Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1367/10.8TBVNO.E1
Relator: MANUEL BARGADO
Descritores: INVENTÁRIO
RECLAMAÇÃO CONTRA A RELAÇÃO DE BENS
REMESSA PARA OS MEIOS COMUNS
SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA
CASO JULGADO
Data do Acordão: 04/27/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I - Quem alega falta de relacionação de bens tem o ónus da prova dessa falta.
II - A propósito das questões prejudiciais, contempladas no artigo 1335º, o juiz goza da faculdade de determinar a suspensão da instância, até que ocorra a sua decisão definitiva, ao contrário do que acontece com a situação do incidente de reclamação contra a relação de bens, em que o artigo 1350º, nº 1, ambos do CPC, não consagra, expressamente, essa possibilidade.
III - Tratando-se de uma discussão entre interessados, tendo estes sido remetidos para os meios comuns, não são incluídos no inventário os bens cuja falta se acusou.
IV - A suspensão do inventário só deve ser equacionada e eventualmente ordenada quando os herdeiros demonstrarem haver já recorrido aos meios comuns, por só, então, existir fundamento sério para tal.
V - A reclamação contra a relação de bens em processo de inventário pode ser feita mais que uma vez até ao trânsito em julgado da sentença homologatória da partilha.
VI – Só assim não sucede quando a segunda reclamação versa sobre os mesmos bens ou sobre a mesma questão já decidida em reclamação anterior.
VII – Junta aos autos certidão de uma sentença transitada em julgado proferida em ação instaurada pelo inventariado e pela sua mulher, ora interessada/recorrente, contra o cabeça-de-casal e outros, na qual os réus foram condenados a reconhecer que a totalidade do dinheiro depositado em certas contas bancárias, pertence a ambos os autores em exclusivo e partes iguais, não podia o Juiz deixar de ter isso em consideração quando proferiu o despacho determinativo da partilha, ordenando que nesta só entrasse a metade do valor dos saldos de tais contas bancárias, sob pena de, não o fazendo, violar o caso julgado formado pela decisão proferida na referida ação.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I - RELATÓRIO
Nos presentes autos de inventário por óbito de AA, falecido em 12 de Março de 2010, no estado de casado com BB, em que exerceu funções de cabeça-de-casal CC, foi proferida sentença homologatória da partilha constante do mapa de fls. 569 a 571, adjudicando aos interessados BB e CC os respetivos quinhões, nos termos e modalidades constantes do referido mapa.
Inconformada, a interessada BB apelou do assim decidido, finalizando a respetiva alegação com as seguintes conclusões (transcrição):
«1) O inventário destina-se a partilhar os bens do inventariado – e só os dele – incluindo os que foram legados em Testamento.
2) Constando no processo de inventário uma caderneta predial relativa ao prédio inscrito na matriz predial rústica de Espite, Ourém, sob o n.º ..., em nome do inventariado desde 1970 e tendo o cabeça de casal incluído o prédio entre aqueles de que requereu certidão negativa à Conservatória do Registo Predial, indicando como possuidor os herdeiros do inventariado e a este como ante possuidor, deve ordenar-se o relacionamento desse prédio para ser partilhado.
3) O facto de o cabeça de casal ter incluído o prédio no requerimento da certidão predial como pertencendo ao inventariado, deve ter-se como confissão extrajudicial nos termos do n.º 2 do artigo 358º do Código Civil e com força probatória plena.
4) Em consequência, deve ser revogado o despacho de fls 137 na parte em que, a fls 141, diz que a interessada não fez prova da reclamação e, em consequência ordenar-se a relacionação do prédio inscrito na matriz predial rústica da freguesia de Espite sob o n.º ..., declarando-se revogados todos os despachos seguintes proferidos sobre o mesmo assunto.
Se assim se não entender
5) É tarefa do Tribunal onde corre o inventário determinar qual a vontade do testador manifestada no testamento, apurando quais os bens legados.
6) Na verba um do legado, consta uma casa de habitação de rés-do-chão e terra de semeadura com oliveiras e testada de pinhal e o cabeça de casal afirma que o legado incluía apenas a casa de habitação tal como estava descrita na matriz, sem logradouro, pelo que, é tarefa do Tribunal indagar e concluir qual o imóvel ou imóveis que correspondem ao que está escrito no testamento.
7) Tendo o inventariado legado a casa de habitação e o terreno de semeadura que lhe é adjacente, não podia o Tribunal atribuir à recorrente, por conta do legado, apenas a casa de habitação.
8) Estando nos autos certidão emitida pela Conservatória do Registo Predial certificando que o prédio inscrito na matriz predial rústica da freguesia de Espite sob o n.º ... está registado a favor da recorrente e do cabeça de casal, em comum e partes iguais e enquanto herdeiros do inventariado, tinha o Sr. Juiz obrigação de ordenar que o prédio fosse relacionado para ser partilhado.
9) O registo definitivo faz presunção legal da existência do direito a favor dos titulares inscritos e na qualidade em que o estão. Para afastar a presunção não bastava ao cabeça de casal dizer que o prédio era seu, teria que apresentar prova de igual valor, que só podia ser sentença transitada em julgado.
10) Ao não ordenar a inclusão na relação de bens do prédio registado, o Tribunal violou o disposto nos artigos 371º n.º 1 e 372º do Código Civil e no artigo 7º do Código do Registo Predial; pelo que deve tal despacho ser revogado e substituído por outro que ordene a inclusão do prédio na relação de bens.
Se assim se não entender
11) Afirmando a recorrente que tal prédio está incluído na verba n.º 1 do legado, tinha o Tribunal a estrita obrigação de averiguar se assim era e, só após esse acto, decidir se o prédio era aquele e se concluísse pela positiva, deveria ordenar a sua inclusão no legado.
12) Se ficassem dúvidas no apuramento do que estava incluído no legado, deveria o Tribunal admitir a produção de prova, nomeadamente a que, sobre o assunto, foi oferecida a fls 147 e 148. Não o tendo feito violou o disposto no artigo 2187º n.º1 e 2269º do Código Civil.
13) Devem ser revogados os despachos de fls 157, 180, 369 e 458 na parte em que indeferiram a pretensão da recorrente no sentido de ser averiguado o sentido exacto do legado feito em primeiro lugar e substituídos por outro que ordene a produção de prova no sentido de apurar o que é que o testador quis legar na verba primeira do testamento e concluir que o prédio legado à recorrente é o que está descrito na conservatória do Registo Predial de Ourém sob o n.º ... de Espite.
14) O Tribunal a quo não podia remeter os interessados para os meios comuns sem ordenar a suspensão da instância, por força do disposto no artigo 1335º n.º 1 do Código do Processo Civil.
15) Se se concluir que deverá remeter-se os interessados para os meios comuns relativamente ao prédio ... de Espite, deve declarar-se suspensa a instância até à decisão que defina o direito de propriedade.
Segunda Questão
16) Foi aceite pelos dois interessados que as contas bancárias relacionadas na primeira relação de bens junta pelo cabeça de casal e de que, veio ele, depois, negar a existência, ficassem excluídas até ao trânsito em julgado da decisão a proferir no Processo n.º 1433/08.0TBVNO.
17) Está nos autos certidão da sentença da primeira instância confirmada por acórdão da Relação que condenou o cabeça de casal a reconhecer que o dinheiro depositado nas contas pertencia em partes iguais ao inventariado e à recorrente, sua mulher.
18) Sendo o regime de bens do casal o da separação, neste inventário só pode ser partilhada a metade dele no dinheiro existente nas contas.
19) No despacho que deu forma à partilha, não podia o Sr. Juiz fazer tábua rasa da sentença e acórdão e ordenar a partilha do dinheiro como se pertencesse todo ao inventariado.
20) Ao fazê-lo violou ostensivamente o caso julgado, e isto, apesar de ter sido por diversas vezes interpelado pela recorrente nesse sentido.
21) Assim, deve ser revogado o despacho determinativo da forma da partilha no sentido de que, na partilha se tenha em consideração o decidido no Processo n.º 1433/08.0TBVNO e se partilhe apenas a parte do dinheiro que pertencia ao inventariado.
Terceira Questão
22) O cabeça de casal sonegou as contas bancárias onde estava o dinheiro do inventariado e da mulher, ora recorrente.
23) Não foi por inadvertência, fê-lo já depois de as ter relacionado.
24) Foi necessário um processo judicial força-lo a reconhecer que o dinheiro era do pai e da madrasta.
25) A sentença que homologou a partilha deveria ter reconhecido que o cabeça de casal sonegou o montante depositado nas contas bancárias do inventariado e, em consequência, deveria ter aplicado o artigo 2096º n.º 1 do Código Civil.
26) Como a sanção não foi aplicada, foi violado o referido preceito legal, pelo que, deve agora a Relação corrigir o erro e declarar que o cabeça de casal perdeu o direito à sua quota-parte no dinheiro do inventariado depositado nas quatro contas bancárias sonegadas.
27) De igual forma, após ter incluído o prédio legado à recorrente, no pedido de certidão predial, como pertencendo à herança, recusou-se a relaciona-lo.
28) Os despachos sob recurso não obrigaram o cabeça de casal a relacionar o prédio e deveriam tê-lo feito.
29) Devem pois ser revogados e substituídos por outro que declare que o prédio inscrito na matriz rústica da freguesia de Espite sob o n.º ... faz parte da herança do inventariado, sendo o que foi legado à cabeça de casal e, em consequência declarar que, nos termos do artigo 2096º do Código Civil, o cabeça de casal perdeu o direito que pudesse ter sobre esse bem, nomeadamente no que respeita a tornas.
30) A sentença homologatória da partilha violou os preceitos legais supracitados, pois homologou uma partilha feita em violação desses mesmos comandos.
31) Assim deve ser anulada a sentença homologatória da partilha e ser ordenado a organização de novo mapa da partilha que tenha em consideração as decisões a proferir neste recurso, para, depois, ser proferida outra sentença que homologue partilha que respeite a vontade do testador e a lei.
Assim fazendo, farão, V. Exas, JUSTIÇA!»

O cabeça-de-casal e interessado CC apresentou contra-alegações, defendendo a manutenção do julgado.

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II – ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), as questões a decidir consubstanciam-se em saber:
- se deve ser revogado o despacho proferido a fls. 137 e seguintes, que decidiu a reclamação da recorrente contra a relação de bens, na parte relativa ao prédio rústico inscrito na respetiva matriz sob o nº ...;
- se deve ser incluído na relação de bens aquele imóvel.
- se o despacho determinativo da forma da partilha não respeitou o caso julgado formada pela decisão proferida em ação judicial intentada pelo inventariado e pela recorrente contra o cabeça-de-casal e outros, relativamente à titularidade dos saldos das contas bancárias que integram as verbas nºs 1 a 4 da relação de bens;
- se houve sonegação de bens da herança por parte do cabeça-de-casal que justifique a aplicação ao caso do disposto no art. 2096º do Código Civil.

III - FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS
São os seguintes os factos e as ocorrências processuais relevantes para o conhecimento das questões decidendas:
1 – Por testamento de 12.12.2008, o inventariado AA instituiu herdeira da quota disponível de seus bens a sua mulher BB, ora recorrente, a qual seria preenchida pelos seguintes imóveis:
- casa de habitação de rés-do-chão e terra de semeadura com oliveiras e testada de pinhal, no lugar de …, freguesia de …, concelho de Ourém (…);
- terra de semeadura, no sítio de …, limite de …, dita freguesia de … (…).
2 - O cabeça-de-casal indicou como verba nº 5 da relação de bens o seguinte bem imóvel:
Um prédio rústico composto de terreno de oliveiras, sito em …, freguesia de Espite (…), inscrito na matriz sob o artigo rústico nº … da dita freguesia, não descrito na Conservatória do Registo Predial de Ourém, com o valor matricial de € 3,71.
3 - A interessada BB reclamou contra a relação de bens apresentada pelo cabeça-de-casal afirmando, quanto à referida verba nº 5, que não corresponde à verdade que o imóvel descrito seja o bem legado no testamento do inventariado, sendo antes o prédio rústico composto por terra de semeadura sito em … a que corresponde o artigo matricial número ... da freguesia de Espite, requerendo a inclusão deste prédio na relação de bens.
4 – Na decisão que decidiu aquela reclamação, no que aqui releva, escreveu-se:
«(…) pese embora a reclamante teça diversas considerações acerca de determinadas verbas, nomeadamente que a verba n.º5 não corresponde ao que foi legado à interessada e que o prédio que o falecido lhe deixou por testamento foi o prédio rústico inscrito sob o n.º ..., prédio este que deverá integrar a relação de bens, certo é que não produziu prova no sentido por si pretendido, não arrolando qualquer prova que a tal pudesse conduzir.
Assim sendo, e uma vez que o ónus da prova recaía sobre si, a falta de prova conduzirá à improcedência da sua pretensão (cfr. neste sentido Lopes Cardoso in op. Citada p. 588 -“ónus de prova específico? Tem-se entendido, e bem, que ele pertence a quem invoca a falta”.
In casu, a falta é invocada pela interessada, pelo que lhe cabia a prova da reclamação efectuada, o que não fez. Com efeito, a única testemunha ouvida quanto a esta questão foi indicada pelo cabeça de casal e nada referiu no sentido alegado pela reclamante.
Em face do exposto, improcede, nesta parte, a sua reclamação
5 - Na relação de bens retificada de fls.195 e seguintes, apresentada pelo cabeça-de-casal na sequência das alterações que foram determinadas pelo tribunal a quo, o referido prédio rústico passou a integrar a verba nº 6 da relação de bens, sob a epígrafe “Bem deixado em testamento por conta da quota disponível, a BB”.
6 - A interessada BB veio apresentar uma outra reclamação contra a relação de bens retificada, alegando, em síntese, que o cabeça-de-casal omitiu a descrição na relação de bens retificada que apresentou de um bem imóvel que pertence à herança a partilhar nos autos e que rue registou esse prédio na Conservatória competente, em comum e sem determinação de parte ou direito a favor dos herdeiros do inventariado em causa nos autos.
7 - Em resposta veio o cabeça-de-casal alegar que o inventariado lhe doou verbalmente o prédio rústico a que a interessada reclamante faz menção na sua reclamação e que posteriormente construiu a sua casa de habitação nesse prédio rústico. Além disso sustentou que o registo efetuado pela interessada/reclamante quanto àquele bem imóvel é nulo, na medida em que padece de determinados vícios, pelo que o prédio em causa não poderá ser relacionado, nem partilhado nos presentes autos de inventário.
8 – Apreciando tal reclamação, o Mm.º Juiz a quo proferiu em 03.03.2015 o despacho de fls. 456, no qual decidiu «remeter os interessados para os meios comuns a fim resolver as questões suscitadas pela interessada reclamante BB quanto à propriedade do prédio por si indicado na reclamação que agora apresentou, e se o registo predial de aquisição efetuado quanto ao mesmo será ou não nulo, de acordo com o disposto no citado artigo 1350º, nº 1, do Código de Processo Civil.
Nos termos do nº 2, do artigo 1350º, do Código de Processo Civil, não será relacionado, nem incluído no processo de inventário este prédio descrito pela interessada reclamante na sua reclamação.»
9 – Realizada a conferência de interessados foi proferido, em 18.11.205, a fls. 481-482, despacho sobre a forma da partilha.
10 – A interessada e ora recorrente “reclamou” daquele despacho, invocando, nomeadamente, que as verbas nºs 1 a 4 da relação de bens pertenciam em partes iguais ao inventariado e a si, conforme resulta da sentença proferida em processo judicial, concluindo, face ao regime de separação de bens do casamento, que apenas deverão ser adjudicados aos interessados metade dos valores constantes dessas verbas.
11 – Realizado o sorteio de lotes dos quinhões hereditários, foi elaborado o mapa de partilha nos termos de fls. 569 a 571 dos autos.
12 – Visto e rubricado o mapa pelo Mm.º Juiz a quo, foi o mesmo posto em reclamação.
13 – A interessada e ora recorrente reclamou do mapa, arguindo a sua nulidade por violação do caso julgado, ao partilhar como bem próprio exclusivo do inventariado o saldo das contas bancárias que a sentença proferida no processo 143/08.0TBVNO declarou pertencerem aos cônjuges, ou seja, à recorrente e ao inventariado.
14 – O cabeça-de-casal respondeu, pugnando pela improcedência da reclamação, considerando, além do mais, que por despacho proferido em 18.12.2015 foi dado como assente que os valores dos saldos das contas bancárias descritas nas verbas 1 e 4 da relação de bens pertenciam em exclusivo à herança.
15 – O Mm.º Juiz a quo indeferiu a reclamação nos termos do despacho de fls. 601/602, proferido em 24.06.2016.
16 – Em 06.09.2016, a fls. 605, foi proferida sentença homologatória da partilha constante do mapa de fls. 569 a 571, adjudicando aos interessados os quinhões aos interessados nos termos e modalidade aí indicadas.

O DIREITO
Da (pretendida) revogação do despacho de fls. 137 e seguintes
No despacho em causa, acima transcrito na parte que aqui releva, considerou-se que a recorrente não fez prova de que o prédio que o falecido lhe deixou por testamento foi o prédio rústico inscrito na matriz sob o nº ..., e não o prédio rústico constante da verba nº 5 da relação de bens inicialmente apresentada, ou seja, o «prédio rústico composto de terreno de oliveiras, sito em …, freguesia de Espite (…), inscrito na matriz sob o artigo rústico nº … da dita freguesia, não descrito na Conservatória do Registo Predial de Ourém, …».
Antes de prosseguir, relembremos a disposição testamentária do inventariado AA:
«Que por este testamento, instituiu herdeira da quota disponível de seus bens, sua referida mulher BB, a qual começará a ser preenchida pelos seguinte imóveis:
- casa de habitação de rés-do-chão e terra de semeadura com oliveiras e testada de pinhal, no lugar de …, freguesia de Matas, concelho de Ourém (…);
- terra de semeadura, no sítio de …, limite de …, dita freguesia de … (…).»
As partes têm ao longo do processo qualificado esta disposição testamentária como legado, a qual também foi assim considerada pelo Tribunal a quo em vários despachos proferidos.
Não nos parece, porém, que assim seja.
O falecido por via do testamento de 12.12.2008 instituiu como único e universal herdeiro da sua quota disponível a sua mulher, estabelecendo que o preenchimento dessa quota começaria pelos imóveis identificados. Não se trata de legado, mas sim de parte da herança, da quota de que podia dispor (cfr. art. 2030º do Código Civil).
Seja como for, independentemente da qualificação jurídica da disposição testamentária em causa, certo é que no despacho da forma à partilha, o Tribunal determinou que a quota disponível fosse adjudicada à recorrente, conforme vontade do inventariado no testamento que outorgou, e é isso que aqui releva.
Apreciando concretamente a questão colocada pela recorrente, entendemos que não lhe assiste razão.
Vejamos.
Com o requerimento de abertura do inventário juntou a ora recorrente vários documentos, entre os quais a caderneta predial rústica do prédio com o artigo matricial nº …, isto é, o prédio constante da verba nº 5 da relação inicial de bens, e a caderneta predial rústica do prédio com o artigo matricial nº …, constando como titular desses prédios o inventariado AA.
Na relação inicial de bens apresentada pelo cabeça-de-casal – e bem assim na relação retificada – não consta o prédio com o artigo matricial nº ..., que a interessada vem proclamando ao longo do processo ser o prédio que lhe foi deixado em testamento pelo inventariado e não aquele com o artigo matricial nº ....
Ora, a recorrente não apresentou qualquer prova do por si alegado, pelo que outra não podia deixar de ser a decisão proferida no despacho que decidiu a reclamação contra a relação de bens, sabido que quem alega falta de relacionação de bens tem o ónus da prova dessa falta[1].
Nem se diga que por o cabeça-de-casal ter incluído o prédio com o artigo matricial nº ... entre aqueles de que requereu certidão negativa à Conservatória do Registo Predial, indicando como possuidor os herdeiros do inventariado e a este como ante possuidor, «deve ter-se como confissão extrajudicial nos termos do n.º 2 do artigo 358º do Código Civil e com força probatória plena».
A lei define a confissão extrajudicial no art. 352º do Código Civil como «o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária».
Ora, ainda que o cabeça-de-casal tivesse incluído o prédio com o artigo matricial nº ... entre os prédios de que requereu certidão negativa, isso não consubstanciaria uma verdadeira e própria confissão judicial.
A questão, porém, nem se coloca, uma vez que das certidões negativas juntas a fls. 53 a 64, não consta a do prédio em causa, mas sim a do prédio com o artigo matricial nº … (e não ...) que corresponde ao prédio relacionado sob a verba nº 6 da relação de bens inicial [cfr. fls. 62].
Falecem assim as conclusões 1) a 5).

Da inclusão na relação de bens do prédio inscrito na matriz predial rústica sob o nº ...
Trata-se de questão sucessiva e repetidamente suscitada ao longo do processo pela recorrente nos vários requerimentos que apresentou, nomeadamente na reclamação de fls. 385 contra a relação de bens retificada, alegando que o cabeça-de-casal relacionou apenas dois prédios que lhe teriam sido deixados pelo inventariado, quando existem três bens imóveis “legados”.
Contudo, da análise do testamento celebrado pelo inventariado, acima parcialmente transcrito, constata-se que o falecido instituiu como único e universal herdeiro da sua quota disponível a sua mulher, estabelecendo que o preenchimento dessa quota começaria pelos dois imóveis aí identificados, não constando da dessa disposição testamentária o terceiro imóvel a que alude a interessada/recorrente.
É certo que a recorrente apresentou uma outra reclamação contra a relação de bens retificada, através do requerimento junto a fls. 387-388, alegando que o cabeça-de-casal omitiu a descrição naquela relação de bens de um bem imóvel que pertence à herança a partilhar nos autos e que registou esse prédio na Conservatória competente, em comum e sem determinação de parte ou direito a favor dos herdeiros do inventariado.
Em resposta, o cabeça-de-casal contrapôs que o inventariado lhe doou verbalmente o prédio rústico a que a interessada reclamante faz menção na sua reclamação, tendo posteriormente construído a sua casa de habitação nesse prédio rústico. Além disso, defende o cabeça-de-casal que o registo efetuado pela interessada ora recorrente quanto àquele bem imóvel é nulo, na medida em que padece de determinados vícios, não podendo por isso tal prédio ser relacionado, nem partilhado nos presentes autos de inventário.
Perante a situação exposta, escreveu-se no despacho proferido em 03.03.2015, a fls. 457 vº e 458:
«Consideramos que as questões que foram agora levantadas pela interessada reclamante BB e pelo cabeça de casal, ou seja se o bem imóvel que aquela descreve na reclamação pertencerá à herança do inventariado a partilhar nos autos, ou será bem próprio do cabeça de casal, devido ao facto do mesmo lhe ter sido doado verbalmente pelo inventariado, e ainda se o registo de aquisição em comum, a favor dos herdeiros em causa nos presentes autos, de tal imóvel, será nulo, por padecer de vícios, assume de facto uma tal complexidade que exigirá a instauração de uma acção própria para decidir a mesma. A resolução dessas questões não se compadece com a mera produção de prova sumária como ocorreria se a mesma fosse decidida a título de incidente de inventário, nos termos do artigo 1.344º, do Código de Processo Civil. O tribunal pensa que essas questões exigem uma produção de prova mais desenvolvida, que não é viável no âmbito de um mero incidente de inventário. Para além de que a exposição da matéria de facto quanto às mesmas necessitaria de ser mais elaborada, mais desenvolvida e mais completa em relação àquela que os interessados apresentaram.
Em conformidade, decide-se remeter os interessados para os meios comuns a fim resolver as questões suscitadas pela interessada reclamante BB quanto à propriedade do prédio por si indicado na reclamação que agora apresentou, e se o registo predial de aquisição efectuado quanto ao mesmo será ou não nulo, de acordo com o disposto no citado artigo 1.350º, nº1, do Código de Processo Civil.
Nos termos do nº2, do artigo 1.350º, do Código de Processo Civil, não será relacionado, nem incluído no processo de inventário este prédio descrito pela interessada reclamante na sua reclamação.
Caso seja posteriormente proferida decisão judicial a determinar que tal prédio faz efectivamente parte da herança do inventariado em causa nos autos, poderá então efectuar-se uma partilha adicional do mesmo
Subscrevemos inteiramente o entendimento do Mm.º Juiz a quo.
Como é sabido, o processo de inventário destina-se, por via de regra, a pôr termo à comunhão hereditária, derivada do fenómeno sucessório, ou seja, ao chamamento de uma ou mais pessoas à titularidade das relações jurídicas patrimoniais de uma pessoa falecida e à consequente devolução dos bens que a esta pertenciam, por força do estipulado pelos artigos 2024º, do CC e 1326º, nº 1, do CPC.
Devendo ser partilhadas todas as relações jurídicas patrimoniais do falecido, apresentada a respetiva relação de bens, tendo sido acusada a falta de relacionamento de bens ou pedida a exclusão de outros relacionados, por, alegadamente, não pertencerem à herança, produzidas as provas oferecidas, serão os interessados remetidos para o processo comum, quando essas questões não puderem ser resolvidas, sumariamente, no processo de inventário, face à sua complexidade, nos termos do disposto pelo artigo 1350º, nº 1, do CPC.
E, conforme resulta do nº 2 do artigo 1350º, nº 2, do CPC, «no caso previsto no número anterior [na decisão incidental das reclamações contra a relação de bens] não são incluídos os bens cuja falta se acusou ….».
Defende ainda a recorrente que a decisão de non liquet proferida deve apontar para a suspensão da instância, até ao final do processo de utilização dos meios comuns.
Na reclamação contra a relação de bens, estipula o artigo 1350º, nº 1, do CPC, que “quando a complexidade da matéria de facto subjacente às questões suscitadas tornar inconveniente, nos termos do nº 2 do artigo 1336º, a decisão incidental das reclamações previstas no artigo anterior, o juiz abstém-se de decidir e remete os interessados para os meios comuns”.
Por outro lado, a propósito das questões prejudiciais surgidas na pendência do inventário, de que dependa a admissibilidade do processo ou a definição dos direitos dos interessados diretos na partilha que, atenta a sua natureza ou a complexidade da matéria de facto que lhes está subjacente, não devam ser, incidentalmente, decididas, dispõe o artigo 1335º, nº 1, do CPC, que «o juiz determina a suspensão da instância, até que ocorra decisão definitiva, remetendo as partes para os meios comuns, logo que os bens se mostrem relacionados», prosseguindo o respetivo nº 2, no sentido de que «pode ainda ordenar-se a suspensão da instância, nos termos previstos nos artigos 276º, nº 1, alínea c), e 279º, designadamente quando estiver pendente causa prejudicial em que se debata algumas das questões a que se refere o número anterior».
Quer isto dizer, como se escreveu no acórdão da Relação de Coimbra de 11.09.2007[2], «que o incidente de reclamação contra a relação de bens tem, em princípio, uma natureza procedimental diversa da arguição das questões prejudiciais de que dependa a admissibilidade do processo ou a definição dos direitos dos interessados diretos na partilha, muito embora, também estas sejam questões incidentais, mas que não devem ser decididas, no âmbito do próprio processo de inventário, como resulta do confronto das disposições conjugadas dos artigos 1350º, nº 1 e 1335º, do CPC.
Efectivamente, muito embora as questões prejudiciais, a que se reporta o artigo 1335º, tenham, igualmente, a natureza de questões incidentais, contentem com questões diversas daquelas a que se refere o incidente de reclamação contra a relação de bens, sendo certo que, nesta última hipótese, podem ser decididas no próprio inventário, enquanto que naquela não devem, em princípio, ser, incidentalmente, decididas.
De facto, entre as questões de que depende a admissibilidade do processo ou a definição dos direitos dos interessados diretos na partilha destacam-se, por exemplo, a aquisição, pelo de cujus, por usucapião, do direito de certo imóvel, que se relaciona como pertencente à herança, a pendência da ação de investigação de paternidade ou maternidade, cuja procedência pode a vir a afastar a admissão, no inventário, de todos os herdeiros chamados à sucessão, ou a pendência da ação anulatória no testamento, em que são admitidos herdeiros testamentários[3], ou outra que possa ter como consequência a modificação da partilha, o que não acontece, manifestamente, no caso da titularidade dos bens[4].»
Ademais, o artigo 1335º, do CPC, a respeito destas exemplificadas questões prejudiciais, prevê a faculdade de «o juiz determinar a suspensão da instância, até que ocorra decisão definitiva», ao contrário do que acontece com a situação do incidente de reclamação contra a relação de bens, em que o artigo 1350º, nº 1, do CPC, não contempla, expressamente, essa possibilidade[5].
A suspensão da instância ocorre, para além dos casos em que a lei, especialmente, o determinar, quando o Tribunal o ordenar, isto é, quando a decisão da causa esteja dependente do julgamento de outra já proposta e quando entender que ocorre outro motivo justificado, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 269º, nº 1 e 272º, nº 1, ambos do novo CPC (arts. 276º, nº 1 e 279º, nº 1, do anterior CPC).
No caso concreto não se pode sequer dizer que exista um motivo justificado para viabilizar a suspensão da instância, como seria o caso de evitar a partilha de bens que se viesse a provar que não faziam parte da herança, considerando que o imóvel em causa não está relacionado e, como tal, não pode ser partilhado.
De todo o modo, não tendo a recorrente provado que instaurou ação comum a pedir que se declare que o imóvel em causa lhe pertence, não existe ainda causa justificativa bastante para determinar a suspensão da instância do inventário[6].
Soçobram assim as conclusões 6) a 15).

Da violação do caso julgado pelo despacho determinativo da forma à partilha
Afirma a recorrente que no despacho que deu forma à partilha, não podia o Mm.º Juiz fazer tábua rasa da sentença e acórdão proferidos no processo n.º 1433/08.0TBVNO, cuja certidão se encontra a fls. 409 e seguintes dos autos, e ordenar a partilha do dinheiro como se pertencesse todo ao inventariado, pelo que ao fazê-lo violou ostensivamente o caso julgado.
No despacho de 18.12.2015, a fls. 493, ao apreciar a reclamação apresentada pela recorrente do despacho determinativo da forma à partilha relativamente às verbas nºs 1 e 4 da relação de bens, constituídas por saldos de contas bancárias, escreveu-se o seguinte:
«Fls. 486 e 487: Salvo o devido respeito não tem qualquer razão a interessada BB na reclamação que agora fez em relação ao despacho determinativo da forma à partilha.
Designadamente, no que respeita às verbas nºs 1 e 4 da relação de bens de fls. 395 e 396, consta das mesmas que o saldo das contas bancárias nelas descrito pertencerá em exclusivo à herança do inventariado. Não consta dessas verbas que os valores desses saldos pertenceriam em comum ao inventariado e à interessada BB na proporção de metade para cada um, conforme ela vem agora alegar.
A interessada BB foi devidamente notificada desta relação de bens em que constava que os valores constantes daquelas verbas nºs 1 a 4 pertenceriam em exclusivo à herança, e não veio reclamar contra a mesma.
Deste modo, e perante a falta de reclamação da interessada, o Tribunal deu como assente que os valores dos saldos das contas bancárias que se encontram descritos naquelas verbas pertenceriam em exclusivo à herança do inventariado.
Desse modo, determinou-se no despacho determinativo de forma à partilha que os valores constantes naquelas verbas nºs 1 a 4 seriam divididos entre os interessados na proporção das respectivas quotas. Este despacho não padecerá assim de qualquer irregularidade, na medida em que se baseou nos elementos juntos aos autos.
Não haverá assim nada a alterar em relação ao despacho determinativo da forma à partilha quanto a esta questão suscitada pela interessada BB em relação às verbas nºs 1 a 4, que será assim mantido nos seus precisos termos
Vejamos.
«O prazo normal para deduzir reclamação contra a relação de bens – nomeadamente para acusar a falta de relacionação ou requerer a exclusão dos indevidamente relacionados - é o prazo de 10 dias fixado no nº 1 do art. 1348º, prazo esse contado da notificação aos interessados da apresentação daquela relação.
Daí não se segue, porém, a preclusão do direito dos interessados apresentarem a reclamação em momento posterior, considerando o que dispõe o nº 6 do art. 1348º.
Na verdade, como observa Lopes do Rego[7] «o nº 6 vem esclarecer que a não apresentação de oportuna reclamação, no prazo legal, contra a relação de bens não tem efeito preclusivo, podendo ainda ser apresentada ulteriormente, mediante o pagamento de uma multa, quando não se baseie em factos objectiva ou subjectivamente supervenientes – adoptando, deste modo, regime análogo ao previsto para a junção tardia de documentos (…)».
Permite-se, portanto, «que a acusação seja feita posteriormente, em qualquer altura, até ao trânsito em julgado da sentença homologatória da partilha (vd. Ac. da RP, de 20.03.2003, www.dgsi.pt, proc. 0331255), embora o apresentante fique sujeito à cominação de condenação em multa, salvo se provar que, por facto que lhe não é imputável, não a pôde apresentar no momento próprio, ou seja, no prazo fixado no nº 1 do art. 1348º.
E bem se compreende que assim seja, já que de outro modo poderia ficar frustrada a finalidade do inventário, sendo certo que uma tal possibilidade, se tem inconvenientes (v.g. provocar a demora do andamento do inventário, rectificação ou até inutilização de parte do processado), traz também as suas vantagens, p. ex., evitar uma eventual partilha adicional.»[8]
Por outro lado, «a circunstância de já haver sido apresentada uma anterior reclamação não deve constituir obstáculo a que se apresente uma nova reclamação, conquanto que esta, como é óbvio (sob pena de litispendência ou caso julgado), não verse sobre os mesmos bens.
Como escrevia Abílio Neto, in Código de Processo Civil anotado, 3ª ed. (1979), p. 934, “Nada obsta a que o mesmo interessado deduza mais que uma reclamação de bens, desde que a posterior não incida sobre os mesmos bens que constituíram objecto da anterior”.»[9]
Ou seja, a reclamação continua a dever ser feita no prazo previsto no nº 1 do art. 1348º, podendo, contudo, ser feita posteriormente, caso não tenha sido efectuada no momento certo ou se respeitar a outros bens.
Significa isto que no inventário aquilo que essencialmente releva é que, na medida do possível, se apure toda a verdade sobre a extensão, características e valor do património a partilhar.
Não seria curial que, «podendo averiguar-se no decurso do inventário a existência de outros bens além dos relacionados, ou que determinados bens relacionados o não deveriam ter sido, os interessados sejam remetidos para uma eventual emenda da partilha ou partilha adicional, quando o inventário não findou e era possível resolver aí tais questões.»[10]
In casu, a reclamação contra a relação de bens inicialmente apresentada pela recorrente não incidiu sobre as mencionadas verbas nºs 1 a 4, constituídas por saldos de contas bancárias.
Porém, foi posteriormente proferida sentença, em 31.05.2011, em ação intentada pelo inventariado[11] e pela recorrente, contra o cabeça-de-casal e outros, na qual os réus foram condenados a reconhecer que a totalidade do dinheiro depositado nas contas bancárias nºs ….29 e ….32, nas quais o inventariado é o 1º titular, e a conta nº ….35, em que é a 1ª titular a recorrente, «pertence a ambos os autores, AA e sua mulher BB, em exclusivo e partes iguais» (sublinhado e negrito nossos).
Desta decisão apelou o réu, aqui cabeça-de-casal, mas a Relação de Coimbra, por acórdão de 06.12.2011, julgou improcedente a apelação e confirmou a sentença recorrida.
Ora, a certidão com as referidas decisões judiciais foi junta aos autos depois da apresentação pelo cabeça-de-casal da relação de bens retificada e, convém não esquecer, tal junção ocorreu por determinação do próprio Tribunal a quo, em despacho proferido (juntamente com outros) em 06.11.2014 [cfr. fls. 370].
Porém, ao proferir o despacho determinativo da partilha, o Mm.º Juiz a quo não teve em consideração tais decisões, o que motivou a reclamação da recorrente de fls. 486, sustentando que apenas deverão ser adjudicados aos interessados metade dos valores das verbas 1 a 4, sendo a outra metade, bem próprio da recorrente.
O Mm.º Juiz, através do despacho de 18.12.2015 acima transcrito, indeferiu a reclamação, mantendo nos seus precisos termos a questão suscitada pela recorrente quanto às verbas nºs 1 a 4.
Ora, a reclamação de fls. 486 pode ser considerada como uma reclamação contra a própria relação de bens, pois o que está verdadeiramente em causa é o valor das verbas nºs 1 e 4 daquela relação.
Ademais, no despacho determinativo da partilha, «são resolvidas todas as questões que ainda o não tenham sido e que seja necessário decidir para a organização do mapa da partilha, podendo mandar-se proceder à produção de prova que se julgue necessária» - art. 1373º, nº 2, do CPC.
Ora, no caso concreto, dispondo o Mm.º Juiz a quo da certidão das aludidas decisões judiciais e sabendo da imperatividade do regime de separação de bens do casamento entre o inventariado e a recorrente (cfr. doc. de fls. 8-9), não podia deixar de ter isso em consideração, determinando que na partilha a efetuar só entraria a parte do inventariado, ou seja, metade do valor dos saldos das contas bancárias nºs 1 a 3, as quais, no referido processo nº 1433/08.0TBVNO, o Tribunal declarou pertencerem ao inventariado e à recorrente em partes iguais, sob pena de violação do caso julgado.
Já quanto à verba nº 4, a conta aí referida não foi objeto de apreciação no mencionado processo judicial, pelo que é de manter o saldo de € 590,69 aí referido.
Procede, pois, parcialmente o recurso nesta parte, impondo-se a revogação do despacho sobre a forma à partilha, o qual deve ter em atenção as alterações a introduzir nas verbas nºs 1 a 3 da relação de bens.

Da sonegação de bens
Diz a recorrente que o cabeça-de-casal sonegou as contas bancárias onde estava o dinheiro do inventariado e o seu dinheiro, já depois de as ter relacionado, tendo sido necessário um processo judicial para o forçar a reconhecer «que o dinheiro era do pai e da madrasta», pelo que a sentença homologatória da partilha «deveria ter reconhecido que o cabeça de casal sonegou o montante depositado nas contas bancárias do inventariado e, em consequência, deveria ter aplicado o artigo 2096º n.º 1 do Código Civil» [conclusões 24) e 25)].
Sustenta também a recorrente que o cabeça-de-casal, após ter incluído o prédio “legado” à recorrente no pedido de certidão predial, como pertencendo à herança, recusou-se a relacioná-lo, sendo que os despachos sob recurso ao não obrigarem o cabeça-de-casal a relacionar tal prédio devem «ser revogados e substituídos por outro que declare que o prédio inscrito na matriz rústica da freguesia de Espite sob o n.º ... faz parte da herança do inventariado, sendo o que foi legado à cabeça de casal e, em consequência declarar que, nos termos do artigo 2096º do Código Civil, o cabeça de casal perdeu o direito que pudesse ter sobre esse bem, nomeadamente no que respeita a tornas» [conclusões 26) a 29)].
Não tem razão a recorrente.
O facto de correr um processo judicial no qual se discute a titularidade de contas bancárias do inventariado e da recorrente, significa apenas divergência de entendimento das partes quanto a essa titularidade e nada mais.
Quanto ao imóvel, a questão foi já objeto de apreciação neste acórdão, afigurando-se manifesto que não existe qualquer sonegação de bens por parte do cabeça-de-casal, o qual entende que o imóvel lhe pertence por lhe ter sido doado pelo seu pai e inventariado, tendo as partes sido remetidas para os meios comuns dada a complexidade das questões a decidir, como se viu supra.
Improcede nesta parte o recurso.

Sumário:
I - Quem alega falta de relacionação de bens tem o ónus da prova dessa falta.
II - A propósito das questões prejudiciais, contempladas no artigo 1335º, o juiz goza da faculdade de determinar a suspensão da instância, até que ocorra a sua decisão definitiva, ao contrário do que acontece com a situação do incidente de reclamação contra a relação de bens, em que o artigo 1350º, nº 1, ambos do CPC, não consagra, expressamente, essa possibilidade.
III - Tratando-se de uma discussão entre interessados, tendo estes sido remetidos para os meios comuns, não são incluídos no inventário os bens cuja falta se acusou.
IV - A suspensão do inventário só deve ser equacionada e eventualmente ordenada quando os herdeiros demonstrarem haver já recorrido aos meios comuns, por só, então, existir fundamento sério para tal.
V - A reclamação contra a relação de bens em processo de inventário pode ser feita mais que uma vez até ao trânsito em julgado da sentença homologatória da partilha.
VI – Só assim não sucede quando a segunda reclamação versa sobre os mesmos bens ou sobre a mesma questão já decidida em reclamação anterior.
VII – Junta aos autos certidão de uma sentença transitada em julgado proferida em ação instaurada pelo inventariado e pela sua mulher, ora interessada/recorrente, contra o cabeça-de-casal e outros, na qual os réus foram condenados a reconhecer que a totalidade do dinheiro depositado em certas contas bancárias, pertence a ambos os autores em exclusivo e partes iguais, não podia o Juiz deixar de ter isso em consideração quando proferiu o despacho determinativo da partilha, ordenando que nesta só entrasse a metade do valor dos saldos de tais contas bancárias, sob pena de, não o fazendo, violar o caso julgado formado pela decisão proferida na referida ação.

IV - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência, revogam o despacho determinativo da forma da partilha, o qual deve ser elaborado tendo em conta as alterações a introduzir nas verbas nºs 1 a 3 da relação de bens acima assinaladas, seguindo-se os demais termos do inventário.
Custas pela recorrente e recorrido, na proporção de metade.
*
Évora, 27 de Abril de 2017
Manuel Bargado
Albertina Pedroso
Tomé Ramião
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[1] Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, Vol. I, 4ª edição, Almedina, p. 544.
[2] Proc. 48/03.3TBFIG.C1, in www.dgsi.pt.
[3] Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, IV, 2ª edição, revista e atualizada, 2005, p. 297; João António Lopes Cardoso e Augusto Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, I, 5ª edição, 2006, p. 604.
[4] Ac. do STJ, de 09.10.1997, CJ (STJ), Ano V, T3, p. 55
[5] Carvalho de Sá, Do Inventário, Descrever, Avaliar e Partir, 4ª edição, p. 116, citado no acórdão da Relação de Coimbra acima citado.
[6] Cfr. o Ac. do STJ de 09.10.1997 a que se alude na nota 4.
[7] In Comentários ao Código de Processo Civil, II, 2ª ed., pág. 265.
[8] Cfr. Ac. da RP de 27.01.2005, proc. 0437302, in www.dgsi.pt.
[9] Cfr. o citado Ac. da RP de 27.01.2005; no mesmo sentido, o Ac. da RL de 09.06.2009, proc. 1075/06.4TBFUN-A.L1-7, in www.dgsi.pt.
[10] Cfr. o citado Ac. da RP de 27.01.2005.
[11] Que viria a falecer na sua pendência.