal quando decidiu aplicar a PP.

Também se alega (conclusão 4) que não se ponderou que o arguido “é toxicodependente”. Trata-se, igualmente, de circunstância que já ocorria na mencionada ocasião, uma vez que não se alega que aquele tenha passado a ser toxicodependente na prisão. Vem o recorrido, de forma infundamentada, diga-se, invocar que o despacho recorrido viola o direito à saúde. Como se diz (e se subscreve) na acertada resposta do MP ao recurso, da conjugação do artigo 32.º do Código de Execução de Penas e dos artigos 10.º e 19.º, n.º 1 al. b) do Regulamento Geral dos Estabelecimentos Prisionais resulta que se mostra consagrado o acesso a cuidados de saúde aos reclusos que se encontrem a cumprir pena ou medida privativa da liberdade, sendo este garantido pelos serviços prisionais ou unidades de saúde externas, não se mostrando violado o direito à saúde previsto no artigo 64.º da Constituição da República Portuguesa (9).

A alegação de que o despacho recorrido não se encontra devidamente fundamentado quando ali se refere que não se verifica uma atenuação das exigências cautelares é totalmente destituída de fundamento, pois daquele consta exactamente que não foram alegadas quaisquer circunstâncias supervenientes susceptíveis de alterarem aquelas exigências.

Importa aqui, porque plenamente aplicável aos presentes autos, o teor do Acórdão deste TR de 20.02.2018 proferido no processo 5/17.2GANIS-A.E1 (Relatora Ana Brito):

Este aspecto é determinante do resultado do presente recurso, pois das conclusões do recorrente (e da motivação que apresentou) retira-se facilmente que o arguido está mais a pretender impugnar o despacho anterior que aplicou a prisão preventiva (do qual, aliás, terá também recorrido) do que o presente.

Na verdade, o despacho recorrido é uma decisão de manutenção de prisão preventiva anteriormente aplicada no processo. E trata-se de despacho proferido, não no âmbito do (primeiro) reexame trimestral oficioso (v. art. 213º, nº 1, al. a) do CPP), mas na sequência de um impulso processual ainda prévio àquele reexame oficioso, dado pelo próprio arguido, que pretendia a atenuação da medida de coacção aplicada.

Para tanto, requereu o arguido que o tribunal solicitasse relatório tendo em vista a substituição da prisão preventiva por obrigação de permanência na habitação com recurso a vigilância electrónica. (…)

A senhora juíza de instrução criminal considerou que a alteração de morada não relevava para efeito de atenuação das exigências cautelares que se haviam identificado no anterior despacho, por razões que concretizou. E considerando que nenhum outro facto novo fora relatado pelo arguido e que nenhuma circunstância superveniente fora trazida por qualquer outra via ao processo, absteve-se de solicitar o pretendido relatório e manteve a prisão preventiva.

A questão a apreciar restringe-se, pois, à sindicância da decisão recorrida e, por via dela, à verificação da manutenção ou da eventual alteração dos pressupostos que fundamentaram a prisão preventiva. Todos os restantes pontos e todas as demais questões trazidas ao recurso não respeitam à presente decisão e não são, por isso, cognoscíveis aqui e por esta via.

Como se disse, e como tem sido jurisprudência constante, tratando-se de recurso de despacho que cura do reexame dos pressupostos da prisão preventiva, o âmbito (do recurso) circunscreve-se ao conhecimento das repercussões de eventuais vicissitudes (processualmente relevantes) ocorridas após prolação do despacho que determinou a medida de coacção que se mantém.

Assim, não está em causa a rediscussão dos fundamentos da prisão preventiva decretada anteriormente, mas tão só a apreciação da persistência das exigências cautelares que então se reconheceram. Conhecendo, designadamente, da relevância do único facto novo trazido pelo arguido ao processo e de que, contrariamente ao que o mesmo afirma no recurso, no despacho se conheceu.

As medidas de coacção estão sujeitas à cláusula rebus sic stantibus, e no caso de se manterem inalteradas as circunstâncias avaliadas no anterior despacho, a prisão preventiva é de manter. Em suma, nos despachos de reexame de medida de coacção não é nunca de um repensar de decisão que se trata.

No quadro assim definido, como a única alteração de circunstâncias que o arguido trouxe ao processo (e a única questão que suscita com pertinência no recurso) é a alteração da sua morada, há que aceitar a correcção do despacho em crise quando ali se conclui que tal circunstância, por si só, não atenua as exigências cautelares identificadas anteriormente.

(…)

Ora, tendo isto presente, não se afigura, em concreto, que a medida de coacção de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica acautelasse de forma suficiente e adequada o perigo de perturbação do decurso do inquérito ou o perigo de continuação da actividade criminosa (…).

O objecto do presente recurso esgota-se aqui. Esgota-se na constatação de que o único facto novo trazido ao processo pelo arguido, e (devidamente) apreciado no despacho de que recorre agora, não tem a virtualidade de atenuar relevantemente as exigências cautelares anteriormente afirmadas.

Em tudo o mais, o recurso constitui impugnação de um outro despacho (o que determinou a aplicação da prisão preventiva) do qual o arguido terá até recorrido, e onde terá (ou não, mas pelo menos onde poderia e deveria ter) suscitado as mesmas questões que ora pretende ver apreciadas.

A possibilidade de renovação de alguma dessas questões, dependeria sempre da cláusula rebus sic stantibus e das suas repercussões no caso julgado, pois é de reconhecer um caso julgado rebus sic stantibus em processo penal (sobre o caso julgado rebus sic stantibus em processo penal, vide Henrique Salinas, Os Limites Objectivos do Ne Bis In Idem, 2012, v. digital, p. 6).

Ensina Damião da Cunha que “os conceitos de «efeito de vinculação intraprocessual» e de «preclusão» - referidos ao âmbito intrínseco da actividade jurisdicional – querem significar que toda e qualquer decisão (incontestável ou tornada incontestável) tomada por um juiz, implica necessariamente tanto um efeito negativo, de precluir uma «reapreciação» (portanto uma proibição de «regressão»), como um efeito positivo, de vincular o juiz a que, no futuro (isto é, no decurso do processo), se conforme com a decisão anteriormente tomada (sob pena de, também aqui, «regredir» no procedimento).

“Este raciocínio vale, não só em primeira instância, como em segunda ou terceira instância (embora o grau de vinculação dependa da especificidade teleológica de cada grau de recurso). E este mecanismo vale - ao menos num esquema geral – para qualquer tipo de decisão independentemente do seu conteúdo, isto é, quer se trate de uma decisão de mérito, quer de uma decisão processual” (O Caso Julgado Parcial, Questão da Culpabilidade e Questão da Sanção num Processo de Estrutura Acusatória), 2002, p. 143/4).

Ainda com Damião da Cunha, é, pois de reconhecer que “qualquer decisão, mesmo que não esteja em causa uma decisão de mérito, contém um efeito de vinculação processual” (loc. cit., p. 144). E “os mesmos conceitos podem ser utilizados para além da categoria do procedimento, portanto, para além do exercício interno da função jurisdicional, em relação aos poderes dos sujeitos processuais (das “partes”, utilizando uma expressão do processo civil) durante o processo.” Nesta perspectiva, já não da mera “dimensão do procedimento”, mas da dimensão “do processo”, abarca-se “o modo e a forma por que o procedimento jurisdicional deve progredir”, ou seja, “o modo como os sujeitos processuais devem fazer actuar e fazer progredir o procedimento jurisdicional. Neste âmbito, também as partes estão sujeitas aos mesmos princípios que vimos estarem subjacentes ao exercício da função jurisdicional” (loc. cit. p. 148).

Damião da Cunha fala, assim, numa congruência entre o exercício da função jurisdicional e a actuação dos sujeitos processuais, no sentido de que “cada resultado «adquirido», legítimo e incontestado, não só vincularia o tribunal, como vincularia, outrossim, os restantes sujeitos processuais” (sem prejuízo de, como alerta o autor, esses nexos terem de derivar, fundamentalmente, de regras de direito material) (loc cit., p. 148/9).”

Em síntese, a decisão recorrida encontra-se devidamente fundamentada e, apenas mantendo um estatuto coactivo determinado anteriormente e inexistindo e não tendo sido invocadas quaisquer circunstâncias supervenientes, não viola o disposto nos artigos 18.º, n.º 2, 28.º, n.º 2 e 32.º, n.º 2, todos da Constituição da República Portuguesa, o art.º 6.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e artigos 191.º, n.º 1, 192.º, n.º 2, 193.º, 202.º e 204.º, todos do Código de Processo Penal, ou quaisquer outras disposições normativas.

*

O recurso é, pois, totalmente improcedente.

3 - Dispositivo.

Por tudo o exposto e pelos fundamentos indicados, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC (art.º 513.º, n.º 1 do CPP e art.º 8.º, n.º 9/Tabela III do Regulamento das Custas Processuais).

(Processado em computador e revisto pelo relator)

Évora, 21 de Junho de 2021

Edgar Valente

Laura Goulart Maurício

Gilberto da Cunha

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1 Diploma a que pertencerão todas as referências normativas ulteriores que não tenham indicação diversa.

2 Doravante PP.

3 Claus Roxin e Bernd Schünemann, Derecho Procesal Penal (tradução da 29.ª edição alemã, de 2017), Ediciones Didot, Buenos Aires, 2019, página 359 (tradução nossa). Essencialmente no mesmo sentido, vide Germano Marques da Silva (Curso de Processo Penal II, Editorial Verbo, Lisboa, 2008, páginas 285 /286): “As medidas de coacção e de garantia patrimonial são meios processuais de limitação de liberdade pessoal ou patrimonial (…) que têm por fim acautelar a eficácia do procedimento, quer quanto ao seu desenvolvimento, quer quanto à execução das decisões condenatórias”.

4 Ou seja, as “exigências processuais de natureza cautelar” previstas no art.º 191.º, n.º 1, estando vedada a valoração de quaisquer outros fins, nomeadamente substantivos, retributivos ou preventivos.

5 Fumus comissi delicti.

6 Acórdão deste TRE de 02.06.2016 proferido no processo n.º 997/15.6 PAOLH-A.E1 (Relatora Ana Brito), disponível em www.dgsi.pt.

7 Fernando Gama Lobo in Código de Processo Penal Anotado, 3.ª edição, Almedina, Coimbra, 2019, página 410.

8 Sendo certo que, como se menciona no despacho recorrido, foi efectivamente interposto recurso da decisão que aplicou a PP.

9 O recorrente refere a violação do art.º 65.º da CRP, epigrafado “habitação e urbanismo”.