Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
443/12.7YREVR.E1
Relator: SÉRGIO CORVACHO
Descritores: PROVA DOCUMENTAL
Data do Acordão: 02/04/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I – No âmbito de uma conduta integradora de um crime de peculato p. e p. pelo art. 375º nº 1 do CP, só deve dar-se como provada a apropriação pela arguida CF, funcionária da ofendida das quantias suportadas por documentos credíveis emitidos
por fornecedor (factura, venda a dinheiro, recibo ou talão de caixa) e não com base em meros documentos internos da entidade patronal.

II – Os arts. 164º a 170º do CPP regem produção de prova documental em processo criminal, incluindo a respectiva falsidade, em termos que se nos afiguram autónomos, pelo que se não justifica, a esse respeito, o apelo a normas do direito processual civil, por força da remissão operada pelo art. 4º do CPP, por inexistir lacuna de lei.

III – Não tendo ficado que o arguido RF determinou a arguida CF, com quem era casado ao tempo dos factos, a apropriar-se de quantias monetárias pertencentes à entidade para a qual ambos trabalhavam, nem que ele tivesse prestado alguma colaboração concreta aos actos de apropriação comprovadamente efectuados pela arguida, terá o arguido de ser absolvido do crime em causa.

Decisão Texto Integral: ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

I. Relatório

Por acórdão do Tribunal Colectivo proferido em 28/9/16, no Processo Comum nº 443/12.7TAALR, que correu termos no Juízo Central Criminal de Santarém do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, foi decidido:

a) Absolver RPRF pela prática, em co-autoria material, de um crime de peculato, previsto e punido pelos artigos 375.º, n.º 1, do Código Penal, na redacção da Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, aplicável ex vi artigo 386.º, n.º 1, alínea c), do mesmo diploma legal e no artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 119/83, de 25 de Fevereiro, com as alterações introduzidas pelos Decretos -Leis n.ºs 9/85, de 9 de Janeiro, 89/85, de 1 de Abril, 402/85, de 11 de Outubro, e 29/86, de 19 de Fevereiro (Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social).

b) Condenar CIAMF pela prática, em autoria material, de um crime de peculato, previsto e punido pelos artigos 375.º, n.º 1, do Código Penal, na redacção da Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, aplicável ex vi artigo 386.º, n.º 1, alínea c), do mesmo diploma legal e no artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 119/83, de 25 de Fevereiro, com as alterações introduzidas pelos Decretos -Leis n.ºs 9/85, de 9 de Janeiro, 89/85, de 1 de Abril, 402/85, de 11 de Outubro, e 29/86, de 19 de Fevereiro (Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social), pena de 3 (três) anos de prisão;

c) Determinar a suspensão da execução da pena de prisão aplicada a CIAMF pelo período de 3 (três) anos, sujeita ao dever da mesma entregar à ARPICA – Associação de Reformados, Pensionistas e Idosos do Conselho de Alpiarça, integral ou faseadamente, da quantia de €4.370,85 (quatro mil trezentos e setenta euros e oitenta e cinco cêntimos), mediante a realização de depósito à ordem dos presentes autos, até ao termo do período da suspensão da execução da pena;

Com base nos seguintes factos, que então se deram como provados:

1) CF foi trabalhadora da Associação de Reformados, Pensionistas e Idosos do Concelho de Alpiarça, instituição particular de solidariedade social e pessoa colectiva de utilidade pública, que tem como finalidade o apoio à família, a integração social e comunitária, a protecção dos cidadãos na velhice e em todas as situações de carência, do concelho de Alpiarça, vulgarmente identificada pelas respectivas iniciais ARPICA.

2) CF trabalhou para a ARPICA, desde 1 de Junho de 1999 até 15 de Novembro de 2012, data em que lhe foi aplicada a sanção disciplinar de despedimento, exercendo sempre funções de chefe de secretaria.

3) Na secretaria, também exercia funções APPLG, também trabalhadora da ARPICA, que laborava sob as orientações e supervisão de CF.

4) No âmbito das funções de chefe de secretaria que exercia, competia a CF, em concreto, acompanhar todos os processos relativos à Segurança Social e ao Instituto do Emprego e Formação Profissional, processar os salários dos trabalhadores da instituição e as mensalidades dos utentes, proceder ao pagamento de despesas e aos fornecedores, tanto em cheque como em numerário, fazer as compras dos produtos de mercearia para a instituição, proceder aos depósitos bancários e aos levantamentos em numerário da conta bancária titulada pela ARPICA e, na ausência da outra trabalhadora da secretaria, receber as mensalidades dos utentes.

5) Quando recebiam pagamentos, que podiam ser feitos em numerário, cheque ou por transferência bancária, CF ou a outra trabalhadora da secretaria deviam efectuar um registo informático dessa operação, registar na folha de caixa e emitir um documento comprovativo que era entregue ao pagador. Os valores eram guardados num cofre existente na secretaria, de que ambas tinham a chave, e eram posteriormente depositados no banco, o que sucedia três a quatro vezes por mês.

6) Quando se tratava do recebimento de mensalidades pagas pelos utentes, que podiam ser feitos em numerário, cheque ou por transferência bancária, em regra, era a outra trabalhadora da secretaria que os recebia, emitia o recibo e registava na folha de caixa, competindo a CF registar tal pagamento na pasta da contabilidade, que iria para o Técnico Oficial de Contas, e dar baixa na aplicação informática dos utentes.

7) Os valores eram guardados num cofre existente na secretaria, de que ambas tinham a chave, e eram posteriormente depositados no banco, o que sucedia três a quatro vezes por mês.

8) O pagamento de despesas era efectuado apenas por CF ou, na sua ausência, pela outra funcionária após autorização daquela, recolhendo aquela previamente junto da direcção um cheque assinado, em branco, ou retirando do cofre o valor necessário ao pagamento, o qual devia ser sempre efectuado com base na apresentação da respectiva factura/recibo justificativo, sendo o valor pago registado na folha de caixa ou no documento de saída de cheque.

9) RF exerceu funções como tesoureiro da ARPICA, desde 21 de Março de 2002 até 31 de Julho de 2012, data em que renunciou ao cargo.

10) No exercício das suas funções, competia a RF fiscalizar e controlar a contabilidade da ARPICA.

11) À data dos factos, CF e RF eram casados entre si, coabitando e fazendo vida em comum.

12) Em data não concretamente apurada mas anterior a 1 de Janeiro de 2009, CF decidiu passar a aproveitar-se do benefício da mesma ter acesso fácil a quantias monetárias pertença da ARPICA, que manuseava ou a que podia aceder no exercício das funções de chefe de secretaria acima indicadas, integrando-as no património pessoal ou do casal.

13) Na execução daquela decisão, desde 1 de Janeiro de 2009 até 31 de Julho de 2012, CF apoderou-se de diversas quantias monetárias pertencentes à ARPICA, que fez coisa sua, utilizando-as em proveito próprio e integrando-as no seu património pessoal.

14) CF apoderou-se de tais quantias, designadamente, através dos meios que a seguir se descrevem.

15) Mensalmente, CF deslocava-se às compras para a ARPICA, munindo-se previamente de cheque em branco, assinado pelos representantes da instituição, ou da quantia em numerário prevista como necessária que retirava do cofre existente na secretaria, por norma, entre os €400,00 (quatrocentos euros) a €500,00 (quinhentos euros).

16) Enquanto procedia às compras dos produtos necessários para a ARPICA, CF também colocava no carrinho de compras produtos para seu uso pessoal ou do seu agregado familiar, que, chegados à caixa do supermercado, eram pagos conjuntamente com os produtos adquiridos para a ARPICA e com o dinheiro ou o cheque da instituição, não procedendo a mesma à reposição das quantias correspondentes ao preço dos artigos que comprara para si própria.

17) Os produtos que CF comprava e pagava com dinheiro da ARPICA eram sobretudo produtos de limpeza, produtos de beleza, fraldas, toalhetes, pasta dentífrica, champô e gel de banho, alimentação para animais, vestuário, tabaco e pratos de plástico, para além de diversos géneros alimentícios, cuja natureza, tipo e marca não eram consumidos na instituição.

18) Em algumas ocasiões, CF deslocou-se a outros estabelecimentos comerciais onde a ARPICA não se abastecia e adquiriu exclusivamente artigos para seu uso pessoal ou familiar, que pagou com dinheiro da ARPICA sem proceder a qualquer reposição posterior do montante gasto, o que sucedeu, com a aquisição:

- No dia 20 de Janeiro de 2012, de uma torradeira e um rádio, no valor total de €56,89 (cinquenta e seis euros e oitenta e nove cêntimos);

- No dia 25 de Janeiro de 2012, de uma máquina de café, no valor de €79,00 (setenta e nove euros);

- No dia 30 de Maio de 2012, de livros escolares, no valor total de €37,04 (trinta e sete euros e quatro cêntimos);

- No dia 31 de Maio de 2012, de géneros alimentícios, no valor de €35,17 (trinta e cinco euros e dezassete cêntimos) e €19,02 (dezanove euros e dois cêntimos);

- No dia 20 de Junho de 2012, de tinteiros para impressora, agrafador, blocos de notas e material afim, no valor total de €271,48 (duzentos e setenta e um euros e quarenta e oito cêntimos);

- No dia 20 de Junho de 2012, de um pijama de homem, no valor de €9,99 (nove euros e noventa e nove cêntimos), e de equipamento de desporto para criança, no valor de €137,41 (cento e trinta e sete euros e quarenta e um cêntimos.

19) Através dos procedimentos acima descritos, CF apoderou-se da quantia total de, pelo menos, €4.370,85 (quatro mil trezentos e setenta euros e oitenta e cinco cêntimos), que fez sua e utilizou em proveito próprio ou do seu agregado familiar, correspondente ao valor gasto pela ARPICA, desde 1 de Janeiro de 2009 a 31 de Julho de 2012, com o pagamento das refeições e dos produtos adquiridos por CF a título pessoal.

20) CF agiu de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito concretizado de fazer suas as quantias monetárias de que se foi apoderando desde 1 de Janeiro de 2009 a 31 de Julho de 2012, acima referidas, no valor global de, pelo menos, €4.370,85 (quatro mil trezentos e setenta euros e oitenta e cinco cêntimos), que sabia não lhe pertencer, tendo delas disposto como se fossem coisa sua, gastando-as em despesas pessoais e integrando-as no seu património pessoal.

21) Sabia CF que tinha acesso a tais quantias apenas em razão das funções de chefe de secretaria que exercia na ARPICA e que as mesmas a esta instituição pertenciam.

22) CF estava ciente que a sua conduta era proibida e punida criminalmente e, não obstante, não se absteve de a praticar.

23) CF nasceu em França, país onde os pais se encontravam a residir, procurando melhores condições económicas.

24) Quando CF contabilizava cerca de sete anos de idade, o agregado familiar, constituído pela arguida, os progenitores e o seu único irmão, regressou ao país de origem, tendo estabelecido residência em Alpiarça.

25) O processo de desenvolvimento de CF, decorreu num ambiente familiar de entreajuda, afectivo e harmonioso, aos vários níveis, onde lhe foi proporcionado a transmissão de regras e valores aceites em termos sociais.

26) CF iniciou o percurso escolar aos 6 (seis) anos de idade em França, tendo retomado o primeiro ano de escolaridade com o regresso a Portugal.

27) CF cumpriu o trajecto escolar de forma regular até concluir o 11.º ano de escolaridade, acabando mais tarde por terminar o ensino secundário.

28) Em termos profissionais, CF iniciou o percurso ainda quando estudava, nomeadamente fazia campanhas agrícolas nos períodos de férias escolares.

29) Após terminar os estudos, CF trabalhou durante algum tempo numa loja de roupa e mais tarde como administrativa num escritório, onde permaneceu cerca de quatro anos.

30) Posteriormente, por volta do ano de 1998, CF integrou os quadros da ARPICA, onde permaneceu aproximadamente treze anos, passando à categoria de chefe de secretaria, acabando por se despedir após a instauração do presente processo judicial.

31) Desde então, CF trabalhou cerca de seis meses no Hospital CUF em Santarém, e na Imobiliária “ERA”, onde ainda desempenha funções de vendedora/comissionista.

32) Em 1997, CF contraiu matrimónio com Renato Fernandes, tendo desta relação nascido dois filhos.

33) Há cerca de três anos, o casal acabou por se divorciar, masum ano depois voltaram a contrair matrimónio.

34) À data dos factos, tal como actualmente, CF residia com o marido, RF e os dois filhos do casal, de 14 (catorze) e 19 (dezanove) anos de idade.

35) Os filhos de CF encontram-se a estudar, sendo que o mais velho já ingressou no ensino superior.

36) O agregado familiar reside em casa própria, que corresponde a uma moradia situada em Almeirim, dispondo a mesma de condições favoráveis de habitabilidade.

37) Em termos económicos, o agregado subsiste do vencimento de CF, bem como do marido, enquanto funcionário na …………….., cujo valor ronda os €400,00 (quatrocentos euros) e os €800,00 (oitocentos euros) mensais, respectivamente.

38) Como despesas, o agregado apresenta apenas os bens essenciais e as despesas escolares dos filhos.

39) Em termos de ocupação dos tempos livres, CF não se encontra integrada em qualquer actividade estruturada.

40) Socialmente CF apresenta uma inserção comunitária positiva, não existindo qualquer participação judicial junto dos órgãos policiais da área de residência.

41) Presentemente, CF dispõe de um enquadramento familiar gratificante, tendo sobretudo para o marido e filhos forte vinculação afectiva, apresenta uma situação profissional estável com hábitos de trabalho e em termos comunitários revela uma integração social adequada às normas sociais, aspectos que em nossa opinião se constituem como os principais factores de protecção da mesma.

42) CIAMF não tem antecedentes criminais.

O mesmo acórdão julgou os seguintes factos não provados:

I) Em data não concretamente apurada mas anterior a 1 de Janeiro de 2009, RF decidiu passar a aproveitar-se do benefício de CF ter acesso fácil a quantias monetárias pertença da ARPICA, que manuseava ou a que podia aceder no exercício das funções de chefe de secretaria acima indicadas, integrando-as no património pessoal ou do casal.

II) Na secretaria da ARPICA, quando se encontrava no exercício das suas funções, por inúmeras vezes e em datas que em concreto se não logrou apurar mas dentro do período temporal compreendido entre 1 de Janeiro de 2009 e 31 de Julho de 2012, CF apoderou-se de diversas quantias em numerário pertencentes à instituição, designadamente quantias que se encontravam guardadas no cofre existente na secretaria e quantias entregues pelos utentes da ARPICA a título de pagamento das mensalidades, perfazendo o montante total de €104.537,00 (cento e quatro mil quinhentos e trinta e sete euros), assim descriminado:

a) €79.787,52 (setenta e nove mil setecentos e oitenta e sete euros e cinquenta e dois cêntimos) que, no período temporal acima referido, entraram em caixa, foram contabilizados pela tesouraria e integraram o património da ARPICA, mas não se encontravam em caixa no dia 31 de Julho de 2012 porquanto CF os foi retirando, ao longo daquele período temporal, por inúmeras vezes, para gastos pessoais e familiares;

b) €17.489,29 (dezassete mil quatrocentos e oitenta e nove euros e vinte e nove cêntimos), correspondentes a pagamentos de mensalidades efectuados por utentes da ARPICA, recebidos entre 1 de Janeiro de 2009 e 28 de Março de 2012, identificados através de recibos manuais que CF nunca registou na contabilidade da instituição, encontrando-se aquela quantia em falta, a 31 de Julho de 2012, que a mesma fez sua;

c) €7.260,19 (sete mil duzentos e sessenta euros e dezanove cêntimos), correspondentes à diferença, que CF fez sua, entre os valores constantes do programa de emissão de recibos aos utentes e os correspondentes registos na contabilidade, sendo que a mesma registava estes últimos com valores inferiores àqueles que foram recebidos e inseridos no programa, encontrando-se aquela quantia em falta, a 31 de Julho de 2012.

III) Com o propósito de justificar a saída das quantias monetárias de que se ia apoderando, CF registava pagamentos nas folhas diárias de caixa sem qualquer documento comprovativo da despesa. Em outras ocasiões, registava pagamentos em dinheiro aos fornecedores, na data dos fornecimentos, quando o pagamento só iria ser efectuado no fim do mês, através de cheque.

IV) Tal sucedeu, designadamente, com o pagamento de combustível (a Jacinto Martins Nunes e a “Hugsan – Comércio de Combustíveis, Lda.”), de produtos hortícolas (a Arlindo Rosa Estevam), de material fornecido pela PMAP – Equipamento de Escritório, Lda., de oficina automóvel (a “MB Pneus Marques & Bernardo, Lda.”), de pescado congelado (a “Filmar – Comercialização de Produtos Congelado, Lda.”).

V) Com o mesmo propósito, CF também contabilizou como despesa da ARPICA a aquisição de um computador, no valor de €449,00 (quatrocentos e quarenta e nove euros), e de duas impressoras, no valor de €55,99 (cinquenta e cinco euros e noventa e nove cêntimos) e €59,88 (cinquenta e nove euros e oitenta e oito cêntimos), que se encontravam ao serviço da instituição, mas haviam sido pagas exclusivamente com dinheiro de algumas funcionárias do sector da saúde, sem que a ARPICA as tivesse reembolsado, como aquela bem sabia.

VI) RF agiu de forma livre, deliberada e consciente, de acordo com a decisão que delineou em conjunto com CF e com o propósito concretizado de fazer suas as quantias monetárias de que a mesma se foi apoderando desde 1 de Janeiro de 2009 a 31 de Julho de 2012, acima referidas, no valor global de €109.962,97€ (cento e nove mil, novecentos e sessenta dois euros e noventa e sete cêntimos), que sabia não lhes pertencerem, tendo delas disposto como se fossem coisa sua, gastando-as em despesas pessoais e integrando-as no seu património pessoal ou do casal.

VII) Sabia RF que CF tinha acesso a tais quantias apenas em razão das funções de chefe de secretaria que exercia na ARPICA e que as mesmas a esta instituição pertenciam.

VIII) RF estava ciente que a sua conduta era proibida e punida criminalmente e, não obstante, não se abstiveram de a praticar.

Do referido acórdão a assistente «Arpica – Associação de Reformados Pensionistas e Idosos do Concelho de Alpiarça» veio interpor recurso devidamente motivado, tendo formulado as seguintes conclusões:

A) - Discorda a ora recorrente, em absoluto, da posição dos Mm.º s Juízes, em absolver o arguido RF pela prática, em co-autoria material, de um crime de peculato e determinar a suspensão da execução da pena de prisão aplicada a CIAMF pelo período 3 (três) anos, sujeita ao dever da mesma entregar à ARPICA - Associação de Reformados, Pensionistas e Idosos do Conselho de Alpiarça, integral ou faseadamente, da quantia de €4.370,85, em vez do total apurado no Relatório Pericial no valor de 109.962,97€, pois em seu entender, quer a prova documental existente nos autos quer os depoimentos das testemunhas são suficientes para ter sido proferido acórdão que reconhecesse como provados os factos que sustentem a condenação dos arguidos, como se passará a discriminar.

B) - Por meio de acórdão veio o Tribunal a quo:

(segue reprodução do segmento decisório do acórdão recorrido)

C ) O Tribunal considerou como factos provados em III Fundamentação, A)- Fundamentação de Facto 1º Factos provados, os referenciados em 1) a 42) , com os quais a recorrente concorda.

D) - No entanto, os Mm.s Juízes a quo, consideraram como factos não provados em III- Fundamentação de Facto, 2.º Factos Não Provados, constantes entre I) a VIII), com os quais recorrente não concorda, pois, em seu entender, perante a prova documental e pericial, bem como os depoimentos das testemunhas inquiridas, dever-se-iam dar como provados tais factos:

E) – Na verdade, o tribunal fundamentou a sua convicção no depoimento de várias testemunhas, cujo resumo consta em 3º Motivação de Facto.

E.1) - Assim, as testemunhas AFA e JPAO, de acordo com o acórdão recorrido, confirmaram o seguinte, conforme está referenciado na gravação - registo 20180619123622_2739504_2871702, entre 3:13 e 15:59, enquanto que o depoimento de João Pedro Antunes Osório está referenciado na gravação - registo 20180619151548_2739504_2871702, entre 1:58 e 22:21:

- A notícia de “falta de dinheiro da Associação” foi dada pelo contabilista AD ao remeter à ARPICA carta, em virtude desta foi suscitada a questão perante o arguido RF (tesoureiro da instituição), que invocou que estava em causa um mero “erro informático”.

-Nesta sequência, foi agendada assembleia que se encontra documentada em acta, a qual AA assevera que decorreu exatamente nos termos exarados no mesmo documento, apesar dos arguidos a posteriori terem recusado subscrevê-la.

-Que foram entregues à arguida diversos cheques em branco com vista à realização pela mesma de pagamentos de bens ou serviços adquiridos pela instituição, que era a arguida a única responsável pela realização dos pagamentos, que a mesma também realizava pagamentos em numerário com o dinheiro disponível na caixa.

- Que a arguida CF reconheceu que se apropriou de algumas quantias monetárias pertencentes à ARPICA e se comprometeu a restituir uma quantia equivalente.

-Que a arguida examinou os documentos reproduzidos nos autos, apresentados no decurso da reunião, bem como reconheceu que correspondiam a despesas próprias da mesma pagas pela ARPICA e que se comprometeu a ressarcir a associação, o que não fez.

E.2 - A testemunha AMLLD no seu depoimento confirmou o seguinte, conforme está referenciado na gravação com o registo 20180619110210_2739504_2871702, entre 3:35 e 39:54:

-A arguida CF fazia os lançamentos contabilísticos no programa informático da associação.

-Que se apercebeu de discrepâncias de valores e da falta de documentação de suporte de algumas despesas logo no final do ano de 2009, pelo que comunicou as irregularidades detetadas ao arguido RF, uma vez que este exercia as funções de tesoureiro.

-O arguido RF comunicou ao contabilista que estavam em causa erros do programa informático e deu instruções no sentido de se proceder a correções na contabilidade de molde a corridos as discrepâncias de valores detetadas, o que a testemunha fez.

-Referiu que os erros informáticos não fazem desaparecer dinheiro.

-Ter participado na assembleia realizada no dia 16 de Julho, assim como confirmou a dinâmica da mesma documentada em acta e afirmou que a arguida reconheceu que se apropriou de algumas quantias monetárias pertencentes à ARPICA, bem como que se comprometeu a restituir à associação uma quantia equivalente.

E.3 - A testemunha ALASM, confirmou o seguinte, conforme está referenciado na gravação com o registo 20180619113220_2739504_2871702, entre 4:03 e 9:28:

-Que elaborava uma listagem dos bens necessários para a confeção das refeições dos utentes e acompanhava a arguida nas suas deslocações às compras.

-Que a arguida nas referidas deslocações procedia ao correspondente pagamento com recurso a cheques previamente assinados pelos representantes da instituição e preenchidos pela mesma em função do valor devido a final.

-Referiu, que a arguida incluía compras para a casa dela no conjunto dos bens adquiridos.

-Que para além da arguida CF só o Diretor da ARPICA AA realizou incidentalmente algumas compras para a instituição, mas que este nunca comprou quaisquer objetos pessoais.

-Que fazia uma provisão de bens necessários para o exercício da sua função para o período em que a arguida se ausentava para gozo de férias.

E.4 – Assim a testemunha GMMPSNC, confirmou o seguinte, conforme, está referenciado na gravação com o registo 20180619144535_2739504_2871702, entre 7:11 e 19:43:

-Esclareceu a forma com se fazia o registo da contabilidade, referindo que todas as despesas realizadas eram registadas na folha de caixa e os respetivos documentos comprovativos anexados à referida folha.

-Que a arguida CF efetuava o registo das despesas na folha de caixa.

-Que examinou algumas faturas respeitantes a produtos que não eram usados pela ARPICA, designadamente tabaco.

E.5 - A testemunha APPLG confirmou o seguinte, conforme está referenciado na gravação registo - 2018061912204_2739504_2871702, entre 2:49 e 24:47:

-Que por vezes registavam-se alguns valores em falta que a arguida CF atribuía a erros informáticos

-Que na altura em que exerceu funções na ARPICA as compras eram realizadas exclusivamente pela arguida CF.

-Que todos os pagamentos realizados tinham de ser comunicados tanto à arguida como ao arguido RF.

E.6 - A testemunha FAFS, confirmou o seguinte, conforme referenciado na gravação com o registo 20180619154147_2739504_2871702, entre 2:57 e 17:41:

-Ter participado na auditoria realizada por entidade externa às contas da ARPICA, no decurso da carta que denunciava falta verbas de ARPICA.

-Ter analisado toda a documentação financeira de forma a identificar os produtos que não era utilizados pela associação, entre os quais destacou, produtos da marca SKIP, uma vez que se distinguem dos detergentes industriais habitualmente utilizado.

- Ter identificado com a colaboração de colegas, todos os produtos que não correspondem a gastos da instituição e foram por esta pagos contabilizados desde 1 de Janeiro de 2009 a 31 de Julho de 2012, os quais se encontram discriminados no Quadro n.º 4 do Apenso denominado Relatório Pericial, Reg. 1722/UPFC.

E.7- As testemunhas CMLPC e AMIF confirmaram o seguinte, conforme está referenciado, respetivamente, nas gravações com o registo 20180619155436_2739504_2871702, entre 4:26 e 9:00, e AMIF e registo 20180619160536_2739504_2871702, entre 1:42 e 9:34:

-A propósito da aquisição de certo material informático, por sua iniciativa, uma vez que a ARPICA não disponha de meios financeiros para a referida compra, prestaram-se a adquirir o equipamento necessário para inserir os dados de medicação dos utentes, no valor de mais de €400,00 (quatrocentos euros).

-Nesse sentido, solicitaram a emissão da correspondente fatura/recibo em nome da associação e entregaram tal documento à arguida CF e que realizaram uma série de iniciativas com vista à angariação de fundos para ressarcir as mesmas funcionárias do valor global que investiram naquela aquisição.

E.8- A testemunha BMGM confirmou o seguinte, conforme está referenciado na gravação com o registo 20180619163005_2739504_2871702, entre 2:53 e 22:18:

-Que era técnico informático e exercia funções ao tempo na Megalentejo.

-Que procedeu à instalação programa informático específico das IPSS, desenvolvido pela F3M na instituição.

- Que fazia a manutenção do funcionamento do referido sistema e nunca ter identificado quaisquer falhas informáticas graves.

E.9 – Assim, a testemunha BG, após confronto com todos os relatórios de assistência técnica prestada à ARPICA que a Megalentejo ofereceu ao Tribunal, de fls. 380 e ss, garantiu que destes não consta sequer a referência a qualquer erro informático que pudesse determinar diferença dos valores do ativo é passivo da associação.

F)- Da apreciação do depoimento das testemunhas atrás reproduzidos e dos documentos juntos ao processo, designadamente a carta, datada de 30/06/2012, que o TOC ALLD enviou ao presidente da direção AFA, ao presidente do conselho fiscal JPAO e ao tesoureiro, ora recorrido, RPRF, a ata avulsa nº 1 datada de 16/07/2012, o Relatório da empresa de contabilidade JL, RP – Contabilidade e Consultoria, Lda e o parecer pericial da Polícia Judiciária, dever-se-iam ter dado como provados não só todos os factos atrás referenciados em III- Fundamentação, - Fundamentação de Facto, constantes das alíneas 1) a 42, mas também os constantes de 2º - Factos Não Provados, entre I) e VIII):

G)- O Mm.º Juiz a quo expressou claramente na sua sentença a credibilidade da acusação em sustentar os factos que apresentaram para servir de base ao pedido de condenação dos arguidos, reconhecendo, também, o acesso privilegiado da arguida, ora recorrida, aos montantes que circulavam na ARPICA, até tendo em conta as suas funções, sendo certo que no acórdão é expressamente referido que a arguida “adulterou” o registo contabilístico com o propósito de ocultar o dinheiro em falta.

H)- Os Mm.ºs Juízes a quo referem a existência de outras pessoas que tinham acesso ao cofre e à conta bancária da ARPICA e que poderiam ter subtraído o dinheiro, designadamente a apropriação do remanescente, nenhum facto foi trazido ao processo – e muito menos provado – que outros funcionários fossem causadores dessa situação.

I) Neste sentido, deveria ter sido dado como provado, sim, que só a arguida C se apresentou numa reunião de direção, assumindo a responsabilidade pela situação, no seguimento de uma carta do TOC da Instituição, denunciando divergências de caixa entre a contabilidade e a tesouraria da Associação.

J) De facto, os Mm. ºs Juízes a quo admitem que a arguida retirou os valores que computam o valor de 4.370,85€, tendo em conta a prova pericial (comprovativos de faturas, vendas a dinheiro, recibos ou talão de caixa) como refere no douto acórdão. Mas, acrescentam“(…) Não se excluí a possibilidade da arguida se ter apropriados de outras quantias (…)”.

K) No entanto, não dão como provado com a certeza exigível, qual o contexto da apropriação do remanescente.

L) Salvo o devido respeito, não concordamos com essa apreciação, pois foi provado em que circunstância se deu a retirada do dinheiro.

M) Não só ficou provado que a arguida recebia as mensalidades dos utentes, fazia os pagamentos da instituição, os lançamentos contabilísticos das entradas e saídas de ativos, bem como as compras para a instituição, conforme os depoimentos das testemunhas da acusação (AD – TOC e AA, JPO, AM, GC, APG, CC e AMF), prova documental junta aos autos, e ainda peritagem externa, confirmada pelo relatório pericial da Polícia Judiciária, que os desvios foram no valor de 109.962,97€, cujo valor é muito superior aos 4.370,85€, pelo que é possível determinar o modo como a arguida atuava, assim como a quantia total subtraída.

N) Por outro lado, ao dar como provado o circunstancialismo acima descrito, não se pode relevar como prova somente os documentos assinados pela própria a propósito da auditoria interna, na qual a arguida participou voluntariamente, devendo considerar-se todos os documentos que constavam de contabilidade e que serviram de base à auditoria externa.

O) De igual modo, no caso do arguido, é possível imputar ao mesmo a apropriação de tais quantias monetárias, em co-autoria material.

P) De facto, refere o douto acórdão recorrido nesta matéria que “(…) poder-se-ia aventar a possibilidade do arguido estar a encobrir o comportamento ilícito do cônjuge quando comunicou ao técnico oficial de contas a existência de erros informáticos para justificar as discrepâncias de valores detetados (…)” .

Q) De outra forma, não se crê que tivesse existido desconhecimento da situação face às comunicações do TOC em três anos consecutivos (2009, 2010 e 2011) e à afirmação do técnico de informática de que nunca houve qualquer problema que levasse a discrepâncias de qualquer quantia, bem como considerando o cargo desempenhado pelo arguido na Instituição (Tesoureiro).

R) Por outro lado, é de referir que já tinham sido proferidas várias decisões condenatórias neste processo, designadamente, no procedimento de arresto apenso aos autos, de fls. 254 a 265 do Volume II do Procedimento Cautelar e nos dois embargos de terceiro, de fls. 35 a 38 do Volume II do Procedimento Cautelar e de fls. 41 a 44 do mesmo Volume.

S) Na verdade, o ónus da prova incumbe ao Ministério Público, auxiliado pela assistente, o que conseguiu efetuar com o depoimento das testemunhas, mas também com os documentos juntos, que nunca foram impugnados, quanto à sua genuinidade, autenticidade ou falsidade (art.º s 444º a 447 do C. P. Civil, por remissão do art.º 4º do C.P. Penal e 370º e 372º do C. Civil).

T) A prova testemunhal foi igualmente no sentido claro de os arguidos se terem apropriado com dolo de valores da recorrente que atingiram o montante de 109.962,97€, o que não foi posto em causa por contraprova, aliás inexistente.

U) Assim, a prova documental existente nos autos e os depoimentos das testemunhas são suficientes para ter sido proferido acórdão que reconhecesse como provados os factos que sustentem a condenação dos arguidos CIAMF e RPRF pela prática, em co-autoria material, de um crime de peculato, não se opondo a que seja mantida a pena de prisão de 3 (três) anos, determinando-se a suspensão da execução da pena de prisão aplicada aos mesmos pelo período 3 (três) anos, sujeita ao dever de entrega à ARPICA - Associação de Reformados, Pensionistas e Idosos do Conselho de Alpiarça, integral ou faseadamente, da quantia de 109.962,97€.

V) Mesmo que não ressaltasse provado o dolo do arguido, ora recorrido, como autor material do crime de peculato, sempre deveria ter sido dado como provado, no douto acórdão recorrido, a atuação concertada da arguida com o arguido seu marido, para concretizar a prática de um crime de peculato, pelo que deveria ter sido sempre condenado, pela prática do crime de peculato, como cúmplice, nos termos do disposto no art.º 27º do C. P. Penal.

X) Assim, o douto acórdão recorrido deve ser anulado, substituindo-o por outro em que sejam condenados os arguidos, CIAMF e RPRF, pela prática, em co-autoria material, de um crime de peculato, previsto e punido pelos artigos 375.º, n.º 1, do Código Penal, na redação da Lei n.º 99/2007, de 4 de Setembro, aplicável ex vi artigo 386.º, n.º 1, alínea c), do mesmo diploma legal e no artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 119 /83, de 25 de Fevereiro. com as alterações introduzidas pelos Decretos -Leis n.ºs 9/85, de 9 de Janeiro, 89/85, de 1 de Abril, 402/85, de 11 de Outubro, e 29/86, de 19 de Fevereiro (Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social), com a pena de 3 (três) anos de prisão, suspendendo-se a execução da pena de prisão aplicada pelo período de 3 (três) anos, sujeita ao dever da mesma entregar à ARPICA - Associação de Reformados, Pensionistas e Idosos do Conselho de Alpiarça, integral ou faseadamente, da quantia de 109.962,97€ ( cento e nove mil, novecentos e sessenta e dois e noventa e sete cêntimos), mediante a realização de depósito à ordem dos presentes autos, até ao termo do período da suspensão da execução da pena, com todas as consequências legais.

ASSIM SE FARÁ JUSTIÇA!

O recurso interposto foi admitido com subida imediata, nos próprios autos, e efeito devolutivo.

O MP respondeu à motivação do recurso, tendo formulado, por seu turno, as seguintes conclusões:

1ª Dos elementos probatórios produzidos e examinados em julgamento não é possível extrair factualidade consubstanciadora de que:

- a arguida, para além dos valores dados como provados como tendo sido apropriados pela mesma, se apoderou da quantia global de 109.962,07 €

- e que tal apropriação ocorreu em conluio, de esforços e de propósitos, com o arguido RPRF, ao tempo seu marido e Tesoureiro da ARPICA.

2ª Da prova testemunhal e documental, designadamente dos documentos constantes a fls. 285 e segs. é possível dar como provado que a arguida comprou e pagou com dinheiro da ARPICA os produtos referidos no facto nº 17 da matéria de facto dada como provada e, bem assim, os artigos elencados no facto nº 18 da mesma matéria, totalizando tudo o valor global de 4.370,85 €.

3ª De concreto, o que resultou da prova produzida em julgamento quanto ao desaparecimento do grosso dos valores e numerário é tão só que dos elementos recolhidos e vertidos nos Relatórios Periciais os mesmos deveriam estar disponíveis e na alçada da sua titular, a assistente e que tal não sucede, tendo desparecido.

4ª Todavia, pese embora a arguida fosse a responsável pela circulação e movimentação de dinheiro tal não é bastante para, sem outros elementos concretos, a responsabilizar jurídico-penalmente pelo desaparecimento e subsequente apropriação de tais quantias e valores.

5ª Não foram pois, demonstrados nem produzidos factos objetivos concretos dos quais se infira que em certo dia, mês e ano a arguida transferiu, depositou, comprou determinados bens ou gastou aquele volume de quantias elevadas, deste ou daquele modo, sendo que as testemunhas apenas aludem a despesas pessoais em artigos de limpeza, de casa ou da roupa, com aquisição de artigos escolares ou roupas desportivas, sendo sim essas despesas corroboradas documentalmente.

6ª Assim, concorda-se com a interpretação da prova e com as conclusões que dela se extraíram na fundamentação e decisão vertidas no acórdão recorrido tendo-se apenas dado como provada a apropriação pela arguida do valor global de 4.370,85 €, aliás correspondente ao valor a pagar à assistente como condição de suspensão da execução da pena de 3 anos de prisão que lhe foi aplicada.

7ª De acordo com a prova testemunhal realizada as transações mediante as quais foi gasto o valor global de 4.370,85 €, resultaram de compras efetuadas pela arguida quando juntamente com a cozinheira da ARPICA ia comprar os produtos alimentares e de mercearia para a instituição, não resultando da mencionada prova o conhecimento e o envolvimento do arguido na prática de tais atos.

8ª Consequentemente, não pode o mesmo ser responsabilizado jurídico – penalmente pela conduta da arguida.

9ª Considerando que da prova produzida e examinada em audiência não resultou a demonstração da prática de condutas criminosas por parte do arguido RF impunhase a sua absolvição, tal se decidiu no acórdão recorrido.

10ª Neste contexto, conclui-se inexistir substrato probatório, testemunhal, documental ou pericial para fundamentar que os factos elencados sob os nºs I a VIII na matéria de facto não provada devessem figurar na matéria de facto dada como provada.

11ª Conclui-se que o acórdão recorrido não padece de erro notório na apreciação da prova, não enfermando do vício previsto no 410º, nº2, al. c) do CPP.

12ª Por não violar qualquer disposição legal deve ser mantido o acórdão recorrido, em consequência, o recurso interposto pela assistente.

No entanto, Vas. Exas. melhor decidirão conforme for de JUSTIÇA!

Os arguidos CIAMF e RPRF exerceram o direito ao contraditório, pugnando pela manutenção do decidido, sem formular conclusões.

O Digno Procurador-Geral Adjunto junto desta Relação emitiu parecer sobre o recurso em presença, no sentido de não lhe ser concedido provimento.

O parecer emitido foi notificado aos sujeitos processuais, para se pronunciarem, querendo, tendo a assistente e os arguidos respondido em termos de reafirmar as posições anteriormente assumidas nas respectivas peças processuais.

Foram colhidos os vistos legais e procedeu-se à conferência.

II. Fundamentação

Nos recursos penais, o «thema decidendum» é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente, as quais deixámos enunciadas supra.

A sindicância da sentença recorrida, expressa pela assistente nas suas conclusões, centra-se, de forma a bem dizer exclusiva, na impugnação da matéria de facto, visando, em primeira linha, a reversão do juízo probatório negativo formulado nesse acto decisório, que recaiu sobre a factualidade que havia sido alegada na acusação, e, num segundo momento, a extracção da necessária conclusão jurídica da pretendida alteração da matéria de facto:

- Condenação dos arguidos CF e RF, pela prática em co-autoria material de um crime de peculato p. e p. pelo art. 375º do CP, na pena de 3 anos de prisão, cada um, cuja execução seja suspensa por igual período;

- Condicionamento da suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento pelos arguidos à assistente, no prazo da suspensão, do montante global de € 109.962,97, em que ela ficou lesada

Tem vindo a constituir jurisprudência constante dos Tribunais da Relação a asserção segundo a qual o recurso sobre a matéria de facto não envolve para o Tribunal «ad quem» a realização de um novo julgamento, com a reanálise de todo o complexo de elementos probatórios produzidos, mas antes tem por finalidade o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento, que tenham afectado a decisão recorrida e que o recorrente tenha indicado, e, bem assim, das provas que, no entender deste, impusessem, e não apenas sugerissem ou possibilitassem, uma decisão de conteúdo diferente.

No caso, impetra a recorrente se deem como demonstrados a totalidade dos factos, que foram objecto de juízo de prova negativo, o que corresponde à factualidade descrita nos pontos I a VIII da matéria não assente.

Tal pretensão apoia-se, em resumo, na valorização conjunta dos depoimentos testemunhais referenciados nos pontos E.1 a E.9 das conclusões da motivação do recurso e do documento identificado no ponto F) da mesma sequência.

A este respeito, convirá recordar aquilo que se expende no acórdão recorrido, a propósito da fundamentação do juízo probatório formulado (transcrição com diferente tipo de letra):

3.º MOTIVAÇÃO DE FACTO

O Tribunal formou a sua convicção com base na análise crítica do conjunto da prova produzida em audiência de julgamento, designadamente os depoimentos das testemunhas e a prova documental e pericial produzida e examinada.

O critério de valoração da prova é o da livre apreciação, segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, de acordo com o disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal.

A factualidade provada em 1) a 19) avulta, desde logo, da análise concatenada da seguinte prova pericial e documental:

- Relatório pericial contabilístico realizado pela Unidade de Perícia Financeira e Contabilística da Polícia Judiciária, de fls. 1 e ss do Apenso denominado Relatório Pericial, Reg. 1722/UPFC;

- Relatório final da peritagem às contas de disponibilidades e aos gastos realizados pela ARPICA, elaborado pela empresa “Jorge Louro, Ricardo Pena – Contabilidade e Consultadoria, Lda.”, de fls. 61 e ss dos autos;

- Certidão do relatório pericial contabilístico elaborado no âmbito da acção nº 211/13.9TBALR, da Instância Central de Santarém, Secção Cível, Juiz 5, de fls. 713 e ss dos autos.

- Carta elaborada por António Manuel Lourenço Duarte, técnico oficial de contas da ARPICA, de fls. 18 e ss;

- Parecer do Conselho Fiscal da ARPICA de fls. 11 e ss;

- Ata avulsa nº 1, de fls. 16 e ss;

- Ata avulsa nº 2, de fls. 8 e ss;

- Cópia do processo disciplinar movido contra CF de fls. 14 e ss;

- Cópia do contrato de trabalho de CF de fls. 526 e ss;

- Cópia dos autos de posse de RF como tesoureiro da ARPICA de fls. 201 e ss;

- Cópia da sentença que julgou improcedente a oposição ao procedimento cautelar nº 26/13.4TBALR da Secção de Almeirim e manteve o arresto dos bens de C e RF de fls. 255 e ss;

- Cópia do despacho saneador e da decisão final proferidos na acção nº 211/13.9TBALR, da Instância Central de Santarém, Secção Cível, Juiz 5, de fls. 559 e ss e fls. 1111 e ss, respectivamente.

- Facturas e recibos de fls. 289 a 311;

- Venda a dinheiro e depósito de cheque de fls. 345 e 346;

- Documentos de fls. 350 a 353, 359 a 362, 366 a 368, que consagram relações comerciais pontuais entre a ARPICA a alguns fornecedores;

- Relatórios de assistência na área de informática prestada pela empresa “Megalentejo” de fls. 380 a 385;

- Relato de diligência externa de fls. 354 e 437;

- Elementos da contabilidade da ARPICA respeitantes aos exercícios de 2009 a 2011 reproduzidos no Apenso I;

- Documentos contabilísticos da ARPICA respeitantes ao período compreendido entre 1 de Janeiro de 2009 e 31 de Julho de 2012, arquivados nas Caixas 1 a 7 em Anexo.

Os elementos probatórios anteriormente discriminados, cuja autenticidade e veracidade e autenticidade de conteúdo não foi, por qualquer modo, posta em causa, mereceram absoluta credibilidade por parte do Tribunal.

Acresce que, a documentação contabilística considerada foi compulsada de forma coonestada e rigorosa pelos Sr. Perito MC, que elaborou o relatório pericial juntos aos autos sob o Apenso denominado Relatório Pericial, Reg. 1722/UPFC e que, neste âmbito, confirmou a respectiva validade e relevância probatória.

Aliás, a análise do Sr. Perito culminou na elaboração do mencionado relatório pericial reproduzido em anexo, no âmbito do qual se demonstrou e se documentou de forma categórica, convincente, congruente e absolutamente credível o valor global apurado em falta nas contas da ARPICA de €113.365,87 (cento e treze mil trezentos e sessenta e cinco euros e oitenta e sete cêntimos), correspondente ao cômputo da diferença de caixa apurada em 31 de Julho de 2012, as diferenças negativas de contas resultantes das conciliações bancárias, a falta de contabilização de recibos manuais de caixa, os erros nas listagens dos recibos dos utentes e os gastos registados na contabilidade que não foram reconhecidos como correspondendo a consumos da instituição.

No que concerne ao montante dos gastos registados na contabilidade que não foram reconhecidos como correspondendo a consumos da instituição, que se computam em €5.420,95 (cinco mil quatrocentos e vinte euros e noventa e cinco cêntimos), o Sr. Perito distinguiu:

- o valor de €4.370,85 (quatro mil trezentos e setenta euros e oitenta e cinco cêntimos) que corresponde a gastos cujo documento justificativo é uma factura, venda a dinheiro, recibo ou talão de caixa;

- o valor de €1.010,70 (mil e dez euros e setenta cêntimos) que corresponde a gastos cujo documento justificativo é uma guia de remessa ou um documento interno; e

- o valor de €41,91 (quarenta e um euros e noventa e um cêntimos) que corresponde a gastos cujo documento justificativo está ilegível.

Mais se ponderou o depoimento das seguintes testemunhas:

- AFA, Presidente da Direcção da ARPICA desde 1999 até 2015, e JPAO, presidente do conselho fiscal da ARPICA desde 2008 a 2015, prestaram depoimentos sinceros, circunstanciados e manifestamente credíveis, confirmando o âmbito das funções exercidas pelos arguidos, o modo de funcionamento da associação e a dinâmica dos pagamentos de despesas da mesma, bem como explicando o contexto em que tiveram notícia do crime. Neste circunspecto, as testemunhas esclareceram que o contabilista AD deu notícia da “falta de dinheiro da Associação” ao remeter à ARPICA a correspondência reproduzida a fls. 18 e ss, que suscitaram a questão perante o arguido RF (considerando que o mesmo assumia à data a qualidade de tesoureiro da instituição), que este invocou que estava em causa um mero “erro informático” e que, nesta sequência, agendaram a assembleia que se encontra documentada na acta de fls. 16 e ss dos autos, a qual AA assevera que decorreu exactamente nos termos exarados no mesmo documento, apesar dos arguidos a posteriori terem recusado subscrevê-la. Ademais, o ex-Presidente da Direcção e o ex-Presidente do Conselho Fiscal explicaram que foram entregues à arguida diversos cheques em branco com vista á realização pela mesma de pagamentos de bens ou serviços adquiridos pela instituição, que era a arguida a única responsável pela realização dos pagamento, que a mesma também realizava pagamentos em numerário com o dinheiro disponível na caixa, que a arguida, outros funcionários e elementos da Direcção tinham acesso ao cofre (onde se encontrava o dinheiro da caixa), que nunca se aperceberam de qualquer apropriação por parte dos arguidos e que somente os relacionaram com o sucedido quando, no decurso da aludida assembleia, a arguida CF reconheceu que se apropriou de algumas quantias monetárias pertencentes à ARPICA e se comprometeu a restituir uma quantia equivalente. Aliás, as testemunhas asseveraram que a arguida examinou os documentos reproduzidos a fls. 285 e ss dos autos, apresentados no decurso da reunião, que reconheceu que correspondiam a despesas próprias da mesma pagas pela ARPICA e que se comprometeu a ressarcir a associação, o que não fez.

- AMLLD, contabilista que prestou serviços à ARPICA no período compreendido entre 2005 e 2017, prestou um depoimento objectivo, circunstanciado e convincente, explicando que a arguida CF fazia os lançamentos contabilísticos no programa informático da associação, ao passo que o primeiro levava as pastas da contabilidade para a sua residência e procedia à classificação dos respectivos documentos, repartindo entre ambos a responsabilidade por uma incipiente organização contabilística da ARPICA. Neste contexto, a testemunha referiu que se apercebeu de discrepâncias de valores e da falta de documentação de suporte de algumas despesas logo no final do ano de 2009, pelo que comunicou as irregularidades que detectou ao arguido RF uma vez que, como se disse, este exercia as funções de tesoureiro. Nesta sequência, o arguido RF comunicou ao contabilista que estavam em causa erros do programa informático e deu instruções no sentido de se proceder a correcções na contabilidade de molde a corridos as discrepâncias de valores detectadas, o que a testemunha fez. Aliás, a testemunha asseverou a total falta de conhecimento de qualquer comportamento ilícito por parte dos arguidos, mas acabou por reconhecer que “os erros informáticos não fazem desaparecer dinheiro” e que a certa altura lhe pareceu que o melhor era reportar todas as irregularidades detectadas de molde a que se pudesse identificar e resolver o problema, daí que tenha elaborado o documento reproduzido a fls. 18 e ss, cuja autenticidade e fidedignidade corroborou. Por fim, a testemunha explicou que participou na assembleia realizada no dia 16 de Julho, confirmou a dinâmica da mesma documentada na acta de fls. 16 e ss e asseverou que a arguida CF reconheceu que se apropriou de algumas quantias monetárias pertencentes à ARPICA, entre as quais as reproduzidas a fls. 285 e ss, bem como que se comprometeu a restituir à associação uma quantia equivalente.

- ALASM, que exerceu funções como cozinheira da ARPICA entre 2000 e 2014, depôs de modo isento, espontâneo, pormenorizado e absolutamente credível, esclarecendo que elaborava uma listagem dos bens necessários para a confecção das refeições dos utentes, que acompanhava a arguida CF nas suas deslocações às compras, que esta procedia ao correspondente pagamento com recurso a cheques previamente assinados pelos representantes da instituição e preenchidos pela mesma em função do valor devido a final e que a arguida, por vezes, incluía “compras para a casa dela” no conjunto dos bens adquiridos, desconhecendo o modo como a mesma acertava contas com a ARPICA. Mais referiu, de forma totalmente segura e convincente, que, a par da arguida CF, somente o Director da ARPICA AA realizou incidentalmente algumas compras para a instituição, mas que este nunca comprou quaisquer objectos pessoais, e que fazia uma provisão de bens necessários para o exercício da sua função para o período em que a arguida se ausentava para gozo de férias, pelo que não era necessária a realização de compras durante a ausência desta.

- GMMPSNC, que exerceu funções administrativas na ARPICA desde 2005 a 2007 e 2012 e 2014, prestou um depoimento imparcial, circunstanciado e verosímil, descrevendo o âmbito das funções da arguida CF e o funcionamento pouco rigoroso do registo contabilístico das despesas da associação (a que se referiu como uma “salganhada”). A este propósito, a testemunha explicou que todas as despesas realizadas eram registadas na folha de caixa, que os documentos comprovativos da realização das despesas eram anexados à “folha de caixa” e que a arguida CR efectuava o lançamento contabilístico dessas despesas, sendo certo que desconhece, em concreto, as circunstancias em que ocorreu qualquer apropriação de quantias monetárias pertencentes à associação. Sem prejuízo, a testemunha reconheceu que examinou algumas facturas respeitantes a produtos que não eram usados pela ARPICA (designadamente tabaco) e que existia um pequeno cofre as instalações na associação a que tanto a arguida CG, como outras funcionárias tinham acesso.

- APPLG, que exerce funções como escriturária na ARPICA desde 2009, prestou um depoimento espontâneo, isento, circunstanciado e absolutamente verosímil, explicando o âmbito das funções da arguida e daquelas que a testemunha exercia sob a supervisão e orientação da mesma. Neste contexto, a testemunha explicou que a contabilidade da associação era organizada de forma pouco rigorosa, que a caixa não era contada com regularidade e que, por vezes, registavam-se alguns valores em falta que a arguida CF atribuía a erros informáticos, nunca tendo suspeitado ou verificado qualquer comportamento ilícito dos arguidos. Mais referiu que na altura em que exerceu funções na ARPICA as compras eram realizadas exclusivamente pela arguida CF, que todos os pagamentos realizados tinham de ser comunicados tanto à última como ao arguido RF e que o cofre estava acessível à própria testemunha, à arguida e à colega GC.

- FAFS, que exerceu funções como educadora de infância entre 2003 e 205, prestou um depoimento muito natural, honesto, íntegro e plausível, explicando que não teve qualquer contacto pessoal com a situação, somente tendo tido conhecimento do sucedido a posteriori, mas participou na auditoria realizada por entidade externa às contas da ARPICA e, neste contexto, analisou toda a documentação de molde a identificar os produtos que não era utilizados pela associação - dentre os quais destacou, exemplificando, produtos da marca SKIP uma vez que se distinguem dos detergentes industriais habitualmente utilizados -, tendo identificado especificadamente, com a colaboração de colegas, todos os produtos que não correspondem a gastos da instituição e foram por esta pagos contabilizados desde 1 de Janeiro de 2009 a 31 de Julho de 2012, os quais se encontram discriminados no Quadro n.º 4 do Apenso denominado Relatório Pericial, Reg. 1722/UPFC

- CMLPC e AMIF, que à data dos factos exerciam funções como auxiliares de acção directa da ARPICA, prestaram um depoimento objectivo, natural e credível, descrevendo o episódio da aquisição de material informático pertinente para inserir os dados da medicação dos utentes a que alude o facto não provado V. Assim, as testemunhas explicaram que, como a ARPICA não tinha recursos económicos, decidiram motu proprium adquirir o material informático no valor de mais de €400,00 (quatrocentos euros), que solicitaram a emissão da correspondente factura/recibo em nome da associação por forma a que tais bens fossem integrados no imobilizado da mesma ou fosse oportunamente accionada a sua garantia, que entregaram tal documento à arguida CF e que realizaram uma série de iniciativas com vista à angariação de fundos para ressarcir as mesmas funcionárias do valor global que investiram naquela aquisição. Para tanto, as testemunhas referiram que, designadamente, procederam à venda a terceiros de bolos confeccionados pelas funcionárias da instituição, sendo o produto da venda imputado ao pagamento do aludido material informático, e que a própria arguida participou na iniciativa confeccionado, pelo menos, um bolo para o efeito, pelo que asseveraram que a arguida estava perfeitamente ciente das condições de aquisição de tal material.

- BMGM, técnico informático que à data exercia funções na Megalentejo e prestava assistência à ARPICA, prestou um depoimento seguro e convincente, referindo que a Megalentejo procedeu à instalação do programa informático específico das IPSS, desenvolvido pela F3M, e assegurou a manutenção do funcionamento do mesmo, nunca tendo detectado quaisquer falhas informáticas graves. A este propósito, após compulsar todos os relatórios de assistência técnica prestada à ARPICA que a Megalentejo facultou ao Tribunal, os quais se encontram reproduzidos a fls. 380 e ss, a testemunha asseverou que dos mesmos não consta sequer a referência a qualquer erro informático que pudesse determinar discrepância dos valores do activo e passivo da associação.

- JMN, comerciante, e JPMGM, encarregado, limitaram-se a confirmar de modo espontâneo e sincero que foram fornecidos combustíveis à ARPICA e que esta procedia ao pagamento do correspondente valor global no final do mês, desconhecendo, em concreto, o uso que era feito do combustível fornecido.

– MGMSP, Directora Comercial da sociedade comercial FILMAR que vendia produtos congelados à ARPICA, prestou um depoimento imparcial, crível e circunstanciado, explicando os termos das relações comerciais estabelecidas entre as duas entidades que implicavam o pagamento a 30 (trinta) ou 40 (quarenta) dias dos produtos fornecidos à associação e revelando desconhecer em absoluto qualquer apropriação ilegítima por banda dos arguidos. Sem prejuízo, confrontada com o documento de fls. 291 e 359 e ss (maxime fls. 362, a testemunha asseverou que o pagamento do preço dos produtos fornecidos na ocasião foi realizado através de cheque – apesar de se encontrar uma inscrição manuscrita no documento de fls. 291 que indicava uma pagamento em dinheiro.

- ARE, reformado, revelou conhecer a ARPICA, mas desconhecer qualquer matéria de facto com relevância para a decisão da causa.

Mais cumpre salientar que não foi produzido qualquer meio de prova em sentido divergente, nem sequer foram produzidas quaisquer declarações dos arguidos uma vez que os mesmos exerceram legitimamente o seu direito de não prestar declarações.

A concatenação de todos os depoimentos das testemunhas revela ostensivamente que a arguida usou quantias monetárias da ARPICA para realizar despesas pessoais com a aquisição de produtos. Efectivamente, da prova testemunhal enunciada avulta indubitavelmente que não só a arguida adquiriu produtos para gozo pessoal com dinheiro da associação na presença da testemunha ALASM em diversas ocasiões, mas também que era CF a única responsável pela realização de pagamentos de despesas no período compreendido no lapso temporal analisado pelo Sr. Perito Dr. MC, para além de também ser a própria quem contabilizava os documentos comprovativos dos correspondentes gastos pessoais, com perfeito conhecimento do modo de funcionamento da instituição e do tipo de produtos habitualmente utilizados e adquiridos por si em representação da ARPICA (pelo que dificilmente a arguida poderia desconhecer um hipotético comportamento ilícito de outrem).

Concomitantemente, a prova pericial produzida conseguiu determinar com precisão os gastos registados na contabilidade no mesmo período temporal que não foram reconhecidos como correspondendo a consumos da instituição, cujo documento justificativo é uma factura, venda a dinheiro, recibo ou talão de caixa, que se computam em €4.370,85 (quatro mil trezentos e setenta euros e oitenta e cinco cêntimos) que corresponde a gastos. Aliás, afigura-se-nos que os demais gastos contabilizados não se alicerçam em elementos documentais suficientemente idóneos para serem considerados com o grau de certeza exigido em processo penal uma vez que correspondem a documentos internos (e não documentos emitidos por fornecedores) e a um documento ilegível.

Acresce que, resulta ainda da prova testemunhal produzida com toda a segurança que a arguida adulterou a informação contabilística, ao, designadamente, contabilizar o pagamento de material informático que sabia que havia sido adquirido pelas suas colegas de trabalho, encobrindo deste modo o seu próprio comportamento ilícito.

Ponderada toda a prova produzida e supra sumariada, o Tribunal formulou uma convicção segura e fundada quanto à concreta intervenção da arguida nos factos enunciados em 1) a 19), que por tal razão fizemos reverter para os factos que resultaram como provados.

Pelo contrário, consideramos que a prova produzida não se mostra suficiente para responsabilizar a arguida pela apropriação ilegítima das demais quantias monetárias apuradas uma vez que diversas outras pessoas tinham acesso ao cofre e à conta bancária da ARPICA e que se desconhece, por não ter sido produzida qualquer prova sobre a matéria, qual o contexto da apropriação do remanescente. Aliás, atenta a comprovada desorganização da contabilidade da associação não se pode excluir a possibilidade de não terem sido devidamente arquivados documentos justificativos da realização de outras despesas próprias da ARPICA e do valor relevante da discrepância apurada – de €113.365,87 (cento e treze mil trezentos e sessenta e cinco euros e oitenta e sete cêntimos – não se relacionar, a par do prejuízo patrimonial causado pela conduta da arguida, com desorganização contabilística que comprovadamente existia na instituição no mesmo período temporal analisado. Obviamente que também não se exclui a possibilidade da arguida se ter apropriado de outras quantias, o que sucede é que não é possível demonstra-lo com a segurança exigido para a sua condenação em processo penal.

De igual modo, no caso do arguido, não se monstra possível imputar ao mesmo a apropriação de quaisquer quantias monetárias. Quando muito poder-se-ia aventar a possibilidade do arguido estar a encobrir o comportamento ilícito do cônjuge quando comunicou ao técnico oficial de contas a existência de erros informáticos para justificar as discrepâncias de valores detectadas (único facto objectivo demonstrado em relação ao arguido), mas, para tanto, seria necessária a prova de factos objectivos de onde se pudesse inferir que o mesmo estava ciente, pelo menos, do comportamento ilícito da arguida (e não genuinamente convencido da existência os aludidos erros), o que, como se referiu, não se demonstrou. Ademais, a testemunha EJQM, amigo do arguido RF que trabalhou em conjunto com o mesmo numa IPSS em Santarém desde 200 a 2009, descreveu-o como uma pessoa séria, honesta e muito bom profissional no exercício de funções idênticas àquelas que estão em causa nos presentes autos, reforçando as dúvidas do Tribunal quanto à sua responsabilidade penal.

Assim, o tribunal, na sua convicção negativa, teve em atenção o princípio do in dubio pro reo, vigente no nosso direito penal probatório de acordo com o qual um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor dos arguidos, dando como não provada a factualidade enunciada em I) a VIII).

Os factos subjectivos provados em 20) e 22), apesar de insusceptíveis de prova directa, dada a sua natureza, extraem-se dos factos objectivos provados, que, tendo em conta as regras da experiência comum e com base em presunção natural, permitem de forma segura inferir tal matéria.

Para a prova da factualidade vertida em 23) a 41), respeitante às condições sócio-económicas e familiares da arguida e à personalidade revelada pelos mesmos, o Tribunal ateve-se à análise do relatório social de fls. 1053 e ss, elemento documental que se nos afigura manifestamente idóneos e cujo teor não foi igualmente posto em causa por qualquer outro elemento probatório.

A ausência de antecedentes criminais da arguida, factualidade provada em 13), resulta do teor do Certificado de Registo Criminal da mesma junto a fls. 996.

A factualidade dada como não provada avulta da total ausência de prova concludente sobre a mesma nos termos acima expostos.

Se bem compreendemos, o êxito da impugnação em apreço depende da resposta que se dê à questão de saber se a prova disponível permite dar como demonstrado que:

- A arguida CF apropriou-se de valores pertencentes à assistente, acima do montante dado como provado de € 4.370,85;

- O arguido RF teve intervenção (e qual) nas condutas da arguida CF, pelas quais esta se apropriou de valores pertencentes à assistente.

O juízo probatório negativo, que recaiu sobre a apropriação pela arguida de quantias pertencentes à assistente, além do referido limite de € 4.370,85, assentou, fundamentalmente, no apelo ao postulado «in dubio pro reo», que é corolário do princípio constitucional da presunção de inocência do arguido (art. 32º nº 2 da CRP) e que obriga o Tribunal a julgar não provado qualquer facto constitutivo ou agravante da responsabilidade criminal do arguido sempre que sobre ele prevaleça uma dúvida razoável, racional e insanável.

No caso da arguida, a lacuna probatória, que justificou o accionamento do «in dubio pro reo», baseou-se, por um lado, em que, de entre as importâncias cuja falta a assistente invoca, apenas o montante de € 4.370,85 mostra suportado por documentos credíveis emitidos por fornecedores (factura, venda a dinheiro, recibo ou talão de caixa) e não meros documentos internos da empresa e, numa situação, um documento ilegível e, por outro lado, em que o conjunto da prova reunida deixa em aberto a eventualidade de as restantes quantias terem sido apropriadas por outrem que não a arguida, também trabalhador da ofendida.

Salvo o devido respeito, os meios de prova mobilizados pela recorrente em apoio da sua pretensão, concretamente, os discriminados nos pontos E.1 a E.9 e F) das conclusões da motivação do recurso não propiciam a superação das dúvidas, que justificaram o juízo probatório negativo.

Mormente, não resulta desses meios de prova a credibilização do suporte documental das importâncias não consideradas, a demonstração directa de que foi a arguida que se apropriou da totalidade desses valores ou a exclusão, em termos de razoabilidade da possibilidade de as quantias restantes terem sido desviadas por outra pessoa.

A propósito da hipótese de as quantias em falta terem sido apropriadas por outro funcionário da assistente, argumenta a recorrente que não foi trazido ao processo qualquer facto nesse sentido e muito menos provado.

Estando em causa o funcionamento da regra «in dubio pro reo», não é necessário, como para pressupor a argumentação da recorrente, demonstrar ou sequer indiciar alguma hipótese factual alternativa à da acusação, mas apenas que essa hipótese alternativa permaneça em aberto, depois efectuado o exame crítico da prova, desde que não seja repelida pelos critérios que devem orientar essa operação, nos termos do art. 127º do CPP, mormente, a experiência comum, a normalidade das coisas e a lógica geralmente aceite, como efectivamente não é, no caso presente.

Com referência à prova documental desvalorizada pelo Tribunal Colectivo, a recorrente veio invocar as disposições dos arts. 370º e 372º do CC e dos arts. 444º a 447º do CPC, estes últimos aplicáveis por remissão do art. 4º do CPP.

As disposições lei civil substantiva dizem respeito ao conceito de autenticidade dos documentos e da respectiva falsidade, pelo que são inaplicáveis ao caso em apreço, na medida em que, de acordo com o disposto no art. 369º do CC, chama-se autêntico ao documento emitido por autoridade ou oficial público.

O art. 4º do CPP dispõe:

Nos casos omissos, quando as disposições deste Código não puderem aplicar-se por analogia, observam-se as normas do processo civil que se harmonizem com o processo penal e, na falta delas, aplicam-se os princípios gerais do processo penal.

Os arts. 444º a 447º do CPC contêm regras relativas à impugnação da genuinidade de documentos, ilisão da sua autenticidade ou valor probatório.

Contudo, a prova por documentos não constitui, na lei processual penal, um caso omisso, uma lacuna de normação que careça de ser integrada, por via do disposto no art. 4º do CPP.

Pelo contrário, os arts. 164º a 170º do CPP regem produção de prova documental em processo criminal, incluindo a respectiva falsidade, em termos que se nos afiguram autónomos.

De todo o modo, o princípio da busca da verdade material prevalece em processo penal, a par do da presunção de inocência do arguido, pelo que não podem ser proferidas, em processos dessa natureza, decisões condenatórias baseadas numa verdade processual distinta da verdade dos factos (tanto quanto foi possível conhecer esta), como pode suceder, em última análise em processo civil.

Neste contexto, a valoração da prova por documento encontra-se sujeita, de um modo geral ao princípio da livre convicção do julgador.

É certo que o art. 169º do CPP estatui devem ser considerados provados os factos atestados por documento autêntico ou autenticado, «enquanto a autenticidade do documento ou a veracidade do seu conteúdo não forem fundadamente postas em causa».

De todo o modo, é sempre lícito ao Juiz averiguar por sua própria iniciativa a autenticidade ou a veracidade do conteúdo de tais documentos, sem dependência da acção dos sujeitos processuais.

Nesta conformidade, a circunstância de os arguidos não terem impugnado os documentos sobre que recaiu a auditoria feita à contabilidade da assistente não obsta a que o Tribunal possa e deva submeter esses elementos documentais ao crivo da sua crítica, denegando-lhes ou reconhecendo-lhes poder de convicção.

Por conseguinte, entendemos por prudente e avisado, no quadro de uma valoração probatória marcada pelo princípio da presunção de inocência, que o Tribunal «a quo» tivesse julgado provados os gastos suportados por factura ou documento análogo, emitido por fornecedores e não tivesse atribuído idêntico poder de convicção a documentos internos da ofendida.

Assim, teremos de concluir que inexiste apoio probatório para se dar como demonstrada a apropriação pela arguida CF de outros valores pertencentes à assistente, acima do já comprovado montante de € 4.370,85.

No que se refere à intervenção do arguido RF, o juízo probatório negativo obedeceu também à regra «in dubio pro reo».

De todo o modo, relativamente a este arguido, a acusação enfermou de alguma ambiguidade, porquanto lhe imputou ter-se «aproveitado» do benefício de a co-arguida e sua mulher, CF ter acesso a quantias monetárias pertença da assistente, integrando-as no património pessoal ou do casal (ponto I) da matéria não provada), sem especificar em consistiu esse aproveitamento.

O libelo acusatório não imputa ao arguido ter determinado a arguida a apoderar-se de dinheiros da assistente, nem qualquer contribuição material concreta para os actos de apropriação desses valores por ela efectivamente levados a cabo, mas apenas ter delineado com a arguida o propósito de elas se apoderar (ponto VI da matéria não provada).

Na falta de prova directa, que não existe, a demonstração da conclusão de um propósito comum infere-se, o mais das vezes, da conduta material conjunta que, no caso, tão pouco existe.

No contexto em apreço, resulta provável (ainda que não necessariamente «provado») que o arguido tivesse tido conhecimento da apropriação pela arguida de importâncias pertencentes à assistente, porquanto, ao tempo dos factos, o arguido e a arguida eram casados entre si, viviam em economia comum e trabalhavam para mesma entidade patronal.

Desse conhecimento, porém, não se segue que os dois tivessem formado em conjunto o propósito de deitar a mão a essas quantias.

Nesta ordem de ideias, terá de improceder a pretensão recursiva, relativamente ambos os arguidos.

III. Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso e manter a decisão recorrida.

Custas pela recorrente, fixando-se e 3 UC a taxa de justiça.

Notifique.

Évora 4/2/20 (processado e revisto pelo relator)

(Sérgio Bruno Povoas Corvacho)

(João Manuel Monteiro Amaro)