Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
418/19.5GHSTC.E1
Relator: RENATO BARROSO
Descritores: REQUERIMENTO DE ABERTURA DA INSTRUÇÃO
ASSISTENTE
ACUSAÇÃO ALTERNATIVA
Data do Acordão: 06/21/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: O requerimento do assistente para abertura de instrução, sequente ao termo do inquérito, dirigido contra a abstenção de acusação por banda do Ministério Público, terá de configurar, materialmente, uma acusação alternativa, funcionalmente semelhante à que seria formulada pelo M.P. se tivesse decidido acusar, da qual deverão constar os factos que se consideram indiciados e que sejam integradores dos crimes respetivos, de forma a possibilitar a realização da instrução, fixando os termos do debate e o exercício do contraditório.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA


1. RELATÓRIO


A – Decisão Recorrida

No processo de inquérito nº 418/19.5GHSTC, que correu termos nos serviços do Ministério Público de Setúbal, Secção de Santiago do Cacém, foi proferida acusação pública contra os arguidos:
- AA, pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p.p., pelo Artº 143 nº1 do C. Penal;
- BB, pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p.p., pelo Artº 143 nº1 do C. Penal e
- CC, pela prática de dois crimes de ofensa à integridade física simples, p.p., pelo Artº 143 nº1 do C. Penal.

Pela arguida CC, constituída assistente, foi deduzida acusação particular (na mesma peça processual onde também requeria a abertura da instrução e deduzia pedido de indemnização civil), contra a arguida BB, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de injúria, pp, pelo Artº 181 nº1 do C. Penal, acusação esta, que foi acompanhada pelo MP.
Convidada a esclarecer o seu requerimento de abertura de instrução, designadamente, as razões de direito da sua discordância com a acusação pública e indicar as disposições legais aplicáveis, a assistente assim fez, apresentando novo requerimento, que foi objecto do seguinte despacho (transcrição):

CC, assistente nos autos, requereu a Abertura de Instrução, pedindo a pronúncia dos arguidos AA e BB, pela prática, cada um deles de um crime de ameaça agravada, p e p. artigos 153º, 155º, nº1, e) e 132º, nº2, f) Código Penal e de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p e p artigos 143º, 1 e 2 e 145º, 2 Código Penal.
Apresenta a sua discordância relativamente à acusação pública, que imputa a cada um dos arguidos a prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p e p artigo 143º C. Penal, invocando que o Ministério Púbico fez uma errónea qualificação jurídica dos factos.
De acordo com o disposto no n.º 3 do art.º 287º do CPP são fundamentos de indeferimento do requerimento de instrução a extemporaneidade, a incompetência do juiz e inadmissibilidade legal da instrução.
No presente caso, o requerimento não é extemporâneo, e o tribunal é competente.
Importa apreciar a admissibilidade do RAI.
Compulsado o Requerimento da Assistente, constata-se que não coloca em causa os factos que constam da acusação, nem os meios de prova apresentados para os sustentar, requerendo a abertura de instrução com a finalidade de se discutir a qualificação jurídica dos mesmos.
O objeto da fase de instrução, como resulta do artigo 286º CPP é a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem de submeter ou não a causa a julgamento. Não se trata de um novo inquérito, com uma atividade de natureza investigatória, pelo que a insuficiência da investigação realizada pelo Ministério Público no inquérito é sindicada hierarquicamente por via de reclamação hierárquica. Já a errada valoração dos indícios colhidos na investigação, essa sim, é sindicada judicialmente por via da abertura de instrução.
A qualificação jurídica dos factos dados por indiciados na acusação é uma decisão de carácter técnico da autoria do magistrado titular do inquérito e não uma decisão que se prenda com a correta ou incorreta valoração dos indícios recolhidos (decisão essa que se reflete, isso sim, na escolha dos factos dados por indiciados).
Como refere Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 3ª edição, 2009, pag. 751, anotação 6, “a instrução não pode, em regra, ser requerida para discutir apenas a qualificação jurídica dos factos, uma vez que a lei admite o exercício dessa faculdade pelo arguido relativamente a factos da acusação pública ou particular (…)(artigo 287º, número 1, als. a) e b). Acresce que o legislador fez uma opção clara por concentrar na audiência do julgamento a discussão de “todas as questões jurídicas pertinentes” (artigo 339º, número 4), não se justificando a abertura da instrução com o exclusivo fito de antecipação dessa discussão jurídica”.
Concordando-se com esta posição, concluímos que é inadmissível a abertura da instrução com vista à simples alteração da qualificação jurídica dos factos vertidos na acusação.
Destinando-se a instrução a sindicar a valoração dos indícios recolhidos na fase do inquérito no sentido de fundamento da descrição de factos, impõe-se fazer apenas uma referência ao conteúdo do artigo 51º do RAI, onde a assistente faz constar factos não descritos na acusação, a saber : “ ao atuar da forma anteriormente mencionada, o arguido AA fê-lo com o propósito de, por meio de violência, ou de ameaça com mal importante, constranger a assistente a uma ação, causando-lhe medo e receio e toldando-lhe a liberdade de decisão e de ação” .
Estando em causa a eventual imputação aos arguidos dos crimes de ameaça agravada e de ofensa à integridade física qualificada, este facto, que não foi descrito na acusação pública, não releva já que não preenche nenhum dos elementos do tipo de ilícito referidos.
Também relativamente ao elemento subjetivo do tipo de crime de ameaça agravado e ofensa à integridade física qualificada, não foi descrito pela assistente qualquer facto que os possa integrar, fazendo apenas constar, como já consta da acusação pública, o elemento subjetivo do crime de ofensa à integridade física simples.
Como já ficou escrito no despacho anterior, no qual a assistente foi convidada a aperfeiçoar o seu requerimento na parte referente às razões de direito da sua discordância com a acusação, indicando as normas aplicáveis de forma clara, manteve o seu pedido de pronuncia dos arguidos pelos crimes acima mencionados, ainda que, na peça processual faça alusão ao crime de coação agravada, alusão esta da qual não foram retiradas consequências pela assistente.
Releva agora invocar o disposto no artigo 287º, número 2, do Código de Processo Penal: “O requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º Não podem ser indicadas mais de 20 testemunhas.” .
No artigo 283º, número 3, do diploma, pode-se ler o seguinte:
3 - A acusação contém, sob pena de nulidade: (…)
b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;
c) A indicação das disposições legais aplicáveis;
(…)”.
Deve, pois, conter sob pena de nulidade, a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança (incluindo se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação do agente). Na verdade, não cabe ao juiz de instrução o exercício da ação penal, ou seja, investigar para enumerar e descrever os factos indiciados. O requerimento de abertura de instrução do assistente tem que ser é equivalente, em tudo, à acusação pública, definindo e limitando o objeto do processo. Esta é uma consequência da estrutura acusatória do processo a definição do seu thema decidendum pela acusação. Quando esta não existe, é o requerimento de abertura de instrução que tem que fixar tais limites.
O acusador, no caso, o assistente, requer ao tribunal a submissão a julgamento do acusado pela prática dos factos que obrigatoriamente tem que descrever na acusação, em conformidade com as disposições legais aplicáveis, que também deve (obrigatoriamente) indicar.
No caso do requerimento de abertura de instrução apresentado nos autos, verifica-se, na parte supra referida ( artigo 51º), que os factos narrados não relevam para os crimes cuja qualificação jurídica é a defendida pela assistente.
Por outro lado, não descreveu quaisquer factos que permitam preencher os elementos do tipo subjetivo dos crimes qualificados/ agravados cuja pronuncia requer.
Pelo exposto, ao abrigo do disposto no artigo 287º, número 3, do Código de Processo Penal, decido rejeitar o requerimento de abertura de instrução por se verificar uma inadmissibilidade legal da instrução.
Notifique e dê baixa.
Oportunamente, remeta os autos aos serviços do Ministério Público, para os efeitos tidos por convenientes.

B – Recurso
Inconformada com o assim decidido, recorreu a assistente, concluindo as suas motivações (em segunda peça processual e após convite efectuado nesse sentido) da seguinte forma (transcrição):

1" Foi a assistente notificada do despacho de acusação do processo nº 418119.5GllSTC, imputando a cada um dos arguidos o crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. 143" do Código Penal.
2" Não concordando com a qualificação jurídica adoptada pelo Ministério Público, veio a assistente interpor Requerimento de Abertura de Instrução com base nos artigos 2860 e 2870 n" 2 do Código de Processo Penal.
3° Crendo que perante os factos ali expostos. estaríamos perante: 1 (um) crime de injúria p.p. art.° 181.° do CP, 1 (um) crime de coação agravada p. e p. art.° 154.° e 155 alínea e), ambos do CP e 1 (um) crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. art." 143 e 145.° do CP.
4° Tendo presente que estaria perante um crime de natureza particular optou por, em nome dos princípios processuais como o da economia processual, celeridade e concentração do processo, como o da economia processual. celeridade e concentração do processo relegar a questão do crime de injúria. e a sua possível acusação particular, para momento posterior ú alteração jurídica dos factos descritos na acusação.
S'' Após interposição do referido RAL foi a assistente convidada a aperfeiçoa-lo, através do requerimento Ref. n° 93075571. fazendo-o no dia 20 de setembro de 2021.
6° Volvidos 10 dias. entendeu o tribunal a quo que o mesmo deveria ser rejeitado, baseando-se no artigo 2870 n° 3 do Código de Processo Penal.
7° Ora, lendo presente o artigo suscitado pelo tribunal a quo, o mesmo indica que o RAl deverá ser rejeitado por (l) extemporaneidade, (2) incompetência do juiz ou (3) inadmissibilidade legal da instrução.
8" Tendo sido o fundamento da "inadmissibilidade legal da instrução o adoptado pelo tribunal a quo.
9" Tendo em conta a falta de exactidão deste pressuposto. veto o STJ clarifica-lo enumerando todas as situações inseridas no mesmo, sendo certo que em nenhuma delas cabe o caso aqui sob escrutínio.
10° Isto lendo em conta tanto os crimes de natureza pública aqui em causa, como o crime de natureza particular.
11" Demonstra-se. portanto que o RAI aqui em causa apresenta-se como admissível. por se apresentar tempestivo. o juiz ser competente e por fim por estarmos perante um dos casos de admissibilidade da abertura de instrução.
12" Significando que o mesmo não deveria ter sido rejeitado pois. não existe qualquer fundamento legal para esse mesmo indeferimento,
Pelo que, a Requerente/reclamante/recorrente, não se pode conformar com o douto despacho do tribunal a quo que recusou o RAI.
PELO EXPOSTO
À ora requerente/reclamante/recorrente, não resta outra alternativa se não a de submeter a presente reclamação a apreciação de Vossas excelências, a fim de o RAI interposto ser admitido.

C – Resposta ao Recurso
O M.P. ofereceu resposta a este recurso, pugnando pela sua improcedência, apresentando as seguintes conclusões (transcrição):

1. No caso em apreciação, o Ministério Público imputou a cada um dos arguidos AA e BB, factos susceptíveis de configurar a prática de um crime de ofensa à integridade fisica simples, p.p. pelo artigo 143°, n? 1, do Código Penal e, acompanhado a acusação particular formulada pela assistente contra a arguida, passou também a imputar-lhe, em concurso, um crime de injúria, p.p. pelo artigo 181 ° do Código Penal.
2. Após ter sido convidada a esclarecer as razões de direito da sua discordância com a acusação pública e indicar de forma clara as disposições legais aplicáveis, a assistente apresentou o requerimento de fls, 283 a 291, manifestando a sua discordância com a qualificação jurídica efectuada pelo Ministério Público, mas omitindo o elemento subjectivo do crime de ameaça agravada e do crime de ofensa à integridade flsica qualificada, cuja pronúncia pretende, remetendo para os elementos subjectivos constantes da acusação e que se reportam aos crimes pelos quais o Ministério Público deduziu acusação.
Fez ainda constar factos que poderiam, eventualmente, integrar a prática do crime de coacção por parte do arguido, não extraindo contudo, as respectivas consequências jurídicas, mormente ao nível da imputação jurídica quanto àquele, estando a peça processual apresentada longe de conter uma descrição minimamente inteligível dos factos praticados por cada um dos arguidos.
3. É inegável, deste modo, que o requerimento para abertura de instrução apresentado pela assistente, não configura uma verdadeira acusação, como se impunha, suscitando-nos dúvidas, face à redacção do artigo 287°, n" I, alínea b) do Código de Processo Penal, sobre a sua legitimidade para requerer a abertura da instrução sobre factos pelos quais o Ministério Público deduziu acusação, apenas por discordar da sua qualificação jurídica.
4. Acresce a omissão do elemento subjectivo dos crimes pelos quais se pretende que os arguidos sejam pronunciados, sendo tal requisito essencial para a punibilidade do seu comportamento, por ser um dos elementos que o artigo 283°, n° 3, do Código de Processo Penal impõe que seja incluído na acusação.
5. Sendo a jurisprudência unânime no sentido de considerar que deve ser rejeitado, por inadmissibilidade legal, o requerimento para abertura de instrução apresentado pelo assistente, que seja totalmente omisso quanto a elementos subjectivos dos crimes imputados e que não contenha uma descrição rnínimamente inteligível dos factos praticados pelos arguidos que possam integrar os seus elementos objectivos, afigura-se-nos inatacável a decisão proferida, fundamentada no artigo 287°, n.? 3, do Código de Processo Penal.
Pelo exposto, deve a decisão proferida, de rejeição do requerimento de abertura de instrução, ser mantida nos seus precisos termos, negando-se provimento ao recurso interposto, como acto de inteira e sã JUSTIÇA.

D – Tramitação subsequente
Aqui recebidos, foram os autos com vista ao Exmº Procurador-Geral Adjunto, que militou pela improcedência do recurso.
Observado o disposto no Artº 417 nº2 do CPP, não foi apresentada resposta.
Efectuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.
Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO
A – Objecto do recurso
De acordo com o disposto no Artº 412 do CPP e com a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no D.R. I-A de 28/12/95 (neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Setembro de 2007, proferido no processo n.º 07P2583, acessível em HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/" HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/" www.dgsi.pt, que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria), o objecto do recurso define-se pelas conclusões que a recorrente extraiu da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, que aqui e pela própria natureza do recurso, não têm aplicação.
Assim sendo, importa tão só apreciar se existe razão à recorrente, no sentido de dever ser aceite o seu requerimento para abertura de instrução.

B – Apreciação
Como resulta do atrás exposto, pelo MP foi proferido despacho de acusação contra os arguidos AA e BB, imputando-lhes, a cada um, a prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p.p., pelo Artº 143 nº1 do CPP.
O MP acompanhou ainda a acusação particular formulada pela aqui recorrente contra a arguida BB, pelo cometimento de um crime de injúria, p.p., pelo Artº 181 nº1 do aludido diploma legal.
Inconformado com o teor daquela acusação pública, veio a arguida/assistente CC requerer a abertura da instrução, invocando a errónea qualificação jurídica dos factos por parte do MP, peticionando a pronúncia de cada um daqueles arguidos pela prática de um crime de ameaça agravada, outro de coacção agravada e um crime de ofensa à integridade física qualificada, p.p., respectivamente, pelos Artsº 181, 153, 155 nº1 al. e) e 132 nº2 al. f) e 143 nsº1 e 2 e 145 nº2, todos do C. Penal.
Como é amplamente ensinado pela Doutrina e Jurisprudência e decorre explicitamente do disposto no Artº 286 nº1 do C.P. Penal, a instrução, como fase facultativa e preliminar do processo penal, visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento, comprovando-se judicialmente a decisão do M.P. no fecho do inquérito, seja de acusação ou de arquivamento.
Face à estrutura acusatória do processo penal português, estipula o nº4 do Artº 288 do CPP, que o juiz não pode investigar autonomamente o caso submetido a instrução, estando vinculado factualmente aos elementos que lhe são trazidos no requerimento de abertura de instrução de forma a poder decidir sobre a justeza ou acerto da decisão de acusação ou arquivamento.
O requerimento de abertura da instrução constitui, assim, um elemento fundamental para a definição e determinação do âmbito e dos limites da intervenção do juiz na instrução, a qual, sendo autónoma, como se disse, se terá de conter dentro do tema factual que lhe é proposto através daquele, podendo por isso dizer-se, garantidamente, que o requerimento de abertura de instrução delimita o thema decidendum dos autos, quer em relação à actividade jurisdicional, quer quanto ao pleno exercício do contraditório por parte do arguido, cuja tutela de defesa apenas se assegura se ali estiverem concretizados, de forma clara, os factos integradores dos elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime que lhe é imputado.
Nos termos do disposto no Artº 287 nº2 do CPP, o requerimento de abertura da instrução “não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do nº 3 do artigo 283º”.
Como refere Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, III, págs. 140/141, na instrução a requerimento do assistente, o juiz investigará os factos descritos no requerimento instrutório e se os julgar indiciados e nada mais obstar ao recebimento da acusação pronunciará o arguido por esses factos (Artsº 308 e 309).
Não há lugar a uma nova acusação, o requerimento do assistente actua como acusação e assim se respeita, formal e materialmente, a natureza acusatória do processo.
O requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente constitui uma verdadeira acusação, ou seja, traduz a acusação que o assistente entende que deveria ter sido deduzida pelo M.P.
No mesmo sentido, aliás, de forma quase esmagadora, foram publicadas inúmeras decisões judiciais dos tribunais de segunda instância.
O requerimento do assistente terá assim de se configurar, materialmente, como uma acusação alternativa, funcionalmente semelhante à que seria formulada pelo M.P. se tivesse decidido acusar, de onde constem os factos que considera indiciados e que integrem os crimes, de forma a possibilitar a realização da instrução, fixando os termos do debate e o exercício do contraditório.
Ora, como é cristalinamente evidente, o requerimento para abertura de instrução formulado pela assistente não reúne as características exigidas pela conjugação dos Artsº 283 nº1 als. b) e c) e 287 nº2, ambos do CPP, seja ao nível da própria descrição factual da matéria em causa – no que toca à concreta definição dos factos – seja pela ausência do desenho dos imprescindíveis elementos objectivos e subjectivos dos crimes de ameaça agravada, coacção agravada e ofensa à integridade física qualificada que pretende imputar aos arguidos.
A este nível, não há a alegação de qualquer facto novo que pudesse contribuir para o desenho, quer na dimensão objectiva, quer a nível subjectivo, para o enquadramento da conduta dos arguidos sob as vestes criminais que, pela assistente, são indicadas no seu requerimento para abertura da instrução.
Em boa verdade, como bem nota o despacho recorrido, a assistente não coloca em causa os factos constantes da acusação, ou os meios de prova que a sustentam, mas apenas e tão só, a qualificação jurídica efectuada no libelo acusatório, entendendo que aqueles factos merecem uma outra valoração criminal.
A assistente não alega que deveriam ser outros os factos objecto de pronúncia aos arguidos, omitindo assim, na totalidade, os factos suscepctiveis de integrar os ilícitos pelos quais pretende que os arguidos sejam pronunciados, limitando a sua discordância com a acusação pública, no fundo e tão-somente, a uma decisão de carátcer técnico, de mero enquadramento jurídico e que se prende com a qualificação criminal desse conjunto factual.
A assistente não extraiu quaisquer consequências jurídicas do por si alegado que se possa ser considerado de novo em relação à acusação pública – Artº 51 do RAI – omite, por completo, os elementos subjectivos dos ilícitos cuja pronúncia peticiona, pelo que a peça processual apresentada, mesmo depois de ter sido sujeita ao aperfeiçoamento determinado por despacho judicial, está muito longe de conter uma descrição minimamente inteligível dos factos praticados por cada um dos arguidos, de forma a satisfazer as exigências legais que supra foram indicadas.
É certo que se concorda com a decisão recorrida quando afirma que:
O objeto da fase de instrução, como resulta do artigo 286º CPP é a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem de submeter ou não a causa a julgamento. Não se trata de um novo inquérito, com uma atividade de natureza investigatória, pelo que a insuficiência da investigação realizada pelo Ministério Público no inquérito é sindicada hierarquicamente por via de reclamação hierárquica. Já a errada valoração dos indícios colhidos na investigação, essa sim, é sindicada judicialmente por via da abertura de instrução.
A qualificação jurídica dos factos dados por indiciados na acusação é uma decisão de carácter técnico da autoria do magistrado titular do inquérito e não uma decisão que se prenda com a correta ou incorreta valoração dos indícios recolhidos (decisão essa que se reflete, isso sim, na escolha dos factos dados por indiciados).
Como refere Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 3ª edição, 2009, pag. 751, anotação 6, “a instrução não pode, em regra, ser requerida para discutir apenas a qualificação jurídica dos factos, uma vez que a lei admite o exercício dessa faculdade pelo arguido relativamente a factos da acusação pública ou particular (…)(artigo 287º, número 1, als. a) e b). Acresce que o legislador fez uma opção clara por concentrar na audiência do julgamento a discussão de “todas as questões jurídicas pertinentes” (artigo 339º, número 4), não se justificando a abertura da instrução com o exclusivo fito de antecipação dessa discussão jurídica”.
Nesta medida, sem prejuízo de se dizer que nos inclinámos para considerar que não é admissível o requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente quando este se fundamento, apenas, na discordância da qualificação jurídica levado a cabo pelo MP na acusação que formulou - questão que deverá ser objecto de apreciação no seu momento próprio, o do julgamento - a verdade é que tal discussão não apresenta, in casu, relevância, tendo em conta que a assistente, no seu requerimento para a abertura de instrução, limita-se a discordar da acusação pública, tecendo considerações jurídicas sobre o preenchimento dos crimes em causa, para os quais pede a pronúncia dos arguidos, mas não alega quaisquer factos novos que ali não tenham sido considerados.
Ou seja, é manifesto que a assistente, apesar de legalmente obrigada, não deduziu uma acusação pelos crimes que entende estarem preenchidos, com uma adequada e concreta imputação de factos, situados no espaço e no tempo, descritos sequencialmente, de forma a poderem integrar os elementos típicos dos ilícitos em causa.
A descrição factual exarada no requerimento de abertura da instrução é eivada de conclusões, insusceptível de ser enquadrada nos elementos integradores, quer a título objectivo, quer numa dimensão subjectiva, dos novo crimes que pretende imputar aos arguidos.
Cabia à assistente, narrar, de uma forma lógica, sequencial e perceptível, os factos concretos nos quais se poderia fundar o pretendido despacho de pronúncia, não cabendo essa tarefa ao juiz de instrução.
Há assim que concluir, como bem fez o tribunal recorrido, que o dito requerimento de abertura de instrução não alcança o exigido pela lei no que concerne à narração – ainda que sintética – de factos, objectivos e subjectivos, que permitam alcançar uma definição de crime, para desse modo se desenhar a possibilidade de aplicação de uma pena pelos novos crimes contra as pessoas contra quem é deduzida a instrução.
Deste modo, o requerimento que a assistente apresentou para abertura da instrução, ao não conter tais elementos, não é processualmente prestável para a finalidade a que se destinava, o que equivale a dizer que não pode cumprir a função processual a que estaria vocacionado, o que gera que a instrução requerida seja inviável, por falta de requisitos legais.
Nessa medida, como é consensualmente defendido pela Jurisprudência, em termos processuais tudo se passa como se não tivesse havido requerimento, o que determina a impossibilidade de abertura da fase de instrução.
Na verdade, as falhas apontadas ao requerimento de abertura de instrução acarretam que a instrução não tenha objecto, daí não fazer sentido que a mesma tenha lugar, configurando-se a sua realização como uma impossibilidade jurídica e os actos instrutórios como actos inúteis e por isso proibidos por lei (Artº 137 do CPC), na medida em que, ainda que fossem apurados factos passíveis de enquadramento criminal, se viessem a constar da decisão instrutória, sempre esta seria nula por violação do estatuído no Artº 309 nº1 do CPP.
Não contendo o requerimento de abertura de instrução matéria que integre, de forma cabal, os elementos objectivos e subjectivos dos tipos de crime de ameaça agravada, coacção e ofensa à integridade física qualificada imputados aos arguidos, o seu eventual adicionamento pelo juiz numa hipotética decisão instrutória de pronúncia, sempre se consubstanciaria numa alteração substancial de factos, vedada pelo mencionado Artº 309 nº1 do CPP.
Ora, a omissão de tais exigências deve conduzir à rejeição de tal requerimento, actuando-se assim similarmente com uma acusação deficiente, nos termos do Artº 311 nsº2 al. a) e 3 al. b) do CPP.
Bem andou assim a instância recorrida, ao rejeitar o requerimento para abertura de instrução da assistente, até porquanto, de acordo com a jurisprudência fixada pelo STJ, em 12/05/05, no Proc. 7/05, “Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura da instrução, apresentado nos termos do art. 287 n.º2 do CPP, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido”.
Por tudo se conclui que o requerimento da assistente de abertura de instrução, ao não cumprir as exigências dos Arts 283 nº3, als. b) e c) e 287, nº2, ambos do CPP, não permite a definição do objecto da instrução, o que consubstancia a inadmissibilidade legal desta fase processual assim se fundamenta a sua rejeição, nos termos do Artº 287 nº3 do CPP.
Por fim, não se vislumbra, com o devido respeito por opinião contrária, que desta interpretação normativa resulte a violação de qualquer preceito constitucional.
Improcede, pois, o recurso.

3. DECISÃO
Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso e em consequência, manter o despacho recorrido.
Custas a cargo dos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça, atendendo ao trabalho e complexidade das questões suscitadas, em 3 UC, ao abrigo do disposto nos Artsº 513 nº1 e 514 nº1, ambos do CPP e 8 do Regulamento das Custas Processuais e tabela III anexa.
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Consigna-se, nos termos e para os efeitos do disposto no Artº 94 nº2 do CPP, que o presente acórdão elaborado pelo relator e integralmente revisto pelos signatários.
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Évora, 21 de Junho de 2022
Renato Barroso (Relator)
Maria Fátima Bernardes (Adjunta)
Gilberto Cunha (Presidente)
(Assinaturas digitais)