Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
219/18.8GCSLV.E1
Relator: RENATO BARROSO
Descritores: CRIME DE COACÇÃO
ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE
Data do Acordão: 12/19/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário:
I - O conhecimento da ilicitude não é elemento integrante do elemento subjectivo do tipo penal, relevando apenas em termos de culpa, nos termos do artigo 17.º do Código Penal.

II - Nos crimes do chamado direito penal de justiça, em que se inclui o crime de ameaça, apenas há que articular e provar a falta de consciência da ilicitude quando, por ser alegada ou resultar da discussão da causa, a hipótese de erro se coloque, podendo verificar-se então exclusão da culpa por falta de consciência da ilicitude ou persistência da punição prevista a título de dolo quando o erro for censurável ou indesculpável.

III - A consciência da ilicitude só será relevante como objecto autónomo de prova em julgamento quando se tratar de um caso em que a proibição seja axiologicamente neutra ou pouco evidente e o seu conhecimento seja essencial para que se possa dizer que o agente sabia que praticava um crime e que, assim, actuava com culpa.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

1. RELATÓRIO

A – Decisão Recorrida

No processo comum e com intervenção de tribunal singular nº 219/18.8GCSLV, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo de Competência Genérica de Silves, Juiz 2, o arguido SG, foi absolvido da prática de um crime de extorsão, p.p. pelo Artº 223 nº1 do C. Penal, que lhe era imputado por acusação formulada pelo M.P.

B – Recurso

Inconformado com o assim decidido, recorreu o MP junto do tribunal recorrido, tendo concluído as suas alegações da seguinte forma (transcrição):

I. Na sentença ora em crise, entendeu o Douto Tribunal recorrido absolver o arguido, porquanto, não obstante dados como provados os elementos objetivos do tipo de ilícito em apreço e, bem assim, o dolo do agente, relativamente ao crime de coação previsto e punível pelo artigo 154º, n.º 1, do Código Penal, não se encontrava descrito na acusação o conhecimento pelo arguido da ilicitude da sua conduta, enquanto elemento subjetivo do tipo criminal, não restando, pois, senão, a absolvição do arguido atenta a falta de um elemento típico subjetivo.

II. Sucede, porém, que o conhecimento da ilicitude pelo arguido apenas releva em sede de culpa, não consubstanciando elemento do tipo criminal (subjetivo).

III. É o que, em nosso ver, se resulta da redação do artigo 17º do Código Penal, nos termos do qual “1 - Age sem culpa quem actuar sem consciência da ilicitude do facto, se o erro lhe não for censurável.

2 - Se o erro lhe for censurável, o agente é punido com a pena aplicável ao crime doloso respectivo, a qual pode ser especialmente atenuada”.

IV. Daqui se extrai, portanto, que, nos casos em que releva o desconhecimento da ilicitude, a consequência é a exclusão da culpa [nos termos do n.º 1 do artigo 17º], e não a verificação de ausência de um elemento do tipo (subjetivo).

V. À face desta norma penal, a alegação e prova do conhecimento da ilicitude pelo agente da factualidade penalmente ilícita apenas releva – carecendo, então, de ser alegada e provada - nos casos em que a proibição seja axiologicamente neutra ou não imediatamente evidente ao comum dos cidadãos, sendo o seu conhecimento fundamental para que se possa afirmar que o agente tinha consciência de que praticava um crime, e que assim, atuava com culpa.

VI. Nos presentes autos está em causa a condenação do arguido pela prática de um crime de coação, previsto e punível pelo artigo 154º, n.º 1, do Código Penal, o qual contém na sua tipologia os elementos do crime de ameaça, previsto e punível pelo artigo 153º, n.º 1, do Código Penal, sendo um crime específico face aqueloutro, na medida em que o constrangimento pelo arguido da liberdade da vítima é dirigido a um concreto comportamento (positivo ou negativo) a suportar por esta.

VII. Ameaçar outrem, isto é, anunciar a terceiro a prática de factos que consubstanciam crime, in casu, para o constranger à prática de um ato, como aqui sucede, é facilmente percepcionável pelo comum dos cidadãos - porque inerente ao quadro axiológico basilar da sã convivência social - como um ato que “não se deve praticar”, ou seja, que tal comportamento é ilícito, não sendo, por isso, necessários especiais conhecimentos legais ou outros para alcançar o desvalor de tal ação: não é um comportamento axiologicamente neutro.

VIII. Assim, ainda que na acusação constasse a “expressão tabelar” «Mais agiu o arguido sabendo que a sua conduta se encontrava prevista e punida por lei» e que este viesse alegar que desconhecia a ilicitude da conduta, nem por isso deveria o arguido deixar de ser condenado, pela simples razão de que tal desconhecimento (alegado) lhe era necessariamente censurável, nos termos do disposto no artigo 17º, n.º 2, do Código Penal.

IX. Invoca a sentença recorrida, em abono da tese aí expendida, o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência [AUJ] n.º 1/2015, nos termos do qual “«A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do CPP »

X. Sucede, porém, que AUJ n.º 1/2015 citado na sentença recorrida, não se aplica aos casos de falta de alegação do conhecimento da ilicitude, mas sim aos casos de omissão dos elementos do tipo criminal (objetivos e subjetivos), e a suscetibilidade de os mesmos serem integrados em sede de julgamento através dos mecanismos dos artigos 358º e 359º do Código de Processo Penal.

XI. Não sendo o conhecimento da ilicitude – vertido na expressão tabelar «Mais sabia o arguido que a sua conduta era prevista e punida por lei» - elemento do tipo (subjetivo), a sua omissão no libelo acusatório escapa ao âmbito e força de aplicação do referido AUJ n.º 1/2015 - neste sentido vide Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, datado de 12.07.2017, Processo n.º 833/15.3SMPRT.P1, e nos processos n.º 8473/16.3T9PRT.P1, datado de 26.04.2017, e n.º 333/16.4T9VFR.P2, datado de 13.06.2018, e ainda o recente o Acórdão desta Relação de Évora datado de 12.03.2019, processo n.º 251/15.3GESTB.E1, todos in www.dgsi.pt.

XII. Não sendo de aplicar o AUJ n.º 1/2015, por não ser o conhecimento da ilicitude pelo arguido um elemento do tipo (subjetivo); e se na sentença recorrida se deu como provado, além dos factos que consubstanciam o tipo objetivo de ilícito do crime de coação, que “O arguido, de forma consciente, livre, e voluntária, representou e quis adotar o comportamento acima descrito bem sabendo que as expressões que dirigiu à ofendida, e pela forma como o fez, eram aptas, como foram, a fazê-la temer pela integridade dos seus outros veículos automóveis, conduta que o arguido adotou com o propósito concretizado de constranger a ofendida a assinar o documento necessário à transferência de propriedade do veículo acima identificado e que atuava contra a vontade da ofendida”, isto é, se se provou também o dolo do agente (vontade e querer do arguido em praticar um facto típico), e promanando a ilicitude da própria natureza do ato praticado, não restaria, em nosso entender, ao tribunal recorrido senão condenar o arguido pelo crime de coação, porquanto sempre a ausência de conhecimento de tal ilicitude seria censurável [cfr. artigo 17º, n.º 2, do Código Penal], e por isso irrelevante como causa de exculpação.

XIII. Ao decidir como se decidiu na sentença recorrida, foram violados os artigos 154º, n.º 1, do Código Penal, e bem assim, o artigo 17º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, devendo ser a mesma revogada, e ser o arguido condenado pela prática do crime de coação, previsto e punível pelo artigo 154º, n.º 1, do Código Penal.

Face ao exposto, deve a sentença recorrida ser revogada, e o arguido condenado pela prática de um crime de coação previsto e punível pelo artigo 154º, n.º 1, do Código Penal.

C – Resposta ao Recurso
O arguido não respondeu ao recurso.

D – Tramitação subsequente
Aqui recebidos, foram os autos com vista ao Exmº Procurador-Geral Adjunto, que pugnou pela procedência do recurso, ainda que com tramitação diversa da sustentada pelo recorrente, devendo, em seu entender, revogar-se a sentença recorrida e determinar-se a baixa do processo à 1ª instância, a fim de ali se proceder à comunicação da alteração da qualificação jurídica, nos termos do Artº 358 nº3 do CPP, com vista à imputação ao arguido de um crime de coacção, p.p., pelo Artº 154 nº1 do C. Penal.

Efectuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.
Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO

A – Objecto do recurso

De acordo com o disposto no Artº 412 do CPP e com a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no D.R. I-A de 28/12/95 (neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Setembro de 2007, proferido no processo n.º 07P2583, acessível em HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/" HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/"www.dgsi.pt, que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria), o objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

Na verdade e apesar do recorrente delimitar, com as conclusões que extrai das suas motivações de recurso, o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, este, contudo, como se afirma no citado aresto de fixação de jurisprudência, deve apreciar oficiosamente da eventual existência dos vícios previstos no nº2 do Artº 410 do CPP, mesmo que o recurso se atenha a questões de direito.

As possibilidades de conhecimento oficioso, por parte deste Tribunal da Relação, decorrem, assim, da necessidade de indagação da verificação de algum dos vícios da decisão recorrida, previstos no nº 2 do Artº 410 do CPP, ou de alguma das causas de nulidade dessa decisão, consagradas no nº1 do Artº 379 do mesmo diploma legal.

In casu e cotejando a decisão em crise, não se vislumbra qualquer uma dessas situações, seja pela via da nulidade, seja ainda, pelos vícios referidos no nº2 do Artº 410 do CPP, os quais, recorde-se, têm de resultar da sentença recorrida considerada na sua globalidade, por si só ou conjugado com as regras de experiência comum, sem possibilidade de recurso a quaisquer elementos que à mesma sejam estranhos, ainda que constem dos autos.

Efectivamente, do seu exame, não ocorre qualquer falha na avaliação da prova feita pelo Tribunal a quo, revelando-se a mesma como coerente com as regras de experiência comum e conforme à prova produzida, na medida em que os factos assumidos como provados são suporte bastante para a decisão a que se chegou, não se detectando incompatibilidade entre eles e os factos dados como não provados ou entre a fundamentação e a decisão.

Também não se verifica a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada (Artº 410 nº3 do CPP).

Assim sendo, considera-se definitivamente fixada a decisão proferida pela 1ª Instância sobre a matéria de facto.

A questão suscitada pelo recorrente prende com a sua discordância com a decisão do tribunal recorrido em ter absolvido o arguido da prática do crime de coacção, não obstante terem sido dados como provados os elementos objetivos do tipo de ilícito em apreço e, bem assim, o dolo do agente, apenas por não se encontrar descrito na acusação o conhecimento por aquele da ilicitude da sua conduta, enquanto elemento subjetivo do tipo criminal.

B – Apreciação

Definida a questão a tratar, importa considerar o que se considerou provado e não provado, pela instância recorrida (transcrição):

A)FACTUALIDADE PROVADA:
Da discussão da causa resultaram provados os seguintes factos:

1. O Arguido viveu em comunhão de tecto, mesa, e leito, como de marido e mulher se tratassem, com a ofendida AC, durante cerca de 18 anos, tendo a relação entre ambos terminado em dia não concretamente apurado do mês de agosto de 2018, embora tendo aquela continuado a viver na mesma residência, hoje a do arguido, até data não concretamente não apurada do final do mês de Setembro de 2018.

2. À data do termo da relação entre arguido e ofendida, e até ao dia 15.10.2018, o veículo automóvel de marca, modelo, e matrícula Opel Corsa, -EU encontrava-se registado em nome da Ofendida, sendo propriedade do Arguido.

3. Já no mês de Setembro de 2018, mas ainda antes do referido dia 20 desse mês, o arguido, sabendo que a ofendida iria abandonar a residência comum do casal, começou a dirigir a esta última, as expressões “ou passas o carro para o meu nome, ou então parto-te os carros”, referindo-se o arguido ao referido veículo de matrícula -EU.

4. Motivada pelo comportamento do arguido que lhe provocou medo e receio de que este atentasse contra o seu património, concretamente contra os seus outros veículos automóveis, a ofendida, em 01.10.2018, determinou-se a preencher e a assinar, como assinou, a declaração de venda do referido veículo para assim satisfazer a pretensão do arguido e evitar que o mesmo concretizasse as suas ameaças.

5. Após preencher e assinar o documento de transferência de propriedade do referido veículo para o arguido, a ofendida entregou tal documento ao seu filho AA que posteriormente o entregou ao arguido, o qual, em 15.10.2018 logrou registar em seu nome o veículo automóvel acima identificado.

6. O arguido, de forma consciente, livre, e voluntária, representou e quis adotar o comportamento acima descrito bem sabendo que as expressões que dirigiu à ofendida, e pela forma como o fez, eram aptas, como foram, a fazê-la temer pela integridade dos seus outros veículos automóveis, conduta que o arguido adotou com o propósito concretizado de constranger a ofendida a assinar o documento necessário à transferência de propriedade do veículo acima identificado e que atuava contra a vontade da ofendida.

7. O Arguido não tem antecedentes criminais averbados.

8. O Arguido tem o 6.º ano de escolaridade.

9. Vive sozinho

10. Actualmente encontra-se desempregado.
*
B) FACTOS NÃO PROVADOS
Da discussão da causa e com relevância para a decisão da mesma não resultaram provados os seguintes factos:

a) “Faço-te mal. Se o carro não fica para mim, para ti também não fica” e “posso ir preso, mas mato-te, tu não te ficas a rir”.

b) Nessas ocasiões, o arguido dirigia-se à ofendida a gritar num tom de voz elevado, e a gesticular, e pelo menos por uma vez levantou uma das mãos na direcção da ofendida como se ensaiasse uma chapada na face daquela.

c) O arguido adotou o comportamento acima descrito em pelo menos em 4 ocasiões, durante o período que mediou entre o início do mês de Setembro de 2018 e o dia 20.09.2018.

d) O comportamento do Arguido motivou que a que a Ofendida tivesse receio que o Arguido atentasse contra a sua integridade física, contra a sua vida.

e) As expressões eram aptas a fazer temer a Ofendida sua vida, integridade física.

f) Assim obtendo o arguido, como obteve, uma vantagem patrimonial consubstanciada na propriedade registada do referido veículo, vantagem essa a que sabia não ter direito.

g) O valor dos veículos automóveis propriedade da Ofendida

Visto o teor do decidido, importa analisar da bondade do recurso.

B.1. Do crime de coacção

O recorrente não impugna, como se disse, nem a factualidade apurada, nem a absolvição do arguido do crime de extorsão que lhe era imputado na acusação, mas apenas, a não condenação do arguido pela prática de um crime de coacção, p.p., pelo Artº 154 do C. Penal.

Sobre esta específica questão, escreveu-se na decisão recorrida (transcrição):

Mais se refira que mesmo que se concebesse a possibilidade de condenação do Arguido pela prática de um crime coacção, previsto e punido pelo artigo 154.º do Código Penal, tal não e possível, salvo melhor opinião.

Ora, compulsados os factos constantes do libelo acusatório e dados como provados constata-se que não resulta desses mesmos factos que o Arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei, ou seja, não ressumbra dos factos dados como provados e constantes da acusação a consciência da ilicitude.

Com efeito e de acordo com o Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º1/2015 «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do CPP »

Assim, sendo este um tipo de ilícito que exige o dolo e não estando este verificado, na sua vertente emocional, pelo que acabou de se referir, não se encontra, portanto, preenchido o tipo subjectivo do crime de coacção, razão pela qual não é possível a condenação do Arguido por tal crime.

É sobre esta parte da sentença recorrida - em que se afasta a possibilidade de condenação do arguido pela prática de um crime de coacção por falta do conhecimento da ilicitude, facto que não constava no libelo acusatório - que o recorrente discorda, por entender, em síntese, que a doutrina do aresto ali citado não se aplica, já que o conhecimento da ilicitude pelo agente da factualidade típica apenas releva ao nível da culpa (Artº 17 do C. Penal), e não, da tipicidade (Artº 14 do mesmo Código), pelo que, na generalidade dos casos, como o dos autos, não carece de ser descrito na acusação, pelo que o tribunal a quo dispunha de todos os elementos necessários à condenação do arguido pelo assinalado ilícito de coacção.

Na acusação dos autos, dizia-se, no que ao caso importa, que “O arguido, de forma consciente, livre, e voluntária, representou e quis adotar o comportamento acima descrito bem sabendo que as expressões que dirigiu à ofendida, e pela forma como o fez, eram aptas, como foram, a fazê-la temer pela sua vida, integridade física e integridade dos seus outros veículos automóveis, conduta que o arguido adotou com o propósito concretizado de constranger a ofendida a assinar o documento necessário à transferência de propriedade do veículo acima identificado, assim obtendo o arguido, como obteve, uma vantagem patrimonial consubstanciada na propriedade registada do referido veículo, vantagem essa a que sabia não ter direito, e que atuava contra a vontade da ofendida e em prejuízo da ofendida”

Nesta parte, deu-se como provado que “O arguido, de forma consciente, livre, e voluntária, representou e quis adotar o comportamento acima descrito bem sabendo que as expressões que dirigiu à ofendida, e pela forma como o fez, eram aptas, como foram, a fazê-la temer pela integridade dos seus outros veículos automóveis, conduta que o arguido adotou com o propósito concretizado de constranger a ofendida a assinar o documento necessário à transferência de propriedade do veículo acima identificado e que atuava contra a vontade da ofendida.”

Como se vê, a matéria que não foi assumida como provada reporta-se, precisamente, à ausência dos elementos típicos integradores do crime de extorsão, p.p., pelo Artº 223 do C. Penal, na medida em que ficou por demonstrar o constrangimento da ofendida a uma disposição patrimonial ilegítima, já que esta assumiu que o veículo em causa pertencia ao arguido, ficando assim por provar a obtenção, por parte deste, de uma vantagem patrimonial ilegítima.

Todavia, a questão coloca-se a uma eventual condenação do arguido pela prática de um crime de coacção, p.p., pelo Artº 154 nº1 do C. Penal, já que a factualidade apurada comprova o preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos deste tipo de ilícito.

Entendeu a decisão recorrida que tal condenação não poderia ter lugar por não constar do libelo acusatório e, consequentemente, dos dados como provados, a consciência da ilicitude por parte do arguido, ou seja, que este soubesse que a sua conduta fosse proibida e punida por lei, apoiando-se, para tanto, na doutrina emanada do Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº1/2015.

Com o devido respeito por opinião contrária, não se pode concordar com o assim decidido, porquanto o conhecimento da ilicitude, ao contrário do que parece resultar da decisão recorrida, não é elemento integrante do elemento subjectivo do tipo (Artº 14 do C. Penal), relevando apenas em termos de culpa, nos termos do Artº 17 do mesmo Código, onde se diz que:

1 - Age sem culpa quem actuar sem consciência da ilicitude do facto, se o erro lhe não for censurável.

2 - Se o erro lhe for censurável, o agente é punido com a pena aplicável ao crime doloso respectivo, a qual pode ser especialmente atenuada”.

Daqui se extrai, que nos casos em que possa relevar o desconhecimento da ilicitude, a sua consequência é a exclusão da culpa e não, a ausência de verificação de um dos elementos do tipo subjectivo do ilícito em causa.

Ora, para tais situações, a doutrina assumida pelo Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº1 /2015 é, inaproveitável, já que o mesmo não se reporta, em regra, a situações em que falta a consciência da ilicitude, mas antes, a casos em que na acusação não foram descritos os elementos subjectivos do tipo.

Plasmou-se em tal aresto, que “A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do CPP », aí se explicitando que “O conhecimento da proibição legal, que não é exatamente equivalente a “consciência da ilicitude” será de exigir em certos casos em que a relevância axiológica de certos comportamentos é muito pouco significativa ou não está enraizada nas práticas sociais e em que, portanto, o conhecimento dos elementos do tipo e a sua realização voluntária e consciente não é suficiente para orientar o agente de acordo com o desvalor comportado pelo tipo de ilícito.

A necessidade de tal exigência faz-se sentir sobretudo a nível do direito contra-ordenacional, do direito penal secundário, relativamente a certas incriminações de menor relevância axiológica, mas também a nível de algumas incriminações do direito penal de justiça, principalmente no que toca à proteção de bens jurídicos cuja consciência se não encontra ainda suficientemente solidificada na comunidade social.

Então, faz sentido exigir o conhecimento da proibição como forma de realização do dolo do tipo (…).

Na generalidade dos casos, porém, o sentido ou significado da ilicitude do facto promana da realização pelo agente da factualidade típica, agindo com o dolo requerido pelo tipo. Na verdade, em crimes como o de homicídio, ofensa à integridade física, furto, injúrias, pôr a questão de saber se o agente, que atuou conscientemente, representando todas as circunstâncias do facto, e querendo, mesmo assim, a sua realização, atuou ou não com conhecimento da proibição legal, se sabia que matar, agredir fisicamente uma pessoa, subtrair coisa alheia para dela se apropriar, ofender a honra de alguém, era proibido legalmente, seria o mesmo que questionar se ele efetivamente vivia neste mundo ou se não seria uma extraterrestre acabado de aterrar neste planeta, como no filme de Steven Spielberg”.

Ora, a situação dos autos é, claramente, um caso em que o próprio Acórdão de Fixação de Jurisprudência reconhece que o conhecimento da ilicitude promana da realização do próprio facto, dada a relevância axiológica do acto ser significativa e estar enraizada nas práticas sociais, sendo desnecessária a prova do conhecimento da proibição para se saber que o acto é ilícito.

Não existindo qualquer causa extraordinária que exclua esse conhecimento, é óbvio que qualquer pessoa sabe, como bem refere o MP no seu recurso, que “ameaçar outrem, isto é, anunciar a terceiro a prática no futuro de factos que consubstanciam crime, in casu, para o constranger à prática de um ato, como aqui sucede, é facilmente percepcionável pelo comum dos cidadãos - porque inerente ao quadro axiológico basilar da sã convivência social - como um ato que “não se deve praticar”, ou seja, que tal comportamento é ilícito, não sendo, por isso, necessários especiais conhecimentos legais ou outros para alcançar o desvalor de tal ação: não é um comportamento axiologicamente neutro”

A consciência da ilicitude só será relevante como objecto autónomo de prova em julgamento quando se tratar de um caso em que a proibição seja axiologicamente neutra ou pouco evidente e o seu conhecimento seja essencial para que se possa dizer que o agente sabia que praticava um crime e que, assim, actuava com culpa.

É inúmera a jurisprudência nesse sentido (Cfr., entre outros Acs. da Relação do Porto de 24/06/17, 12/07/17 e 13/06/18, proferidos nos processos nsº 8473/16.3T9PRT.P1, 833/15.3SMPRT.P1 e 333/16.4T9VFR.P1) e Acórdãos desta Relação, de 06/10/15, 26/06/18, 05/02/19 e 12/03/19, procs. nsº 12/12.1GASSB.E1, 80001/15.8TDLSB.E1, 35/15.9PESTB.E1 e 251/15.3GESTB.E1), sendo que no penúltimo se pode ler, com total acerto, o seguinte:

“…conforme temos entendido, o conhecimento do caráter proibido da conduta não integra o dolo do tipo de ilícito, que corresponde no nosso Código penal à representação ou conhecimento do facto que preenche um tipo de crime e age com vontade de realizá-lo por qualquer das formas previstas nos três números do seu art. 14º, como vimos, sem que se inclua aí qualquer referência à consciência ou conhecimento do caráter proibido da conduta, apesar de o legislador ter optado por definir positivamente o dolo naquele mesmo art. 14º.

A consciência da ilicitude respeita antes à culpa, conforme decorre do regime do erro respetivo acolhido no art. 17º do C.Penal e do contraponto com o regime estabelecido no art. 16º do mesmo C.Penal.


Ou seja, embora possa entender-se que o conhecimento das proibições a que se reporta o art. 16º nº 1, 2ª parte, tem que ser articulado e provado juntamente com os elementos objetivos do tipo e o dolo reportado a esses mesmos elementos, por considerar-se que o conhecimento das proibições concretas não pode pressupor-se nesses casos, tal não sucede no chamado direito penal clássico em que se insere o caso presente

A consciência da ilicitude enquanto facto psicológico de conteúdo positivo não tem que ser alegada e provada em cada caso nos chamados “crimes em si” do direito penal clássico - de que são exemplos paradigmáticos o tráfico de estupefacientes ou a detenção de arma proibida -, em que é pressuposta a consciência da ilicitude, por ser patente para a generalidade dos cidadãos que, relativamente a estes crimes, o comportamento típico e ilícito nega os valores socialmente instituído, sendo social, ética e penalmente censurável, sem prejuízo de poder verificar-se excecionalmente erro relevante por falta de consciência da ilicitude que opera, então, como causa de exclusão da culpa ou de atenuação da pena nos termos do art. 17º C. Penal.

Assim, nos crimes do chamado direito penal de justiça apenas há que articular e provar a falta de consciência da ilicitude quando, por ser alegada ou resultar da discussão da causa, a hipótese de erro se coloque, podendo verificar-se então exclusão da culpa por falta de consciência da ilicitude ou persistência da punição prevista a título de dolo quando o erro for censurável ou indesculpável, nos termos do art. 17º do C. Penal, podendo a pena aplicável ser especialmente atenuada nestes casos.


Daqui decorre que não obstante a praxis judiciária de alegar e dar como provado que o arguido «sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal», ou formulação equivalente, tal facto psicológico não tem que ser casuisticamente questionado, objeto de prova e julgado provado em cada um dos crimes do chamado direito penal clássico, como é o caso presente, conforme referido.”

In casu, é certo que dos autos não consta a expressão tabelar, normalmente usada - sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei, reportada à consciência da ilicitude - só que o tipo de ilícito em causa, o de coacção, tem um relevo axiológico suficientemente caracterizado e comunitariamente enraizado ou difundido, de modo que mesmo que não alegada a consciência da ilicitude essa falta não é relevante e pode ocorrer condenação, como decorre do disposto no Artº 17 nº2 do C. Penal, por a ausência de consciência do ilícito traduzir uma falta censurável fundamentadora de uma culpa a requerer punição.

Nesta medida, é forçoso concluir que os elementos dados por assentes na decisão recorrida, preenchem os elementos objectivos e subjectivos do crime de coação, p.p., pelo Artº 154 nº1 do C. Penal, pois ali deu-se por provado que “O arguido, de forma consciente, livre, e voluntária, representou e quis adotar o comportamento acima descrito bem sabendo que as expressões que dirigiu à ofendida, e pela forma como o fez, eram aptas, como foram, a fazê-la temer pela integridade dos seus outros veículos automóveis, conduta que o arguido adotou com o propósito concretizado de constranger a ofendida a assinar o documento necessário à transferência de propriedade do veículo acima identificado e que atuava contra a vontade da ofendida”

Todavia, e ao contrário do que pretende o recorrente, mas como muito bem assinala o MP junto deste Tribunal, o crime de coacção é diverso daquele que era imputado ao arguido na acusação pública, pelo que se impõe o cumprimento do estatuído no nº3 do Artº 358 do CPP, tendo em conta a necessária alteração da qualificação jurídica dos factos que consubstanciam a prática, não de um crime de extorsão, como era assacado ao arguido, nos termos do artº 223 nº1 do C. Penal, mas antes, de um crime de coacção, p.p., nos termos do Artº 154 nº1 do mesmo Código.

Deverá, pois, o tribunal da 1ª instância, proceder a tal comunicação, prosseguindo os autos com a elaboração de nova sentença, tendo presente a possibilidade de configuração da condenação do arguido pelo mencionado crime de coacção, sem prejuízo deste apresentar prova complementar que altere, de forma relevante, a factualidade já dada como provada.

3. DECISÃO

Nestes termos, decide-se conceder provimento ao recurso, ainda que com consequência diferente da pretendida, determinando-se a baixa dos autos à 1ª instância a fim de se proceder à comunicação ao arguido da alteração da qualificação jurídica dos factos provados, com vista ao eventual cometimento de um crime de coacção, p.p., pelo Artº 154 nº1 do C. Penal, seguindo-se os demais trâmites do processo, com a elaboração de nova decisão.
Sem custas.
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Consigna-se, nos termos e para os efeitos do disposto no Artº 94 nº2 do CPP, que o presente acórdão foi elaborado pelo relator e integralmente revisto pelos signatários.

Évora, 19 de Dezembro de 2019

Renato Barroso (Relator)
Maria Fátima Bernardes (Adjunta)

(Assinaturas digitais)