Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
25/14.9T8LAG.E1
Relator: ALBERTINA PEDROSO
Descritores: OBJECTO DA PROVA
FACTOS ESSENCIAIS
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
IMPUGNAÇÃO DE DOCUMENTOS
MEIO PROCESSUAL
DOCUMENTO PARTICULAR
INCIDENTE DE FALSIDADE
PROVA VINCULADA
CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
PRAZO
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
MORA
EXECUÇÃO ESPECÍFICA
Data do Acordão: 02/22/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I - O juiz não tem que responder aos «temas de prova» mas aos pontos de facto que consubstanciam o direito invocado, ou as excepções deduzidas, por isso que a apreciação factual não se limite aos temas da prova enunciados mas aos factos necessitados de prova a que alude a parte final do artigo 410.º do CPC que rege sobre o objecto da instrução.
II - Porém, estes factos não são todos os alegados pelas partes mas apenas os relevantes no quadro do litígio, tal qual foi conformado pelo pedido, pela causa de pedir e pelas excepções invocadas.
III - Nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 552.º do CPC, os factos que constituem a causa de pedir, são os factos essenciais expostos na petição inicial, o que significa que não é toda e qualquer alegação efectuada pelas partes que há-de ser vertida na fundamentação de facto da sentença, mas apenas aquela que, essencial ou complementarmente, fundamente o direito invocado.
IV - Em face do disposto no artigo 607.º, n.ºs 4 e 5 do CPC, a livre apreciação da prova não abrange os factos que só podem ser provados por documento, e bem assim, aqueles que estejam plenamente provados por acordo ou confissão, sendo que o juiz toma sempre em consideração na sentença os factos admitidos por acordo e os provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, extraindo ainda dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou pelas regras da experiência.
V - A «impugnação» a que alude o artigo 374.º, n.º 1, CC, não configura uma referência à «impugnação» a que se refere o artigo 571.º do CPC relativa à mera contradição pelo réu dos factos articulados na petição inicial, referindo-se antes à impugnação da genuinidade do documento prevista no artigo 444.º, n.º 1, do CPC, enquanto incidente da instância, porque é através deste concreto meio processual que se procede, no que ora importa, «à impugnação da letra ou assinatura do documento particular».
VI - Não tendo sido impugnadas, as assinaturas constantes do documento em questão nos autos, consideram-se verdadeiras.
VII - Atento o disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 376.º do CC, encontrando-se reconhecida a autoria do referido documento particular, ou seja, a sua subscrição por Autor e Réu, e não tendo sido validamente arguida e provada a falsidade do mesmo ou provada factualidade que conduzisse à sua nulidade, tal escrito faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, considerando-se provados os factos compreendidos na declaração na medida em que forem contrários aos interesses do declarante.
VIII - Tratando-se de prova vinculada não pode ser afastada por qualquer outro meio de prova, por isso que se torne inútil a pretendida reapreciação dos depoimentos das identificadas testemunhas, porquanto do acervo documental junto aos autos e da matéria provada nas alíneas e) a i), que não foi impugnada pelo Recorrido, emergem os factos essenciais que, por si só, bastam para a apreciação do respectivo mérito, os quais não têm que constar na formulação da sentença nos exactos termos vertidos na petição inicial.
IX - A fixação do prazo no contrato promessa, sem que no seu decurso as partes tivessem estabelecido qualquer consequência, não permite concluir que ultrapassado o mesmo, a finalidade do acordo não pudesse ser ainda cumprida.
X - Não havendo incumprimento definitivo do contrato-promessa de compra e venda, a mora do Apelado abre ao Apelante a porta da execução específica daquela prestação, que na espécie foi até expressamente convencionada, posto que não se verificam também nenhuma das situações que se encontram expressamente salvaguardadas no n.º 1, in fine, do artigo 830.º do CC, e aquela não é incompatível com a obrigação assumida, uma vez que o contrato definitivo não é impossível ou ilícito, e o recorrente não se propõe obter com a acção, aquilo que seria impossível obter pelo simples cumprimento do contrato promessa (sumário da relatora).
Decisão Texto Integral:
Tribunal Judicial da Comarca de Faro[1]
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Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora[2]:

I – RELATÓRIO
1. C... instaurou em 26-09-2014 a presente acção, sob a forma de processo comum, contra J…, peticionando que se condene o R. a ver produzidos os efeitos da sua declaração negocial em falta e decretada a transmissão, a favor do A., da metade indivisa do imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º …, e inscrito na matriz sob o artigo … urbano.
Em fundamento da sua pretensão, alegou, em síntese, que celebrou com o R. um contrato-promessa de compra e venda mediante o qual este prometeu vender-lhe metade indivisa do aludido prédio, pelo preço de quarenta e sete mil, quatrocentos e trinta euros, correspondente ao valor mutuado pelo A. ao R. para compra da metade prometida vender, convencionando que a escritura seria celebrada por iniciativa do A., mediante aviso com antecedência mínima de dois dias, por qualquer meio escrito ou verbal, sujeitando o contrato ao regime de execução específica e tendo o promitente-comprador entrado na posse do prédio. Mais alegou que A. e R., de comum acordo, prescindiram do prazo mínimo convencionado e agendaram a escritura, não tendo este comparecido, nem pretendendo realizar o negócio, sem qualquer justificação.

2. Regularmente citado, o réu contestou, invocando a sua ilegitimidade, por preterição de litisconsórcio necessário passivo, impugnando toda a matéria alegada pelo A., recusando que haja subscrito um contrato promessa mas, tão só, rubricado, para acusar o seu recebimento, um draft de documento que constituía uma proposta inicial, sendo o “contrato promessa” nulo por erro vício de vontade, uma vez que nunca foi querido de facto realizar qualquer promessa sobre o prédio, não tendo havido tradição do mesmo nem tendo sido alguma vez interpelado ou informado da marcação da escritura.

3. Requerida a intervenção principal de F…, foi a mesma admitida e, citada a chamada, apresentou contestação, aceitando tudo quanto alegado na petição inicial e impugnando o alegado pelo R., concluindo pela procedência da acção.

4. Foi dispensada a realização de audiência prévia, tendo sido proferido despacho saneador, com enunciação do objecto do litígio e dos temas da prova.

5. Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi seguidamente proferida sentença onde se julgou a acção totalmente improcedente, com a consequente absolvição do Réu do pedido.

6. Inconformado, o Autor apresentou recurso de apelação, finalizando a respectiva minuta com as conclusões que ora se transcrevem:
«1ª-Os fatos discriminados nas alíneas a),b), c) e d) da fundamentação de fato da douta sentença são fatos que não estão alegados na petição inicial, nem em articulados subsequentes.
2ª-São fatos que o Meritíssimo Juiz decidiu extrair do contrato-promessa de compra e venda, junto pelo autor como documento 1 para prova dos fatos que alegou.
3ª-Devem ser excluídos da matéria provada os fatos das alíneas a),b), c) e d).
4ª- A discriminação dos fatos da conclusão anterior como provados constitui conhecimento de questões de que o Meritíssimo Juiz não podia conhecer pelo que, nessa parte, a douta sentença é nula, nos termos do disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil.
5ª- O Meritíssimo Juiz deixou de se pronunciar sobre os fatos dos artigos 1º, 2º, 3º, 4º, 5º, 6º, 7º,14º, 15º, 16º e 17º da petição inicial que são relevantes para a boa decisão da causa, apesar de os ter selecionado como tema de prova.
6ª- Estes fatos encerram questões que o juiz devia conhecer, mas não conheceu, e, por isso, a douta sentença sofre de omissão de pronúncia que a inquina de nulidade nessa parte, nos termos do disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil.
7ª-Devem ser julgados provados os fatos dos artigos 1º, 2º, 3º, 4º, 5º, 6º, 7º, 14º, 15º, 16º e 17º da petição inicial, e passar a ser incluídos na discriminação dos fatos provados, com a redação seguinte ou aquela que superiormente for entendida:
Artigo 1º - Autor e réu, no dia 31 de Março de 2014, celebraram um contrato-promessa pelo que o segundo prometeu vender ao primeiro metade indivisa do prédio urbano, sito …, composto de um terreno para construção, com 672 m2, a confrontar …, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o número …., inscrito na matriz sob o artigo … urbano.
Artigo 2º - Convencionaram o preço igual ao valor pago pela metade do promitente vendedor na escritura de aquisição outorgada por escritura de 29 de Outubro de 2007, lavrada de folhas 35 a folhas 36 do livro … do Cartório da Notária …, como se evidencia pela convenção da Cláusula Segunda do contrato.
Artigo 3º - O preço deste contrato-promessa é de € 47.430,00.
Artigo 4º - O preço pago pelo réu corresponde ao valor de que o segundo outorgante, aqui autor, mutuou ao segundo outorgante, aqui réu, para a compra da metade que este prometeu vender, por não ter meios que lhe permitam restituir a quantia emprestada como releva da Cláusula Terceira do contrato
Artigo 5º - Autor e réu, na Cláusula Quinta do contrato, estipularam que a escritura prevista na promessa será celebrada por iniciativa do autor, com a obrigação de avisar o réu com antecedência mínima de dois dias, por qualquer meio escrito ou verbal.
Artigo 6º - Acordaram que o contrato-promessa ficava sujeito ao regime de execução específica prevista no artigo 830º do Código Civil.
Artigo 7º - Com a celebração da promessa o autor entrou na posse imediata do prédio no artigo primeiro, no exercício da convenção da Cláusula Terceira da promessa.
Artigo 14º - Perante esta resposta do réu, o autor ficou com a impressão de que o réu nunca mais outorgaria voluntariamente a escritura ou o título com os mesmos efeitos.
Artigo 15º - Face à sucessão dos fatos narrados, o autor comunicou ao réu que não lhe restaria outra alternativa que não fosse a do recurso á ação judicial adequada para o cumprimento do contrato.
Artigo 16º - O réu declarou expressamente, de livre e espontânea vontade, prometer vender, ao autor, a sua metade indivisa no prédio pelo mesmo preço pelo que a tinha comprado com dinheiro emprestado pelo promissário, por se encontrar numa situação de impossibilidade absoluta de restituir o valor mutuado e sem previsões de qualquer data de vir a fazê-lo.
Artigo 17º - Em consequência do acordado, o réu entregou, imediatamente, a posse do bem ao autor, dando-se assim a tradição da coisa.
8ª- Os fatos das alíneas e), f), g), h) e i) da douta fundamentação de fato devem ser mantidos como fatos provados.
9ª- A causa de pedir na ação é constituída pela invocação de um contrato-promessa de compra e venda, em que o promitente se constitui em mora no cumprimento.
10ª- O pedido consiste na condenação do réu, como promitente incumpridor, a ver produzidos os efeitos da sua declaração negocial em falta, e a ver decretada a transmissão para o autor de metade do prédio, pela causa de pedir que é a compra.
11ª-O contrato promessa constitui o réu na obrigação de vender metade do prédio ao autor.
12ª- O contrato promessa não contém obrigações alternativas.
13ª- O Meritíssimo Juiz faz errada interpretação da promessa dos autos, porquanto vê nele obrigações alternativas, do réu, quando, de fato, só contém uma única obrigação do réu.
14ª- O pedido da ação é apenas um e consiste na compra de metade do prédio.
15ª – O contrato promessa é exequível.
16ª- A douta sentença constitui erro de julgamento.
17ª- A douta sentença viola as disposições legais indicadas na alegação, além de outras, e nomeadamente o disposto nos artigos 236º, 405º, 410º n.º 1, 442 n.º 3, 543º, 805º, e 830º do Código Civil, 552º, 607, 608º do Código de Processo Civil».

7. O réu apresentou contra-alegações, pugnando pela confirmação da sentença.

8. Observados os vistos, cumpre decidir.
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II. O objecto do recurso.
Com base nas disposições conjugadas dos artigos 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º, e 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil[3], é pacífico que o objecto do recurso se limita pelas conclusões das respectivas alegações, evidentemente sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, não estando o Tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas conclusões do recurso, mas apenas as questões suscitadas, e não tendo que se pronunciar sobre as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Assim, vistos os autos, as questões que importa apreciar no presente recurso, atenta a sua ordem lógica, consistem em saber se a sentença enferma de nulidade por omissão de pronúncia; se a indicada matéria de facto deve ser considerada provada; consequentemente, se deve ser decretada a execução específica do contrato-promessa de compra e venda.
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III – Fundamentos
III.1. – De facto
Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos:
«a. A. e R. subscreveram o documento datado de 31 de Março de 2014, denominado “contrato-promessa de compra e venda”, figurando este como primeiro e aquele como segundo outorgante, declarando que “o primeiro e sua esposa adquiriram em comum, antes do casamento, o prédio urbano sito no […] descrito na Conservatória do Registo Predial de […] com dinheiro emprestado pelo segundo outorgante, sem vencimento de juros e sem prazo de entrega, para a construção da casa de morada de família dos adquirentes”, mais declarando que “o primeiro, por este contrato, promete vender ou dar em pagamento, conforme o acto apropriado para o caso concreto, ao segundo, a metade indivisa de que é titular no prédio descrito na Cláusula Primeira, livre de ónus ou encargos, completamente desembaraçado de pessoas e bens”.
b. Mais declararam que “o valor declarado na escritura como preço ou dação em pagamento é o mesmo da aquisição, atendendo a que este acto visa o pagamento do dinheiro aplicado no prédio da responsabilidade do primeiro outorgante” e que “o segundo outorgante entra na posse imediata do prédio”.
c. Também, que “a escritura será celebrada por iniciativa do segundo outorgante que avisará o primeiro outorgante com antecedência mínima de dois dias, por qualquer meio escrito ou verbal”.
d. Por fim, que “os outorgantes convencionam o regime de execução específica deste contrato, previsto no artigo 830º do Código Civil”.
e. A. e R., de comum acordo, prescindindo do prazo mínimo estabelecido, agendaram para as 09 horas do dia 02 de Abril de 2014 o título Casa Pronta do Processo n.º …/2014 na Conservatória do Registo Predial e Comercial de…, em substituição e para os mesmos efeitos da escritura.
f. O R. não compareceu à realização do título equivalente à escritura de compra e venda prevista na promessa.
g. Questionado sobre a razão de falta de comparência, o R. respondeu que não outorgava o título, que ia pensar melhor e nos finais de Agosto havia de ter alguma coisa para dizer.
h. Instado nos finais de Agosto de 2014, o R. disse que para os princípios de Setembro teria alguma resposta para dar.
i. O A., nos princípios do mês de Setembro, perguntou ao R. se já tinha decidido outorgar ou não o título ou a escritura prevista no contrato, de novo retorquiu que não comparecia nem tinha que apresentar qualquer justificação para o incumprimento do contrato».
E sob o título factos não provados consta:
«Não ficaram por provar quaisquer factos constantes nos temas da prova, nem se provou qualquer outro facto com interesse processual ou relevância para a decisão».
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III.2. – O mérito do recurso
III.2.1. - Da nulidade da sentença
Invoca o Recorrente a nulidade da sentença, por violação da alínea d) n.º 1 do artigo 615.º do CPC, com o fundamento de que o julgador não conheceu de factos articulados na petição inicial de que devia ter conhecido por serem relevantes para a boa decisão da causa.
Apreciando.
Decorre da invocada alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, que a sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Esta causa de nulidade da sentença consiste, portanto, na omissão de pronúncia, sobre as questões que o tribunal devia conhecer; ou na pronúncia indevida, quanto a questões de que não podia tomar conhecimento[4].
É entendimento pacífico que esta nulidade está em correspondência directa com o anteriormente preceituado no artigo 660.º, n.º 2, do CPC, e agora vertido no artigo 608.º, n.º 2, do CPC, que impõe ao juiz a resolução de todas as questões que as partes submeteram à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão tenha ficado prejudicada pela solução dada a outras, não podendo, porém ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo as que sejam de conhecimento oficioso, constituindo, portanto, a sanção prevista na lei processual para a violação pelo juiz do dever estabelecido no referido artigo[5].
Conforme lembra o Conselheiro Ferreira de Almeida[6] «[i]ntegra esta causa de nulidade a omissão do conhecimento (total ou parcial) do pedido, causa de pedir ou exceção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão (não a fundamentação jurídica adrede invocada por qualquer das partes).
Não confundir, porém, questões com razões, argumentos ou motivos invocados pelas partes para sustentarem e fazerem vingar as suas posições (jurídico-processuais ou jurídico-substantivas); só a omissão de abordagem de uma qualquer questão temática central integra o vício invalidante da sentença, que não a falta de consideração de um qualquer elemento da retórica argumentativa produzida pelas partes».
Conforme tem sido considerado pelo Supremo Tribunal de Justiça, tais questões - a que se reporta a alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC -, «são os pontos de facto ou de direito relevantes no quadro do litígio, ou seja, concernentes ao pedido, à causa de pedir e às excepções»[7].
No caso vertente, aquilo que o Recorrente invoca é que o Senhor Juiz não se pronunciou sobre os factos constantes dos artigos 1.º a 7.º e 14.º a 17.º da petição inicial que considera relevantes para a decisão de mérito.
Porém, na situação em presença o julgador pronunciou-se sobre as questões suscitadas, que identificou na sentença, e que no caso se resumem à (in)existência do direito à execução específica do contrato-promessa em causa nos presentes autos, enunciando os factos que, em seu entender, resultaram provados e declarando que nenhum outro facto, com relevo, ficou por provar.
Nestes termos, não se verifica a nulidade arguida já que o Senhor Juiz se pronunciou sobre as questões relevantes, quer de facto quer de direito, cumprindo antes aquilatar, conforme igualmente suscitado pelo Recorrente, se nessa apreciação, o julgador incorreu em erro de julgamento.
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III.2.2. - Da impugnação da matéria de facto
Pretende o Recorrente que os factos provados nas alíneas a), b), c), e d) não são factos alegados na petição inicial e os das alíneas e), f), g), h), e i) não integram, na sua totalidade, a matéria de facto a provar, pretendendo que tal matéria seja modificada nos termos que indicou nas supra reproduzidas conclusões das respectivas alegações, alterando-se aqueles como proposto, e mantendo-se estes como provados mas aditando-se outros.
Para o efeito invoca o Recorrente, em apertada síntese, que na fundamentação de facto da sentença recorrida, o Tribunal, em vez de considerar os factos alegados na petição inicial, reportou-se apenas ao que constava no documento, o qual é um meio de prova dos factos alegados e não considerou outros que havia indicado como sendo tema de prova, já que se referiu a todos os factos da petição inicial.
Conforme temos vindo a salientar, o juiz não tem que responder aos «temas de prova» mas aos pontos de facto que consubstanciam o direito invocado, ou as excepções deduzidas, por isso que a apreciação factual não se limite aos temas da prova enunciados mas aos factos necessitados de prova a que alude a parte final do artigo 410.º do CPC que rege sobre o objecto da instrução.
Porém, estes factos não são todos os alegados pelas partes mas apenas os relevantes no quadro do litígio, tal qual foi conformado pelo pedido, pela causa de pedir e pelas excepções invocadas.
De facto, conjugando-se o artigo 5.º do CPC com o princípio da limitação dos actos previsto no artigo 130.º da mesma codificação, e tendo presente que não é lícito realizar no processo actos inúteis, à instrução da causa só importam os factos essenciais, complementares ou instrumentais, que relevem para prova ou contraprova quer dos factos que constituam a causa de pedir quer daqueles em que se baseiam as excepções invocadas, ou seja, para fundamento do direito invocado ou dos factos que impedem, modificam ou extinguem aquele direito, consoante a posição de autor ou réu em que as partes se encontrem.
Deste modo, os meios de prova relevantes para a fixação da matéria de facto serão então aqueles que se apresentem como potencialmente úteis para a decisão dos factos necessitados de prova, entendendo-se estes como os que importem, ainda que instrumentalmente, a qualquer uma das possíveis soluções de direito da causa.
Sendo certo, como aduz o Recorrente, que os factos que constituem a causa de pedir, nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 552.º do CPC, são os factos expostos na petição inicial, não é menos verdade que o mesmo preceito se reporta aos factos essenciais, o que significa que não é toda e qualquer alegação efectuada pelas partes que há-de ser vertida na fundamentação de facto da sentença, mas apenas aquela que, essencial ou complementarmente, fundamente o direito invocado.
Acresce que, sendo igualmente certo, conforme invoca o Recorrente que os documentos são meios de prova dos factos alegados na fundamentação da acção, não é menos verdade que, em face do disposto no artigo 607.º, n.ºs 4 e 5 do CPC, a livre apreciação da prova não abrange os factos que só podem ser provados por documento, e bem assim, aqueles que estejam plenamente provados por acordo ou confissão, sendo que o juiz toma sempre em consideração na sentença os factos admitidos por acordo e os provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, extraindo ainda dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou pelas regras da experiência.
Afigura-se-nos que foi este comando legal que o Senhor Juiz teve em consideração ao dar como assentes os factos vertidos nas alíneas a) a d), ao qual igualmente temos que atender na elaboração do acórdão, em face do disposto no artigo 663.º, n.º 2, do CPC que manda atender na segunda instância ao preceituado, nomeadamente, no indicado normativo, pelo que, à semelhança da primeira instância, também a segunda instância está sujeita na elaboração do acórdão ao cumprimento designadamente das regras de direito substantivo.
Vejamos, pois, as consequências processuais do que vimos de afirmar, começando por relembrar que, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 342.º do Código Civil[8], «àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado», e que, de acordo com o preceituado no artigo 344.º, n.º 1, do mesmo código «as regras dos artigos anteriores invertem-se quando haja presunção legal (…), e, de um modo geral, sempre que a lei o determine».
Ora, no caso em apreço, em cumprimento do disposto no indicado artigo 342.º, n.º 1, do CC, o A. juntou aos autos prova documental - o escrito referido em a) a d) da matéria de facto provada, denominado “Contrato-Promessa de Compra e Venda” - dos factos que alegou na petição inicial relativamente ao acordo que alegou ter celebrado com o R., em 31 de Março de 2014, no qual figura o R. como primeiro outorgante e, ele autor, como segundo outorgante, relevando ainda atentar que, no documento particular em apreço encontram-se apostas rúbricas/assinaturas, ali referidas como sendo de cada uma das partes outorgantes: a do autor, na qualidade de promitente-comprador, e a do réu, na qualidade de promitente-vendedor.
Conforme decorre do preceituado no artigo 374.º, n.º 1, do CC, «a letra e a assinatura, ou só a assinatura, de um documento particular consideram-se verdadeiras, quando reconhecidas ou não impugnadas pela parte contra quem o documento é apresentado, ou quando esta declare não saber se lhe pertencem, apesar de lhe serem atribuídas, ou quando sejam havidas legal ou judicialmente como verdadeiras».
No caso vertente, o Réu, ora Recorrido, confrontado com o documento em causa, alegou na sua contestação que o mesmo era um mero draft não consubstanciando a subscrição de um contrato com aqueles termos, que não pretendia celebrar.
Como vimos, o julgador considerou que «não ficaram por provar quaisquer factos constantes nos temas da prova, nem se provou qualquer outro facto com interesse processual ou relevância para a decisão», não tendo existido recurso, sequer subordinado.
Acresce que, a «impugnação» a que alude o artigo 374.º, n.º 1, CC, não configura uma referência à «impugnação» a que se refere o artigo 571.º do CPC relativa à mera contradição pelo réu dos factos articulados na petição inicial, referindo-se antes à impugnação da genuinidade do documento prevista no artigo 444.º, n.º 1, do CPC, enquanto incidente da instância, porque é através deste concreto meio processual que se procede, no que ora importa, «à impugnação da letra ou assinatura do documento particular».
Consequentemente, só podemos concluir que, não tendo sido impugnadas, as assinaturas constantes do documento em questão nos autos, consideram-se verdadeiras.
Assim sendo, atento o disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 376.º do CC, encontrando-se reconhecida a autoria do referido documento particular, ou seja, a sua subscrição por Autor e Réu, e não tendo sido validamente arguida e provada a falsidade do mesmo ou provada factualidade que conduzisse à sua nulidade, tal escrito faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, considerando-se provados os factos compreendidos na declaração na medida em que forem contrários aos interesses do declarante.
Deste modo, tratando-se de prova vinculada não pode ser afastada por qualquer outro meio de prova, por isso que se torne inútil a pretendida reapreciação dos depoimentos das identificadas testemunhas, porquanto do acervo documental junto aos autos e da matéria provada nas alíneas e) a i), que não foi impugnada pelo Recorrido, emergem os factos essenciais que, por si só, bastam para a apreciação do respectivo mérito, os quais não têm que constar na formulação da sentença nos exactos termos vertidos na petição inicial.
Efectivamente, conforme se expendeu no Acórdão da Relação de Coimbra de 17-12-2014[9]: «A demonstração da genuinidade do texto do documento particular transforma o documento em confessório, i.e., os factos nele relatados consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante.
A confissão extrajudicial segue a regra segundo a qual a confissão tem o valor probatório do meio pelo qual é comunicado ou adquirido pelo tribunal, pelo que, se for comunicada por documento autêntico ou documento particular genuíno e tiver sido feita à parte contrária, tem força probatória plena qualificada».
Ora, «na prova plena qualificada, a prova do contrário – que vincula a contraparte - não pode fazer-se por testemunhas ou presunções judiciais.
Incorre num error in iudicando, no julgamento da matéria de facto, a decisão que, por erro, considera controvertido e, portanto, necessitado de prova, um facto plenamente provado»
Deste modo, fácil é compreender as razões pelas quais, provada a subscrição pelas partes nesta acção do indicado documento, e não provado qualquer vício que o inquine, a celebração do indicado acordo constante do referido documento impõe decisão diversa da recorrida, por estar plenamente provada por documento a matéria de facto essencial.
Na verdade, a alegação de factos constitutivos do direito pode ser feita mediante a junção do documento em que estes constem, sendo que a remição para o mesmo satisfaz o ónus de alegação de tais factos[10].
Assim, pese embora no documento a que nos vimos referindo não conste concretizado o “preço”, o certo é que o mesmo resulta concretizável, bastando para o efeito concatenar o teor das cláusulas primeira e terceira deste, com o valor constante da escritura de compra e venda junta a fls. 11 e seguintes dos autos, não impugnada pelo réu, da qual emerge que o imóvel em questão foi adquirido pela interveniente e pelo réu pelo valor de noventa e quatro mil oitocentos e sessenta euros, que as ali identificadas vendedoras declararam já ter recebido.
Deste modo, atenta a declaração confessória constante do final da cláusula primeira do contrato-promessa de compra e venda, de que aquela aquisição foi efectuada pelo primeiro outorgante com dinheiro emprestado pelo segundo outorgante, sem vencimento de juros e sem prazo de entrega, e que o valor a declarar na escritura como preço ou dação em pagamento é o mesmo da aquisição «atendendo a que este acto visa o pagamento do dinheiro aplicado no prédio da responsabilidade do primeiro outorgante», facilmente se conclui nos termos constantes do artigo 3.º da petição inicial quanto ao preço, devendo consequentemente aditar-se tal valor à matéria de facto provada.
Concluindo, em face do disposto nos artigos 607.º, n.ºs 4 e 5, 662.º, n.º 1, e 663.º, n.º 2, do CPC, impõe-se tal aditamento à matéria de facto provada em conformidade com a prova produzida, aditando-se uma nova alínea aos factos provados com a redacção seguinte:
j. O valor a que alude a alínea b) é de 47.430,00€ (quarenta e sete mil, quatrocentos e trinta euros).
Acresce que, considerando também o preceituado nos indicados normativos, em face da já indicada escritura de compra e venda, da certidão da Conservatória do Registo Predial relativa ao imóvel em questão, que antecede[11], e da cópia do assento de casamento junta a fls. 117 dos autos, importa ainda considerar que:
k. Por escritura de compra e venda celebrada no dia 29 de Outubro de dois mil e sete, F…, solteira, outorgando por si e na qualidade de gestora de negócios de J…, divorciado, declarou, para si e em nome do seu gestido, aceitar a venda que os ali identificados vendedores declararam efectuar do prédio urbano, referido na alínea a.
l. F... e J… casaram no dia 8 de Agosto de 2008, sem convenção antenupcial, no regime da comunhão de adquiridos.
m. Na Conservatória do Registo Predial de …, mostra-se registada pela Ap. …2014/04/01, a aquisição, por compra, do identificado prédio, a favor de F… e de J….
n. A presente acção foi registada provisoriamente, por natureza, pela Ap. … de 2014/09/29.
No mais, indefere-se a pretensão do Recorrente, mantendo-se a matéria de facto nos termos em que vem fixada da primeira instância.
*****
III.2.3. – Da execução específica do contrato-promessa
O autor intentou a presente acção pedindo a execução específica do contrato-promessa de compra e venda da metade indivisa do prédio urbano que identificou, alegando ter o direito a obter sentença que produza a declaração negocial do promitente vendedor que não compareceu à realização do título equivalente à escritura de compra e venda prevista na promessa.
Ensina a doutrina que o “contrato-promessa é a convenção pela qual, ambas as partes ou apenas uma delas, se obrigam, dentro de certo prazo, ou verificados certos pressupostos, a celebrar determinado contrato[12]”; “é um acordo preliminar que tem por objecto uma convenção futura, o contrato prometido. Mas em si é uma convenção completa, que se distingue do contrato subsequente. Reveste, em princípio, a natureza de puro contrato obrigacional, ainda que diversa seja a índole do contrato definitivo. Gera uma obrigação de prestação de facto, que tem apenas de particular consistir na emissão de uma declaração negocial. Trata-se de um pactum de contrahendo[13]”; (…) É bilateral se ambas as partes se obrigam a celebrar o contrato definitivo; unilateral se apenas uma das partes se vincula”.
A presente acção funda-se precisamente no incumprimento de um contrato-promessa, o qual se mostra regulado no artigo 410.º do CC nos seguintes termos:
“1. À convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato são aplicáveis as disposições legais relativas ao contrato prometido, exceptuadas as relativas à forma e as que, por sua razão de ser, não se devam considerar extensivas ao contrato-promessa.
2. Porém, a promessa respeitante à celebração de contrato para o qual a lei exija documento, quer autêntico, quer particular, só vale se constar de documento assinado pela parte que se vincula ou por ambas, consoante o contrato-promessa seja unilateral ou bilateral”.
Por seu turno, preceitua o n.º 1 do artigo 830.º do CC que «se alguém se tiver obrigado a celebrar certo contrato e não cumprir a promessa, pode a outra parte, na falta de convenção em contrário, obter sentença que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso, sempre que a isso não se oponha a natureza da obrigação assumida».
No caso em apreço, estamos perante um contrato-promessa de compra e venda em que ambas as partes se vincularam. É, portanto, um contrato bilateral, mediante o qual ambas assumiram o cumprimento de uma prestação de facto: a celebração do contrato prometido, ou seja, neste caso, a realização do título equivalente à escritura de compra e venda prevista na promessa.
Efectivamente, pese embora o entendimento vertido na sentença recorrida de que no contrato-promessa em questão estamos perante uma obrigação alternativa, salvo o devido respeito, entendemos que tal não decorre nem do teor do documento nem, sobretudo, da matéria de facto considerada provada, onde consta expressamente a referência ao acordo quanto à celebração do título equivalente à escritura de compra e venda.
De facto, por força do teor do denominado contrato promessa de compra e venda junto aos autos, não restam dúvidas que o réu se obrigou a celebrar contrato translativo da parte que lhe pertence no imóvel em questão, já que prometeu vender ou dar em pagamento, celebrando o contrato que viesse a ser considerado adequado - entenda-se, pelo responsável pela respectiva preparação -, para transmitir para o autor a metade indivisa que lhe pertence do direito de propriedade sobre o ali identificado imóvel, assim satisfazendo, conclui-se do demais clausulado, a quantia que aquele havia emprestado para a respectiva aquisição.
É certo que o Réu tentou esgrimir com o facto de o contrato em apreço não consubstanciar um contrato-promessa de compra e venda, já que havia também a referência a que poderia ser de dação em pagamento. E não é menos certo que o acordo em referência não se enquadra no habitual figurino dos contratos-promessa de compra e venda, o que não significa que não se enquadre de pleno nessa figura jurídica ou que não seja legal nos moldes em que foi efectuado.
Efectivamente, basta a leitura atenta do acordo em questão, e a interpretação das declarações das partes ali vertidas de harmonia com o figurino desenhado nos artigos 236.º a 238.º do CC relativamente à interpretação e integração das declarações negociais, para concluirmos que entre as partes foi celebrado o acordo consubstanciado no escrito particular já referido, cuja denominação, não sendo vinculativa, espelha, porém, a inequivocamente pretendida transmissão da propriedade do outorgante ora Recorrido para o outorgante ora Recorrente.
E, mais, analisando ao pormenor aquele acordo, verificamos que do mesmo constam todos os elementos relevantes que permitem a celebração do contrato definitivo de compra e venda.
De facto, nos termos dos artigos 874.º e 879.º do Código Civil a compra e venda é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa ou outro direito, mediante um preço e tem como efeitos essenciais:
a) - A transmissão da propriedade da coisa;
b) - A obrigação de entregar a coisa;
c) - A obrigação de pagar o preço.
Trata-se de “um contrato instantâneo - ou se cumpre bem ou se cumpre mal - e, por isso mesmo, o cumprimento defeituoso da obrigação de entregar a coisa - al. b) do art. 879.º do CC - é em si mesmo, se o defeito é da coisa, o cumprimento defeituoso … do contrato”[14], o mesmo se aplicando ao pagamento do preço.
Atenta a configuração legal do contrato definitivo, quais são as obrigações que as partes assumem ao celebrar o correspondente contrato-promessa?
Não sofre qualquer dúvida que, a partir do momento em que celebram um contrato-promessa, assumindo a obrigação de celebrar o contrato prometido, à parte que outorga na qualidade de promitente vendedor incumbe, por regra, levar a cabo todas as diligências necessárias para concretizar a transmissão da propriedade e a entrega da coisa, e à que outorga na qualidade de promitente-comprador incumbe-lhe estar no momento do cumprimento em condições de pagar o preço acordado.
No caso, o preço correspondente encontra-se satisfeito pelo comprador por via do empréstimo anteriormente feito da quantia correspondente já que, como vimos supra, do contrato resulta que o mesmo corresponde ao valor do empréstimo efectuado pelo ora Recorrente para aquisição do prédio urbano em causa, naturalmente na parte correspondente a metade já que, nada tendo sido declarado pelos comproprietários na escritura de aquisição, em face do disposto no artigo 1403.º do CC, as quotas de cada um dos adquirentes presumem-se quantitativamente iguais.
Acresce que, Recorrente e Recorrido, acordaram em celebrar o contrato definitivo dois dias depois, no local aprazado. E este prazo curto compreende-se bem se atendermos a que, do lado do promitente-vendedor, bastava registar a aquisição, o que foi feito no dia seguinte à celebração deste contrato-promessa, e do lado do promitente-comprador, o “preço” estava satisfeito, nos termos já referidos, situação que também justifica que logo no acordo em litígio tenha sido feita a referência a que este entraria na “posse” imediata do prédio.
Ora, como resulta do artigo 410.º do CC, no contrato-promessa as partes podem obrigar-se a celebrar o negócio prometido dentro de certo prazo, ou verificados certos pressupostos. No caso, as partes não fizeram depender a celebração do contrato de compra e venda de qualquer pressuposto, e apenas estabeleceram um prazo para a comunicação da data da celebração que seria indicado, pelo promitente-comprador, com a antecedência de 2 dias. Porém, prescindido dessa comunicação posterior, desde logo acordaram que o título equivalente à escritura de compra e venda deveria ser celebrado no dia, hora e local logo indicados.
Porém, o Recorrido não compareceu nesse dia para outorgar o negócio translativo da propriedade, conforme acordara.
Encontra-se, portanto, demonstrado o incumprimento do contrato-promessa de compra e venda por parte do promitente vendedor, já que, tendo sido marcado, por acordo entre as partes, dia para a realização do título equivalente à escritura de compra e venda, o promitente vendedor não compareceu e nunca mais se disponibilizou para o efeito, pese embora o promitente-comprador lhe tenha efectuado solicitações nesse sentido.
Acerca da natureza e finalidades do prazo estabelecido pelas partes para a celebração do contrato definitivo, louvamo-nos na síntese efectuada no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Janeiro de 2011[15], com recurso aos ensinamentos da mais autorizada doutrina, onde, citando Vaz Serra na RLJ, Ano 110, págs. 326 e 327, se afirmou que:
«A estipulação de um prazo para execução de um contrato não tem sempre o mesmo significado. Pode querer dizer que, decorrido o prazo, a finalidade da obrigação não pode já ser obtida com a prestação ulterior, caducando por isso o contrato; mas pode também ser apenas uma determinação do termo que não obste à possibilidade de uma prestação ulterior, que satisfará ainda a finalidade da obrigação, caso em que o termo do prazo não importa a caducidade do contrato, mas tão-somente a atribuição ao credor do direito de resolvê-lo.
Na primeira hipótese, estamos perante um negócio fixo absoluto.
Na segunda, estamos perante um negócio fixo, usual, relativo ou simples.» [cfr. sobre a mesma matéria, Baptista Machado, “Obra Dispersa”, vol. I, pág. 187 a 193].
Brandão Proença, “Do incumprimento do contrato-promessa bilateral”, pág. 109 e ss., a propósito, ensina: “…É natural e normal que os promitentes incluam, no contrato, uma cláusula de termo, estipulada, em regra e implicitamente, a favor de ambos, o que significa fazer recair sobre os contraentes, não só o dever de cooperação para a marcação do dia, hora e loca da celebração do contrato definitivo, na ausência da sua indicação, mas também uma presunção de culpa nesse incumprimento. …», para, mais adiante, afirmar “… Importante é a indagação do significado do prazo certo fixado para serem emitidas as declarações de vontade e que terá de ser deduzido do material interpretativo fornecido pelas partes, da natureza da promessa, do comportamento posterior dos promitentes (existência ou não de prorrogações) ou de outras circunstâncias coadjuvantes.
O fulcro da questão reside na essencialidade (subjectiva) ou não do termo fixado como característica inerente ao contrato, e na sua projecção no acordo celebrado. …”.
In casu, não nos encontramos perante um negócio fixo absoluto (no dizer de Sacco, perante um “prazo fatal”; ou, no dizer de Baptista Machado, perante um termo essencial objectivo ou termo essencial subjectivo absoluto, em que a finalidade da obrigação não pode já ser almejada, impondo-se uma caducidade do contrato ou resolução automática; dos termos do contrato resulta que estamos perante um “negócio fixo relativo”».
Aplicando estas judiciosas considerações ao caso vertente, podemos de imediato concluir que a fixação do prazo no contrato promessa, sem que do seu decurso as partes tivessem estabelecido qualquer consequência, não permite concluir que ultrapassado o mesmo, a finalidade do acordo não pudesse ser ainda cumprida.
De facto, desde logo porque não nos encontramos perante um termo essencial objectivo (impróprio), porquanto, a prestação de um ou outro dos contraentes não surge vinculada a um fim que seja parte do conteúdo do negócio, tornando-se impossível a prestação por não ser tempestivamente realizada[16]. Ao invés, o mais que podemos concluir na fixação da data de realização da escritura no prazo indicado e, portanto, de um prazo para cumprimento do contrato-promessa, é pela existência de um termo essencial subjectivo relativo, significando a sua não observância a possibilidade de atribuição de um fundamento para o direito de resolução do contrato por parte do credor, transformando a mora em incumprimento definitivo, ou havendo apenas mora, na opção pela exigência do cumprimento retardado com a substituição da declaração de venda prometida.
Revertendo ao caso dos autos, verificamos que se encontra provado que A. e R., de comum acordo, prescindindo do prazo mínimo estabelecido, agendaram para as 09 horas do dia 02 de Abril de 2014 o título Casa Pronta do Processo n.º 1…/2014 na Conservatória do Registo Predial e Comercial de …, em substituição e para os mesmos efeitos da escritura; que o R. não compareceu à realização do título equivalente à escritura de compra e venda prevista na promessa e quando questionado sobre a razão de falta de comparência, respondeu que não outorgava o título, que ia pensar melhor e nos finais de Agosto havia de ter alguma coisa para dizer. Instado nos finais de Agosto de 2014, o R. disse que para os princípios de Setembro teria alguma resposta para dar, sendo que nos princípios do mês de Setembro, o A. perguntou novamente ao R. se já tinha decidido outorgar ou não o título ou a escritura prevista no contrato, de novo retorquiu que não comparecia nem tinha que apresentar qualquer justificação.
Conclui-se, pois, que o Recorrido se encontra em mora na celebração do contrato prometido em face do disposto no artigo 804.º, n.º 2, do CC, à data da interposição da presente acção, isto porque, se verificava objectivamente o retardamento da prestação que não foi executada no momento acordado entre ambos, nem depois das solicitações do promitente-comprador para o efeito, quando então tal ainda era possível, por continuar a ter interesse para este, revelado precisamente pelo pedido deduzido na presente acção.
Ora, «[a] fim  de  “pôr  ordem”  onde  parece  reinar  alguma  confusão, importa reter que o pressuposto da chamada execução específica do contrato-promessa é a mora e não o incumprimento definitivo». É esta hoje a posição que cremos ser praticamente pacífica, quer na doutrina quer na jurisprudência, e expressa nos aludidos termos por Calvão da Silva[17], bastando para a execução específica a mora no cumprimento do contrato por parte do promitente faltoso.
Acresce que, conforme foi decidido no Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 30.01.1985[18], agora com o valor de Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, «o contrato-promessa de compra e venda de imóveis que conste de documento particular assinado pelos promitentes é susceptível de execução específica, nos termos do artigo 830.º, n.º 1, do Código Civil (…)».
Assim sendo, e tendo presente que, conforme decorre da certidão da Conservatória do Registo Predial junta aos autos, sobre o imóvel objecto do contrato promessa em apreço não incidem quaisquer ónus ou encargos, encontrando-se registada a sua aquisição a favor do Réu e da interveniente, que manifestou por via da posição assumida nesta acção o necessário consentimento (artigo 1408.º, n.º 1, do CC), mostrando-se ainda efectuado o registo da acção, não existe qualquer impedimento a que o tribunal substitua a declaração negocial do contraente faltoso, conforme peticionado.
Na verdade, conforme é sabido, a decisão do tribunal que julgue o pedido de execução específica produz os efeitos do contrato prometido, e, por isso, apesar de a lei se referir a execução, estamos ainda no âmbito de uma acção de natureza constitutiva. Significa isto que, no momento em que a decisão do tribunal substitua a manifestação de vontade das partes, e porque esta possui a eficácia que teria a válida celebração do contrato prometido, os seus efeitos retroagem à data do registo da acção.
«Em tais situações, por força dos princípios registrais, a sentença que determine a execução específica prevalece sobre uma alienação, feita a terceiro, depois do registo da acção, quer essa alienação se encontre ou não registada. (…) Efectivamente, o registo da acção apenas amplia os efeitos da respectiva sentença, tornando-a oponível, não só às partes, mas também a terceiros que tenham adquirido direitos sobre a coisa na pendência do pleito»[19].
Deste modo, no caso em apreço, não havendo incumprimento definitivo, a mora do Apelado abre ao Apelante a porta da execução específica daquela prestação, que na espécie foi até expressamente convencionada, posto que não se verificam também nenhuma das situações que se encontram expressamente salvaguardadas no n.º 1, in fine, do artigo 830.º do CC, e aquela não é incompatível com a obrigação assumida, uma vez que o contrato definitivo não é impossível ou ilícito, e o recorrente não se propõe obter com a acção, aquilo que seria impossível obter pelo simples cumprimento do contrato promessa[20].
Em conclusão, inexistindo qualquer facto impeditivo do decretamento do pedido de execução específica, não podemos deixar de concluir pela procedência, nos termos expostos, do presente recurso.

III - Decisão
Face ao exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação, revogando-se a sentença recorrida, e, em consequência, condenamos o Réu J… a ver produzidos os efeitos da sua declaração negocial em falta, e decretada a transmissão, a favor do Autor C…, da metade indivisa àquele actualmente pertencente, do prédio urbano situado em …, composto por um lote de terreno para construção, com a área de 672 m2, a confrontar …, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º …, e inscrito na matriz sob o artigo ….
Custas pelo Recorrido, nesta Relação e na Primeira Instância – artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC.
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Évora, 22 de Fevereiro de 2017
Albertina Pedroso (relatora) [21]
Tomé Ramião
Francisco Xavier
_______________________________________________
[1] Juízo de Competência Genérica de Lagos, Juiz 2.
[2] Relatora: Albertina Pedroso;
1.º Adjunto: Tomé Ramião;
2.º Adjunto: Francisco Xavier.

[3] Doravante abreviadamente designado CPC.
[4] Cfr. José Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil, Anotado, vol. V, págs. 142 e ss; e Ac. STJ de 19-04-2012, processo n.º 9870/05.5TBBRG.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[5] Cfr. neste sentido, exemplificativamente, Ac. STJ de 12-01-2010, processo n.º 630/09.5YFLSB; Ac. TRL de 20-12-2010, processo n.º 1650/10.2TBOER-A.L1-1; e Ac. TRC de 29-02-2012, processo n.º 144732/10.9YIPRT.C1, todos disponíveis em www.dgsi.pt. Este entendimento jurisprudencial pacífico estriba-se na doutrina já defendida por José Alberto dos Reis que a propósito do correspondente normativo afirmava que se impõe ao juiz o dever de resolver todas as questões que as partes tiverem submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, resultando a nulidade, precisamente, da infracção pelo juiz desse dever que lhe está legalmente cometido. Mais recentemente, cfr. no mesmo sentido, Jorge Augusto Pais de Amaral, in Direito Processual Civil, 7.ª edição, Almedina 2008, pág. 391.
[6] In Direito Processual Civil, vol. II, Almedina 2015, pág. 371.
[7] Cfr. Ac. STJ de 22-10-2015, Revista n.º 2844/09.9T2SNT.L2.S1 - 7.ª Secção.
[8] Doravante abreviadamente designado CC.
[9] Proferido no processo n.º 98/11.6TBSCD.C1, disponível em www.dgsi.pt.
[10] Cfr. neste sentido, Acórdão STJ de 27.01.2010, Revista n.º 2818/07.4TBGDM.S1 - 7.ª Secção, disponível em www.stj.pt, Sumários de Acórdãos.
[11] Junta aos autos na sequência de determinação da ora Relatora, ao abrigo do disposto no artigo 652.º, n.º 1, alínea d), do CPC.
[12] Cfr. Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, 6.ª ed., I vol. pág. 301.
[13] Cfr. Galvão Telles, in Direito das Obrigações, 6.ª ed., págs. 83 e 84.
[14] Ac. STJ, de 07-05-2009, Revista n.º 57/09 - 7.ª Secção, disponível em Sumários de Acórdãos, in www.stj.pt.
[15] Proferido no processo n.º 872/07.8TVPRT.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[16] Cfr. Baptista Machado, Pressupostos da Resolução por Incumprimento, Obra dispersa, Braga, 1991, vol. I, pág. 188.
[17] In Sinal e Contrato-Promessa, 14.ª edição, Almedina 2017, pág. 137 e abundante jurisprudência citada na nota 179.
[18] Cfr. DR, I Série, n.º 53, de 5 de Março de 1985.
[19] Cfr. Mário Júlio de Almeida Costa, Contrato-Promessa. Uma síntese do regime actual, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 50, nota de rodapé 69, pág. 51, no sentido já preconizado no seu Direito das Obrigações, 4.ª edição, págs. 279 e 280.
[20] Cfr. citado Acórdão TRC.
[21] Texto elaborado e revisto pela Relatora.