Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | ANA BACELAR | ||
Descritores: | NE BIS IN IDEM CASO JULGADO | ||
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Data do Acordão: | 09/12/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | I. O caso julgado tem pressuposta a repetição de uma causa, idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir. II. No domínio do processo penal, onde não se usa semelhante terminologia, o «pedido» e a «causa de pedir» devem reconduzir-se aos termos da própria acusação. A «causa de pedir» é o facto jurídico concreto que fundamenta a aplicação ao arguido da pena (factos a julgar\factos já julgados). E o «pedido» é a pretensão de reconhecimento jurisdicional de que determinado facto constitui o crime por que o arguido é acusado, da sua responsabilidade criminal e consequente aplicação da sanção cominada por lei, dentro dos limites penal e processualmente admissíveis. II. O crime deve considerar-se como o mesmo quando exista uma parte comum entre o facto histórico julgado e o facto a julgar e que ambos os factos tenham como objeto o mesmo bem jurídico ou formar, como ação que se integra na outra, um todo do ponto de vista jurídico. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na 2.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação do Évora I. RELATÓRIO “... – Sociedade Agrícola, Lda”, com sede na ..., n.º ..., ... esquerdo, na ..., impugnou judicialmente a decisão proferida em 14 de fevereiro de 2022, pelo Diretor do Departamento Jurídico da Agência Portuguesa do Ambiente, I.P., que o condenou, pela prática, a título negligente, de uma contraordenação muito grave, prevista no artigo 81.º, n.º 3, alínea a) do Decreto-Lei n.º 226-A/2007, de 31 de maio, e punida pelo artigo 22.º, n.º 4, alínea b), da Lei n.º 50/2006 – correspondente ao processo n.º ...17, na coima de € 24 000,00 (vinte e quatro mil euros), bem como nas custas processuais, no valor de € 52,50 (cinquenta e dois euros e cinquenta cêntimos). Enviados os autos aos Serviços do Ministério Público ... e remetidos a Juízo [Juízo Local Criminal ... [Juiz ...]], foi-lhes atribuído o n.º .... Realizada a audiência de julgamento, por sentença proferida e depositada a 11 de janeiro de 2023, foi decidido: «a) Julgar improcedente por não provadas as questões prévias suscitadas; b) Manter a decisão administrativa, condenando a recorrente ... – Sociedade Agrícola, Lda. pela prática, a título negligente, de uma contraordenação previstas pelo artigo 81.º, n.º 3, al. a) do Decreto-Lei n.º 226-A/2007, todas punidas nos termos do artigo 22.º, n.º 4, al. b) da Lei n.º 50/2006, na coima no valor de € 24 000,00, bem como nas custas procedimentais no valor de € 52,50; c) Condenar a recorrente ... – Sociedade Agrícola, Lda., nos termos dos artigos 93.º, n.º 3 e 94.º, n.º 3 do RGCO e artigo 8.º, n.º 7 e Tabela III anexa no Regulamento das Custas Processuais, no pagamento das custas processuais, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC’s; (…)» Inconformada com tal decisão, a Arguida dela interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões [transcrição]: «i. Ao decidir como fez, o Mertº Juiz “a quo” não decidiu corretamente; ii. Considerou que os procedimentos contraordenacionais e pese embora as decisões proferidas pela entidade administrativa tenham por base as mesmas normas jurídicas e, no essencial, a mesma caracterização factológica, a verdade é que se encontram colocadas em momentos distintos, uma em 02.02.2016 e outra em 29.03.2016; iii. O Mertº Juiz a quo”, para a requerida violação do princípio constitucional, previsto no n.º 5 do art.º 29.º da Constituição da República Portuguesa, atentou à decisão proferida no Processo de Contraordenação n.º ...16, pela qual condenava a arguida á coima mínima de 24.000,00 €, pela prática da contraordenação muito grave prevista no art.º 81.º, n.º 3, al. a), do Decreto-lei nº 226-A/2007, de 31 de maio, punível nos termos da al. b) do art.22.º da Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto; iv. E, que posteriormente em sede de impugnação judicial, cujos termos correu junto do Douto Tribunal ..., ao Proc. 116/17.... do Juízo Local Criminal – Juiz ..., vindo a ser declarada a nulidade da decisão da Agência Portuguesa do Ambiente, bem como de todos os atos administrativos dela dependentes, mais determinando que, após o trânsito, sejam os autos devolvidos à mencionada autoridade administrativa, para prolação de nova decisão, nos termos supra consignados”. Posto que, v. A APA proferiu nova decisão através do processo contraordenacional nº ...17, de 26 de junho de 2017, condenando a ora recorrente à coima mínima, de 24.000 euros (vinte e quatro mil euros), pela prática da contraordenação ambiental muito grave prevista no art.º 81.º, n.º 3, al. a) do Decreto-Lei n.º 226-A/2007, de 31 de maio, punível nos termos da al. b) do n.º 4 do art.º 22.º da Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto; vi. Tendo o ora recorrente, não se conformando com tal decisão, impugnado a mesma judicial, cujos termos correram ao Proc. 1564/17.... do Juízo Local Criminal ... – Juiz ..., vindo o mui Douto Tribunal rejeitar o mesmo recurso, por o mesmo ter sido apresentado extemporaneamente; vii. Acontece que, a 31 de janeiro de 2022, o ora recorrente foi notificado do arquivamento dos atrás mencionados Autos por prescrição. viii. Perante tal, prescrição e consequente arquivamento do Autos, veio a APA em fevereiro de 2022, através do Proc. contraordenacional nº ...17, proferir nova decisão. Decidindo aplicar à ora recorrente “a coima mínima, de 24.000 euros (vinte e quatro mil euros), pela prática da contraordenação ambiental muito grave prevista no art.º 81.º, n.º 3, al. a) do Decreto-Lei nº 226-A/2007, de 31 de maio, punível nos termos da al. b) do n.º 4 do art.º 22.º da Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto. ix. Sendo, pois, perante este dois procedimentos contraordenacionais sob os nºs ...17, um de 26 de junho de 2017 e outro de fevereiro de 2022, proferidos pela APA, pelos mesmos fatos, pelo mesmos momento da prática contraordenacional e com base no mesmo auto de notícia, que o Mertº Juiz “a quo” deveria ter dado procedência à requerida, em sede de audiência de Julgamento, violação do princípio constitucional (n.º 5 do art.º 29.º da CRP); x. O 1º, referente aos fatos ocorridos em 29.03.2016, e cuja impugnação judicial correu os respetivos termos no Proc. 1564/17.... do Juízo Local Criminal ... – Juiz ..., tendo sido proferido decisão de não aceitação do recurso por extemporâneo. No entanto, foi arquivado por prescrição da execução, em 31 de janeiro de 2022. xi. E, o 2º, com data de fevereiro de 2022, referente aos fatos ocorridos em 29.03.2016, e cuja impugnação judicial se encontra agora em crise; xii. Ao contrário do que decidiu o Mertº Juiz a quo” os procedimentos contraordenacionais constantes do ...17, tem por base as mesmas normas jurídicas e com a mesma caraterização factológica, e encontram-se temporalmente colocados em momentos iguais, ou seja, de 29.03.2016; xiii. Perante tal, duvidas não restam que estamos perante uma clara violação do aludido princípio constitucional. Porquanto, face à notificação do arquivamento do processo, não poderia a autoridade administrativa, posteriormente, instaurar novo processo com base no mesmo auto de notícia e também com base nos mesmos fatos, por tal violar o disposto no art.º 29 .º– 5 da Constituição da República Portuguesa, com referência ao art.º 41.º - n.º 1 do Dec-Lei 433/82, de 27.10. Com efeito o despacho de arquivamento notificado ao ora recorrente tem as mesmas consequências de qualquer despacho de arquivamento proferido em processo penal, qual seja, a impossibilidade de instauração de novo procedimento contraordenacional com base nos mesmos fatos. Termos em que, Deve a um Douta Sentença “a quo” ser revogada, por violação do princípio constitucional previsto no n.º 5 do art.º 29.º da Constituição da República Portuguesa. Porque só assim se fará JUSTIÇA» O recurso foi admitido. Respondeu o Ministério Público, junto do Tribunal recorrido, formulando as seguintes conclusões [transcrição]: «1.º- A sociedade recorrente veio interpor recurso de impugnação judicial da decisão administrativa de 14/02/2022, proferida pelo Diretor do Departamento Jurídico da Agência Portuguesa do Ambiente, I.P., no uso de competências subdelegadas pelo Despacho n.º 11961/2020, que condenou a recorrente pela prática, a título negligente, de uma contraordenação muito grave, prevista no artigo 81.º, n.º 3, al. a) do Decreto-Lei n.º 226-A/2007, de 31 de Maio, e punida pelo artigo 22.º, n.º 4, al. b) da Lei n.º 50/2006, correspondente aos processo n.º ...17, na coima no valor de € 24.000,00, bem como nas custas processuais no valor de € 52,50, nos termos do artigo 94.º do RCGO. 2.º- Por Sentença proferida em 11.01.2023 (ref. ...64) O Tribunal a quo decidiu o seguinte: “a) Julgar improcedente por não provadas as questões prévias suscitadas; b) Manter a decisão administrativa, condenando a recorrente ... – SOCIEDADE AGRÍCOLA, LDA. pela prática, a título negligente, de uma contraordenação previstas pelo artigo 81.º, n.º 3, al. a) do Decreto-Lei n.º 226-A/2007, todas punida nos termos do artigo 22.º, n.º4, al. b) da Lei n.º 50/2006, na coima no valor de €24.000,00, bem como nas custas procedimentais no valor de €52,50; (…)”. 3.º- O presente Recurso da recorrente “tem por objeto a improcedência da, invocada, violação do princípio constitucional “non bis in idem”, consagrado no nº 5 do art. 29º da Constituição da República Portuguesa, e pelo qual ninguém pode ser julgado mais de uma vez pela prática do mesmo crime”. 4.º- Conforme fundamentado na Sentença recorrida, não assiste razão ao Recorrente porquanto ainda que “em ambos os procedimentos contraordenacionais e pese embora as decisões proferidas pela entidade administrativa tenham por base as mesmas normas jurídicas e, no essencial, a mesma caracterização factológica, a verdade é que se encontram temporalmente colocadas em momentos distintos, uma em 02/02/2016 e outra em 29/03/2016.” 5.º- Na verdade, como referido na Sentença recorrida, nestes autos, com origem no procedimento contraordenacional n.º ...17, “é imputada uma contra- ordenação à recorrente quanto aos factos ocorridos em 29/03/2016, no que respeita à rejeição de águas residuais de tonalidade escura e com odor intenso para uma pequena charca e, desta, para o solo, as quais se encaminhavam para a margem direita do afluente da ribeira do ....” 6.º- E havia corrido termos anteriormente o processo de contraordenação n.º ...16, que teve por objeto “a existência de descarga de efluentes da suinicultura da última lagoa para o solo e por escorrência para a linha de água sem nome definido, afluente da ribeira do ..., o que se verificava em 02/02/2016, pelas 15h30m.” 7.º- Acresce que os elementos documentais existentes nos autos são claros sobre essa matéria: - O auto de notícia de fls. 7 a 8 que está na origem dos presentes autos diz respeito a factos verificados em 29 de março de 2016; - A decisão administrativa proferida constante do processo judicial 1465/17.... diz respeito a factos verificados em 029 de fevereiro de 2016 – certidão de fls. 163 a 234, em especial fls. 164 a 168-v. 8.º- Dito isto, cumpre concluir que a Douta Sentença não violou qualquer das normas invocadas pela Recorrente. 9.º- Pelo exposto, o recurso interposto não merece provimento, devendo manter-se a Douta Sentença recorrida.» û Enviados os autos a este Tribunal da Relação, a Senhora Procuradora Geral Adjunta emitiu o seguinte parecer [transcrição]:«Concordamos e damos por reproduzidos os argumentos aduzidos na decisão impugnada, bem como na Resposta à Motivação de Recurso apresentada pela nossa Exma. Colega junto do Tribunal de 1.ª instância, entendendo que o Recurso não merece provimento, devendo ser confirmada a decisão impugnada, em conferência, atento o disposto no art.º 411.º, n.º 5 do CPP.» Observado o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do Código de Processo Penal, nada mais se acrescentou. Efetuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência. Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir. II. FUNDAMENTAÇÃO De acordo com o disposto no artigo 412.º do Código de Processo Penal e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995[[1]], o objeto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso. Posto isto, e vistas as conclusões do recurso, a esta Instância é colocada, tão só, a questão da violação do princípio non bis in idem. û Na sentença recorrida foram considerados como provados os seguintes factos [transcrição]:«1. No dia 29/03/2016, pelas 16h00m, em ..., freguesia ..., concelho ..., na suinicultura pertencente à recorrente ... – Sociedade Agrícola, Lda., estavam a ser rejeitadas águas residuais da última lagoa para uma pequena charca e, desta, diretamente para o solo. 2. Nesta data, a suinicultura referida em 1) possuía uma estação de tratamento de águas residuais (ETAR) composta pelo sistema de lagoas, no total de quatro, encontrando-se a segunda e a terceira rebentadas e praticamente inutilizadas, não fazendo retenção de água e apenas servindo para a água passar da primeira lagoa para a quarta. 3. A última lagoa estava cheia e a efetuar rejeição de águas residuais, de tonalidade escura e com odor intenso, através de um tubo para uma pequena charca. 4. A charca referida em 3) recebia as águas residuais provenientes da última lagoa e, como estava cheia, rejeitava a água diretamente para o solo, acabando esta por entrar na margem direita do afluente da ribeira do ..., rio Sorraia, bacia hidrográfica do rio Tejo. 5. Na data referida em 1), o separador de sólidos existente na exploração não se encontrava a funcionar. 6. Uma vez que não se encontrava presente qualquer responsável ou gerente, foi agendada a realização de nova ação de fiscalização para o dia 5/04/2016, pelas 11h00m, com o escopo de proceder à fiscalização dos documentos respeitantes à exploração. 7. Na data referida em 6), o responsável pela exploração, AA, pai do gerente da sociedade, exibiu documentação referente à suinicultura. 8. Na ocasião referida em 7) não foi exibida qualquer licença que autorizasse a rejeição de águas residuais para o solo ou linha de água e, consequentemente, para a margem direita do afluente da ribeira do ..., rio Sorraia, bacia hidrográfica do rio Tejo. 9. A suinicultura em regime intensivo possui o título de exploração pecuária n.º .../2015 e possuiu a marca de exploração n.º .... 10. No dia 5/04/2016 a ETAR encontrava-se a funcionar como no dia 29/03/2015, mostrando-se contudo em funcionamento o separação de sólidos, o qual não houvera funcionado durante alguns dias com fundamento em avaria. 11. Os atos foram praticados no exercício da atividade da arguida. 12. A ... – Agro-Pecuária de Portugal, Lda. era titular de alvará de licença n.º ..., emitida pela Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Alentejo (CCDR-A), válido por dois anos a contar da assinatura do termo de responsabilidade, o qual autorizava a descarga de águas residuais industriais, após tratamento em ETAR e sob as condições gerais e especiais especificadas no mesmo. 13. À data dos factos, a arguida não era titular de licença para rejeição de efluentes provenientes de suinicultura para a linha de água. 14. A arguida, na pessoa do legal representante, não teve o cuidado necessário para verificar que a atuação era contrária à lei. 15. Não agiu a arguida, através do seu legal representante, com a diligência necessária para conhecer e cumprir as obrigações legais. * Resultaram ainda provados os seguintes factos emergentes da defesa:16. A suinicultura referida em 1) foi adquirida pela recorrente em 2013, por três irmãos com idades inferiores a 30 anos. 17. Após a aquisição da suinicultura, a recorrente obteve o título de exploração de tal atividade, com o n.º .../2015, emitido pela Direção Regional de Agricultura e Pescas do Alentejo em 22/09/2015. 18. A recorrente não tem condenações averbadas no certificado de registo criminal. 19. Não se encontram registados antecedentes contraordenacionais da recorrente. 20. No ano de 2016 a recorrente apresentou um rendimento no valor de € 353.733,79, tendo gerado um lucro tributável no valor de € 906,40.» Relativamente a factos não provados, consta da sentença [transcrição]: «Resultaram não provados os seguintes factos: A. Que a recorrente tenha atuado sem ter conhecimento do carácter ilícito da conduta. * Com interesse para a decisão da causa, não ficou por provar qualquer facto que, considerado o teor da acusação deduzida contra a recorrente e expurgados os factos conclusivos ou respeitantes à matéria de direito, se considerasse pertinente para aferir da responsabilidade contraordenacional do recorrente relativamente à prática da contraordenação de que vem acusada.»A convicção do Tribunal recorrido, quanto à matéria de facto, encontra-se fundamentada nos seguintes termos [transcrição]: «A convicção do Tribunal em relação à factualidade acima descrita e considerada como provada e não provada resulta da análise conjugada e crítica do conjunto da prova emergente da discussão da causa, ponderada à luz das regras da experiência comum e valorada de acordo com a livre convicção do julgador, nos termos previstos do art.º 127.º do Código de Processo Penal ex vi art.º 41.º, n.º 1 do RGCO, salvo quando a lei atribui força probatória diversa a outro meio de prova. Em concreto, foi atendida e analisada criticamente, de acordo com as regras de experiência e condições de normalidade, as declarações prestadas pelo legal representante da recorrente, BB, nos depoimentos das testemunhas CC, DD e AA, o que foi criticamente conjugado com a prova constante dos autos, designadamente a seguinte prova documental: a) Auto de notícia por contraordenação n.º ..., de 11/04/2016, a fls. 7 ss; b) Relatório fotográfico da GNR, de 12/04/2016, e de localização, a fls. 9-11; c) Título de exploração n.º .../2015, emitido pela Direção Regional de Agricultura e Pescas do Alentejo, a fls. 12-13, 22 e 53; d) Alvará de licença n.º ..., da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Alentejo, a fls. 20 ss. e 50 ss.; e) Decisão administrativa de 14/02/2022, de fls. 23 ss.; f) Certificado de registo criminal, a fls. 100 g) Informação da Agência Portuguesa do Ambiente, de 9/09/2022, a fls. 106; h) Declaração de imposto de rendimento de pessoas coletivas referente ao ano de 2016, a fls. 108 ss.; i) Informação de 15/09/2022, do IGAMAOT, a fls. 120; j) Certidão emitida pelo processo n.º 1564/17...., a fls. 163 ss. ** Concretizando a apreciação crítica da prova, a factualidade dada como provada resulta exclusivamente da apreciação conjugada dos elementos probatórios constantes dos autos com a prova testemunhal produzida, confrontados entre si e perante as regras da experiência.Em síntese, narrou o legal representante da recorrente, BB, que a mesma foi incorporada há alguns anos com o escopo de adquirir a exploração em que crise, o que fizeram algures em 2012, narrando ainda que o negócio teve por base alguma inexperiência na medida em que previram que a mesma se encontrava pronta a trabalhar, o que acabou por não se verificar havendo a necessidade de promover a reparações e melhorias da mesma, bem como à sua regularização legal. Explicou que, em data que não consegue apurar, ocorreu uma avaria na ETAR instalada na exploração (em concreto, no separador de sólidos, a qual foi reparada) e, ainda, rebentou uma das lagoas para retenção de águas da exploração (a primeira) fruto das chuvas, detalhando que, contudo, o seu pai é que se dirigia frequentemente à exploração na medida em que o declarante reside na .... Declarou, ainda, que a recorrente apresenta outra exploração de suinicultura na ..., o que fazem em simultâneo. Narrou, por fim, que tendo obtido o título de exploração de suinicultura, se encontrava em condições de proceder à exploração daquela atividade, não tendo noção que seriam necessários outros requisitos. CC e DD, militares da GNR, narraram que se deslocaram ao local da suinicultura explorada pela recorrente, tendo verificado a existência de águas sujas a escorrerem encosta abaixo, tendo procedido à recolha fotográfica. Detalhou, o primeiro, que existia um sistema de quatro lagoas (ainda que só a primeira e a quarta estivessem cheias), o qual era complementado por uma última charca a qual, por se encontrar cheia, vertia o conteúdo pelo solo, o qual se encaminhava para a ribeira. Explicaram ainda que foram informados pela pessoa que se encontrava no local que houvera havido uma avaria no separador de sólidos, o qual se encontrava a funcionar em pleno aquando da segunda visita. AA, progenitor do legal representante, explicou que costumava ajudar os filhos na exploração da atividade, deslocando-se à suinicultura para resolver os problemas que fossem surgindo. Narrou que conhecia o anterior proprietário, tendo a suinicultura sido comprada em 2012, encontrando-se em funcionamento mas que exigiu um conjunto de melhoramentos, tendo-se obtido, ainda, o título de exploração de suinicultura. Quanto à ação inspetiva, narra que se recorda de ter estado no local aquando da primeira visita, não se recordando de uma segunda. Narrou que, em data que não precisa e na sequência de uma chuvada, uma das paredes da última lagoa cedeu, tendo vertido algum do seu conteúdo, tendo procedido à realização de trabalhos de recuperação, tendo sido necessário aguardar algum tempo dadas as condições do solo, o que desaconselhava a utilização de máquinas no local. Questionado acerca do separador de sólidos, narrou que não tem ideia do mesmo ter avariado, ainda que explique que nunca esteve sem trabalhar por período superior a dois dias, tendo o mesmo capacidade para armazenar o resultado de uma semana de atividade. Narra ainda que acha que a exploração tinha licença para lançamento de águas residuais, explicando que procedeu à obtenção do título de exploração, o que regularizou a situação. * Aqui chegados e cotejados os elementos probatórios, mormente o auto de notícia, a reportagem fotográfica e a demais prova por declarações produzida, dúvidas não restam que no aludido circunstancialismo de tempo, modo e lugar, na suinicultura explorada pela recorrente sita em ..., ..., se encontravam a ser lançadas águas residuais provenientes da exploração da recorrente, as quais, após terem percorrido o circuito lagunar, eram lançadas para o solo e, deste, por escorrência, para a aludida ribeira afluente do ....Em síntese, o dissenso existente nos presentes autos, no que respeita à matéria de facto assenta em saber se se encontra efetivamente demonstrado o lançamento, pela recorrente, de efluentes pecuários no domínio hídrico, bem como o eventual carácter (i)lícito de tal conduta. Cotejada a prova produzida, não restaram dúvidas ao Tribunal que, salvo modificações de detalhe, a vida ocorreu nos termos constantes da decisão administrativa, não tendo sido fundadamente colocada em crise o juízo formulado nesta. Vejamos em concreto. Da prova produzida resultou o Tribunal convencido, nomeadamente a partir das declarações do legal representante da recorrente e, também, de AA, que este último se dedicava, com particular intensidade, ao acompanhamento do funcionamento da exploração, procurando ambos – quer o legal representante da sociedade, quer AA – afastar a responsabilização da recorrente, no fundo, com três linhas de argumentação: a alegada existência de licença de lançamento de efluentes para recursos hídricos por parte da anterior proprietária da suinicultura, a obtenção pela própria recorrente de alvará para exploração do aludido equipamento e, por fim, a inexperiência da própria recorrente no desenvolvimento de tal atividade. Contudo, nenhum dos argumentos utilizados impressiona. No que tange à alegada titularidade de licença de descarga de águas residuais industriais, atribuída à sociedade ..., basta cotejar o seu teor para inteligir o carácter infundado de tal ideia. Conforme se lê o próprio alvará de licença n.º ..., a licença mostrava-se válida por um prazo de dois anos a contar da assinatura do termo de responsabilidade não pode ser transferida, a qual título, sem autorização da CCDR Alentejo. Sendo claros, não é necessário ser possuidor de especiais competências técnico-jurídicas para inteligir que o referido alvará se mostrava limitado no tempo e, ainda, não poderia ser transferido pela .... Ora, vista a prova produzida, nada foi alegado ou declarado a respeito, por um lado, do momento em que foi assinado o aludido termo de responsabilidade e, por outro, que a CCDR Alentejo tenha autorizado a transferência (se ainda vigente) da referida licença de lançamento para o meio hídrico. Donde, inexiste qualquer local donde os declarantes pudessem retirar a pretensa licitude da conduta que vinham efetuando. Quanto à obtenção do título de exploração da suinicultura, tal caminho não colhe igualmente, na medida em que se constata, de modo evidente, que o título de exploração se destina, exclusivamente, a permitir o desenvolvimento de uma atividade económica, sendo manifestamente diversa da autorização para utilizar em seu benefício de um recurso de natureza pública, o meio hídrico, razão pela qual nunca a recorrente poderia confiar (como parece querer fazer crer) na licitude da utilização do meio hídrico tendo por base uma autorização que se destina para fim diverso. Por fim, não se mostra, ainda, impressiva a argumentação segundo a qual a recorrente não se mostrava experiente em tal ramo de atividade. A recorrente consubstancia uma sociedade comercial que se dedica, em concreto, àquela atividade com o escopo de obter o lucro, fazendo-o a título profissional. Por conseguinte, tendo em consideração as aludidas declarações, uma vez que a exploração houvera sido adquirida em 2013, recaía (e recai) sobre a recorrente o ónus de aferir da licitude da atividade que pretende prosseguir, em todas as suas vertentes, na medida em que é especialmente exigível que apure, junto das entidades competentes, as condições e os termos em que pode desenvolver a referida atividade. Ora, nesse particular, nada resultou demonstrado por parte da recorrente no que tange à utilização do meio público hídrico (o que é o objeto dos presentes autos) e não à exploração da suinicultura. Ora, resulta das regras de experiência comum que a exploração de uma suinicultura exige o recurso a água (designadamente para abeberamento e lavagem dos espaços) e produz resíduos aquosos (designadamente com proveniência na lavagem dos espaços, bem como através da produção de urina e fezes pelos suínos). No caso, sendo a produção de tal resíduo uma consequência necessária da atividade, cabia necessariamente à recorrente providenciar pelo destino desses resíduos, afigurando-se como possível que lhe pudessem ser dados vários destinos, designadamente através da cedência a terceiros para tratamento, através da própria utilização dos resíduos após tratamento ou, por fim, através da sua recolocação no meio hídrico. Contudo, cada escolha no que tange ao destino tem as suas consequências práticas, devendo a recorrente adaptar a sua decisão à regulamentação vigente. No caso em concreto, a recorrente nada fez quando a esse propósito, quando a isso estava obrigada, deveria ter feito e lhe era exigível na medida e em pretende desenvolver uma atividade geradora de resíduos, impondo-se concluir que tal comportamento se apresenta como descuidado porquanto não foi evidenciada – ou sequer aflorada – a realização de qualquer diligência com esse escopo. Donde, pelas razões expostas, impõe-se considerar como não provado que a recorrente tenha atuado sem ter conhecimento do carácter ilícito da conduta. * Concretizando o que anteriormente que consignou:Os factos 1) a 4) resultam demonstrados da conjugação crítica do auto de notícia (que coloca no tempo e no espaço), reportagem fotográfica, assim como as declarações prestadas por CC, DD e, ainda, pelo legal representante da recorrente, inexistindo dúvidas a respeito do modo como a exploração da recorrente se encontrava concebida e, ainda, o estado em que tais infraestruturas foram identificadas, havendo escorrência a partir das lagoas para uma charca e de uma charca para o solo, seguido caminho até ao curso de água identificado. O facto 5) resultou demonstrado da conjugação das declarações de CC, DD e do legal representante da recorrente. Neste particular, as declarações de AA não mereceram particular credibilidade porquanto são infirmadas pela demais prova produzida, de natureza uniforme, quanto à circunstância do separador de resíduos da ETAR não se encontrar a funcionar. Os factos 6) a 9) e 12) a 13) resultam demonstrados a partir da conjugação do auto de notícia com o teor das declarações de CC, DD e AA, conjugados com a prova documental constante dos autos, mormente o título de exploração pecuária e o alvará de licença emitida pela CCDR Alentejo a favor de ..., repisando-se o que anteriormente ficou dito a respeito da inexistência de licença por parte da recorrente para lançamento de efluentes em meio hídrico, dado o carácter intuitu personae da licença, que resulta do seu teor. O facto 10) resulta da conjugação das declarações uniformes de CC, DD e, ainda, pelo legal representante da recorrente, merecedoras de credibilidade. Igualmente demonstrado resulta do facto 11) dos aludidos meios de prova e, ainda, das declarações de AA a respeito do modo como eram processados os resíduos produzidos pela suinicultura e, ainda, a proveniência das diferentes massas aquosas que se encontravam no interior das lagoas e que se encaminhavam para a charca e, desta, para o solo e para o curso de água. Os factos 14) e 15 resultam demonstrados a partir dos factos objetivos dados como provados, à luz das regras de experiência e de normalidade, tendo em consideração o carácter específico da atividade prosseguida, a natureza jurídica da recorrente,, sendo certo que resultou evidenciado – até pelos meios de tratamento implementados no estabelecimento – que a recorrente se encontrava plenamente consciente das obrigações ambientais no que respeita ao tratamento e valorização de efluentes e da impossibilidade de proceder à sua inclusão no meio hídrico, o que fez por desmazelo no modo como manteve um sistema deficiente de tratamento de águas e que culminou na sua escorrência e integração na ribeira de ..., por um lado, e no seu lançamento nesse curso, por outro. Ademais, sabia a recorrente – em razão da atividade desenvolvida e das obrigações legais emergentes para a realização da atividade pecuária – que não se encontra legitimada a proceder à introdução em meio hídrico dos efluentes de exploração em razão do carácter poluidor da mesma (é sobejamente sabido por todos os cidadãos e, com especial acuidade, pelas pessoas do meio, que os efluentes pecuários produzem efeitos nefastos no meio ambiente quando libertados sem os cuidados adequados, inviabilizando o aproveitamento e regeneração dos recursos hídricos), não tendo cuidado por adequar a sua infraestrutura às suas obrigações legais. O facto 16) resultou demonstrado da conjugação das declarações do legal representante da recorrente de AA, as quais não foram infirmadas nesse particular. O facto 17) resulta da conjugação do teor do auto de notícia com o teor do título de exploração n.º .../2015, bem como da decisão administrativa. Os factos 18 a 20 resultam demonstrados da conjugação do teor do Certificado de registo criminal, das informações prestadas pela APA e pelo IGAMAOT, bem como do teor da declaração de IRC constante dos autos. O facto A) resultou não demonstrado, à luz das regras de normalidade e experiência, pelas razões anteriormente enunciadas, dado o carácter profissional da atividade prosseguida (sendo irrelevante a constituição da aludida sociedade, impondo-se como dever inerente ao exercício da atividade comercial a capitação dos agentes económicos, com especial incidência no núcleo da sua atividade, como é o caso) e a circunstância da atividade em crise – utilização do meio hídrico – não se mostrar como uma atividade axiologicamente neutra, especialmente no sector da produção de animais, sendo manifestamente inverosímil que a recorrente não tivesse conhecimento que não poderia utilizar livremente o recurso hídrico, sendo certo que inexiste qualquer elemento onde, fundadamente, pudessem ancorar a confiança em que poderia desenvolver tal atividade. De igual modo, não impressiona a argumentação segundo a qual, tendo sido emitido o título de exploração de atividade pecuária, tal faria pressupor a existência de título de utilização de recursos hídricos uma vez que, como se disse, não se mostra necessário que haja título de utilização de recursos hídricos se, no modo como a suinicultura for concebida, não houver lugar à obtenção de tal licença, o que se equaciona como possível, inexistindo, por isso, qualquer relação causal entre a obtenção da licença de exploração e a licença de utilização de recursos hídricos. Veja-se que, em tese, a recorrente poderia ter-se limitado a tratar os recursos que a própria produziu e, de modo legítimo, proceder à valorização de efluentes para fins agrícolas, não soe mostrando, nesse caso, necessário obter qualquer licença.» û Consta ainda da sentença recorrida, em segmento prévio aos acabados de transcrever:«4. QUESTÃO PRÉVIA: DA EXISTÊNCIA DE CASO JULGADO/VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO NON BIS IN IDEM Em sede de contestação e, igualmente, em requerimento apresentado em sede de audiência de julgamento, invoca a recorrente que o procedimento sancionatório que culminou na decisão ora impugnada assenta, em síntese, nos mesmos factos que fundamentaram o procedimento contraordenacional n.º ...16, decisão essa que foi declarada nula por sentença proferida no processo n.º 116/17.... que correu termos no Juízo Local Criminal ... – J... e que, posteriormente, tramitada sob o n.º 1584/17.... do Juízo Local Criminal ... – J..., a qual declarou a prescrição da coima, repise-se, tendo por base a mesma factualidade. O Ministério Público, em sede de alegações, pronunciou-se pela improcedência da aludida questão prévia por não provada. * Para apreciação do requerido, impõe-se verificar o processado do procedimento administrativo.Visto o seu teor, resultam demonstrados os seguintes factos, tendo sido valorados, para o efeito, os elementos probatórios que se elencam quanto a cada um: 1. Em 14/02/2022, foi proferida pelo Diretor do Departamento Jurídico da Agência Portuguesa do Ambiente, I.P., no uso de competências subdelegadas pelo Despacho n.º 11961/2020, decisão no âmbito do processo de contraordenação n.º ...17, a qual aplicou à recorrente ... – Sociedade Agrícola, Lda., com fundamento na prática de contraordenação ambiental muito grave prevista no artigo 81.º, n.º 3, al. a) do Decreto-Lei n.º 226-A/2007, punível nos termos do artigo 22.º, n.º4, al. b) da Lei n.º 50/2006, uma coima no valor de € 24.000,00 – teor da decisão administrativa de fls. 23-33, a sua se reproduz por extrato; 2. Na decisão referida em 1), foram julgados demonstrados os seguintes factos pela entidade administrativa: (…) “1. No dia 29 de março de 2016, pelas 16h00, durante uma ação de fiscalização, foi constatado pela entidade autuante que, na suinicultura pertencente à ... – Sociedade Agrícola, Lda., sita nas ... (…) estavam a ser rejeitadas águas residuais da última lagoa para uma pequena charca e, desta, diretamente para o solo (provado por auto de notícia n.º ...). 2. Nesta data, a suinicultura possuía uma Etar composta pelo sistema de lagoas (quatro lagoas) encontrando-se a segunda e a terceira rebentadas e praticamente inutilizadas, não fazendo retenção de água e apenas serviço para a água passar da primeira lagoa para a quarta (…) 3. A última lagoa estava cheia e a efetuar a rejeição de águas residuais (água de tonalidade escura e com odor intenso), através de um tubo para uma pequena charca (…) 4. A charca recebia as águas residuais provenientes da última lagoa e como estava cheia rejeitava a água diretamente para o solo, acabando esta por entrar na marga direita do afluente da Ribeira do ... (…) 5. O separador de sólidos, existente na exploração, não estava a funcionar (…) 6. Não se encontrando presente nenhum responsável/gerente, foi agendada a data de 5 de abril de 2016 pelas 11 horas para se proceder à fiscalização dos documentos respeitantes à exploração (…) 7. Nessa data, o responsável pela exploração, o senhor AA (pai do gerente da sociedade, exibiu a documentação referente à suinicultura (…) 8. Não mostrou qualquer licença que autorizasse a rejeição de águas residuais para o solo/linha de água e consequentemente para a margem direita do afluente da Ribeira do ... (…) 11. No dia 5 de abril de 2016 a Etar estava a funcionar como no dia 29 de março de 2016, com a diferença que o separador de sólidos estava em funcionamento, tendo sido esclarecido pelo responsável que o separador de sólidos não funcionou durante alguns dias por avaria (…)” – teor da decisão administrativa de fls. 23-33, a sua se reproduz por extrato. 3. Em 06/12/2016, foi proferida pelo Diretor do Departamento Jurídico da Agência Portuguesa do Ambiente, I.P., no uso de competências subdelegadas pelo Despacho n.º ...15, decisão no âmbito do processo de contraordenação n.º ...16, a qual aplicou à recorrente ... – Sociedade Agrícola, Lda., com fundamento na prática de contraordenação ambiental muito grave prevista no artigo 81.º, n.º3, al. a) do Decreto-Lei n.º 226-A/2007, punível nos termos do artigo 22.º, n.º4, al. b) da Lei n.º 50/2006, uma coima no valor de €24.000,00 – teor da decisão administrativa, constante de certidão judicial extraída do processo n.º 1564/17.... do Juízo Local Criminal ... – J..., a fls. 164-168-v. 4. Na decisão referida em 3), foram julgados demonstrados os seguintes factos pela entidade administrativa: “(…) 1. No dia 2 de Fevereiro de 2016 pelas 15h30, foi constatado pelos serviços de fiscalização da APA, IP, na Herdade ... (…) que os efluentes da suinicultura estavam a ser descarregados da última lagoa para o solo e por escorrência para a linha de água sem nome definido afluente da ribeira do .... 2. A arguida não era titular de licença para a rejeição de efluentes provenientes da suinicultura para a linha de água. 3. Em 22 de Setembro de 2015 obteve deferimento do processo pela Direção Regional de Agricultura e Pesca do Alentejo (DRAP Alentejo) e atribuição do título de exploração à atividade pecuária (…) 4. Apresentou alvará de licença n.º ... emitido pela CCDR a favor de ... – Agro-Pecuária de Portugal, Lda. para tratamento de águas residuais na ETAR. (…)” - teor da decisão administrativa, constante de certidão judicial extraída do processo n.º 1564/17.... do Juízo Local Criminal ... – J..., a fls. 164-168-v. 5. Por decisão de 16/03/2017, proferida no processo n.º 116/17.... do Juízo Local Criminal ... – J... foi proferida decisão judicial com incidência sobre a decisão administrativa referida em 3) e 4), a qual decidiu “fazendo apelo ao artigo 122.º do Código de Processo Penal e demais normas referidas, declaro a nulidade da decisão da Agência Portuguesa do Ambiente, bem como de todos os atos administrativos dela dependentes, mais determinando que, após trânsito, sejam os autos devolvidos à mencionada autoridade administrativa, para prolação de nova decisão, nos termos supra consignados” - teor da decisão proferida no processo n.º 116/17...., constante de certidão judicial extraída do processo n.º 1564/17.... do Juízo Local Criminal ... – J..., a fls. 169 ss. 6. Por (nova) decisão da Agência Portuguesa do Ambiente, I.P. proferida pelo Diretor do Departamento Jurídico da Agência Portuguesa do Ambiente, I.P. em 26/06/2017 no uso de competências subdelegadas pelo Despacho n.º ...15, no âmbito do procedimento de contraordenação n.º ...16, foi aplicada à recorrente, com fundamento na prática de contraordenação ambiental muito grave prevista no artigo 81.º, n.º3, al. a) do Decreto-Lei n.º 226-A/2007, punível nos termos do artigo 22.º, n.º4, al. b) da Lei n.º 50/2006, uma coima no valor de €24.000,00 - teor da decisão proferida pela autoridade administrativa, constante de certidão judicial extraída do processo n.º 1564/17.... do Juízo Local Criminal ... – J..., a fls. 177 ss. 7. Na decisão referida em 6), foram julgados demonstrados os seguintes factos pela entidade administrativa:“(…) 1. No dia 2 de Fevereiro de 2016 pelas 15h30, foi constatado pelos serviços de fiscalização da APA, IP, na Herdade ... (…) que os efluentes da suinicultura estavam a ser descarregados da última lagoa para o solo e por escorrência para a linha de água sem nome definido afluente da ribeira do .... 2. A suinicultura é explorada pela arguida ... – Sociedade Agrícola, Lda. (…) 6. A ... – Agro-Pecuária de Portugal, Lda. era titula[r] do alvará de licença n.º ... emitido pela Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Alentejo (…) válido por dois anos a contar da assinatura do termo de responsabilidade, que autorizava a descarga de águas residuais industriais, após tratamento em ETAR e sob as condições gerais e especiais no mesmo especificadas (…) 7. Em 22 de Setembro de 2015 obteve deferimento do processo pela Direção Regional de Agricultura e Pesca do Alentejo (DRAP Alentejo) do pedido de título de exploração à atividade pecuária (…)” - teor da decisão proferida pela autoridade administrativa, constante de certidão judicial extraída do processo n.º 1564/17.... do Juízo Local Criminal ... – J..., a fls. 177 ss. 8. Por decisão judicial de 27/10/2017, proferida no âmbito do processo n.º 1564/17.... que correu termos no Juízo Local Criminal ... – J..., foi rejeitado o recurso de contraordenação apresentado pela recorrente ... – Sociedade Agrícola, Lda. com fundamento no carácter extemporâneo da impugnação - teor da decisão proferida pela autoridade administrativa, constante de certidão judicial extraída do processo n.º 1564/17.... do Juízo Local Criminal ... – J..., a fls. 186 ss. 9. Por ofício datado de 31/01/2022, com origem no processo n.º 1564/17...., do Juízo Local Criminal ... – J..., foi comunicado à recorrente que a aludida execução se encontra extinta por prescrição – ofício a fls. 49, oferecido pela recorrente. * Tendo em consideração a factualidade apurada a respeito da questão prévia suscitada pela recorrente, é evidente que não lhe assiste qualquer razão, havendo necessariamente de naufragar a alegação.É factual que, nos presentes autos, com origem no procedimento contraordenacional n.º ...17 é imputada uma contraordenação à recorrente quanto aos factos ocorridos em 29/03/2016, no que respeita à rejeição de águas residuais de tonalidade escura e com odor intenso para uma pequena charca e, desta, para o solo, as quais se encaminhavam para a margem direita do afluente da ribeira do .... Por seu turno, no procedimento contraordenacional n.º ...16, o qual originou os processos judiciais n.º 116/17.... (que correu termos no Juízo Local Criminal ... – J... e que declarou a nulidade da primeira decisão administrativa e respetiva devolução dos autos à APA) e n.º 1564/17.... (que correu termos no Juízo Local Criminal ... – J..., no qual foi impugnada – e recusado – a segunda decisão administrativa proferida no mesmo procedimento contraordenacional, em consequência da decisão proferida no processo n.º 116/17....), tem, por referência, a existência de descarga de efluentes da suinicultura da última lagoa para o solo e por escorrência para a linha de água sem nome definido, afluente da ribeira do ..., o que se verificava em 02/02/2016, pelas 15h30m. Estabelece o artigo 29.º, nº5 da Constituição da República Portuguesa que “ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”. Tal princípio, como bem clarifica o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 28 de Outubro de 2015, proc. 950/11.9PIVNG, rel. Fátima Furtado, “engloba uma verdadeira proibição de dupla perseguição penal, sempre que tenha ocorrido um qualquer ato processual do Estado que represente uma tomada definitiva de posição relativamente a determinado facto penal, quer seja através de uma sentença, do arquivamento do inquérito pelo MºPº, da decisão de não pronuncia pelo Juiz de Instrução Criminal, da declaração judicial de extinção da responsabilidade criminal por amnistia, prescrição do procedimento criminal ou até por mera desistência de queixa. (…) Se um dado facto, embora novo, se integra no mesmo pedaço de vida do arguido e da vítima subsumível ao crime de violência doméstica, já definitivamente julgado, é abrangido pelo caso julgado e a sua consideração autónoma viola o princípio ne bis in idem”. Revertendo à questão suscitada, constata o Tribunal que, em ambos os procedimentos contraordenacionais e pese embora as decisões proferidas pela entidade administrativa tenham por base as mesmas normas jurídicas e, no essencial, a mesma caracterização factológica, a verdade é que se encontram temporalmente colocadas em momentos distintos, uma em 02/02/2016 e outra em 29/03/2016. Ora, observado o tipo de ilícito ínsito no artigo 81.º, n.º3, al. a) do Decreto-Lei n.º 226-A/2007, comete o referido ilícito contraordenacional aquele que proceder à utilização do recurso hídrico sem o respetivo título, sendo preenchendo o tipo, nos termos previstos no artigo 30.º, n.º 1 do Código Penal, aqui aplicável mutatis mutandi, “pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente”. Dito isto, verificando-se que é imputada à recorrente, em dois procedimentos contraordenacionais distintos, a utilização ilegítima do recurso hídrico sem que seja titular de autorização para o efeito, mostra-se imputada à recorrente a comissão, em duas ocasiões, do mesmo tipo de ilícito. Donde, havendo autonomia entre os aludidos ilícitos – dada a sua colocação distinta no tempo -, não se verifica a dupla imputação à recorrente de um ilícito – no caso, contraordenacional – tendo por base os mesmos factos porquanto os frisos da vida que sustentam cada uma das imputações são distintos. Concluindo, não se mostra assim violado, de modo algum, o princípio da proibição da dupla perseguição penal constitucionalmente consagrado. Por conseguinte, sendo, ainda, os frisos da vida autónomos, mostra-se absolutamente irrelevante à apreciação dos feitos imputados nos presentes autos a decisão que recaiu sobre o procedimento contraordenacional n.º ...16 (mormente, a declaração de prescrição do procedimento criminal ou da coima) dado o carácter factológico inovador destes autos relativamente àqueles, não havendo, sequer, interceção. Concluindo, pelas razões expostas, inexiste qualquer decisão que verse sobre a factualidade imputada à recorrente e que, na perspetiva da entidade pública, fundamenta a decisão proferida no procedimento de contraordenação agora impugnado, não se verifica qualquer repetição no que respeita aos procedimentos sancionatórios na medida em que correspondem a núcleos factuais distintos, colocados distintamente no tempo e, ainda, inexiste, até à data, qualquer decisão judicial que verse sobre a factualidade que sustente o presente procedimento contraordenacional, razão pela qual improcedem porque não verificadas, as aludidas questões prévias.»[[2]] û Conhecendo.Em causa, como decorre do que já se deixou dito, está, tão-só, a violação do princípio non bis in idem. A sentença recorrida, no segmento que trata esta questão, encontra-se devidamente fundamentada, quer de facto quer de direito. E dela decorre que os acontecimentos que motivaram a instauração do processo de contraordenação n.º ...16 são distintos dos acontecimentos que determinaram a instauração do processo de contraordenação ...17. No primeiro – processo de contraordenação n.º ...16 – estão em causa acontecimentos ocorridos no dia .../.../...16, pelas 15H30 e que consistiram na descarga de efluentes de suinicultura da última lagoa para o solo e, por escorrência, para linha de água afluente da ribeira do .... No segundo – processo de contraordenação ...17 – estão em causa acontecimentos ocorridos no dia .../.../...16, pelas 16H00 e que consistiram na rejeição de águas residuais da última lagoa para uma pequena charca e desta diretamente para o solo. Isto posto, e não contestando a Recorrente os factos que cada um destes processo de contraordenação visa, a sua argumentação recursiva esbarra numa realidade que não a consente. Convocando o disposto no n.º 1 do artigo 41.º do Regime Geral das Contraordenações e Coimas, ainda assim se dirá que a lei processual penal não regula – de forma expressa ou implícita – o instituto jurídico do caso julgado. Ao caso julgado reportam-se, apenas, duas normas do Código de Processo Penal – o artigo 84.º [«a decisão penal, ainda que absolutória, que conhecer do pedido civil constitui caso julgado nos termos em que a lei atribui eficácia de caso julgado às sentenças civis»] e o artigo 467.º, n.º 1 [«as decisões penais condenatórias transitadas em julgado têm força executiva»]. «É evidente que a circunstância de a lei adjetiva penal não regular o caso julgado não significa que o processo penal prescinde daquele instituto, consabido que nesta concreta área do Direito se sente com muito maior intensidade e acuidade a necessidade de proteção do cidadão contra situações decorrentes da violação do caso julgado (...).»[[3]] A mencionada omissão [de regulamentação do caso julgado penal] – não obstante o recurso às regras do processo civil, imposto pelo artigo 4.º do Código de Processo Penal – redobra a importância da doutrina e da jurisprudência nesta matéria. O caso julgado é um instituto que visa a proteção das decisões jurisdicionais, sem o que essas decisões não seriam vinculativas, já que poderiam ser repetidamente modificadas. Importa uma referência, ainda que breve à distinção entre caso julgado formal e caso julgado material – o primeiro traduz a força obrigatória da decisão no próprio processo em que é proferida; o segundo consiste na força obrigatória da decisão dentro do processo e fora dele. «O caso julgado começa por ser um instrumento técnico que assinala o ponto final do processo. Alguma vez se há-de concluir definitivamente a perseguição do eventual delinquente pela justiça humana. (...) É claro que esta cobertura da questão julgada tem determinados limites, mas dentro desses limites a decisão é, em princípio, absoluta, através dos chamados efeito positivo e negativo do caso julgado. Estes efeitos inspiram-se em critérios de oportunidade prática, mas também em considerações de natureza política. Importa que a questão tenha um termo, que não se arraste indefinidamente pelos tribunais, com todos os custos e perturbações que daí derivam. Importa também subtrair a pessoa suspeita da prática de um crime a uma teoricamente ilimitada possibilidade de perseguição penal e, por isso, ao arbítrio incondicionado dos órgãos do poder punitivo do Estado. (..) É costume atribuir-se ao caso julgado um efeito positivo, consistente na relevância da decisão em qualquer outro processo, seja qual for a sua natureza. Assim, em qualquer outro processo (civil, laboral, administrativo, etc.) em que seja necessário considerar a questão já julgada no processo penal, ela deve considerar-se resolvida nos precisos termos da decisão penal. Este efeito do caso julgado penal, para além do próprio âmbito penal, é frequentemente apresentado como uma consequência da unidade e identidade da jurisdição, ou simplesmente pela conveniência de evitar interferências e possíveis contradições na atividade dos tribunais com diversas jurisdições. A decisão penal transitada em julgado deveria ter-se por certa dentro e fora do processo. (...) O efeito negativo do caso julgado consiste em impedir qualquer novo julgamento da mesma questão. É o princípio conhecido pelo brocardo non bis in idem, consagrado como garantia fundamental pelo artigo 29º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa: ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime. Este princípio de antiga tradição no direito português, é proclamado como basilar do Estado de Direito e encontra também consagração nos textos internacionais pertinentes à salvaguarda dos direitos, liberdades e garantias fundamentais (...). A existência de caso julgado impede novo julgamento sobre o mesmo crime. Por isso, a existência do caso julgado é um pressuposto negativo, impede o procedimento. Se por não se ter reparado se viesse a julgar o arguido mais do que uma vez as decisões posteriores à primeira seriam inexistentes.»[[4]] O caso julgado tem pressuposta a repetição de uma causa, idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir – artigos 497.º, n.º 1, e 498º, nº 1, do Código de Processo Civil. Continuando a seguir de perto a obra supra citada [na última nota de rodapé], cumpre referir que a identidade que importa, no processo penal é, tão-só, a identidade do arguido – da pessoa já submetida ao processo com sentença transitada em julgado e daquela outra que se pretenderia submeter ou que se submete a novo julgamento. A identidade dos restantes intervenientes processuais é irrelevante. No domínio do processo penal, onde não se usa semelhante terminologia, o “pedido” e a “causa de pedir” devem reconduzir-se aos termos da própria acusação. A “causa de pedir” é o facto jurídico concreto que fundamenta a aplicação ao arguido da pena [factos a julgar\factos já julgados]. O “pedido” é a pretensão de reconhecimento jurisdicional de que determinado facto constitui o crime por que o arguido é acusado, da sua responsabilidade criminal e consequente aplicação da sanção cominada por lei, dentro dos limites penal e processualmente admissíveis. Articulando o disposto na Constituição da República com as regras acabadas de enunciar, o “crime” deve considerar-se como o “mesmo” quando exista uma parte comum entre o facto histórico julgado e o facto a julgar e que ambos os factos tenham como objeto o mesmo bem jurídico ou formar, como ação que se integra na outra, um todo do ponto de vista jurídico. «A Constituição proíbe rigorosamente o duplo julgamento e não a dupla penalização, mas é obvio que a proibição do duplo julgamento pretende evitar tanto a condenação de alguém que já tenha sido definitivamente absolvido pela prática da infração, como a aplicação renovada de sanções jurídico-penais pela prática do “mesmo crime”.»[[5]] Ora, não havendo “repetição de causa” entre os factos que são objeto dos processos de contraordenação n.º ...16 e ...17, não há caso julgado nem violação do princípio non bis in idem. E o recurso improcede. III. DECISÃO Em face do exposto e concluindo, decide-se negar provimento ao recurso e, em consequência, manter, na íntegra, a sentença recorrida. Custas a cargo da Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC’s. û Évora, 2023 setembro 12 Ana Luísa Teixeira Neves Bacelar Cruz Renato Amorim Damas Barroso Maria de Fátima Cardoso Bernardes ________________________________________ [1] ] Publicado no Diário da República de 28 de dezembro de 1995, na 1ª Série A. |