Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
924/15.0T9STC.E1
Relator: FÁTIMA BERNARDES
Descritores: CRIME DE DESCAMINHO DE OBJECTO COLOCADO SOB O PODER PÚBLICO
ELEMENTOS ESSENCIAIS DO CRIME
CONSUMAÇÃO
Data do Acordão: 04/18/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. O crime de caminho ou de destruição de objetos colocados sob o poder público, previsto no artigo 355.º do Código Penal, tutela o bem jurídico «autonomia intencional do Estado, concretizada através de uma ideia de inviolabilidade das coisas sob custódia pública, ou seja, no cumprimento das várias formas em que se corporizam as ordens legítimas de autoridade que dele emanam.»
II. A ação típica consiste em destruir, danificar ou inutilizar, total ou parcialmente, ou por qualquer forma, subtrair. Sendo o objeto da ação um documento ou uma coisa móvel ou imóvel que se encontre colocada sob o poder público do Estado.
III. Constitui entendimento pacifico que os conceitos de destruição, danificação e inutilização, enquanto modalidades de ação do crime de descaminho, configuram-se em termos semelhantes à descrição típica do crime de dano.
IV. Como assim:
«Destruir», significa não apenas fazer desaparecer a matéria de que a coisa alheia é composta, a qual, nesse caso, deixa de manter a sua individualidade (destruição total), mas também a destruição parcial da coisa, que por virtude da ação do agente passa a ser imprestável.
«Danificar», se apesar de a coisa não perder totalmente a sua integridade, sofre um estrago substancial, com a consequente diminuição do seu valor económico ou da sua utilidade específica.
«Tornar não utilizável» abrangerá as ações que reduzem a utilidade da coisa segundo a sua função.
E a «subtração ao poder público» abrangerá as condutas que sonegam a coisa ao poder público, ainda que a subtração não implique a intenção de apropriação, tem é de traduzir a frustração definitiva da sujeição ao poder público.
V. O tipo objetivo consiste na violação da integridade de coisa que esteja colocada sob custódia pública, podendo assumir a forma de destruição, danificação, inutilização ou subtração total ou parcial de coisa ou coisas colocadas sob custódia pública.
VI. E o tipo subjetivo admite qualquer das modalidades do dolo (direto, necessário ou eventual).
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

1. RELATÓRIO
1.1. Neste processo comum, n.º 924/15.0T9STC, do Tribunal Judicial da Comarca ... – Juízo Central Criminal ... – Juiz ..., foram submetidos a julgamento, com intervenção do Tribunal Coletivo, os arguidos AA e BB, melhor identificados nos autos, estando pronunciados, o arguido AA pela prática de três crimes de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203º, n.º 1 e 204º, n.ºs 2, alíneas a) e e) e 3, ambos do Código Penal e de três crimes de descaminho de objetos colocados sob o poder público, p. e p. pelos artigo 355º do mesmo diploma legal e o arguido BB pela prática de um crime de furto qualificado e de um crime de descaminho, p. e p. pelas referenciadas disposições legais.
1.2. Realizado o julgamento, foi proferido acórdão, em 08/06/2022 – depositado no dia 13/06/2022 –, com o seguinte dispositivo
«(…), o Coletivo de Juízes deste Tribunal deliberou por unanimidade julgar a acusação pública parcialmente procedente por provada e, em consequência:
1. Absolver os arguidos AA e BB da prática dos imputados crimes de furto qualificado.
2. Condenar os arguidos AA e BB pela prática em coautoria material no dia 29 de maio de 2015 de um crime de descaminho previsto e punido pelo artigo 355.º do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão.
3. Condenar o arguido AA pela prática em autoria material no dia 04 de agosto de 2015, de 1 (um) crime de descaminho, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão.
4. Condenar o arguido AA pela prática em autoria material no dia 10 de agosto de 2015, de 1 (um) crime de descaminho, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão.
5. Condenar o arguido AA em cúmulo jurídico na pena única de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão.
6. Suspender na sua execução a pena de prisão aplicada aos arguidos AA e BB, pelo período de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses e 1 (um) ano e 6 (seis) meses, respetivamente.
7. Condenar os arguidos no pagamento das custas criminais, cuja taxa de justiça, ao abrigo do disposto nos artigos 8.º n.º 9 do Regulamento das Custas Processuais, com referência à tabela III anexa e 513.º do Código de Processo Penal, - fixo em 3 UC (204,00€).
(...).»
1.3. Inconformados com o decidido, recorreram os arguidos para este Tribunal da Relação, extraindo da motivação do recurso que respetivamente apresentaram, as seguintes conclusões:
1.3.1. Conclusões do recurso do arguido BB:
«1. Por douto acórdão ora em crise proferido no âmbito dos autos supra melhor identificados, foi o arguido BB, condenado na pena de prisão de um ano e seis meses, suspensa por idêntico período.
2. Ora, salvo o devido respeito, entendemos que o douto Tribunal a quo não aplicou correctamente a justiça, em conformidade com os ditames desta quando proferiu decisão, tendo ocorrido erro notório de apreciação de prova.
3. O douto Tribunal a quo alicerçou a sua convicção – quanto à matéria de facto provada – no princípio da livre apreciação da prova, na inteligibilidade e análise crítica e ponderada do conjunto da prova produzida e examinada em sede de audiência de julgamento, tudo conforme melhor se lê na douta sentença em crise.
4. Contudo, da prova produzida em sede de audiência de julgamento, quer testemunhal quer mesmo documental, impunha obrigatoriamente ao douto Tribunal a quo uma decisão diversa da que ora se recorre.
5. Assim, vinha o arguido recorrente, na fase de instrução, acusado da prática em coautoria material de três crimes de furto qualificado, previsto e punido pelos artigos 203.º, 204.º, n.º 2, alíneas a) e e) e n.º 3, por referência ao artigo 202.º, alíneas b) e d), 26.º e 14.º do Código Penal,
6. Em concurso aparente com três crimes de descaminho, previsto e punido pelos artigos 355.º, 26.º e 14.º, n.º 1, todos do Código Penal, por força da cláusula de subsidiariedade expressa prevista na parte final do artigo 355.º CP.
7. Não obstante, produzida prova indiciária e realizado o debate instrutório, foi proferida decisão no sentido de pronunciar o arguido BB pela prática de um crime de furto qualificado em concurso aparente com a prática de um crime de descaminho, ainda que o douto Ministério Público, tenha vindo nas suas alegações a peticionar a condenação do arguido pelos três crimes cometidos.
8. Porém o que ao momento importa, o douto Ministério Público, ouvida que foi toda a prova produzida e bem sabendo da intervenção limitada a um facto do arguido recorrente, requer a sua condenação pelos três crimes que lhe vinham imputados, douto Ministério Público este que, na pessoa do Exmo. Sr. Procurador, exerce novamente funções em sede de julgamento.
9. Razão pela qual é impossível deixar de questionar qual a imparcialidade que deveria presidir ao desempenho das funções do Exmo. Sr. Procurador, este agora na qualidade de representante do douto Ministério Público, mas já em sede de julgamento.
10. Assim, devidamente compulsado o douto acórdão ora em crise, o que desde logo se constata, é que o arguido recorrente, já vinha condenado, mesmo antes de ser efecutado o julgamento.
11. Na verdade a presunção de inocência enquanto princípio jurídico de ordem constitucional, aplicado ao direito penal, que estabelece o estado de inocência como regra em relação ao acusado da prática de infração penal, manifestamente não foi observado no caso concreto, razão essa única pela qual, se poderá
explicar, que todos os depoimentos, por demais incongruências que tiveram, foram sempre valorados de forma a desconsiderar as declarações do arguido e mesmo, valorados de forma a desconsiderar a prova documental junta aos autos e, sempre em desfavor do arguido.
12. Veja-se o facto dado por provado no artigo 16.º dos Factos Provados, que se encontra devidamente impugnado para todos os devidos efeitos legais, o qual foi frontalmente contraditado pelo arguido, mais resultando da prova documental junta aos autos, que o douto Tribunal a quo decidiu dar como irrelevante, assim violando não só o Princípio da Presunção de Inocência com o Princípio do In Dubio Pro Reo.
13. E diz-se que o arguido recorrente já vinha condenado antes de ser sentenciado, porquanto perante depoimentos vários, incongruentes e que foram sofrendo alterações ao longo do processo judicial (militares da GNR e Exmo. Sr. AI por referência ao teor de uma alegada conversa telefónica que foi sempre NEGADA pelo arguido recorrente), o douto Tribunal a quo, decide dar primazia e prevalência a estes ao invés das declarações do arguido recorrente que sempre foram constantes e imutáveis.
14. Aqui chegados, importa fazer uma co-relação entre o depoimento dos Exmos. Srs. Militares da GNR e o depoimento do Exmo. Sr. AI, Dr. CC.
15. Ora, como é bem sabido e resulta dos autos, o depoimento dos Exmos. Srs. Militares é em tudo posterior aos factos ocorridos. o que apenas poderá fazer denotar, a existência de conversas havidas entre os Exmos. Srs. Militares da GNR e o Exmo. Sr. AI, Dr. CC, sendo certamente este, quem em conversas havidas com aqueles, veio adiantar que havia sido dito que existia uma sentença.
16. Reitere-se, pelo Exmo. Sr. AI, Dr. CC, NUNCA pelo arguido recorrente.
17. Assim e se já o Princípio da Presunção de Inocência e se o Princípio In Dubio Pro Reo é colocado em causa com o tornar irrelevante as declarações do arguido face à dos Exmos. Srs. Militares da GNR, mais colocado em causa e violado é, quando da contraposição com o depoimento do Exmo. Sr. AI, Dr. CC, quando o douto Tribunal a quo dá prevalência a um teor de uma alegada chamada telefónica, em detrimento de mails escritos (prova documental) onde o arguido NEGA a versão do Exmo. Sr. AI.
18. Através da impugnação ampla, os poderes de cognição do tribunal de recurso não se restringem ao texto da decisão recorrida (como acontece com os vícios previstos no art. 410º, n.º 2), alargando-se à apreciação do que contém e se pode extrair da prova documentada e produzida em audiência, sempre delimitada pelo recorrente através do ónus de especificação previsto nos n.ºs 3 e 4do art. 412º, tendo em vista o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento e visando a modificação da matéria de facto, nos termos do art. 431º, al. b).
19. Não se pode conceber no facto dado por provado no artigo 16.º, em especial na parte em que indica que perante os militares da GNR informou que iria mudar as fechaduras (de que nunca se fez prova neste sentido), de que era tudo legal (de que nunca se fez prova neste sentido) e, sobretudo, de que o arguido recorrente teria dito ao Exmo. Sr. AI que teria na sua posse uma sentença.
20. Consequentemente, também o facto dado por provado no artigo 26º não poderá proceder, pois que quedando-se o mesmo a montante sempre se quedará a jusante, isto porquanto, o arguido recorrente não iludiu nem nunca o pretendeu fazer, os militares da GNR.
21. Aliás, avançar com esta tese é denegrir a própria imagem dos militares da GNR personificando-os com alguém néscio capaz de ser manipulado, o que não se apresenta como verídico e o mesmo se diga por referência ao Exmo. Sr. AI, mutatis mutandis.
22. Tal facto representa um claro e censurável erro de julgamento de prova que importa corrigir, para boa aplicação da JUSTIÇA, que não poderá deixar de conduzir à absolvição do arguido recorrente.
23. Mas mais, ponderando em particular perante os factos dados como não provados, sendo estes os meios de prova que sustentam a afirmação infra, encontra-se mal julgado o facto dado por provado no ponto 27, porquanto não existe prova nos autos da existência de bens vendidos que se encontrassem no interior do estabelecimento de farmácia apreendidos à ordem de processo judicial.
24. Na verdade o arguido recorrente encontra-se neste imbróglio jurídico com uma condenação da qual ora recorre, porquanto se apresentou junto do quartel da GNR a apresentar uma peça processual, em sinal de total cooperação.
25. Não, ao contrário do que acreditou o douto Tribunal a quo, no sentido de enganar ou ludibriar alguém.
26. Ora, se no tocante ao artigo 16.º dos factos dados por provados, o mesmo representa claramente uma violação do Princípio da Presunção da Inocência e do Princípio In Dubio Pro Reo, o artigo 17.º dos factos dados por provados, representa um grosseiro erro jurídico, lamentável e censurável, porque inexiste qualquer prova nos autos que corra nesse sentido, o mesmo se diga quanto ao arrombar ou mandar trocar fechaduras.
27. Uma vez mais, o arguido recorrente já se encontrava condenado antes de ser sentenciado.
28. E na verdade, a intervenção do arguido recorrente, queda-se por estes dois artigos da matéria de facto dada por provada onde nenhuma outra intervenção teve em qualquer das situações factuais que encerra a douta sentença ora em crise.
29. E é com base nestes factos constantes de dois artigos da matéria de facto dada por provada pelo douto Tribunal a quo, que o arguido recorrente, advogado de profissão, é condenado à pena de prisão de um ano e seis meses, suspensa por igual período, com as necessárias implicações que tal decisão terá na sua vida profissional.
30. Uma clara violação de todos os demais basilares princípios estruturantes do Direito Penal, em particular, pela manifesta violação do Princípio da Presunção de Inocência e do Princípio do In Dubio Pro Reo.
31. E aqui chegados, lemos no artigo 27º dos factos dados por provados, que quem violou a custódia foi o arguido AA, não o arguido recorrente.
32. É assim também, por consequência e decorrência lógica, FALSO o facto dado por provado no artigo 28, que assim também representa um censurável e erro profundo de julgamento porquanto NUNCA o aqui arguido recorrente agiu de forma livre, deliberada e consciente, no sentido que lhe é imputado na douta sentença em crise.
33. O princípio in dubio pro reo, princípio relativo à prova, implica que, não possam considerar-se como provados os factos que, apesar da prova produzida, não possam ser subtraídos à "dúvida razoável" do tribunal.
34. Conforme o supra exposto, não resultaram provados factos suficientes que demonstrassem o preenchimento dos elementos do crime em que o arguido foi condenado, bem pelo contrário e de acordo com o supra exposto, resulta claro e evidente, pelo facto provado no artigo 31.º e pelos factos não provados, que o douto Tribunal deveria ter determinado a aplicação ao caso concreto deste princípio.
35. Aliás, toda a fundamentação da sentença ora objecto de recurso, na realidade, não assenta nos factos provados, sendo antes consequência de uma construção, aparentemente lógico-dedutiva, completamente desfasada e, inclusive contraria à factualidade apurada, que o douto Tribunal a quo admite tratar-se de uma ABSTRACÇÃO.
36. O arguido recorrente, vem assim condenado com base numa dedução de ABSTRACTA PROBABILIDADE.
37. Em suma, nos presentes autos não só ficou cabalmente provado que o arguido não praticou o crime de que foi condenado, como foi criada uma claríssima dúvida razoável quanto aos factos pelos quais o arguido vem acusado e quanto à culpa deste, pelo que a sua absolvição aparece como a única atitude legítima a adoptar.
38. Pelo exposto o tribunal a quo violou, ainda o disposto no n.º 2 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa.
39. Há ainda que considerar a errónea apreciação dos factos – para além da já supra descrita referente aos pontos 16, 17, 26 e 27 – e consequentemente apreciar, a errónea e em muito censurável, subsunção dos factos ao Direito.
40. É dado como provado, no artigo 31.º dos factos provados, o quanto ora se transcreve: “O arguido AA, após a apreensão no processo de insolvência do estabelecimento comercial “A...”, adquiriu medicamentos para vender no aludido estabelecimento, através da sociedade B..., Unipessoal Lda.”.
41. Reitere-se, com extrema relevância para a boa decisão dos autos, o arguido AA, APÓS a apreensão no processo de insolvência ADQUIRIU MEDICAMENTOS.
42. Conjuntamente, lê-se também na douta sentença em crise: “Não se provam com relevância para a decisão da causa os seguintes factos:
c) Que tenha sido a sociedade C... LDA., a encomendar e a adquirir a totalidade ou parte dos medicamentos constantes no inventário a fls. 10 a 162 do apenso 6.
d) Que tenha sido a sociedade C... LDA., a encomendar e a adquirir a totalidade ou parte dos medicamentos e bens vendidos no estabelecimento de farmácia no período compreendido entre 29 de Maio de 2015 e 04 de Junho de 2015…” – no concernente à motivação do presente recurso.
43. Consequentemente, não se prova que os bens que tenham sido vendidos entre 29 de Maio de 2015 e 04 de Junho de 2015 tenham sido encomendados e adquiridos pela sociedade C... LDA. ou que estivessem apreendidos.
44. Logo, mesmo tais medicamentos que poderiam ter sido vendidos entre 29 de Maio de 2015 e 04 de Junho de 2015, poderiam ter sido medicamente adquiridos nesse mesmo período, pelo arguido AA.
45. Entende o douto Tribunal a quo que: “… sendo em abstracto possível que no dia 13 de Agosto de 2015 aquando da restituição definitiva da farmácia à massa insolvente da C... não estivessem medicamentos que lá se encontravam no dia 07 de Maio de 2015…”.
46. Se é em abstracto possível que no dia 13 de Agosto de 2015 aquando da restituição definitiva da farmácia à massa insolvente da C... não estivessem medicamentos que lá se encontravam no dia 07 de Maio de 2015, é também em abstracto possível que no dia 13 de Agosto de 2015 aquando da restituição definitiva da farmácia à massa insolvente da C... estivessem TODOS OS medicamentos que lá se encontravam no dia 07 de Maio de 2015.
47. Cabia a acusação fazer prova CONCRETA e PRECISA dos factos que imputava ao arguidos, pois que caso contrário, estamos perante uma CONDENAÇÃO com base num ABSTRACTO POSSIVEL, a qual seria não só ilegal, eticamente do ponto de vista incorrecta e sobretudo INCONSTITUCIONAL.
48. Então NUNCA EXISTIU o crime de descaminho, pois que importava ao douto MP público ter aferido, e não aferiu, ter alegado e não alegou, ter provado e não provou, por referência a que bens apreendidos haviam sido ou não objecto de descaminho.
49. Assim se bastando quer o douto MP na acusação quer o douto Tribunal a quo no acórdão proferido, em sede de Estado de Direito Democrático, com uma acusação baseada numa ABSTRACTA POSSIBILIDADE.
50. E dúvidas existissem, leia-se ainda o que se encontra na sentença em crise proferida: “… designadamente porque no final, após o 13 de Agosto de 2015, não foi possível saber que medicamentos e outros bens móveis estavam ou não estavam no interior do estabelecimento comercial no dia 07 de Maio de 2015. O elemento objectivo encontra-se assim cabalmente preenchido.”
51. Ora, o primeiro erro encontra-se na delimitação temporal pois no quanto ao arguido recorrente importa e diz respeito ao “final”, não é a data de 13 de Agosto de 2015, mas outrossim, a data de 04 de Junho de 2015 e prova nenhuma foi feita nesse sentido.
52. O segundo erro encontra-se em considerar o elemento objectivo cabalmente preenchido, quando existe DÚVIDA reconhecida, confessada e admitida na sentença pelo douto colectivo, i e, o mesmo não sabe que medicamentos e outros bens móveis estavam ou não estavam no interior do estabelecimento comercial no dia 07 de Maio de 2015 e assim, não pode alegar que o DESCONHECIDO ou O QUE NÃO CONHECE NA SUA EXISTÊNCIA foi objecto de descaminho.
53. Ocorre erro notório na apreciação da prova quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto contido no texto da decisão recorrida (Simas Santos e Leal Henriques, in Cód. Proc. Penal anotado, II vol., pág. 740).
54. “II- Com a alusão genérica a que o arguido resolveu dar destino não concretamente apurado aos bens apreendidos, o que temos de palpável é exactamente uma imprecisão, a qual em rigor, não se encontra matéria suscetível de preencher o conceito de subtracção ao poder público por qualquer um dos meios legais previstos;” in Ac. TR de Lisboa, Proc. 39/17.7EALSB.L1-9
55. O douto Tribunal a quo acusa o arguido recorrente de se ter apropriado de uma COISA e ter potenciado o seu descaminho, mas sem saber QUE COISA!
56. A acusação, enquanto delimitadora do objeto do processo e dos poderes de cognição do tribunal, deve precisar a factualidade integradora da conduta típica, e a verdade é que o não fez nos presentes autos.
57. Que existe nítida contradição/colisão, entre os factos dados por provados no número 31, os factos dados por não provados, os quais se complementam entre si, mas se apresentam incompatíveis com a decisão proferida, ou seja, não se pode dar por simultaneamente como provado que se desconhece quem adquiriu os bens, no todo e em parte e consequentemente, que se desconhece qual a data em que os mesmos foram adquiridos e um pouco mais a frente, dar por provado o crime de descaminho, estando assim perante o vicio estatuído no artº 410º nº 2 al. b) do CPP, ou seja contradição insanável da fundamentação, a qual não é passível de ser suprida no Tribunal superior.
58. Assim e na verdade, não pode o douto Tribunal a quo perante a INCERTEZA e a ABSTRACÇÃO que confessa como reconhecida, supra referido no quanto aos bens diz respeito, primeiro, a afirmar que “houve destruição, danificação, inutilização ou subtração” dos referidos bens,
59. Pois que na verdade, não se apurou sequer de forma objectiva, individualizada e concretizada QUAIS BENS, sendo a prova de qualquer dessas modalidades da ação indispensável para se considerar preenchido o tipo objetivo do crime aqui em análise, quer os conceitos de destruição, danificação, inutilização, subtração, estes efetivamente incluídos na definição do referido tipo legal, os quais são matéria de direito, porque conclusivos ou envolvendo sentido especificamente jurídico e segundo, resulta manifesto que da descrição na sentença recorrida do elenco do factualismo provado não constam factos concretos que os integrem, nada resultando de concreto sobre que bens concretos e individualizados se refere o douto Tribunal a quo – porque o não faz!
60. Em suma, entendemos que da materialidade objectiva exarada na sentença não constam factos nem se encontra matéria susceptível de preencher o conceito de “subtracção ao poder público”, i e, da factualidade apurada não constam actos integradores da dimensão objectiva do crime de descaminho p. e p. pelo artigo 355º do Código Penal, pelo qual o recorrente tinha sido acusado.
61. “Concluindo-se assim, que os apurados factos não são susceptíveis de integrar os elementos típicos (e anotando-se até que recorrendo ao princípio in dúbio pro reo, que o Tribunal “ a quo “ lançou mão para absolver o arguido do outro crime de quebra de selos), desde logo a nível objectivo do imputado crime de descaminho (ou de qualquer outro tipo legal de crime), inevitavelmente se impõe a absolvição do arguido/recorrente, ficando, por conseguinte, prejudicada a apreciação das demais questões que haviam sido suscitada pelo recorrente (vide no mesmo sentido o AC TRC de 4/02/2015, in www.dgsi.pt). Assim outra solução não resta senão a de se absolver o arguido da prática do crime, p.p. pelo artº 355º do Código Penal.”
62. A dúvida in casu é inultrapassável, séria e razoável a reserva intelectual à afirmação de um facto que constitui elemento de um tipo de crime ou com ele relacionado, deduzido da prova globalmente considerada, pois que na verdade, tendo por base o facto dado por provado no artigo 31.º e os factos dados por não provados, inexiste prova de QUE BENS estão em causa nos autos.
63. Assim, ficam por preencher os elementos objetivos e subjetivos do crime de descaminho ou destruição de objetos colocados sob o poder público, p. e p. pelo art. 355º do Código Penal, pelo qual o arguido recorrente foi condenado, impondo- se a sua absolvição, pois que não se sabe QUAIS BENS, e a existência de uma condenação com base numa ABSTRACÇÃO DE FACTO, em direito penal, é de todo em todo rudimentar e ofende não só a própria JUSTIÇA como ofende os Direitos, Liberdades e Garantias do arguido recorrente.
64. No quanto se refere ao conhecimento e actuação com dolo do arguido recorrente, tal também não poderá nunca ser dado por procedente.
65. O arguido recorrente detalhou com exactidão a forma como laborava no escritório de advogados, em como era na verdade um subalterno dos demais e, em como consistia a sua prestação de serviço.
66. Tal foi corroborado por outra duas testemunhas, também elas advogadas de profissão.
67. Todas as testemunhas alegaram de forma inequívoca que apenas foi o arguido recorrente a assinar as peças e a estar presente na primeira diligência, por impossibilidade dos advogados mais velhos, que perante essa impossibilidade indicaram que deveria ser o arguido recorrente.
68. Vir o douto Tribunal a quo alegar que tal tese não merece provimento porquanto não é assim que funcionam as sociedades de advogados, revela um desconhecimento censurável da realidade factual que importava para o presente caso.
69. Mais resulta que, a produzida em julgamento, as declarações do arguido recorrente ao longo de todas as fases do processo – instrução e julgamento – e das testemunhas e bem assim, da prova documental, analisadas conjuntamente à luz das regras de experiência comum, apresentam (sem nunca prescindir da supra referida e alegada tese), resultados contraditórios.
70. Coloca-se desde logo a questão de saber se o arguido recorrente, profissional de advocacia, se limitou a agir no exercício das suas funções, prestando assistência jurídica que lhe era solicitada, directa ou através do escritório onde trabalhava, pois que é impossível analisar a conduta do arguido recorrente dissociada da circunstância de os factos que lhe são imputados terem sido praticados no quadro do exercício da advocacia.
71. Atente-se que o arguido sempre negou os factos que lhe foram imputados e defendeu-se invocando a qualidade de mandatário, mais sendo claro que a sua intervenção se limitou e esgotou no âmbito do mandato forense.
72. Neste caso e em particular, sendo o arguido recorrente advogado e estando acusado de factos praticados no exercício das suas funções e do mandato forense, exigir-se-iam mais evidências de participação, o que não ocorreu.
73. Outro também não poderá ser o entendimento senão o de que, a prova da acusação não permite, repete-se, com a certeza necessária (sem se prescindir de tudo quanto supra se alegou e em bom rigor, da aplicação do princípio in dúbio pro reo) que são exigidas em direito penal (atente-se que o arguido recorrente vem condenado com base numa ABSTRACÇÃO HIPOTETICA de que tanto poderá ser, como poderá não ser), a concluir pela existência de um propósito volitivo na prática do crime que lhe vem imputado e pelo qual foi ilicitamente condenado.
74. Em suma, perante a dúvida instalada, face à prova produzida e enunciada – à qual se chama especial atenção para a prova documental de e-mails, prova testemunhal e os factos dados por provados no artigo 31.º e pelos factos dados por não provados – apenas se concebe, o que desde já se requer para todos os devidos efeitos legais, à luz do princípio in dúbio pro reo fundado constitucionalmente no princípio da presunção de inocência – art. 32.º/2 CRP – dar como não provados os factos incriminadores do arguido.
75. Assim não se entendendo, e à cautela, mal andou o douto Tribunal a quo, na escolha da medida da pena aplicada, atente-se que o arguido recorrente não tem antecedentes criminais, no entanto, vem condenado a um ano e seis meses de prisão.
76. Aliás, mesmo comparando os dois arguidos nos autos, o arguido recorrente vem condenado em um ano e seis meses de prisão suspensa por igual período por um crime, e o outro arguido vem condenado, em cúmulo, por três crimes, em dois anos e seis meses, quando o mesmo, tem inclusive, antecedentes criminais.
77. Inexiste qualquer ponderação do caso concreto que se apresente como justa em termos de igualdade distributiva.
78. Com efeito, a haver uma condenação, caso que apenas se concede por mera cautela de patrocínio, sempre deveria ser pelo mínimo legal e suspensa na sua execução.
79. Isto porque, face ao supra exposto, face às contradições grosseiras entre os factos dados por provados no artigo 31º, os factos dados por não provados e as declarações sempre coerentes do arguido recorrente, a condenação teria de ser sempre pelo mínimo legal.
80. Recorde-se, que para além das consequências penais, o arguido recorrente terá ainda de lidar com as consequências do foro disciplinar,
81. Sendo certo que as mesmas impõem a consideração adicional de punição do arguido recorrente, que ao contrário de um cidadão comum, o qual é apenas punido criminalmente, o arguido recorrente terá ainda de lidar com uma eventual punição disciplinar, sendo assim a “pena” a que está sujeito, não só de índole criminal, mas ainda de índole disciplinar, com forte implicação na vida profissional e social do arguido recorrente.
82. Isto aliado ao facto, dos Tribunais portugueses, em processos de igual natureza e até em processos considerados mais graves e de grande envergadura, com antecedentes criminais, tenham aplicado uma sentença em muito divergente dos padrões adoptados pelo douto Tribunal a quo, conforme melhor resulta do corpo das alegações.
83. Face ao exposto e tendo em conta todo este enquadramento não podemos deixar de considerar que deveria o douto Tribunal a quo atender a um juízo de ponderação na medida da pena aplicada, devendo a mesma ser reduzida para o mínimo legal, conforme desde já se requer para todos os devidos.
Nestes termos, nos melhores de direito e com o sempre mui douto suprimento de V. Exas., deverá ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência:
a) Ser o arguido absolvido da prática do crime de que vem acusado por erro notório na apreciação da prova e violação dos princípios da presunção de inocência, in dubio pro reo e artigo 32.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa;
b) Caso assim não se entenda, deverá ser reduzida a pena aplicada para o mínimo legal, devendo a mesma ser suspensa na sua execução, assim o deliberando, cremos, se fará a desejada e habitual JUSTIÇA!».
1.3.2. Conclusões do recurso do arguido AA:
«1. Ora, salvo o devido respeito, entendemos que o douto Tribunal a quo não aplicou correctamente a justiça, em conformidade com os ditames desta quando proferiu decisão, tendo ocorrido erro notório de apreciação de prova.
2. O douto Tribunal a quo alicerçou a sua convicção – quanto à matéria de facto provada – no princípio da livre apreciação da prova, na inteligibilidade e análise crítica e ponderada do conjunto da prova produzida e examinada em sede de audiência de julgamento, tudo conforme melhor se lê na douta sentença em crise.
3. Contudo, da prova produzida em sede de audiência de julgamento, quer testemunhal quer mesmo documental, impunha obrigatoriamente ao douto Tribunal a quo uma decisão diversa da que ora se recorre.
4. Porém o que ao momento importa, o douto Ministério Público, ouvida que foi toda a prova produzida veio requer a sua condenação pelos três crimes que lhe vinham imputados, douto Ministério Público este que, na pessoa do Exmo. Sr. Procurador, exerce novamente funções em sede de julgamento.
5. Razão pela qual é impossível deixar de questionar qual a imparcialidade que deveria presidir ao desempenho das funções do Exmo. Sr. Procurador, este agora na qualidade de representante do douto Ministério Público, mas já em sede de julgamento.
6. Assim, devidamente compulsado o douto acórdão ora em crise, o que desde logo se constata, é que o arguido recorrente, já vinha condenado, mesmo antes de ser efectuado o julgamento.
7. Na verdade a presunção de inocência enquanto princípio jurídico de ordem constitucional, aplicado ao direito penal, que estabelece o estado de inocência como regra em relação ao acusado da prática de infração penal, manifestamente não foi observado no caso concreto, razão essa única pela qual, se poderá explicar, que todos os depoimentos, por demais incongruências que tiveram, foram sempre valorados de forma a desconsiderar as declarações do arguido e mesmo, valorados de forma a desconsiderar a prova documental junta aos autos e, sempre em desfavor do arguido.
8. Através da impugnação ampla, os poderes de cognição do tribunal de recurso não se restringem ao texto da decisão recorrida(como acontece com os vícios previstos no art. 410º, n.º 2), alargando-se à apreciação do que contém e se pode extrair da prova documentada e produzida em audiência, sempre delimitada pelo recorrente através do ónus de especificação previsto nos n.ºs 3 e 4do art. 412º, tendo em vista o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento e visando a modificação da matéria de facto, nos termos do art. 431º, al. b).
9. Na verdade o arguido recorrente encontra-se neste imbróglio jurídico com uma condenação da qual ora recorre, porquanto se apresentou ab initio a cumprir com as indicações do Exmo. Sr. AI, Dr. DD.
10. Não, ao contrário do que acreditou o douto Tribunal a quo, no sentido de enganar ou ludibriar alguém.
11. O princípio in dúbio pro reo, princípio relativo à prova, implica que, não possam considerar-se como provados os factos que, apesar da prova produzida, não possam ser subtraídos à "dúvida razoável" do tribunal.
12. Conforme o supra exposto, não resultaram provados factos suficientes que demonstrassem o preenchimento dos elementos do crime em que o arguido foi condenado, bem pelo contrário e de acordo com o supra exposto, resulta claro e evidente, pelo facto provado no artigo 31.º e pelos factos não provados, que o douto Tribunal deveria ter determinado a aplicação ao caso concreto deste princípio.
13. Aliás, toda a fundamentação da sentença ora objecto de recurso, na realidade, não assenta nos factos provados, sendo antes consequência de uma construção, aparentemente lógico-dedutiva, completamente desfasada e, inclusive contraria à factualidade apurada, que o douto Tribunal a quo admite tratar-se de uma ABSTRACÇÃO.
14. O arguido recorrente, vem assim condenado com base numa dedução de ABSTRACTA PROBABILIDADE.
15. Em suma, nos presentes autos não só ficou cabalmente provado que o arguido não praticou o crime de que foi condenado, como foi criada uma claríssima dúvida razoável quanto aos factos pelos quais o arguido vem acusado e quanto à culpa deste, pelo que a sua absolvição aparece como a única atitude legítima a adoptar.
16. Pelo exposto o tribunal a quo violou, ainda o disposto no n.º 2 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa.
17. Há ainda que considerar a errónea apreciação dos factos supra descrita e consequentemente apreciar, a errónea e em muito censurável, subsunção dos factos ao Direito.
18. É dado como provado, no artigo 31.º dos factos provados, o quanto ora se transcreve: “O arguido AA, após a apreensão no processo de insolvência do estabelecimento comercial “A...”, adquiriu medicamentos para vender no aludido estabelecimento, através da sociedade B..., Unipessoal Lda.”.
19. Reitere-se, com extrema relevância para a boa decisão dos autos, o arguido AA, APÓS a apreensão no processo de insolvência ADQUIRIU MEDICAMENTOS.
20. Conjuntamente, lê-se também na douta sentença em crise: “Não se provam com relevância para a decisão da causa os seguintes factos:
c) Que tenha sido a sociedade C... LDA., a encomendar e a adquirir a totalidade ou parte dos medicamentos constantes no inventário a fls. 10 a 162 do apenso 6.
d) Que tenha sido a sociedade C... LDA., a encomendar e a adquirir a totalidade ou parte dos medicamentos e bens vendidos no estabelecimento de farmácia no período compreendido entre 29 de Maio de 2015 e 04 de Junho de 2015…” – no concernente à motivação do presente recurso.
21. Consequentemente, não se prova que os bens que tenham sido vendidos entre 29 de Maio de 2015 e 04 de Junho de 2015 tenham sido encomendados e adquiridos pela sociedade C... LDA. ou que estivessem apreendidos.
22. Logo, mesmo tais medicamentos que poderiam ter sido vendidos entre 29 de Maio de 2015 e 04 de Junho de 2015, poderiam ter sido medicamente adquiridos nesse mesmo período, pelo arguido AA.
23. Entende o douto Tribunal a quo que: “… sendo em abstracto possível que no dia 13 de Agosto de 2015 aquando da restituição definitiva da farmácia à massa insolvente da C... não estivessem medicamentos que lá se encontravam no dia 07 de Maio de 2015…”.
24. Se é em abstracto possível que no dia 13 de Agosto de 2015 aquando da restituição definitiva da farmácia à massa insolvente da C... não estivessem medicamentos que lá se encontravam no dia 07 de Maio de 2015, é também em abstracto possível que no dia 13 de Agosto de 2015 aquando da restituição definitiva da farmácia à massa insolvente da C... estivessem TODOS OS medicamentos que lá se encontravam no dia 07 de Maio de 2015.
25. Cabia a acusação fazer prova CONCRETA e PRECISA dos factos que imputava ao arguidos, pois que caso contrário, estamos perante uma CONDENAÇÃO com base num ABSTRACTO POSSIVEL, a qual seria não só ilegal, eticamente do ponto de vista incorrecta e sobretudo INCONSTITUCIONAL.
26. Então NUNCA EXISTIU o crime de descaminho, pois que importava ao douto MP público ter aferido, e não aferiu, ter alegado e não alegou, ter provado e não provou, por referência a que bens apreendidos haviam sido ou não objecto de descaminho.
27. Assim se bastando quer o douto MP na acusação quer o douto Tribunal a quo no acórdão proferido, em sede de Estado de Direito Democrático, com uma acusação baseada numa ABSTRACTA POSSIBILIDADE.
28. E dúvidas existissem, leia-se ainda o que se encontra na sentença em crise proferida: “… designadamente porque no final, após o 13 de Agosto de 2015, não foi possível saber que medicamentos e outros bens móveis estavam ou não estavam no interior do estabelecimento comercial no dia 07 de Maio de 2015. O elemento objectivo encontra-se assim cabalmente preenchido.”
29. O erro encontra-se em considerar o elemento objectivo cabalmente preenchido, quando existe DUVIDA reconhecida, confessada e admitida na sentença pelo douto colectivo, i e, o mesmo não sabe que medicamentos e outros bens móveis estavam ou não estavam no interior do estabelecimento comercial no dia 07 de Maio de 2015 e assim, não pode alegar que o DESCONHECIDO ou O QUE NÃO CONHECE NA SUA EXISTÊNCIA foi objecto de descaminho.
30. Ocorre erro notório na apreciação da prova quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto contido no texto da decisão recorrida (Simas Santos e Leal Henriques, in Cód. Proc. Penal anotado, II vol., pág. 740).
31. “II- Com a alusão genérica a que o arguido resolveu dar destino não concretamente apurado aos bens apreendidos, o que temos de palpável é exactamente uma imprecisão, a qual em rigor, não se encontra matéria suscetível de preencher o conceito de subtracção ao poder público por qualquer um dos meios legais previstos;” in Ac. TR de Lisboa, Proc. 39/17.7EALSB.L1-9
32. O douto Tribunal a quo acusa o arguido recorrente de se ter apropriado de uma COISA e ter potenciado o seu descaminho, mas sem saber QUE COISA!
33. A acusação, enquanto delimitadora do objeto do processo e dos poderes de cognição do tribunal, deve precisar a factualidade integradora da conduta típica, e a verdade é que o não fez nos presentes autos.
34. Que existe nítida contradição/colisão, entre os factos dados por provados no número 31, os factos dados por não provados, os quais se complementam entre si, mas se apresentam incompatíveis com a decisão proferida, ou seja, não se pode dar por simultaneamente como provado que se desconhece quem adquiriu os bens, no todo e em parte e consequentemente, que se desconhece qual a data em que os mesmos foram adquiridos e um pouco mais a frente, dar por provado o crime de descaminho, estando assim perante o vicio estatuído no artº 410º nº 2 al. b) do CPP, ou seja contradição insanável da fundamentação, a qual não é passível de ser suprida no Tribunal superior.
35. Assim e na verdade, não pode o douto Tribunal a quo perante a INCERTEZA e a ABSTRACÇÃO que confessa como reconhecida, supra referido no quanto aos bens diz respeito, primeiro, a afirmar que “houve destruição, danificação, inutilização ou subtração” dos referidos bens,
36. Pois que na verdade, não se apurou sequer de forma objectiva, individualizada e concretizada QUAIS BENS, sendo a prova de qualquer dessas modalidades da ação indispensável para se considerar preenchido o tipo objetivo do crime aqui em análise, quer os conceitos de destruição, danificação, inutilização, subtração, estes efetivamente incluídos na definição do referido tipo legal, os quais são matéria de direito, porque conclusivos ou envolvendo sentido especificamente jurídico e segundo, resulta manifesto que da descrição na sentença recorrida do elenco do factualismo provado não constam factos concretos que os integrem, nada resultando de concreto sobre que bens concretos e individualizados se refere o douto Tribunal a quo – porque o não faz!
37. Em suma, entendemos que da materialidade objectiva exarada na sentença não constam factos nem se encontra matéria susceptível de preencher o conceito de “subtracção ao poder público”, i e, da factualidade apurada não constam actos integradores da dimensão objectiva do crime de descaminho p. e p. pelo artigo 355º do Código Penal, pelo qual o recorrente tinha sido acusado.
38. “Concluindo-se assim, que os apurados factos não são susceptíveis de integrar os elementos típicos (e anotando-se até que recorrendo ao princípio in dúbio pro reo, que o Tribunal “ a quo” lançou mão para absolver o arguido do outro crime de quebra de selos), desde logo, a nível objectivo do imputado crime de descaminho (ou de qualquer outro tipo legal de crime), inevitavelmente se impõe a absolvição do arguido/recorrente, ficando, por conseguinte, prejudicada a apreciação das demais questões que haviam sido suscitada pelo recorrente (vide no mesmo sentido o AC TRC de 4/02/2015, in www.dgsi.pt). Assim outra solução não resta senão a de se absolver o arguido da prática do crime, p.p. pelo artº 355º do Código Penal.”
39. A dúvida in casu é inultrapassável, séria e razoável a reserva intelectual à afirmação de um facto que constitui elemento de um tipo de crime ou com ele relacionado, deduzido da prova globalmente considerada, pois que na verdade, tendo por base o facto dado por provado no artigo 31.º e os factos dados por não provados, inexiste prova de QUE BENS estão em causa nos autos.
40. Assim, ficam por preencher os elementos objetivos e subjetivos do crime de descaminho ou destruição de objetos colocados sob o poder público, p. e p. pelo art. 355º do Código Penal, pelo qual o arguido recorrente foi condenado, impondo-se a sua absolvição, pois que não se sabe QUAIS BENS, e a existência de uma condenação com base numa ABSTRACÇÃO DE FACTO, em direito penal, é de todo em todo rudimentar e ofende não só a própria JUSTIÇA como ofende os Direitos, Liberdades e Garantias do arguido recorrente.
41. No quanto se refere ao conhecimento e actuação com dolo do arguido recorrente, tal também não poderá nunca ser dado por procedente, cfr. melhor alegado, uma vez que este cumpriu com o que lhe era indicado pelo Exmo. Sr. AI., Dr. DD.
42. Mais resulta que, a produzida em julgamento, as declarações do arguido recorrente ao longo de todas as fases do processo – instrução e julgamento – e das testemunhas e bem assim, da prova documental, analisadas conjuntamente à luz das regras de experiência comum, apresentam (sem nunca prescindir da supra referida e alegada tese), resultados contraditórios.
43. Outro também não poderá ser o entendimento senão o de que, a prova da acusação não permite, repete-se, com a certeza necessária (sem se prescindir de tudo quanto supra se alegou e em bom rigor, da aplicação do princípio in dúbio pro reo) que são exigidas em direito penal (atente-se que o arguido recorrente vem condenado com base numa ABSTRACÇÃO HIPOTETICA de que tanto poderá ser, como poderá não ser), a concluir pela existência de um propósito volitivo na prática do crime que lhe vem imputado e pelo qual foi ilicitamente condenado.
44. Em suma, perante a dúvida instalada, face à prova produzida e enunciada – à qual se chama especial atenção para a prova documental de e-mails, prova testemunhal e os factos dados por provados no artigo 31.º e pelos factos dados por não provados – apenas se concebe, o que desde já se requer para todos os devidos efeitos legais, à luz do princípio in dúbio pro reo fundado constitucionalmente no princípio da presunção de inocência – art. 32.º/2 CRP – dar como não provados os factos incriminadores do arguido.
45. Assim não se entendendo, e à cautela, mal andou o douto Tribunal a quo, na escolha da medida da pena aplicada.
46. Inexiste qualquer ponderação do caso concreto que se apresente como justa em termos de igualdade distributiva.
47. Com efeito, a haver uma condenação, caso que apenas se concede por mera cautela de patrocínio, sempre deveria ser pelo mínimo legal e suspensa na sua execução.
48. Isto porque, face ao supra exposto, face às contradições grosseiras entre os factos dados por provados no artigo 31º, os factos dados por não provados e as declarações sempre coerentes do arguido recorrente, a condenação teria de ser sempre pelo mínimo legal.
49. Isto aliado ao facto, dos Tribunais portugueses, em processos de igual natureza e até em processos considerados mais graves e de grande envergadura, com antecedentes criminais, tenham aplicado uma sentença em muito divergente dos padrões adoptados pelo douto Tribunal a quo, conforme melhor resulta do corpo das alegações.
50. Face ao exposto e tendo em conta todo este enquadramento não podemos deixar de considerar que deveria o douto Tribunal a quo atender a um juízo de ponderação na medida da pena aplicada, devendo a mesma ser reduzida para o mínimo legal, conforme desde já se requer para todos os devidos.
Nestes termos, nos melhores de direito e com o sempre mui douto suprimento de V. Exas., deverá ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência:
a) Ser o arguido absolvido da prática do crime de que vem acusado por erro notório na apreciação da prova e violação dos princípios da presunção de inocência, in dubio pro reo e artigo 32.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa;
b) Caso assim não se entenda, deverá ser reduzida a pena aplicada para o mínimo legal, devendo a mesma ser suspensa na sua execução, assim o deliberando, cremos, se fará a desejada e habitual JUSTIÇA!».
1.4. Os recursos foram regularmente admitidos.
1.5. O Ministério Público, junto da 1.ª Instância, apresentou resposta, pronunciando-se no sentido de dever ser negado provimento aos recursos e confirmado o acórdão recorrido, formulando, a final, as seguintes conclusões:
1.5.1. Na resposta ao recurso do arguido BB:
«1. O Ministério Público está, de acordo com o respectivo Estatuto, aprovado pela Lei nº 60/2019, de 27 de Agosto, apenas vinculado a critérios de legalidade e de objectividade, devendo os magistrados do Ministério Público sujeitar-se exclusivamente às directivas, ordens e instruções previstas naquela Lei, não lhe sendo aplicável o preceituado no artigo 40º do Código de Processo Penal, por não lhe caber, em qualquer delas, a tomada de decisões.
2. Assinalando-se a extensão das conclusões e a falta de correspondência entre estas e a motivação, quer no tocante à concretização do vício do erro notório na apreciação da prova, quer na pretensa contradição entre os factos provados 6. e 8., quer ainda, quanto à pretendida violação do disposto nos artigos 40º, 41º, 70º e 71º do Código Penal, não retomada em sede conclusiva, parece-nos que o arguido no primeiro caso, pretendeu afinal, censurar a apreciação da prova feita pelo Tribunal - que contrapõe à sua perspectiva de enfoque e de apreciação -, que deu como assentes factos, sem que houvesse prova para tal.
3. Contudo, não cumpriu como devia, o preceituado no artigo 412º, nº 3, alíneas b) e c), do Código de Processo Penal, sendo a sua motivação totalmente omissa quanto ao nº 4 da citada disposição legal, pelo que, podendo esse Venerando Tribunal reapreciar em termos amplos a prova, nos termos dos artigos 412º, nº 3 e 431º, ambos do Código de Processo Penal, atenta a documentação da prova produzida em audiência, ficará todavia o seu poder de cognição delimitado pelas conclusões da motivação apresentada.
4. O vício da decisão invocado pelo arguido, do erro notório na apreciação da prova, terá que resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, como preceitua o artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, não fazendo sentido o apelo a elementos de prova estranhos à decisão, não se confundindo com a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção alcançada pelo Tribunal e que se prende com a livre apreciação da prova.
5. A mera leitura dos pontos da matéria de facto dada como assente questionados pelo arguido – 16., 17., 26., 27. e 28. -, demonstra a sem razão da sua pretensão, desde logo porque este apela a factos que não resultaram provados (pelo contrário, resultaram provados factos contrários aos por si mencionados), quase “reescrevendo a matéria de facto” de acordo com a sua perspectiva, proferindo afirmações e extraindo conclusões que mais não configuram do que a sua versão dos factos, que não mereceu credibilidade ao Tribunal, por contraposição aos demais meios de prova em que se alicerçou a convicção alcançada.
6. Remetemos, por economia de razões, para a proficiente fundamentação plasmada no texto decisório, a que aderimos, na íntegra, não se verificando, em nosso entender, o vício invocado, existindo bastos elementos de prova objectivos a suportar a decisão de condenação proferida contra o arguido.
7. Não se mostra violado o princípio in dubio pro reo, o qual actua apenas e somente em caso de dúvida e não para os casos em que se pretende dar à prova diferente interpretação daquela que fez o Tribunal.
No caso vertente, não se está perante uma situação de non liquet em matéria de prova, a ser resolvida a favor do arguido, já que da leitura da motivação de facto não resulta que o Tribunal tivesse ficado com dúvidas sobre a prática pelo mesmo, dos factos que lhe eram imputados e que, apesar disso, os tivesse dado por assentes.
8. O que fundamentalmente parece ressaltar da motivação de recurso na factualidade questionada é a discordância da avaliação e valoração da prova feita pelo Tribunal a quo, o qual valorou de modo diverso do pretendido pelo arguido, a prova produzida em audiência.
9. Nenhuma censura nos merece a pena aplicada ao arguido, situada ainda dentro do primeiro terço da moldura, não se justificando, pelas razões que se consignaram a fls. 2154, a sua punição pelos limites mínimos, não se mostrando violado qualquer preceito legal, mormente os invocados.
Pelo exposto, deve o douto acórdão proferido ser integralmente mantido, negando-se provimento ao recurso interposto, como acto de inteira e sã JUSTIÇA.».
1.5.2. Na resposta ao recurso do arguido AA:
«1. O Ministério Público está, de acordo com o respectivo Estatuto, aprovado pela Lei nº 60/2019, de 27 de Agosto, apenas vinculado a critérios de legalidade e de objectividade, devendo os magistrados do Ministério Público sujeitar-se exclusivamente às directivas, ordens e instruções previstas naquela Lei, não lhe sendo aplicável o preceituado no artigo 40º do Código de Processo Penal, por não lhe caber, em qualquer delas, a tomada de decisões.
2. Assinalando-se a extensão das conclusões e a falta de correspondência entre estas e a motivação, quer no tocante à concretização do vício do erro notório na apreciação da prova, quer quanto à pretendida violação do disposto no artigo 40º, nº 2, do Código Penal, não retomada em sede conclusiva, parece-nos que o arguido no primeiro caso, pretendeu afinal, censurar a apreciação da prova feita pelo Tribunal - que contrapõe à sua perspectiva de enfoque e de apreciação -, que deu como assentes factos, sem que houvesse prova para tal.
3. Contudo, não cumpriu como devia, o preceituado no artigo 412º, nº 3, alíneas b) e c), do Código de Processo Penal, sendo a sua motivação totalmente omissa quanto ao nº 4 da citada disposição legal, pelo que, podendo esse Venerando Tribunal reapreciar em termos amplos a prova, nos termos dos artigos 412º, nº 3 e 431º, ambos do Código de Processo Penal, atenta a documentação da prova produzida em audiência, ficará todavia o seu poder de cognição delimitado pelas conclusões da motivação apresentada.
4. Os vícios da decisão invocados pelo arguido – erro notório na apreciação da prova e contradição insanável entre o facto provado 31. e os factos não provados a) e b), terão que resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, como preceitua o artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, não fazendo sentido o apelo a elementos de prova estranhos à decisão, não se confundindo com a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção alcançada pelo Tribunal e que se prende com a livre apreciação da prova.
5. A mera leitura dos pontos da matéria de facto dada como assente questionados pelo arguido – 17., 19., 21., 23. a 31. -, demonstra a sem razão da sua pretensão, desde logo porque este apela a factos que não resultaram provados (pelo contrário, resultaram provados factos contrários aos por si mencionados), quase “reescrevendo a matéria de facto” de acordo com a sua perspectiva, proferindo afirmações e extraindo conclusões que mais não configuram do que a sua versão dos factos, que não mereceu credibilidade ao Tribunal, por contraposição aos demais meios de prova em que se alicerçou a convicção alcançada.
6. Remetemos, por economia de razões, para a proficiente fundamentação plasmada no texto decisório, a que aderimos, na íntegra, não se verificando, em nosso entender, qualquer dos vícios invocados, existindo bastos elementos de prova objectivos a suportar a decisão de condenação proferida contra o arguido, não se vislumbra qualquer contradição entre o facto dado como provado 31. e os factos dados como não provados constantes das alíneas a) e b), permitindo a leitura da decisão recorrida no seu todo e o recurso às regras da experiência, facilmente ultrapassar qualquer desiderato, que seria sempre uma falsa questão.
7. Não se mostra violado o princípio in dubio pro reo, o qual actua apenas e somente em caso de dúvida e não para os casos em que se pretende dar à prova diferente interpretação daquela que fez o Tribunal.
No caso vertente, não se está perante uma situação de non liquet em matéria de prova, a ser resolvida a favor do arguido, já que da leitura da motivação de facto não resulta que o Tribunal tivesse ficado com dúvidas sobre a prática pelo mesmo, dos factos que lhe eram imputados e que, apesar disso, os tivesse dado por assentes.
8. O que fundamentalmente parece ressaltar da motivação de recurso na factualidade questionada é a discordância da avaliação e valoração da prova feita pelo Tribunal a quo, o qual valorou de modo diverso do pretendido pelo arguido, a prova produzida em audiência.
9. Mostram-se preenchidos os elementos constitutivos do crime de descaminho, pelas razões que se consignam a fls. 2147 e seguintes do texto decisório, já que foram efectivamente vendidos bens existentes no interior do estabelecimento de farmácia, após a apreensão no processo de insolvência e à revelia de qualquer decisão proferida no aludido processo.
Inexiste, deste modo, qualquer condenação com base num “abstracto possível.”
10. Nenhuma censura nos merecem as penas parcelares aplicadas ao arguido, situadas ainda dentro do primeiro terço da moldura, não se justificando, pelas razões que se consignaram a fls. 2154, a sua punição pelos limites mínimos, não se mostrando violado qualquer preceito legal, mormente os invocados.
De igual modo, concordamos com a pena única aplicada, de dois anos e seis meses de prisão, que se nos afigura até um tanto benevolente, considerando o circunstancialismo vindo de descrever.
Pelo exposto, deve o douto acórdão proferido ser integralmente mantido, negando-se provimento ao recurso interposto, como acto de inteira e sã JUSTIÇA.».
1.6. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de os recursos deverem ser julgados improcedentes.
1.7. Cumprido o disposto no n.º 2 do artigo 417º do Código de Processo Penal, não houve resposta.
1.8. Feito o exame preliminar e, colhidos os vistos legais, realizou-se a conferência.
Cumpre agora apreciar e decidir:

2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Delimitação do objeto dos recursos
Em matéria de recursos, que ora nos ocupa, importa ter presente as seguintes linhas gerais:
O Tribunal da Relação tem poderes de cognição de facto e de direito – cf. artigo 428º do CPP.
As conclusões da motivação do recurso balizam ou delimitam o respetivo objeto – cf. artigos 402º, 403º e 412º, todos do CPP.
Tal não preclude o conhecimento, também oficioso, dos vícios enumerados nas als. a), b) e c), do n.º 2 do artigo 410º do CPP, mas tão somente quando os mesmos resultem do texto da decisão recorrida por si só ou em sua conjugação com as regras da experiência comum (cfr. Ac. do STJ n.º 7/95 – in DR I-Série, de 28/12/1995, ainda hoje atual), bem como das nulidades principais, como tal tipificadas por lei.
No caso vertente, atentas as conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação de recurso que, respetivamente, apresentaram, as questões, pelos mesmos, suscitadas são as seguintes:
- Impugnação da matéria de facto dada como provada, por erro notório na apreciação da prova e erro de julgamento;
- Contradição insanável na fundamentação e entre esta e a decisão;
- Violação do princípio in dubio pro reo;
- Erro de subsunção.
- Medida da pena.


2.2. O acórdão recorrido é do seguinte teor:
«(…)
II – MATÉRIA DE FACTO
A) Resultaram provados os seguintes factos com relevância para a decisão da causa:
1. A sociedade C... Unipessoal LDA., pessoa coletiva n.º ...70, com sede em Bairro do ..., ..., ... ..., foi constituída no dia 30 de março de 2006 com o objeto social de exploração de farmácias e capital social de 5.000,00€, titulado pelo sócio único e gerente EE.
2. A aludida sociedade era proprietária do estabelecimento comercial denominado “A...”, que funcionava na morada sita em Bairro do ..., ..., ....
3. No dia 02 de agosto de 2006, a sociedade deliberou a passagem a sociedade por quotas e um aumento de capital social até aos 892.000,00€.
4. No dia 29 de abril de 2011 foi nomeada gerente da C... LDA., FF.
5. No dia 05 de setembro de 2011, foi constituída a sociedade “B... Unipessoal Lda”, tendo como objeto social a exploração de farmácias, com capital social de 150.000,00€ titulado pelo sócio único e gerente GG.
6. GG cedeu a sua quota única à sociedade D... LIMITED, pessoa coletiva n.º ...60, com sede em ..., o que foi inscrito no registo comercial no dia 05 de agosto de 2014.
7. Quem exercia efetivamente a gerência da B... Unipessoal Lda., era o arguido AA e FF.
8. No dia 15 de setembro de 2011, FF, na qualidade de gerente da sociedade C... LDA., cedeu a exploração comercial da “A...” à sociedade “B...”, sem conhecimento e autorização da legítima proprietária, a sociedade “C... LDA, representada pelos seus sócios.
9. FF foi destituída da gerência da sociedade C... LDA., no dia 21 de outubro de 2011.
10. No dia 30 de maio de 2013 foi proferida sentença no processo 1116/11.... que declarou a ineficácia em relação à autora C... LDA., do contrato de cessão de exploração da farmácia a que se alude em 8, condenando a ré B... a devolver à autora o estabelecimento farmácia.
11. A decisão a que se alude em 10 transitou em julgado após a prolação pelo Tribunal da Relação de Évora de acórdão datado de 27 de janeiro de 2015 que julgou improcedente o recurso interposto pelas rés.
12. Por sentença proferida no dia 25 de fevereiro de 2015, transitada em julgado no dia 17 de março de 2015, foi a sociedade C... LDA., declarada insolvente no âmbito do processo 4619/14.....
13. No dia 07 de maio de 2015, a Farmácia, enquanto estabelecimento comercial, foi apreendida à ordem do aludido processo de insolvência, a favor da massa insolvente, pelo senhor administrador da insolvência CC.
14. No dia 27 de maio de 2015, a sociedade B... instaurou uma providência cautelar de restituição provisória da posse contra a massa insolvente da sociedade C... LDA., pedindo a entrega do estabelecimento comercial de farmácia.
15. O processo correu termos pelo n.º 364/15...., posteriormente apensado ao processo de insolvência e liminarmente indeferido o pedido por decisão proferida no dia 13 de julho de 2015, transitada em julgado no dia 06 de agosto de 2015.
16. No dia 29 de maio de 2015, o arguido BB, na qualidade de advogado informou a GNR ... que tinha dado entrada em juízo de um procedimento cautelar de restituição provisória da posse, que iria mudar as fechaduras e que era tudo legal e ao Administrador da Insolvência da C... Lda., CC que tinha uma sentença que restituía a posse da farmácia à sociedade B..., pelo que ia executar a mesma e mudar as fechaduras.
17. Nesse mesmo dia, os arguidos arrancaram o edital de apreensão aposto na porta do estabelecimento e arrombaram e trocaram as fechaduras da farmácia, tomando o arguido AA o estabelecimento como seu e abrindo-o ao público no intuito concretizado de vender bens que se encontravam no seu interior, contra a vontade expressa da massa insolvente C... Lda., representada pelo seu administrador da Insolvência CC.
18. No dia 04 de junho de 2015, o Administrador da Insolvência da C..., CC, procedeu à alteração da fechadura no estabelecimento comercial, com o propósito concretizado de restaurar a posse do mesmo à massa insolvente da C....
19. Todavia, no dia 04 de agosto de 2015, o arguido AA em conjunto com DD, voltou pela segunda vez, a arrombar e trocar as fechaduras do estabelecimento comercial, com o propósito concretizado de AA, de se apoderar do mesmo e abrir a farmácia ao público com vista a proceder à venda de bens que se encontrassem no seu interior, contra a vontade expressa da massa insolvente C... Lda.
20. No dia 07 de agosto de 2015, o administrador da insolvência CC, voltou a proceder à alteração da fechadura no estabelecimento comercial, com o propósito concretizado de devolver a posse do mesmo à massa insolvente.
21. Não obstante no dia 10 de agosto de 2015, o arguido AA, pela terceira vez, arrombou e trocou as fechaduras do estabelecimento, com o propósito concretizado de se apoderar do mesmo e abrir a farmácia ao público, vendendo bens que se encontravam no seu interior.
22. No dia 13 de agosto de 2015, foi emitido mandado de apreensão pelo Ministério Público de ..., cumprido no mesmo dia pela GNR, tendo o estabelecimento comercial sido entregue ao Administrador da Insolvência da C..., CC, que pela terceira vez, voltou a proceder à alteração da fechadura no estabelecimento comercial, com o propósito concretizado de restaurar a posse do mesmo à massa insolvente da C... Lda.
23. Ao agir conforme descrito em 16, 17, 20 e 22, o arguido AA sabia que a questão relativa à propriedade e posse do estabelecimento comercial em causa se encontrava definitivamente decidida por sentença transitada em julgado no dia 27 de janeiro de 2015 no âmbito do processo 116/11...., que as atribuiu à C... LDA., que se encontrava declarada insolvente e que vendendo bens constantes no interior do estabelecimento de farmácia apreendido à ordem da massa insolvente, atuava contra a vontade do Administrador da Insolvência, pondo reiteradamente em causa a inviolabilidade do estabelecimento comercial e o seu recheio enquanto coisa sob custódia pública.
24. Sabia o arguido AA que estava obrigado a respeitar a inviolabilidade das coisas sob custódia pública e a confiança geral na segurança dessas coisas resultantes da apreensão.
25. Ainda assim não se absteve de diligenciar sucessivamente pelo arrombamento da fechadura e aceder ao interior do estabelecimento de farmácia apreendido, para efeitos de proceder por interposta pessoa à venda de bens constantes no seu interior, em benefício de sociedade terceira por si controlada.
26. O arguido BB ao agir conforme descrito nos pontos 16 e 17, com o conhecimento descrito em 18, sabia que iludia a GNR e o administrador da insolvência da C... Lda., dando a aparência de um direito do arguido AA que sabia inexistente, no sentido de proceder ao arrombamento da fechadura do estabelecimento farmácia.
27. Mais sabia que ao fazê-lo iria permitir que o arguido AA violasse a custódia de estabelecimento comercial judicialmente apreendido no âmbito de processo de insolvência em curso, por permitir a sua abertura ao público com a consequente venda de bens constantes no seu interior e apreendidos à ordem de processo judicial em curso.
28. Os arguidos agiram, de forma livre deliberada e consciente, sabiam que a sua conduta era proibida e punida por lei, podiam determinar-se em sentido contrário e, ainda assim, não se abstiveram de a praticar.
Mais se provou:
29. O produto das vendas efetuadas no estabelecimento comercial de farmácia após a apreensão no processo de insolvência e compreendidas entre os dias 29 de maio de 2015 a 04 de junho de 2015, 04 de agosto de 2015 a 07 de agosto de 2015 e 10 de agosto de 2015 a 13 de agosto de 2015 e pagas com cartão multibanco, deu entrada em conta bancária à ordem sedeada no Banco Caixa Económica Montepio Geral, n.º ...-3, titulada pela sociedade E... Ltd e representada pelo sócio gerente AA.
30. No âmbito da factualidade descrita no ponto 29, foram pagos através de multibanco por recurso ao terminal de pagamento automático com o n.º de série ...61 e número de TPA ...59, as seguintes quantias que deram entrada na conta bancária da aludida sociedade titulada por AA:
a) 30 de maio de 2015 – 344,46€
b) 01 de junho de 2015 – 465,99€
c) 02 de junho de 2015 – 467,99€
d) 03 de junho de 2015 – 446,04€
e) 06 de agosto de 2015 – 679,34€
f) 10 de agosto de 2015 – 171,61€
g) 11 de agosto de 2015 – 716,11€
h) 12 de agosto de 2015 – 446,00€
31. O arguido AA, após a apreensão no processo de insolvência do estabelecimento comercial “A...”, adquiriu medicamentos para vender no aludido estabelecimento, através da sociedade B..., Unipessoal Lda.
32. Por factos praticados no dia 03 de dezembro de 2013, foi o arguido AA condenado por decisão proferida no dia 13 de novembro de 2014, transitada em julgado no dia 04 de maio de 2015, pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez na pena de 60 dias de multa à taxa diária de 5,00€ e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 3 meses e 15 dias.
33. Por factos praticados no decurso do ano de 2013, foi o arguido condenado por decisão proferida no dia 17 de junho de 2016, transitada em julgado no dia 01 de outubro de 2018, pela prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social na pena de 70 dias de multa à taxa diária de 7,00€, perfazendo um total de 490,00€.
34. Por factos praticados no dia 09 de junho de 2013, foi o arguido condenado por decisão proferida no dia 16 de março de 2017, transita em julgado no dia 12 de janeiro de 2018, pela prática de um crime de dano simples e de introdução em local vedado ao público na pena única em cúmulo jurídico de 85 dias de multa à taxa diária de 12,00€, perfazendo um total de 1.020,00€.
35. Por factos praticados no decurso do ano de 2012, foi o arguido condenado por decisão proferida no dia 14 de março de 2018, transitada em julgado no dia 28 de novembro de 2018, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal na pena de 60 dias de multa à taxa diária de 7,00€, o que perfaz um total de 420,00€.
36. Por factos praticados no decurso do ano de 2013, foi o arguido condenado por decisão proferida no dia 15 de junho de 2018, transitada em julgado no dia 17 de outubro de 2019, pela prática de um crime de burla na forma tentada e um crime de falsificação de documento na pena de 160 dias de multa à taxa diária de 20,00€, o que perfaz um total de 3.200,00€.
37. Por factos praticados no decurso do ano de 2011, foi o arguido condenado por decisão proferida no dia 20 de dezembro de 2019, transitado em julgado no dia 03 de fevereiro de 2020, pela prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social na pena de 100 dias de multa à taxa diária de 17,00€, perfazendo um total de 1.700,00€.
38. Por factos praticados no dia 29 de outubro de 2013, foi o arguido condenado por decisão proferida no dia 10 de dezembro de 2019, transitada em julgado no dia 22 de janeiro de 2020, pela prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, na pena de 280 dias de multa à taxa diária de 10,00€, o que perfaz um total de 2.800,00€.
39. O arguido BB não tem antecedentes criminais.

*
Não se provaram com relevância para a decisão da causa os seguintes factos:
a) Que tenha sido a sociedade C... LDA., a encomendar e a adquirir a totalidade ou parte dos medicamentos constantes no inventário a fls. 10 a 162 do apenso 6.
b) Que tenha sido a sociedade C... LDA., a encomendar e a adquirir a totalidade ou parte dos medicamentos e bens vendidos no estabelecimento farmácia no período compreendido entre 29 de maio de 2015 a 04 de junho de 2015, de 04 de agosto de 2015 a 07 de agosto de 2015 e de 10 de agosto de 2015 a 13 de agosto de 2015 e que se encontram discriminados nos talões de venda constantes a fls. 247 a 372 do apenso 6.

C) Convicção do Tribunal
O tribunal formou a sua convicção com base na análise crítica da prova produzida em audiência de julgamento, designadamente no interrogatório de ambos os arguidos, realizado no final da produção de prova testemunhal em que foram ouvidos, HH, o administrador da insolvência CC, II, JJ, EE, KK, LL, MM, NN, OO, PP, QQ, RR, SS, GG, TT, UU, VV, WW, XX, FF, YY e ZZ, tudo conjugado com a vasta prova documental junta aos autos, destacando-se a seguinte:
a) Registos comerciais atualizados das sociedades C... Lda., B... Unipessoal Lda., e E... – Sucursal em Portugal – referências ...05, ...12, ...18.
b) Contrato de cessão de exploração do estabelecimento A... assinado por FF em representação da C... Lda, e GG em representação da B... Unipessoal Lda., datado de 15 de setembro de 2011 – fls. 228 a 233.
c) Cópia de procuração passada em 16/11/2011 por GG a favor do arguido AA - fls. 642 a 644
d) Certidão da sentença que declarou a ineficácia em relação à sociedade C... Lda., do aludido contrato de cessão de exploração, com nota de trânsito em julgado e proferida no processo 1116/11.... – Apenso n.º 2.
e) Cópias de mensagens de correio eletrónico trocadas entre o administrador da insolvência da C... Lda, CC e o arguido BB – a fls. 62 a 67 e 771 a 773.
f) Autos de ocorrência – fls. 68 a 72 e 383 a 403.
g) Relatório de diligência e auto de apreensão – fls. 279 a 281
h) Requerimento apresentado pela sociedade B..., instruído com cópia da sentença que declarou a sua própria insolvência.
i) Informação prestada pelo F... – fls. 410 a 417
j) Apenso 4 com a certidão integral em 4 volumes do processo principal 4619/14.... relativo à insolvência da sociedade C... Lda., e ainda apenso 5 com certidão dos apensos do processo de insolvência A e B de apreensão de bens e procedimento cautelar respetivamente.
k) Certidão da sentença que declarou a insolvência da sociedade B... Unipessoal Lda., proferida no processo 2349/15...., com nota de trânsito em julgado.
l) Certidão extraída do processo executivo n.º ...4... e respetivo apenso A – Apenso 3.
m) Informação bancária a fls. 489 a 607, mais concretamente fls. 497, 500, 502, 503, 596, 600, 602 e 605.
n) Inventário a fls. 10 a 162 do Apenso 6
o) Talões de venda a fls. 247 a 372 do Apenso 6
p) Fotografias a fls. 169 a 177 do Apenso 6.
Concretizando:
O tribunal formou a convicção na prova dos factos descritos nos pontos 1, 3, 4 e 9 no registo comercial da sociedade insolvente C... LDA. O ponto 2 dos factos provados é consensual.
O tribunal formou a convicção na prova dos factos descritos nos pontos 5 e 6 com base no registo comercial atualizado da sociedade B..., Unipessoal Lda.
O ponto 8 da matéria de facto provada está alicerçado no contrato junto aos autos a fls. 228 a 233.
O tribunal formou a convicção na prova dos factos descritos nos pontos 10 a 15 com base no conhecimento funcional do tribunal relativamente aos processos judiciais em causa, encontrando-se igualmente as respetivas decisões judiciais e peças processuais dos processos 1116/11...., 4619/14.... e 364/15.... que plasmam a factualidade julgada como provada, sendo certo que a testemunha CC corroborou em sede de prova testemunhal a matéria descrita no ponto 13.
A matéria descrita nos pontos 18, 20 e 22, para além de consensual encontra-se alicerçada nos respetivos autos de ocorrência, resulta do processo de insolvência e foi corroborada em sede de prova testemunhal pelo administrador da insolvência CC e, na medida da respetiva participação, pelos militares da GNR ..., LL, MM, NN, OO e RR.
Importa fundamentar de forma mais profícua a matéria de facto controvertida que se resume no essencial aos seguintes pontos:
a) No que concerne à conduta do arguido AA, os pontos 7 e 23 a 25 e, parcialmente os pontos 17, 19, 21 e 31.
b) No que concerne à conduta do arguido BB, o ponto 16, 26 e 27.
c) No que concerne à conduta de ambos os arguidos, o ponto 28.
A factualidade descrita no ponto 7 é essencial e condiciona toda a restante factualidade e, a final, condicionará o enquadramento jurídico perfilhado pelo Coletivo. Convenceu-se o tribunal que quem exercia a efetiva gerência da sociedade B... era o arguido AA e a testemunha FF. Nesta sede, utilizou-se o termo gerência que é também conceito jurídico, por não se ter entendido relevante decompor o termo nos factos que espelhassem os concretos atos que o arguido praticava para o tribunal concluir que o mesmo era gerente de facto. Não está em causa saber o que é um gerente de facto e se determinada conduta do arguido se enquadrou ou não no âmbito dos atos de gerência em termos de direito societário. Está em causa saber genericamente quem mandava, representava e tinha interesse nos destinos da sociedade, resumindo-se esse significado, não no conceito jurídico propriamente dito, mas no termo foneticamente idêntico que para qualquer comum homem médio quer dizer isso mesmo. Dúvidas não teve o Coletivo de que quem mandava e representava a sociedade B... era o arguido AA. A sua conduta ao longo do processo foi compatível com isso mesmo, pois esteve presente e foi o mandante em todos os atos relevantes, designadamente os arrombamentos levados a cabo após a apreensão no processo de insolvência no dia 07 de maio de 2015. O argumento apresentado pelo próprio de que no episódio ocorrido no dia 04 de agosto de 2015, apenas fez um favor ao administrador da insolvência DD, dando-lhe boleia para o local não colhe. Em primeiro lugar, também esteve presente na primeira ocorrência a 29 de maio de 2015, acompanhado do coarguido BB, em segundo lugar, esteve igualmente na terceira ocorrência no dia 10 de agosto de 2015, sendo o denominador comum em todas elas. Por fim, os senhores administradores da insolvência agem em nome próprio, suportando a massa insolvente as despesas que no âmbito das suas funções tenham de realizar. Despesas que, na ausência de liquidez na massa insolvente, são a adiantar pelo IGFEJ nos termos da provisão para despesas ou a pagar a final após a prolação da sentença no apenso de prestação de contas. Realidade que resulta dos artigos 22.º e 30.º da Lei 22/2013 de 26 de fevereiro e 60.º n.º 1, 62.º e 64.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) e que será necessariamente de conhecimento obrigatório por qualquer administrador da insolvência em funções. Não faz sentido, por um lado, que o senhor administrador da insolvência no exercício de funções carecesse de boleia, por outro, que o arguido AA, nada tendo a ver com o assunto, tivesse disponibilidade para o acompanhar na diligência, tendo estado afinal em todas elas. Acompanhou os arrombamentos, porque foi o seu mandante e porque tinha especial interesse pessoal nos mesmos. Não é por isso coincidência que as testemunhas tenham afirmado em tribunal que era o arguido AA quem mandava nos destinos da sociedade. A testemunha CC com a credibilidade já supra descrita foi uma das que o atestou. Não foi o único. Veja-se o depoimento da testemunha e farmacêutica que exerceu funções no estabelecimento em causa, PP, perentória a afirmar que a farmácia tinha um Diretor técnico, mas quem mandava, no tempo em que o vencimento era processado em nome da B..., era o arguido AA. Em sentido semelhante prestou ainda depoimento a farmacêutica que também exerceu funções no aludido estabelecimento, TT. Acrescem elementos que se extraem de prova documental e de decisões judiciais proferidas que apontam no mesmo sentido. A procuração que o gerente de direito GG emitiu no dia 16 de novembro de 2011, conferindo todos os poderes de gerência ao arguido AA é lapidar. Baseadas nos mesmos pressupostos, no âmbito da sentença que declarou a insolvência da sociedade C... Lda., foi julgada provada no ponto 36 da matéria de facto e, ipsis verbis no ponto 21 do procedimento cautelar apenso ao processo de insolvência, a seguinte factualidade: “A A... esteve a ser gerida de facto desde 29 de abril de 2011 por FF e AA, que procederam a encomendas, compras, pagamentos de mercadorias, bem como, contratações e despedimentos de funcionários, tanto em representação da requerida C... Limitada como da sociedade B..., Unipessoal Lda.”.
Nos pontos 17, 19 e 21, o Coletivo julgou provada factualidade que é em parte consensual, designadamente que as portas da farmácia foram arrombadas após a apreensão levada a cabo pelo administrador da insolvência CC, no âmbito dos seus poderes de apreensão conferidos pela nomeação no processo de insolvência. Acontece que nas declarações que prestou a final, o arguido AA afirmou que quem era o responsável pela B... era GG e que, como tal, o próprio nada teve a ver com o primeiro arrombamento, sendo que os restantes foram da responsabilidade do administrador da insolvência DD. No contexto da fundamentação do ponto 7 da matéria de facto, devidamente conjugada com o teor da procuração constante a fls. 642 a 644 datada de 4 anos antes da prática dos factos, a que acresce a ausência física de GG no lugar e momento da prática dos factos descritos nos pontos 16, 17, 19 e 21 dos factos provados, impossibilitam que o tribunal se convença pela ocorrência dos factos na versão apresentada pelo arguido. Acresce que os pontos 29 e 30 dos factos provados resultam diretamente provados por prova documental e são concretizadores da participação e interesse enquanto pessoa singular por trás da pessoa coletiva beneficiária dos aludidos arrombamentos. Com efeito, da informação bancária a fls. 489, 490, 497, 500, 502, 503, 596, 600, 602 e 605, extrai-se que os pagamentos efetuados por multibanco, pelos clientes da farmácia nos dias em que esteve aberta ao público após a apreensão no processo de insolvência e na sequência dos arrombamentos perpetrados, entraram em conta bancária sedeada no Banco Montepio, titulada pela sociedade E..., Sucursal em Portugal, representada pelo arguido AA e sedeada na sua morada de residência, conforme se retira do registo comercial atualizado junto aos autos. Nenhum pagamento entrou na conta, quer da massa insolvente da C..., quer da Massa insolvente da B..., declarada insolvente no dia 15 de julho de 2015, conforme resulta do apenso 1. Quis o arguido fazer crer ao tribunal que tal foi feito com a concordância do senhor administrador da insolvência da sociedade B... Unipessoal Lda. Reitera-se que é forçoso presumir que um administrador da insolvência é conhecedor da legislação aplicável ao processo de insolvência, pelo que teria de saber que estando o estabelecimento previamente apreendido à ordem de outro processo de insolvência, apenas nesse processo e de acordo com as regras do CIRE, poderia pleitear e pedir o levantamento da apreensão para que o pudesse apreender à ordem da massa insolvente da B..., bem assim como que apenas de acordo com o mesmo diploma poderia proceder ao pagamento aos credores, não podendo beneficiar um em particular, neste caso a sociedade E... Limited – artigos 140.º e 173.º do CIRE.
Por fim, no que concerne ao facto de, nas três ocorrências terem sido vendidos medicamentos e bens que se encontravam no interior da farmácia, o tribunal alicerçou a sua convicção no administrador da insolvência CC que o afirmou, nas fotografias constantes a fls. 169 a 176 do apenso 6 que ilustram atos de venda no período pós apreensão no processo de insolvência e na testemunha FF que, pese embora tenha assumido uma postura parcial favorável à posição processual do arguido AA, acabou por admitir que a farmácia abriu ao público após as três ocorrências, procedendo à venda de bens sem distinguir se os mesmos eram propriedade da C... ou da B..., bem como sem distinguir se se tratavam de bens já existentes no interior da farmácia no dia 07 de maio de 2015, ou se se tratavam de bens adquiridos pela B... após o primeiro arrombamento no dia 29 de maio de 2015.
Esta ausência de distinção contribuiu, em conjugação com as faturas existentes nos autos posteriores a 29 de maio de 2015 para cimentar a convicção do tribunal na fixação do facto provado n.º 31 e da matéria descrita nas alíneas a) e b) dos factos não provados. Com efeito, o arguido AA em nome da B..., adquiriu medicamentos após 29 de maio de 2015 que terão igualmente sido vendidos no interior da A... nos períodos descritos na alínea b) dos factos não provados, sendo em abstrato possível que no dia 13 de agosto de 2015 aquando da restituição definitiva da farmácia à massa insolvente da C... não estivessem medicamentos que lá se encontravam no dia 07 de maio de 2015 aquando da primeira apreensão, mas que estivessem igualmente outros adquiridos pelo arguido através da sociedade B... e que ainda lá não se encontrassem no dia 07 de maio de 2015. Simplesmente não foi feita prova nesse sentido, nem sequer imputada a respetiva factualidade em sede de libelo acusatório.
O facto provado e descrito no ponto 23 encontra-se alicerçado na conjugação da restante factualidade provada com regras de experiência comum e normalidade da vida. Das várias certidões de outros processos judiciais e da tramitação do presente processo resulta que o arguido AA agiu sempre ou por intermédio de advogado, ou com advogado ou com administrador da insolvência, evidenciando reflexão e uma manifesta intenção de conferir aparência de legalidade aos atos que praticou e cuja ilicitude teria de conhecer. Os factos imputados ao arguido BB são disso exemplo. Veja-se ainda a título meramente exemplificativo o requerimento efetuado por advogado em representação da B... nos presentes autos em sede de inquérito a fls. 284 a 291, perguntando à Exma. Procuradora titular do inquérito nestes autos se sabia que o estabelecimento A... tinha sido apreendido à ordem do processo de insolvência da sociedade B... e advertindo a Exma. Procuradora, num claro intuito intimidatório, para eventual responsabilidade disciplinar e criminal da sua conduta ao emitir o mandado de apreensão a que se alude no ponto 22 dos factos provados. Para tanto juntou cópia da sentença de declaração da insolvência da sociedade B... que se por um lado determina por força da lei a apreensão “de todos os seus bens”, também refere expressamente no seu ponto 7 “Tendo em consideração que não é conhecido qualquer património à insolvente, torna-se inútil a realização da Assembleia de apreciação do relatório, prescindindo-se da sua realização.” Conhecendo a ausência de património, sabia da legitimidade do mandado emitido pela Exma. Procuradora e da falta de razão que lhe assistia na alusão a processo disciplinar e criminal. Em suma, toda a factualidade provada, aponta para um conhecimento preciso do arguido quanto à ilicitude do ato de violar a apreensão concretizada no processo de insolvência e uma forte resiliência e astúcia na superação dos obstáculos que foram surgindo e dificultaram o seu objetivo. Termos em que se julgou provado quanto a este arguido os factos descritos nos pontos 23, 24, 25 e 28.
No que concerne à factualidade controvertida relativa ao arguido BB e constante no ponto 16 da matéria de facto provada, a versão pelo próprio apresentada em audiência de que nunca referiu ter uma sentença a determinar a restituição da farmácia à B..., não colhe. Em primeiro lugar, foi frontalmente desmentido pela testemunha CC que afirmou o contrário, tendo sido o destinatário dessa afirmação e que possibilitou que o primeiro arrombamento ocorrido no dia 29 de maio de 2015 se tivesse processado de forma pacífica e sem a oposição desta testemunha. As mensagens de correio eletrónico constantes a fls. 62 a 67 vão nesse sentido, apesar do desmentido expresso em correio eletrónico à posteriori feito pelo arguido em resposta a CC. O depoimento de CC como acima se referiu foi credível e é o único que se coaduna com as regras da lógica e da experiência. O arguido é advogado e conhecedor do direito, pelo que teria de saber que sem a sentença a determinar a restituição da posse não poderia arrombar um estabelecimento comercial apreendido à ordem de um processo de insolvência. Conhecimento que CC igualmente tinha pelo exercício de funções, e que se esmiuçará em sede de enquadramento jurídico, razão pela qual se crê, que efetivamente não tivesse consentido sem oposição, ao arrombamento perpetrado no dia 29 de maio de 2015. A distinta informação prestada aos militares da GNR, quando comparada com a prestada a CC, é revelador de uma reserva mental que encerra um intuito ardiloso de conferir uma aparência legal a um arrombamento para tomada de posse que se sabia ilícito. Revela ainda não ser possível a versão apresentada elo próprio de que nada nem ninguém conhecia e que foi contactado em cima da hora por um colega de escritório para acompanhar um arrombamento. Teria de saber o suficiente para decidir prestar informação distinta nos termos em que o fez. Veja-se ainda o registo comercial da B... que conta com registo levado a cabo na Conservatória do Registo Comercial da autoria do arguido e em data muito anterior - transmissão de quota levada ao registo no dia 05 de agosto de 2014, constante na página 4 da certidão permanente referência ...12. Termos em que resultou forçosa a convicção do Coletivo na prova da factualidade descrita nos pontos 26, 27 e 28 dos factos provados.
Por fim, o tribunal formou a convicção na prova da factualidade descrita nos pontos 32 a 39 com base no certificado de registo criminal dos arguidos.
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III – ENQUADRAMENTO JURÍDICO
Importa efetuar o enquadramento jurídico e aferir se os arguidos efetivamente praticaram os crimes pelos quais vêm pronunciados e se deverão pelos mesmos ser condenados.
Está em causa a prática de crimes de furto qualificado previsto e punido pelos artigos 203.º e 204.º n.º 2 alíneas a) e e) e n.º 3 do Código Penal, em relação de concurso aparente com o crime de descaminho previsto e punido pelo artigo 355.º do Código Penal, sendo em número de três no caso do arguido AA e de um crime no caso de BB.
Vejamos antes de mais o que diz o tipo base do crime de furto, previsto e punido pelo artigo 203.º do Código Penal:
Artigo 203.º do Código Penal:
1- Quem com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair coisa móvel ou animal alheios, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
2 – A tentativa é punível.
3 – O procedimento criminal depende de queixa.”
Este é o tipo de crime base, sendo que o artigo 204.º, pune o mesmo crime, mas de forma mais gravosa, por se considerarem circunstâncias que agravam a culpa do agente e reclamam, moldura penal abstrata mais gravosa.
Contudo, se a conduta dos agentes não preencher o tipo base do artigo 203.º, não poderá preencher o tipo qualificativo, uma vez que este pressupõe a verificação prévia daquele. Vejamos então, antes de mais, se os factos se subsumem no tipo base do crime de furto.
O crime em causa é um crime de dano, na medida em que é necessário haver lesão do bem jurídico protegido e, um crime de resultado, uma vez que a consumação do crime pressupõe uma alteração do espaço físico em consequência da conduta do agente.
O bem jurídico protegido, é a propriedade, incluindo a posse e detenção legítimas, já que mais do que a propriedade em sentido estrito, este tipo legal de crime tutela a disponibilidade da coisa e a fruição das utilidades da mesma.
O elemento objetivo do tipo de crime exige a subtração de coisa móvel alheia.
O elemento subjetivo exige a intenção ilegítima de apropriação de bem alheio.
Nos presentes autos levantam-se dois obstáculos intransponíveis à subsunção dos factos provados ao tipo legal em apreciação. Em primeiro lugar, o estabelecimento comercial de farmácia estar externa e fisicamente materializado em coisa imóvel, designadamente o prédio urbano onde a farmácia estava instalada, insuscetível de ser deslocado para outro local, alterando o espaço físico. Em segundo lugar, não se ter apurado a identidade da pessoa, singular ou coletiva que adquiriu inicialmente os bens móveis (medicamentos e outros), constantes no interior do estabelecimento comercial de farmácia, aquando da realização do inventário após a apreensão à ordem do processo de insolvência no dia 07 de maio de 2015 e a identidade da pessoa, singular ou coletiva que adquiriu os bens (medicamentos e outros) vendidos ao público após a apreensão do estabelecimento comercial à ordem do processo de insolvência. Em concreto não se apurou se foi a sociedade C... Lda. Tal como foi entendido em sede de decisão instrutória, um estabelecimento comercial é composto por coisas corpóreas e incorpóreas, sendo certo que as coisas corpóreas móveis, como seja o recheio e stock do estabelecimento comercial, são suscetíveis de ser furtadas, na medida em que podem ser alvo de apropriação por pessoa que não seja o respetivo titular e sem o consentimento deste. Acontece que o não apuramento com certeza jurídica da identidade desse titular, impede concluir que os arguidos se apropriaram de bens alheios e como tal, o preenchimento do elemento objetivo do tipo base do crime de furto. A não subsunção dos factos ao tipo base, prejudica a apreciação do tipo qualificado, pelo que os arguidos deverão ser absolvidos da prática dos crimes de furto qualificado pelos quais se encontram pronunciados.
Aos arguidos foi imputada a prática de crimes de furto qualificado em concurso aparente com o crime de descaminho previsto e punido pelo artigo 355.º do Código Penal que dispunha o seguinte na versão aplicável e original conferida pelo Decreto-lei 48/95 de 15 de março:
Quem destruir, danificar ou inutilizar, total ou parcialmente, ou por qualquer forma, subtrair ao poder público a que está sujeito, documento ou outro objeto móvel, bem como coisa que tiver sido arrestada, apreendida, ou objeto de providência cautelar, é punido com pena de prisão até 5 anos, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal.”
Verifica-se pela parte final da norma que a relação de concurso aparente é subsidiária, pois entendeu o Ministério Público que a conduta dos arguidos ao subsumir-se igualmente na previsão tipo de crime de furto qualificado que estabelece uma moldura penal superior de 2 a 8 anos de prisão nos termos do artigo 204.º n.º 2 do Código Penal, deveria ser integrada neste tipo de crime, porquanto punido de forma mais gravosa. Acontece que, se fixada a factualidade provada, se concluir pela impossibilidade de punir os agentes pelo crime dominante, nada obsta a que se ressuscite o crime dominado e se faça a respetiva subsunção dos factos provados ao tipo legal em causa.
Vejamos então se da matéria de facto provada é possível concluir pela prática por parte dos arguidos dos imputados crimes de descaminho.
O bem jurídico protegido pela norma incriminadora é a autoridade do Estado nas decisões que profere de colocação das coisas sob o domínio público, ou seja, nas palavras de Cristina Líbano Monteiro in Comentário Conimbricense, parte Especial Tomo II, da Coimbra Editora, dirigido pelo Professor Figueiredo Dias, página 419 §4, o bem jurídico é a “inviolabilidade das coisas sob custódia pública”. Verifica-se assim que o bem jurídico é distinto do visado pelo crime de furto imputado a título principal pela acusação, não estando diretamente em causa o património de determinado proprietário, traduzido numa concreta coisa de valor quantificável. Nas palavras da aludida autora na obra citada “não se exige sequer que os objetos de que fala a lei tenham valor pecuniário. Interessa apenas a afetação de uns objetos a uma finalidade concreta, por parte da autoridade pública (…). (…) o delito em análise configura um crime de lesão do bem jurídico (de dano, neste sentido classificatório), consumando-se tão só quando o agente frustra – total ou parcialmente – a finalidade da custódia. (…) Neste caso, o “dano” coincide com o resultado material previsto no tipo: a “modificação” ou a deslocação definitiva da coisa para fora da custódia.”
O tipo objetivo consiste na violação da integridade de coisa que esteja colocada sob custódia pública, podendo assumir a forma de destruição, danificação, inutilização ou subtração total ou parcial de coisa ou coisas colocadas sob custódia pública.
O tipo subjetivo deste tipo de ilícito admite qualquer uma das modalidades do dolo nos termos dos artigos 13 e 14.º do Código Penal.
No caso concreto, considerando o bem jurídico em causa, importa diferenciar coisa sob custódia pública de coisa do domínio público ou património do Estado. Para o preenchimento do elemento objetivo do crime de descaminho é indiferente como supra referido quem é o titular do direito de propriedade da coisa, que pode até não ser o Estado e ser o próprio agente do crime. O que interessa é que a ação seja praticada sobre coisa ou coisas que estejam por algum motivo colocadas sob custódia pública. Nos presentes autos é pacífico que o estabelecimento comercial A... e todo o seu recheio ficou apreendido à ordem do processo de insolvência a partir do dia 07 de maio de 2015 e que, nesse contexto que bem conheciam, os arguidos arrombaram a porta do estabelecimento, tomaram posse do mesmo, no intuito concretizado de possibilitar a venda de bens constantes no seu interior. A concretização dos bens vendidos em concreto e o respetivo valor, designadamente o valor de venda, não foi feita em sede de acusação, pese embora os elementos documentais constantes nos autos e que permitiram a prova da factualidade descrita nos pontos 29 e 30 da factualidade provada. Ao contrário do ponderado para o tipo de crime de furto, no presente tipo legal, a individualização dos concretos bens vendidos que se encontravam no interior do estabelecimento comercial não assume especial relevância, desde que dúvidas não persistam de que foram efetivamente vendidos bens acondicionados no interior do estabelecimento de farmácia, após a apreensão no processo de insolvência e à revelia de qualquer decisão proferida no aludido processo. É pacífico que a configuração do stock existente na farmácia foi modificada. Ainda que todos os bens vendidos fossem propriedade da sociedade B... ou do próprio arguido AA, tal não afastaria o preenchimento do tipo objetivo do ilícito, porque os bens não deixariam de estar sob custódia pública. Qualquer litígio sobre a sua titularidade teria de ser decidida sob as regras do processo de insolvência e de acordo com as normas do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) conforme dispõe de forma imperativa o artigo 90.º do aludido Código, designadamente no âmbito de apenso de separação de bens da massa insolvente nos termos dos artigos 141.º n.º 1 alíneas a) e c) ou 146.º n.º 2 do CIRE. Citando uma vez mais Cristina Líbano Monteiro na obra citada, página 423 §16, “Como se sublinhou, o dano ou a subtração não correspondem aqui necessariamente a um prejuízo de caráter patrimonial. Não se protegem os bens de ninguém, nem sequer do próprio Estado. Uma das consequências desta perspetiva típica traduz-se no facto de o agente pode ser qualquer pessoa, inclusivamente o proprietário do objeto em questão. Pratica o crime de descaminho de objetos colocados sob o poder público quem subtrai ou danifica uma coisa sua arrestada ou penhorada.” No caso concreto, os arguidos, sendo AA diretamente e BB em benefício deste, optaram por prescindir das regras do Estado de Direito e ocuparam sem o mínimo respaldo legal que tudo fizeram para aparentar, o aludido estabelecimento comercial com todas as suas componentes. Ao fazerem-no violaram a custódia pública, ameaçando a certeza e segurança jurídicas inerentes a qualquer bem apreendido em processo de insolvência, designadamente porque no final, após 13 de agosto de 2015, não foi possível saber que medicamentos e outros bens móveis estavam ou não estavam no interior do estabelecimento comercial no dia 07 de maio de 2015. O elemento objetivo encontra-se assim cabalmente preenchido.
Os arguidos agiram com dolo direto e intenso, pelo que igualmente se encontra preenchido o elemento subjetivo. Inexistem causas de exclusão da ilicitude e/ou da culpa, pelo que deverão ambos os arguidos ser condenados pela prática do crime de descaminho previsto e punido pelo artigo 355.º do Código Penal.
Importa agora refletir sobre as regras do concurso de crimes, uma vez que o arguido AA se encontra pronunciado da prática de três crimes e o arguido BB da prática de apenas um. O artigo 30.º n.º 1 do Código Penal dispõe que “o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efetivamente cometidos ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente. Por sua vez o n.º 2 do mesmo preceito legal, dispõe que “constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada de forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.”
Nos presentes autos, é manifesto e até consensual que a conduta do arguido AA violou sempre o mesmo bem jurídico e foi praticada de forma homogénea no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior, designadamente o propósito fortemente enraizado no seu espírito, de explorar aquele estabelecimento comercial de farmácia, ultrapassando para o efeito, o obstáculo que foi surgindo e materializado na apreensão em processo de insolvência. Esta resiliência e capacidade para superar dificuldades que surjam no caminho da prática delituosa impossibilita a verificação do pressuposto essencial de diminuição considerável da culpa do arguido. Muito pelo contrário, a sua culpa aumenta sempre que o arguido persiste no seu desiderato, renovando a sua resolução criminosa, pelo deverão os presentes autos ser subsumíveis ao artigo 30.º n.º1 do Código Penal parte final, considerando-se no caso do arguido AA que o mesmo praticou um crime por cada vez que procedeu ao arrombamento da porta do estabelecimento comercial e tomou posse do mesmo no conhecimento da sua prévia apreensão à ordem do processo de insolvência.
Termos em que deverão os arguidos AA e BB ser condenados em coautoria material pela prática no dia 29 de maio de 2015 de um crime de descaminho previsto e punido pelo artigo 355.º do Código Penal e o arguido AA, condenado em autoria material pela prática de dois crimes de descaminho previsto e punido pelo artigo 355.º do Código Penal, nos dias 04 de agosto de 2015 e 10 de agosto de 2015, respetivamente.
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IV – DA ESCOLHA E DETERMINAÇÃO DA MEDIDA DA PENA
Os arguidos serão condenados pela prática do crime de descaminho que é punido nos termos do artigo 355.º do Código Penal com pena de prisão até 5 anos.
Não estando prevista a condenação em pena de multa não há que fazer a ponderação entre pena privativa e não privativa da liberdade prevista no artigo 70.º do Código Penal.
Por outro lado, não sendo estabelecido no tipo o limite mínimo da pena de prisão, é aplicável o artigo 41.º n.º 1 do Código Penal que estabelece que a pena de prisão tem, em regra, a duração mínima de um mês.
O artigo 71.º n.º 1 do Código Penal, dispõe que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, sendo que nos termos do disposto no artigo 40.º n.º 2 do Código Penal, em caso algum a medida da pena poderá ultrapassar a medida da culpa.
As exigências de prevenção aferem-se em sede de prevenção geral e especial.
Na prevenção geral utiliza-se a pena para dissuadir a prática de crimes pelos cidadãos - prevenção geral negativa – e para incentivar a convicção na sociedade, de que as normas penais são válidas, eficazes e devem ser cumpridas, servindo assim a pena para aprofundar a consciência dos valores jurídicos por parte dos cidadãos – prevenção geral positiva.
Na prevenção especial, a pena é utilizada no intuito de dissuadir o próprio delinquente de praticar novos crimes e com o fim de auxiliar a sua reintegração na sociedade, podendo variar nesta medida, quer a escolha da pena, quer a execução da mesma, conforme as especificidades de cada condenado.
Nos presentes autos, as necessidades de prevenção geral são elevadas tendo em conta o bem jurídico violado. A inviolabilidade das coisas sob custódia pública, tem subjacente a própria autoridade do Estado, na medida do desrespeito que a ação dos arguidos traduz sobre a decisão judicial que determinou a colocação de determinados bens sob custódia pública. O respeito pelas decisões judiciais reflete a saúde, ou falta dela, do próprio Estado de Direito, pelo que o seu desrespeito deve merecer sempre uma resposta eficaz e contundente por parte do sistema de justiça. Em sede de prevenção especial as necessidades são médias. Se é certo que nenhum dos arguidos manifestou arrependimento, também é certo que à data dos factos o arguido BB não tinha antecedentes criminais e o arguido AA tinha antecedentes criminais pela prática de crime de natureza totalmente distinta, designadamente de condução de veículo em estado de embriaguez.
Neste contexto genérico importa considerar em particular que o artigo 71.º n.º 2 do Código Penal que dispõe que na determinação concreta da pena, o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando nomeadamente:
a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente.
b) A intensidade do dolo ou da negligência
c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram.
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica.
e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime.
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
O grau de ilicitude da conduta foi acima da média, na medida em que a prática do colocou em causa o regular andamento de processo de insolvência e, com ele, a expectativa legítima não de um, mas de uma universalidade de credores – artigo 1.º do CIRE.
O dolo foi direto e muito intenso porque alicerçado em culpa grave. Veja-se que os arguidos, no conhecimento da ilicitude da sua conduta, tentaram de forma ardilosa, conferir uma aparência de legalidade que lhes permitisse, como acabou por permitir, alcançarem o seu objetivo. No caso do arguido BB salienta-se o ardil de transmitir mensagens distintas consoante o destinatário. Aos militares da GNR apresentou uma peça processual que efetivamente deu entrada em juízo mas, arrogando-se da sua qualidade de advogado, transmitiu um efeito da interposição da providência cautelar que sabia não ser verdadeiro. Já ao administrador da insolvência, CC, ciente dos conhecimentos jurídicos deste, transmitiu-lhe verbalmente ser portador de uma decisão judicial que lhes restituía a posse do estabelecimento, o que sabia ser falso, mas que lhe permitiria naquele dia, recuperar a posse da farmácia em benefício de AA. No caso deste, é de salientar uma vez mais a sua invulgar resiliência no ultrapassar de obstáculos, tendo logrado o arrombamento do estabelecimento comercial de farmácia por três vezes, conseguindo o conluio de atores processuais que lhe permitiram aparentar a legalidade da sua conduta, perante as autoridades locais. No dia 29 de maio logrou o apoio do arguido BB, nos restantes, foi auxiliado pelo à data administrador da insolvência DD, entretanto falecido.
Os sentimentos manifestados na prática do crime não concorrem a favor dos arguidos, porque nenhuma justificação foi apresentada suscetível de diminuir a sua culpa.
A conduta anterior não milita em desfavor dos arguidos, na medida em que à data não tinham antecedentes criminais por crimes de natureza similar. O arguido AA já tinha praticado factos que lhe valeram várias condenações em penas de multa pela prática de crimes de abuso de confiança contra a segurança social, abuso de confiança fiscal, introdução em local vedado ao público, dano, burla na forma tentada e falsificação de documento, contudo à data dos factos ainda não tinha sido alvo da censura penal que adveio das respetivas condenações.
A conduta posterior é favorável aos arguidos por não se conhecerem novas práticas delituosas.
Por fim os arguidos têm preparação, se quiserem, para manter no futuro uma conduta conforme ao direito. Ambos são letrados e conhecedores das regras da boa convivência em sociedade. Veja-se que o arguido BB é advogado de profissão, o que só por si o habilita com esse conhecimento. Implica igualmente, tal como vem refletido no seu relatório social, que tenha tido uma vida regrada de estudo e trabalho, sem incidentes, razão pela qual nada constando no relatório de especialmente gravoso ou especialmente benéfico, se tenha entendido em seu benefício, não expor a vida pessoal em sede de matéria de facto provada, mas retirar os necessários elementos benéficos nesta sede de determinação da medida da pena.
No caso do arguido AA, o mesmo não possibilitou a realização do relatório social, mas conclui-se igualmente pela sua preparação para manter no futuro uma conduta conforme ao direito, independentemente do mesmo pretender ou não aproveitar essa preparação. Veja-se que o arguido AA faz-se acompanhar de advogado, ou profissional do foro em tudo o que faz, tal como ocorreu nestes autos, numa primeira fase com o arguido e advogado BB e, numa segunda fase, com o administrador da insolvência falecido, DD. As suas condutas são assim especialmente ponderadas. Tal ponderação poderá militar contra si, quando opta por praticar crimes, mas militará sempre a seu favor no sentido de forçar a convicção numa especial preparação para manter, querendo, uma conduta conforme ao direito.
Neste contexto, considerando os elementos ponderados em abono dos arguidos, afigura-se não ser exigível a aplicação de uma pena concreta acima do primeiro terço da moldura penal para cada um dos crimes, sendo certo que os elementos descritos em desfavor dos arguidos impedem a aplicação de uma pena próxima dos limites mínimos e/ou muito afastada para menos, do primeiro terço da moldura.
Concretizando, afigura-se justa, porque adequada à personalidade dos arguidos e proporcional à gravidade dos factos, a aplicação de uma pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão por cada um dos crimes de descaminho. No caso do arguido AA que será condenado pela prática de 3 crimes de descaminho, importa salientar que o facto de ter agido no quadro de uma mesma solicitação externa, designadamente o objetivo de explorar o estabelecimento de farmácia apreendido e o facto de, à data dos factos, ainda não ter obtido qualquer censura por parte do sistema de justiça quanto a práticas similares, permite que não se distinga a gravidade de cada um dos ilícitos e, consequentemente a medida concreta da pena de cada um deles, pese embora o maior grau de culpa que encerra a prática dos 2.º e 3.ºs crimes.
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V – DO CÚMULO JURÍDICO DE PENAS
Importa proceder ao cúmulo jurídico de penas do arguido AA.
Será condenado pela prática de três crimes de descaminho nas penas de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão por cada um deles.
O artigo 77.º n.º 1 do Código Penal, dispõe que quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena, sendo de considerar em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
O n.º 2 do referido normativo estabelece que a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão. Já como limite mínimo, impõe a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.
Temos assim uma moldura penal que se situa no seu limite máximo em 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão e no seu limite mínimo em 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão. Considerando a personalidade do arguido, com forte resiliência na superação de obstáculos para atingir os seus objetivos, por um lado, mas por outro, a sua permeabilidade a seguir indicações no âmbito de aconselhamento jurídico que efetivamente procura, não irá este Coletivo penalizar o arguido nesta sede, deliberando-se por uma pena única em cúmulo jurídico situada dentro do primeiro terço da moldura aplicável, o que se concretiza numa pena única de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão.
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VI – DA SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO
Dispõe o artigo 50.º do Código Penal, que:
O Tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.”
Os arguidos vão ser condenados em penas de prisão em medida inferior a 5 anos, pelo que importa ponderar aplicação deste instituto jurídico.
O arguido BB não tem antecedentes criminais e é advogado, o que significa dizer que a presente condenação, se transitar, poderá igualmente acarretar consequências no âmbito do exercício da profissão que abraçou. Saberá o arguido que se no período da suspensão praticar novos crimes, poder-lhe-á ser revogada a suspensão da execução da pena de prisão e ser forçado a cumprir a pena agora aplicada em estabelecimento prisional, a que acrescerá em cúmulo sucessivo a nova pena que vier a ser aplicada, podendo igualmente acarretar consequências disciplinares no âmbito da sua profissão. Este conhecimento, profundo, pela profissão que exerce, é um elemento especialmente dissuasor da prática de novos ilícitos, crendo este Coletivo que no caso em concreto deste arguido, a ameaça da prisão realiza de forma efetiva e adequada as finalidades da punição. A pena de prisão aplicada deverá ser suspensa na sua execução.
No caso do arguido AA não é possível afirmar com a mesma certeza da efetiva adequação da simples ameaça da prisão na realização das finalidades da punição, designadamente pela resiliência demonstrada na superação dos obstáculos, que poderá no futuro persistir. Ainda assim, considerando que à data o arguido não tinha antecedentes criminais relevantes na apreciação do objeto deste processo, poderá e deverá o Coletivo presumir por essa suficiência ainda que, concedemos, com uma margem de erro considerável. Será atribuída ao arguido a oportunidade e o poder de decidir da sua eventual permanência em liberdade no futuro. Não tem este Coletivo dúvidas de que o arguido, com hábitos de aconselhamento jurídico permanente, tomará consciência de que, de ora avante, com o registo criminal que já apresenta e com uma primeira condenação em pena de prisão suspensa na sua execução, terá de alterar a sua conduta no que concerne ao respeito por bens jurídicos penalmente tutelados. Se voltar a praticar crimes após o trânsito em julgado da presente decisão, como maior grau de probabilidade do que aquele em que incorre o coarguido, poderá ver revogada a suspensão da execução da pena de prisão e cumprir em estabelecimento prisional a pena de prisão aqui aplicada em cúmulo sucessivo com a nova pena que vier a ser aplicada em novo processo.
Termos em que igualmente se suspenderá a pena de prisão na sua execução.
Considerando a preparação que ambos os arguidos apresentam para manterem, querendo, uma conduta conforme ao direito e não sendo necessário interiorizar conceitos relacionados com o desvalor das condutas penalmente relevantes, nem combater adições potenciadoras da prática de novos crimes, não se determinará qualquer regime de prova, nem se diferenciará o período da suspensão da pena aplicada, sendo as respetivas penas de prisão suspensas na sua execução por igual período nos termos do artigo 50.º n.º 5 do Código Penal.
(...).»

2.3. Conhecimento do mérito dos recursos
2.3.1. Da impugnação da matéria de facto dada como provada
Impugna o recorrente BB a matéria factual provada vertida nos pontos 16, 17, 26, 27 e 28, no que a si se refere.
Alega existir erro notório na apreciação da prova e terem sido incorretamente julgados tais factos, defendendo que a produzida, na audiência de julgamento e a prova documental junta aos autos, impõem decisão diversa.
Sustenta, ainda, o recorrente que, na apreciação da prova, não foi observado o princípio da presunção da inocência, dado que todos os depoimentos, dos militares da GNR e do Administrador da Insolvência, CC, apesar das incongruências apresentadas [sofrendo alterações ao longo do processo], foram sempre valorados de forma a desconsiderar as declarações por si prestadas [constantes e imutáveis] e a prova documental junta aos autos, sempre em seu desfavor.
Concretamente:
No referente aos factos dados como provado no ponto 16, manifesta o recorrente não ter sido feita prova do mesmos, posto terem sido frontalmente contraditados, pelas declarações por si prestadas e pela prova documental – emails trocados entre si e o AI, CC – junta aos autos, a qual foi considerada irrelevante, pelo Tribunal a quo.
Entende, assim, o recorrente que devia ter sido dado como não provada a matéria factual constante do ponto 16 e, em decorrência, também a vertida no ponto 26.
No concernente ao ponto 27 dos factos provados, alega o recorrente não existir prova nos autos da existência de bens vendidos que se encontrassem no interior do estabelecimento de farmácia apreendidos à ordem do processo judicial de insolvência.
Quanto aos factos vertidos nos pontos 17 e 28 dos factos provados, sustenta o recorrente representar um grosseiro erro de julgamento, não existindo prova nos autos que os demonstrem, o mesmo se diga quanto ao arrombar ou mandar trocar as fechaduras, decorrendo da factualidade provada no ponto 16 que quem violou a custódia foi o arguido AA e não o ora recorrente.
Defende o recorrente que, em face da prova produzida, as declarações por si prestadas – na fase da instrução e em julgamento – e os depoimentos das testemunhas, bem como da prova documental junta aos autos, analisadas, conjuntamente, à luz das regras da experiência comum, conduzindo a resultados contraditórios, sempre existiria a dúvida sobre se o ora recorrente, enquanto advogado, se limitou a agir no exercício das suas funções, prestando a assistência jurídica que lhe foi solicitada, diretamente ou através do escritório onde trabalhava.
Donde, considera o recorrente, que se impunha a aplicação do princípio in dubio pro reo, resolvendo-se essa dúvida em sentido favorável ao arguido e, nessa decorrência, fossem dados como não provados os factos objeto de impugnação, com a sua consequente absolvição da prática do crime de descaminho, por cuja prática foi condenado na 1.ª instância.
Por sua vez, o recorrente AA, impugna os factos provados constantes dos pontos 16, 17, 19 e 21 a 28 e 31, no que a si se refere.
Alega existir erro notório na apreciação da prova e terem sido incorretamente julgados tais factos, defendendo que a prova produzida, na audiência de julgamento e documental junta aos autos, impunha decisão diversa.
Concretamente:
No referente aos pontos 19, 21, 23, 24, 25, sustenta resultar da prova produzida que, em todas as situações descritas, se limitou a cumprir as indicações que lhe foram dadas pelo Administrador da Insolvência, da sociedade B..., Dr. DD, o qual esteve sempre presente, dirigindo as operações.
Ainda em relação ao ponto 23, alega ser falso que tenham sido vendidos bens que se encontravam no interior do estabelecimento, bastando para se concluir nesse sentido atentar ao constante no ponto 31 da matéria factual provada e aos factos dados por não provados.
No atinente ao ponto 24, manifesta não se ter provado que o próprio tivesse sequer conhecimento de que fora atribuída a posse do estabelecimento de farmácia em causa, à C..., Ld.ª, ao AI, Dr. CC, por sentença transitada em julgado, em 27/01/2015, no âmbito do proc. 116/11...., isto após a apreensão que teve lugar no processo executivo, pelo que, sendo o ora recorrente, um leigo em matéria jurídica, é por demais evidente que não conhecesse a inviolabilidade da custódia pública.
No tocante aos factos vertidos nos pontos 26 e 27 28, alega não se ter feita prova dos mesmos e ser falso o facto dado como provado no ponto 28.
Relativamente ao ponto 31, sustenta que encerra um erro crasso, porquanto nunca podia ter sido o ora recorrente a adquirir os medicamentos, nas circunstâncias referidas, uma vez que não detinha o controlo da devedora insolvente “A...”, no âmbito do processo de insolvência da G..., Ld.ª, sendo que quem o possuía era o respetivo Administrador de Insolvência, Dr. DD.
Manifesta o recorrente que, na apreciação da prova efetuada pelo Tribunal a quo, não foi observado o princípio da presunção da inocência, razão pela qual se explica que todos os depoimentos, apesar das incongruências apresentadas, fossem valorados de forma a desconsiderar as declarações por si prestadas – tendo sempre afirmado que se limitou a cumprir as indicações pelo AI, Dr. DD e negando ter arrancado qualquer edital, aliás inexistente, o que foi comprovado pela prova testemunhal produzida – e a prova documental junta aos autos, sempre em seu desfavor.
Aduz, ainda, o recorrente que todos os bens vendidos, foram adquiridos por si e não pela massa insolvente, o que resulta demonstrado pela prova documental constante dos autos e pelo depoimento da testemunha, TOC (Técnico Oficial de Constas).
Defende o recorrente que, em face da prova produzida, as declarações por si prestadas e os depoimentos das testemunhas, bem como da prova documental junta aos autos, sempre existiria a dúvida sobre se o ora recorrente, não obstante ter estado presente aquando dos factos, se limitou a seguir as ordens do AI, Dr. DD, perpassando a existência da dúvida, no julgador – evidenciada no confronto entre os factos provados no ponto 31 e a matéria factual dada por não provada, bem como no consignado na motivação da decisão de facto e na fundamentação de direito, quanto a esse concreto ponto – também em relação a quem adquiriu os medicamentos vendidos entre 29/05/2015 e 04/06/2015 – não resultando, por isso, provado que tenha sido a sociedade C..., Ld.ª ou a sua massa insolvente a encomendar ou adquirir quaisquer desses medicamentos ou que estivessem apreendidos –, pelo que deveria o Tribunal a quo, ter aplicado o princípio in dubio pro reo, o que não aconteceu.
Entende, assim, o recorrente, ter sido violado o princípio da presunção da inocência e do in dubio pro reo, cuja aplicação se impunha e, em decorrência, que fossem dados como não provados os factos impugnados, com a sua consequente absolvição da prática dos três crimes de descaminho, por cujo cometimento foi condenado na 1.ª instância.
Ambos os recorrentes invocam que o acórdão recorrido enferma de contradição insanável, da fundamentação e entre esta e a decisão, nos termos previstos no artigo 410º, n.º 2, al. b), do CPP, ao, perante os factos dados como provados no ponto 31 e os factos considerados não provados, ter-se considerado preenchido o crime de descaminho, p. e p. pelo artigo 355º do Código Penal.
O Ministério Público pronuncia-se no sentido de que o Tribunal a quo procedeu a uma correta apreciação da prova, não padecendo o acórdão recorrido de qualquer dos vícios decisórios previstos no artigo 410º, n.º 2, do CPP, não existindo erro de julgamento, nem tendo sido violado o princípio do in dubio pro reo, pelo que, deve ser mantida a decisão recorrida.
Antes do mais, importa tecer algumas considerações teóricas sobre a impugnação da matéria de facto em sede recursiva:
O recorrente que pretenda impugnar a matéria de facto, pode fazê-lo por duas vias, sendo uma delas, de âmbito mais restrito, invocando os vícios previstos no artigo 410º, n.º 2, do CPP – a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) O erro notório na apreciação da prova –; e a outra através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412º, n.ºs 3, 4 e 6, do CPP.
Em relação aos vícios previstos no artigo 410º, n.º 2, do CPP, têm que resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo admissível o recurso a elementos estranhos à decisão recorrida, para fundamentar a impugnação, ainda que constem dos autos e mesmo que tenham resultado do próprio julgamento.
A impugnação ampla da matéria de facto a que alude o artigo 412º, n.º 3, do CPP, visa a correção do erro de julgamento.
Diversamente do que sucede quando são invocados os vícios do artigo 410º, n.º 2, do CPP, essa reapreciação não se restringe ao texto da decisão recorrida, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada/gravada) produzida em audiência, dentro dos limites fornecidos pelo recorrente, no cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do artigo 412º do CPP, sem prejuízo de poder ouvir outras passagens que não as indicadas no recurso (n.º 6 do artigo 412º do CPP).
Todavia, conforme jurisprudência uniforme dos nossos Tribunais Superiores, o recurso da matéria de facto, não visa a realização de um segundo e novo julgamento sobre aquela matéria, com base na audição de gravações e na apreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, como se esta não existisse. O que se visa é uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos pontos de facto que o recorrente especifique como incorretamente julgados.
Daí que a delimitação desses pontos de facto seja determinante na definição do objeto do recurso, cabendo ao tribunal da Relação confrontar o juízo sobre eles que foi realizado pelo tribunal a quo com a sua própria convicção, determinada pela valoração autónoma das provas que o recorrente identifique nas conclusões da motivação.
A ausência de imediação determina que o tribunal de 2ª instância, no recurso da matéria de facto, só possa alterar o decidido pela 1ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida e não apenas se a permitirem (cf. al. b) do n.º 3 do referenciado artigo 412º)
É que a decisão do recurso sobre a matéria de facto não pode ignorar, antes tem de respeitar o princípio da livre apreciação da prova do julgador, estabelecido no artigo 127º do Código de Processo Penal e a sua relação com os princípios da imediação e da oralidade, sobretudo quando tem de se debruçar sobre a valoração efetuada na 1.ª instância da prova testemunhal.
A livre apreciação da prova, conforme bem refere o Prof. Germano Marques da Silva[1], deve ser entendida como “valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objetivar a apreciação, requisito necessário para uma efetiva motivação da decisão”.
Existirá violação do princípio da livre apreciação da prova se, na apreciação da prova e nas ilações extraídas, o julgador não respeitar os princípios em que se consubstancia o direito probatório e as regras da experiência comum, da lógica e de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório[2].
Como se faz notar no Acórdão do STJ de 17/03/2004[3] «Para avaliar da racionalidade e da não arbitrariedade (ou impressionismo) da convicção sobre os factos, há que apreciar, de um lado, a fundamentação da decisão quanto à matéria de facto (os fundamentos da convicção), e de outro, a natureza das provas produzidas e dos meios, modos ou processos intelectuais, utilizados e inferidos das regras da experiência comum para a obtenção de determinada conclusão.».
No referente ao princípio in dubio pro reo, que é decorrência do princípio constitucional da presunção da inocência consagrado no artigo 32º, n.º 2 da CRP, constitui um limite normativo do princípio da livre apreciação da prova, na medida em que impõe orientação vinculativa para os casos de dúvida sobre a veracidade dos factos, ou seja, impõe ao julgador que, quando confrontado com a dúvida, razoável e fundada, em matéria de prova, resolva tal dúvida em sentido favorável ao arguido.
Como decidiu o STJ, em Acórdão de 15/06/2000[4] «O princípio in dubio pro reo acha-se intimamente ligado ao da livre apreciação da prova do qual constitui faceta e este último apenas comporta as exceções integradas no princípio da prova legal ou tarifada ou as que derivem de uma apreciação arbitrária, discricionária ou caprichosa da prova produzida ou ofensiva das regras da experiência comum.»
Tendo presentes estas considerações e baixando ao caso dos autos:
Os recorrentes manifestam pretender impugnar de forma ampla a matéria de facto dada como provada nos pontos que, respetivamente, indicam, convocando as declarações por si prestadas, os depoimentos testemunhais produzidos, na audiência de julgamento, e prova documental junta aos autos, defendendo que, com base nessas provas não poderia o Tribunal a quo dar como provados os factos impugnados.
Ao mesmo tempo invocam os recorrentes a existência de “erro notório na apreciação da prova”, previsto na al. c), do n.º 2 do artigo 410º do CPP, que constitui um vício intrínseco da decisão
Neste contexto e com referência ao segmento do recurso respeitante à impugnação da matéria de facto, não obstante invocarem o erro notório na apreciação da prova, resulta clarividente pretenderem os recorrentes atacar a apreciação/valoração da prova que foi feita pelo julgador, o que se reconduz ao erro de julgamento – artigo 412º, n.º 3 do CPP.
Vejamos, então:
Relativamente ao erro notório na apreciação da prova, previsto na al. c) do n.º 2 do artigo 410º do CPP, constituindo, conforme supra referimos, um defeito estrutural/intrínseco da sentença, terá de resultar do respetivo texto, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, não se podendo recorrer à prova produzida na audiência, gravada, nem à prova documental constante dos autos, para sustentar a existência de tal vício.
O erro notório na apreciação da prova, verifica-se quando na sentença recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar, arbitrária, de todo insustentável, e as regras da experiência comum. Tem de ser um erro patente, evidente, percetível por um qualquer cidadão.
Ora, no caso vertente, lida a decisão de facto e respetiva fundamentação exarada no acórdão recorrido, tendo em conta os contornos do erro notório na apreciação da prova (não se confundindo tal vício com a ausência ou a insuficiência da prova, que se reconduz ao erro na apreciação/valoração da prova), entendemos não enfermar o mesmo de tal vício, enquanto erro grosseiro, ostensivo e apreensível pela generalidade das pessoas, mediante a simples leitura da decisão.
Concluímos, pois, pela inexistência do erro notório na apreciação da prova.
No tocante ao erro de julgamento:
Na impugnação ampla da de decisão de facto, visando a correção do erro de julgamento, é exigido que o recorrente cumpra o ónus de especificação previsto no n.º 3 do artigo 412º do CPP, indicando:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; e
c) as provas que devem ser renovadas [quando disso for caso].
E de harmonia com o disposto no n.º 4 artigo 412º do CPP, quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas na al. b) do n.º 3 do mesmo artigo, fazem-se por referência ao consignado em ata, nos termos do n.º 2 do artigo 364º do CPP, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
Neste domínio, ainda que a jurisprudência se tenha orientado no sentido de uma menor exigência para que se considere cumprido o ónus de especificação previsto na al. b), do n.º 3 do artigo 412º do CPP, tendo o STJ, no Acórdão n.º 3/12, de 08/03/2012[5], fixado jurisprudência no sentido de que: «Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com a reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412º n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações», ainda, assim, continua a impor ao recorrente que indique «concretamente as passagens das declarações, em que se funda a impugnação, nomeadamente, com a referenciação dos concretos pontos da gravação onde se funda para sustentar posição diversa da do tribunal[6]
Sucede que os recorrentes não cumpriram o enunciado ónus de especificação, previsto na al. b) do n.º 3 do artigo 412º do CPP.
Nesta situação e por que tal omissão se verifica também no corpo da motivação de recurso que, respetivamente, apresentaram, não pode ser suprida, por via do convite ao aperfeiçoamento das conclusões de recurso, nos termos previstos no artigo 417º, n.º 3, do CPP, estando-se perante uma insuficiência do próprio recurso, não pode este Tribunal ad quem, conhecer da impugnação ampla da matéria de facto, pelo que, se rejeitam os recursos, nesta parte.
Ainda assim, sempre se dirá o seguinte:
A atribuição de credibilidade, ou não, à prova testemunhal ou por declarações, assenta numa opção do julgador na base da imediação e da oralidade, decidindo de acordo com a livre convicção e tribunal de recurso só poderá censurá-la se for contrária às regras da experiência comum e lógica[7].
O erro de julgamento, ocorrerá quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova, pelo que deveria ter sido considerado como não provado ou quando se deu como não provado um facto que, face à prova produzida, deveria ter sido considerado provado.
Estão em causa situações, tais como, a de a 1ª instância ter ignorado determinado meio de prova – o que é diferente de não o ter valorado, por falta de credibilidade – ou a de ter dado como provados factos com base em depoimentos de testemunhas que nem sequer a eles aludiram ou, então que afirmam o contrário[8].
O erro de julgamento não pode ser confundido com a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida na audiência e a convicção que o tribunal formou, vigorando, neste âmbito, o princípio da livre apreciação da prova, estabelecido no artigo 127º do Código de Processo Penal.
Consequentemente, a crítica à convicção do tribunal a quo sustentada na livre apreciação da prova e nas regras da experiência não pode ter sucesso se se alicerçar apenas na diferente convicção do recorrente sobre a prova produzida.
Não pode admitir-se que haja uma inversão de papéis do juiz e do recorrente, em termos de a convicção pessoal deste último se poder afirmar ou sobrepor à convicção formada pelo julgador, logo que esta se mostre alicerçada nas provas produzidas, respeitando os princípios e as normas legais do direito probatório e que seja devidamente fundamentada.
No presente caso, os recorrentes limitam-se a criticar a apreciação/valoração da prova a que o Tribunal a quo procedeu, contrapondo a que os próprios efetuaram e a convicção que formaram, pelo que, sempre estaria a impugnação ampla da matéria de facto votada ao insucesso.
Relativamente à invocada existência, no acórdão recorrido, de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão:
Reportando-se ao vício previsto no artigo 410º, n.º 2, al. b), do CPP, sustentam os recorrentes dele enfermar o acórdão recorrido.
Para fundamentar o apontado vício, alegam que, os factos dados como provados no ponto 31. e os factos dados como não provados, os quais se complementam entre si, mas são apresentam-se incompatíveis com a decisão proferida, porquanto não se pode dar simultaneamente como provado que se desconhece quem adquiriu os bens no todo ou em parte e, consequentemente, que se desconhece qual a data em que os mesmos foram adquiridos e, em sede de direito, decidir-se pelo preenchimento do crime de descaminho.
Vejamos:
Constitui entendimento pacificamente aceite na doutrina e na jurisprudência, que há contradição insanável da fundamentação da sentença, quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; e há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada[9].
Atentemos nos segmentos do acórdão recorrido enunciados pelos recorrentes para fundamentar a existência da assinalada contradição:
No ponto 31 é dado como provado que «O arguido AA, após a apreensão no processo de insolvência do estabelecimento comercial “A...”, adquiriu medicamentos para vender no aludido estabelecimento, através da sociedade B..., Unipessoal Lda.»
Foram dados como não provados os seguintes factos:
« a) Que tenha sido a sociedade C... LDA., a encomendar e a adquirir a totalidade ou parte dos medicamentos constantes no inventário a fls. 10 a 162 do apenso 6.
b) Que tenha sido a sociedade C... LDA., a encomendar e a adquirir a totalidade ou parte dos medicamentos e bens vendidos no estabelecimento farmácia no período compreendido entre 29 de maio de 2015 a 04 de junho de 2015, de 04 de agosto de 2015 a 07 de agosto de 2015 e de 10 de agosto de 2015 a 13 de agosto de 2015 e que se encontram discriminados nos talões de venda constantes a fls. 247 a 372 do apenso 6.
Na fundamentação de direito, respeitante ao enquadramento jurídico-penal, exarada no acórdão recorrido consignou-se:
«(...)
No caso concreto, considerando o bem jurídico em causa, importa diferenciar coisa sob custódia pública de coisa do domínio público ou património do Estado. Para o preenchimento do elemento objetivo do crime de descaminho é indiferente como supra referido quem é o titular do direito de propriedade da coisa, que pode até não ser o Estado e ser o próprio agente do crime. O que interessa é que a ação seja praticada sobre coisa ou coisas que estejam por algum motivo colocadas sob custódia pública. Nos presentes autos é pacífico que o estabelecimento comercial A... e todo o seu recheio ficou apreendido à ordem do processo de insolvência a partir do dia 07 de maio de 2015 e que, nesse contexto que bem conheciam, os arguidos arrombaram a porta do estabelecimento, tomaram posse do mesmo, no intuito concretizado de possibilitar a venda de bens constantes no seu interior. A concretização dos bens vendidos em concreto e o respetivo valor, designadamente o valor de venda, não foi feita em sede de acusação, pese embora os elementos documentais constantes nos autos e que permitiram a prova da factualidade descrita nos pontos 29 e 30 da factualidade provada. Ao contrário do ponderado para o tipo de crime de furto, no presente tipo legal, a individualização dos concretos bens vendidos que se encontravam no interior do estabelecimento comercial não assume especial relevância, desde que dúvidas não persistam de que foram efetivamente vendidos bens acondicionados no interior do estabelecimento de farmácia, após a apreensão no processo de insolvência e à revelia de qualquer decisão proferida no aludido processo. É pacífico que a configuração do stock existente na farmácia foi modificada. Ainda que todos os bens vendidos fossem propriedade da sociedade B... ou do próprio arguido AA, tal não afastaria o preenchimento do tipo objetivo do ilícito, porque os bens não deixariam de estar sob custódia pública (nosso sublinhado). Qualquer litígio sobre a sua titularidade teria de ser decidida sob as regras do processo de insolvência e de acordo com as normas do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) conforme dispõe de forma imperativa o artigo 90.º do aludido Código, designadamente no âmbito de apenso de separação de bens da massa insolvente nos termos dos artigos 141.º n.º 1 alíneas a) e c) ou 146.º n.º 2 do CIRE. (...)
No caso concreto, os arguidos, sendo AA diretamente e BB em benefício deste, optaram por prescindir das regras do Estado de Direito e ocuparam sem o mínimo respaldo legal que tudo fizeram para aparentar, o aludido estabelecimento comercial com todas as suas componentes. Ao fazerem-no violaram a custódia pública, ameaçando a certeza e segurança jurídicas inerentes a qualquer bem apreendido em processo de insolvência, designadamente porque no final, após 13 de agosto de 2015, não foi possível saber que medicamentos e outros bens móveis estavam ou não estavam no interior do estabelecimento comercial no dia 07 de maio de 2015. O elemento objetivo encontra-se assim cabalmente preenchido.
Os arguidos agiram com dolo direto e intenso, pelo que igualmente se encontra preenchido o elemento subjetivo. Inexistem causas de exclusão da ilicitude e/ou da culpa, pelo que deverão ambos os arguidos ser condenados pela prática do crime de descaminho previsto e punido pelo artigo 355.º do Código Penal.»
Salvo o devido respeito, tendo em conta os contornos do vício da contradição insanável da fundamentação e entre esta e a decisão, supra definidos, entendemos não enfermar o acórdão recorrido desse vício. Na verdade, do confronto entre a factualidade dada como provada no ponto 31 e os factos considerados não provados, apenas decorre não ter resultado provado quem adquiriu os medicamentos e outros bens vendidos no estabelecimento farmácia, no período compreendido entre 29 de maio de 2015 a 04 de junho de 2015, de 04 de agosto de 2015 a 07 de agosto de 2015 e de 10 de agosto de 2015 a 13 de agosto de 2015 e que se encontram discriminados nos talões de venda constantes a fls. 247 a 372 do apenso 6.
Questão diferente é a de saber quais as consequências a extrair da não prova desse facto, em termos de enquadramento jurídico-penal dos factos, e que infra apreciaremos, sendo certo que os recorrentes invocam a existência de erro de subsunção.

2.3.2. No concernente à invocada violação do princípio in dubio pro reo
Conforme vem sendo reiteradamente afirmado na jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores, o tribunal de recurso apenas pode censurar o não uso do princípio in dúbio pro reo, se da decisão recorrida resultar que o tribunal a quo chegou a um estado de dúvida insanável e que, perante essa dúvida, optou por decidir em sentido desfavorável ao arguido[10].
Noutra vertente, a violação do princípio in dubio pro reo, verificar-se-á, quando, no âmbito da impugnação ampla da matéria de facto, resulte demonstrado, o erro na apreciação da prova produzida, em termos de se concluir que o julgador, ao condenar o arguido, com base na prova a que atendeu e na valoração a que procedeu, contrariou as regras da experiência comum, quando, deveria ter chegado a um estado de dúvida insanável e, por isso, deveria ter decidido a favor do arguido[11].
Importa frisar que o princípio do in dubio pro reo é exclusivamente probatório, cingindo-se à apreciação da questão de facto, não tendo aplicação em matéria de direito[12].
In casu, lida a motivação da decisão de facto exarada no acórdão recorrido, resulta clarividente que o tribunal a quo considerou provados os factos, designadamente, os agora impugnados pelos ora recorrentes, sem que evidenciasse qualquer dúvida acerca da sua ocorrência, tal como se encontram descritos.
Assim sendo, não resultando do texto do acórdão recorrido que o julgador se tivesse confrontado com qualquer dúvida insanável sobre os factos em referência, não conhecendo esta Relação da impugnação ampla da matéria de facto, pelas razões sobreditas, há que concluir não existir violação do princípio in dubio pro reo.
Improcede, assim, também este fundamento do recurso.

2.3.3. Do erro de subsunção
Alegam os recorrentes que no confronto entre os factos provados no ponto 31 e os factos não provados, não se tendo provado que os bens vendidos nos períodos referidos nos pontos 29 e 30, após a apreensão do estabelecimento de farmácia em referência, no processo de insolvência, da sociedade C..., Ld.ª, tivessem sido por esta adquiridos, desconhecendo-se quem os adquiriu e quando foram adquiridos e até se estavam apreendidos naquele processo, o que redunda numa impossibilidade de identificação e na imprecisão objetiva da coisa objeto da subtração, pelo que, inexiste suporte factual provado passível de poder levar a concluir pelo preenchimento do tipo objetivo do crime de descaminho de objetos colocados sob o poder público, p. e p. pelo artigo 355º do Código Penal, por cujo cometimento os ora recorrentes foram condenados na 1.ª instância.
O Ministério Público pronuncia-se no sentido de se mostrar correto o enquadramento jurídico-penal dos factos efetuado pelo Tribunal a quo.
Apreciando:
No acórdão recorrido, em sede de fundamentação de direito e com relação ao enquadramento jurídico dos factos, consignou-se o seguinte:
«Vejamos então se da matéria de facto provada é possível concluir pela prática por parte dos arguidos dos imputados crimes de descaminho.
O bem jurídico protegido pela norma incriminadora é a autoridade do Estado nas decisões que profere de colocação das coisas sob o domínio público, ou seja, nas palavras de Cristina Líbano Monteiro in Comentário Conimbricense, parte Especial Tomo II, da Coimbra Editora, dirigido pelo Professor Figueiredo Dias, página 419 §4, o bem jurídico é a “inviolabilidade das coisas sob custódia pública”. Verifica-se assim que o bem jurídico é distinto do visado pelo crime de furto imputado a título principal pela acusação, não estando diretamente em causa o património de determinado proprietário, traduzido numa concreta coisa de valor quantificável. Nas palavras da aludida autora na obra citada “não se exige sequer que os objetos de que fala a lei tenham valor pecuniário. Interessa apenas a afetação de uns objetos a uma finalidade concreta, por parte da autoridade pública (…). (…) o delito em análise configura um crime de lesão do bem jurídico (de dano, neste sentido classificatório), consumando-se tão só quando o agente frustra – total ou parcialmente – a finalidade da custódia. (…) Neste caso, o “dano” coincide com o resultado material previsto no tipo: a “modificação” ou a deslocação definitiva da coisa para fora da custódia.”
O tipo objetivo consiste na violação da integridade de coisa que esteja colocada sob custódia pública, podendo assumir a forma de destruição, danificação, inutilização ou subtração total ou parcial de coisa ou coisas colocadas sob custódia pública.
O tipo subjetivo deste tipo de ilícito admite qualquer uma das modalidades do dolo nos termos dos artigos 13 e 14.º do Código Penal.
No caso concreto, considerando o bem jurídico em causa, importa diferenciar coisa sob custódia pública de coisa do domínio público ou património do Estado. Para o preenchimento do elemento objetivo do crime de descaminho é indiferente como supra referido quem é o titular do direito de propriedade da coisa, que pode até não ser o Estado e ser o próprio agente do crime. O que interessa é que a ação seja praticada sobre coisa ou coisas que estejam por algum motivo colocadas sob custódia pública. Nos presentes autos é pacífico que o estabelecimento comercial A... e todo o seu recheio ficou apreendido à ordem do processo de insolvência a partir do dia 07 de maio de 2015 e que, nesse contexto que bem conheciam, os arguidos arrombaram a porta do estabelecimento, tomaram posse do mesmo, no intuito concretizado de possibilitar a venda de bens constantes no seu interior. A concretização dos bens vendidos em concreto e o respetivo valor, designadamente o valor de venda, não foi feita em sede de acusação, pese embora os elementos documentais constantes nos autos e que permitiram a prova da factualidade descrita nos pontos 29 e 30 da factualidade provada. Ao contrário do ponderado para o tipo de crime de furto, no presente tipo legal, a individualização dos concretos bens vendidos que se encontravam no interior do estabelecimento comercial não assume especial relevância, desde que dúvidas não persistam de que foram efetivamente vendidos bens acondicionados no interior do estabelecimento de farmácia, após a apreensão no processo de insolvência e à revelia de qualquer decisão proferida no aludido processo. É pacífico que a configuração do stock existente na farmácia foi modificada. Ainda que todos os bens vendidos fossem propriedade da sociedade B... ou do próprio arguido AA, tal não afastaria o preenchimento do tipo objetivo do ilícito, porque os bens não deixariam de estar sob custódia pública (nosso sublinhado). Qualquer litígio sobre a sua titularidade teria de ser decidida sob as regras do processo de insolvência e de acordo com as normas do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) conforme dispõe de forma imperativa o artigo 90.º do aludido Código, designadamente no âmbito de apenso de separação de bens da massa insolvente nos termos dos artigos 141.º n.º 1 alíneas a) e c) ou 146.º n.º 2 do CIRE. Citando uma vez mais Cristina Líbano Monteiro na obra citada, página 423 §16, “Como se sublinhou, o dano ou a subtração não correspondem aqui necessariamente a um prejuízo de caráter patrimonial. Não se protegem os bens de ninguém, nem sequer do próprio Estado. Uma das consequências desta perspetiva típica traduz-se no facto de o agente pode ser qualquer pessoa, inclusivamente o proprietário do objeto em questão. Pratica o crime de descaminho de objetos colocados sob o poder público quem subtrai ou danifica uma coisa sua arrestada ou penhorada.” No caso concreto, os arguidos, sendo AA diretamente e BB em benefício deste, optaram por prescindir das regras do Estado de Direito e ocuparam sem o mínimo respaldo legal que tudo fizeram para aparentar, o aludido estabelecimento comercial com todas as suas componentes. Ao fazerem-no violaram a custódia pública, ameaçando a certeza e segurança jurídicas inerentes a qualquer bem apreendido em processo de insolvência, designadamente porque no final, após 13 de agosto de 2015, não foi possível saber que medicamentos e outros bens móveis estavam ou não estavam no interior do estabelecimento comercial no dia 07 de maio de 2015. O elemento objetivo encontra-se assim cabalmente preenchido.
Os arguidos agiram com dolo direto e intenso, pelo que igualmente se encontra preenchido o elemento subjetivo. Inexistem causas de exclusão da ilicitude e/ou da culpa, pelo que deverão ambos os arguidos ser condenados pela prática do crime de descaminho previsto e punido pelo artigo 355.º do Código Penal.»
Salvo o devido respeito pela posição contrária, defendida pelo Tribunal a quo, entendemos que, perante a matéria factual dada como provada, considerando o que consta do ponto 31 e atenta a factualidade dada por não provada, a concretização dos medicamentos e outros bens vendidos e, em especial, o saber se os mesmos ou, pelo menos, alguns deles, faziam parte do stock do estabelecimento de farmácia de que se trata, aquando da apreensão desta, à ordem do processo de insolvência da sociedade C..., Ld.ª, descriminado no inventário inserto a fls. 10 a 162 do Apenso 6 e, logo, se esses medicamentos e bens se encontravam também apreendidos, revelava-se imprescindível para que se pudesse aferir se os arguidos, através das condutas que respetivamente assumiram, preencheram o crime de descaminho de objetos colocados sob o poder público, p. e p. pelo artigo 355º do Código Penal, por cuja prática foram pronunciados e condenados na 1.ª instância.
Explicitando:
De harmonia com o disposto no artigo 355º do Código Penal, comete o crime de caminho ou de destruição de objetos colocados sob o poder público, «Quem destruir, danificar ou inutilizar, total ou parcialmente, ou, por qualquer forma, subtrair ao poder público a que está sujeito, documento ou outro objeto móvel, bem como coisa ou animal que tiverem sido arrestados, apreendidos ou objeto de providência cautelar (...).».
No que concerne ao bem jurídico existe consenso doutrinal e jurisprudencial no sentido de que o mesmo contende com a «autonomia intencional do Estado, aqui concretizada através de uma ideia de inviolabilidade das coisas sob custódia pública[13], ou seja, no cumprimento das várias formas em que se corporizam as ordens legítimas de autoridade que dele emanam[14].».
A ação típica do aludido crime, consiste em destruir, danificar ou inutilizar, total ou parcialmente, ou por qualquer forma, subtrair.
O objeto da ação é um documento ou uma coisa móvel ou imóvel que se encontre colocada sob o poder público do Estado.
Constitui entendimento pacificamente aceite que os conceitos de destruição, danificação e inutilização, enquanto modalidades de ação do crime de descaminho configuram-se, em termos semelhantes à descrição típica do crime de dano[15].
Assim:
Destruir, para efeitos do referenciado crime, significa não apenas o fazer-se desaparecer a matéria de que a coisa alheia é composta, que deixa, nesse caso, de manter a sua individualidade (destruição total), mas também a destruição parcial da coisa, que em virtude da ação do agente passa a ser imprestável.
A coisa é danificada se, apesar de não perder totalmente a sua integridade, sofre um estrago substancial, com a consequente diminuição do seu valor económico ou da sua utilidade específica[16].
A conduta tornar não utilizável abrange as ações que reduzem a utilidade da coisa segundo a sua função[17]. «Torna-se a coisa sem préstimo, inútil, haja ou não destruição propriamente dita[18]».
No respeitante ao conceito “subtracção ao poder público”, «cabem aqui tão só as condutas que sonegam a coisa ao poder público, sem que, no entanto, seja exigida uma intenção de apropriação.».
Conforme de decidiu no Acórdão desta RE, de 25/10/2011[19]:
«I – A acção típica - susceptível de integrar o crime de descaminho ou destruição - deve “destruir, danificar, inutilizar ou subtrair ao poder público” uma coisa apreendida. Ainda que a subtracção, neste caso, não implique a intenção de apropriação - o bem jurídico protegido não é, aqui, o direito de propriedade – a mesma deve traduzir a frustração definitiva da sujeição ao poder público.
II – Daqui decorre que este elemento do tipo (subtracção ao poder público) implica a frustração da finalidade da custódia, isto é, impede a realização das finalidades determinantes dessa sujeição ao poder público.
III – Mais, para além da frustração da finalidade da custódia, é ainda necessário que essa frustração ocorra através de uma acção directa sobre a coisa, isto é, uma actuação que a destrua, inutilize, ou impeça a sua entrega.».
E como se faz notar no Acórdão da RL de 11/12/2019[20] «O crime de descaminho ou destruição de objectos colocados sob o poder publico, configura um crime de lesão do bem jurídico, consumando-se tão-só quando o agente frustra total ou parcialmente a finalidade da custódia, através de uma ação direta sobre a coisa: inutilizando-a ou descaminhando-a. Neste caso, o dano coincide com o resultado material previsto no tipo: a modificação ou a deslocação definitiva da coisa para fora da custódia do Estado.»
Temos, assim, que para o preenchimento do tipo objetivo do crime de descaminho de objetos colocados sob o poder público, é indispensável que se prove a existência de qualquer das enunciadas modalidades típicas da ação.
No caso dos autos, a coisa colocada sob o poder público, apreendida, no âmbito de um processo de insolvência e a favor da massa insolvente, é um estabelecimento de farmácia.
O estabelecimento comercial de farmácia, enquanto universalidade de facto e de direito, constituída por elementos incorpóreos (tais como créditos sobre clientes, o alvará, etc.) e também de natureza corpórea[21] (coisas móveis - tais como mobiliário equipamentos, medicamentos e outros produtos comercializados no estabelecimento de farmácia – ou imóveis – v.g. o edifício onde está instalado o estabelecimento).
Apenas as coisas – móveis ou imóveis –, integrantes do estabelecimento comercial podem ser objeto das ações típicas do crime de descaminho ou de destruição de objetos colocados sob poder público.
Ora, perante a matéria factual dada como provada, considerando as atuações empreendidas pelos arguidos, ora recorrentes, que resultaram apuradas, não constituindo qualquer ato de destruição, danificação ou inutilização da coisa apreendida, para que se pudesse considerar preenchido o tipo objetivo do crime em apreço, necessário seria que a matéria factual provada levasse a concluir que os medicamento e bens que foram vendidos na farmácia, pelo ora recorrente AA, após a apreensão à ordem do processo de insolvência da sociedade C..., Ld.ª, nos períodos referidos nos pontos 30 e 31, faziam parte do stock existente na farmácia e, como tal, tendo sido objeto de apreensão a favor da massa insolvente.
Acontece não resultar da matéria factual dada como provada a demostração desse facto.
Ademais, considerando a factualidade dada como provada no ponto 31 e os factos dados como não provados na al. b), do que resulta não ter havido concretização dos bens vendidos nos períodos em questão, quem os adquiriu e sobretudo não resultando apurado se integravam o acervo dos existentes na farmácia e que foram objeto de apreensão, não pode concluir-se ter existido subtração de bens colocados sob o poder público, e por conseguinte, que os arguidos, ora recorrentes, através das suas condutas, tivessem preenchido, desde logo, o tipo objetivo do crime de descaminho p. e p. pelo artigo 355º do Código Penal.
Importa referir o seguinte:
Para se poder aferir se os bens e medicamentos que foram vendidos na farmácia, nos períodos compreendidos entre 29/05/2015 e 04/06/2015, 04/08/2015 a 07/08/2015 e 10/08/2015 a 13/08/2015 faziam parte do lote dos apreendidos à ordem do processo de insolvência da sociedade C..., Ld.ª, no dia 07/05/2015, descriminados no inventário inserto de fls. 10 a 162 do Apenso 6, seria necessário confrontar os talões referentes às vendas realizadas naqueles períodos – constando os relativos ao período de 29/05/2015 a 04/06/2015, a fls. 247 a 372 do Apenso 6 – com esse inventário, e com as compras efetuadas pelo arguido/recorrente AA, em nome da sociedade “B...” e respetivas guias de entrega, documentos de fls. 186 a 199, 207 a 231, 233, 240 a 242.
Essa análise seria imprescindível para que se pudesse apurar, com o grau de certeza exigido, se foram vendidos bens e medicamentos objeto da apreensão e, na afirmativa, quais e correspondente valor.
Sucede que, como se refere no acórdão recorrido, a concretização dos bens vendidos e respetivo valor, não foi feita em sede de acusação, perfilhando o Tribunal a quo o entendimento de que para o tipo de crime de descaminho de objetos colocados sob o poder público «a individualização dos concretos bens vendidos que se encontravam no interior do estabelecimento comercial não assume especial relevância, desde que dúvidas não persistam de que foram efetivamente vendidos bens acondicionados no interior do estabelecimento de farmácia, após a apreensão no processo de insolvência e à revelia de qualquer decisão proferida no aludido processos.».
Salvo o devido respeito, não sufragamos este entendimento.
Para que se pudesse concluir que os medicamentos e bens vendidos no estabelecimento de farmácia, nos períodos temporais referenciados, faziam parte dos apreendidos à ordem do processo de insolvência da sociedade C..., Ld.ª, seria necessária a concretização/individualização desses medicamentos e bens.
Essa concretização/individualização devia constar da acusação, na medida em que só assim a descrição dos factos integrantes dos elementos constitutivos do tipo legal de crime de descaminho de objetos colocados sob o poder público, p. e p. pelo artigo 355º do Código Penal, observaria o grau de exigência compatível com as garantias de defesa que têm de ser asseguradas ao arguido, artigo 32º, n.ºs 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa.
Por forma a assegurar a plenitude das garantias de defesa e a permitir um efetivo exercício do contraditório é necessário dar a conhecer ao arguido os concretos factos de que é acusado, para que deles se possa convenientemente defender[22].
Tal exigência é decorrência do princípio do acusatório, constitucionalmente consagrado.
Os poderes de cognição do tribunal estão limitados ao objeto do processo, previamente definido pelo conteúdo da acusação ou, sendo o caso, da pronúncia.
Assim sendo, no caso dos autos, seria necessário que na acusação, dada como reproduzida no despacho de pronúncia, no referente à narração dos factos, constasse a concretização dos medicamentos e outros bens que estando apreendidos à ordem do processo de insolvência da sociedade C..., Ld.ª, foram vendidos, nos períodos compreendidos entre 29/05/2015 e 04/06/2015, 04/08/2015 a 07/08/2015 e 10/08/2015 a 13/08/2015.
Só dessa forma, poderiam ser cabalmente asseguradas as garantias de defesa dos arguidos, permitindo-lhes contraditar que os medicamentos e demais bens vendidos nas circunstâncias descritas, fizessem parte daqueles que se encontravam apreendidos.
As asserções conclusivas contidas no elenco dos factos dados como provados no acórdão recorrido, designadamente, nos pontos 17 – «... no intuito concretizado de vender bens que se encontravam no seu interior ...» –, 19 e 21 – «... com o propósito concretizado (...) de abrir a farmácia ao público, com vista a proceder à venda de bens que se encontrassem no seu interior ...» –, não são suscetíveis de contraditório, dado não existir especificação dos bens efetivamente vendidos.
Tal especificação seria imprescindível para se poder aferir se os bens vendidos faziam ou não parte dos apreendidos à ordem do processo de insolvência, considerando a factualidade provada no ponto 31 e a dada como não provada na al. b).
Na falta de concretização dos bens, efetivamente vendidos, no estabelecimento de farmácia em apreço, após a respetiva apreensão à ordem do processo de insolvência, nos períodos temporais referenciados, não resulta demonstrado que esses bens integrassem o acervo dos existentes na farmácia, objeto dessa apreensão.
Donde, conforme se referiu supra, não pode concluir-se ter existido subtração de bens colocados sob o poder público e, por conseguinte, que os arguidos, ora recorrentes, através das suas condutas, tivessem preenchido, desde logo, o tipo objetivo do crime de descaminho p. e p. pelo artigo 355º do Código Penal.
No tocante ao tipo subjetivo, a matéria factual dada como provada nos pontos 23 a 27 é irrelevante, sendo certo que embora dos mesmos se faça constar o propósito/intenção com que os arguidos agiram, não decorre dos factos objetivos provados que os medicamentos e outros bens vendidos, pelo arguido, ora recorrente AA, na farmácia de que se trata, nos períodos de tempo e circunstancialismo descritos nos pontos 29 e 30, existissem no mesmo estabelecimento, quando da sua apreensão, à ordem do processo de insolvência da sociedade C..., Ld.ª e, como tal que se encontrassem apreendidos.
Consequentemente, têm os arguidos/recorrentes de ser absolvidos dos crimes de descaminho de objetos colocados sob o poder público por que, respetivamente, foram condenados em 1.ª instância, o que se decide.
Apenas uma nota final para dizer o seguinte:
Poderia colocar-se a questão de saber se a conduta dos arguidos/recorrentes, ao arrancarem o edital respeitante à apreensão aposto na porta do estabelecimento, nas circunstâncias descritas no ponto 17 da matéria factual provada, integraria o crime de arrancamento, destruição ou alteração de editais, p. e p. pelo artigo 357º do Código Penal.
Dispõe a enunciada norma legal que «Quem arrancar, destruir, danificar, alterar ou, por qualquer forma, impedir que se conheça edital afixado por funcionário competente é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias.».
Se no tocante ao tipo objetivo da referida incriminação, a descrita conduta dos arguidos/recorrentes – ao arrancarem o edital afixado na porta do estabelecimento de farmácia, o qual se destinava a dar conhecimento público da apreensão desse estabelecimento à ordem do processo de insolvência da sociedade C..., Ld.ª – seria suscetível de o preencher, outrossim não se verifica, no atinente ao tipo subjetivo, porquanto a factualidade provada constante dos pontos 23 a 27, não o permite.
Na verdade, tendo-se presente que o edital se destina a dar conhecimento público de certo facto, no tocante ao tipo subjetivo do ilícito em apreço, conquanto, não seja exigível uma intenção específica por parte do agente de obstar a esse conhecimento[23], conforme refere Cristina Líbano Monteiro[24], «o agente tem de representar e querer – com dolo direto, necessário ou eventual – que está em presença de um edital, mandado afixar por uma autoridade pública e que a sua acção sobre ele conduz à inutilização do mesmo, a tornar impossível que ele continue a transmitir o conteúdo de informação que continha.».
Sucede que a factualidade dada como provada, respeitante aos elementos subjetivos, vertida nos pontos 23 a 27, não permite extrair que, ao arrancarem o edital, os arguidos/recorrente agissem com dolo, nos termos sobreditos.
Assim, sem necessidade de maiores considerações, fica afastada a subsunção jurídica dos factos provados, ao crime de arrancamento, destruição ou alteração de editais, p. e p. pelo artigo 357º do Código Penal.
Os recursos são, pois, procedentes.

3. DECISÃO
Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Évora em conceder provimento aos recursos e, em consequência, revogam o acórdão recorrido e absolvem os arguidos AA e BB, da prática dos crimes de descaminho de objetos colocados sob o poder público, p. e p. no artigo 355º do Cód. Penal, por cuja prática haviam sido condenados.

Sem tributação.


Notifique.

Évora, 18 de abril de 2023
Fátima Bernardes (Relatora)
Fernando Pina (adjunto)
Beatriz Marques Borges (adjunta)

__________________________________________________
[1] In Curso de Processo Penal, II, Lisboa, Verbo, 1993, pág. 111
[2] Cf. Ac. da RC de 01/10/2008, proferido no proc. 3/07.4GAVGS.C2, acessível in www.dgsi.pt.
[3] Proferido no proc.03P2612, acessível em www.dgsi.pt.
[4] Cf. BMJ 498, pág. 148 e citado pelo Cons. Vinício Ribeiro, in Código de Processo Penal, Notas e Comentários, Coimbra Editora, 2ª edição, pág. 349.
[5] Publicado no DR, 1ª Série, de 18/04/2012.
[6] Cf. Cons. António Pereira Madeira, in Código de Processo Penal, Comentado, Almedina, 2016, 2ª edição, anotação 6 ao artigo 412º.
[7] Cf., entre outros, Acórdãos da RC de 18/01/2017 e de 17/05/2017, respetivamente, proferidos nos procs. 112/15.6GAPNC.C1 e 430/15.3PAPNI.C1 e Ac. da RL de 18/01/2017, proc. 1050/14.5PFCSC.L1-3, in www.dgsi.pt.
[8] Cf. Ac. da RP de 10/05/2017, proc. n.º 324/14.0SGPRT.P1, in www.dgsi.pt.
[9] Cf., entre outros, na doutrina, Simas Santos, in Recursos em Processo Penal, 5ª edição, Rei dos Livros, págs. 63 e 64 e, na jurisprudência, Acórdãos do STJ de 14/03/2013, proc. 1759/07.0TALRA.C1.S1e de 24/02/2016, proc. 502/08.0GEALR.E1.S1, in www.dgsi.pt.
[10] Cf. entre outros, Ac. da RE de 02/02/2016, proc. 114/13.7TARMR.E1 e Ac. da R.C. de 03/06/2015, proc. 12/14.7GBRST.C1, in www.dgsi.pt.
[11] Vide, entre outros, Ac. da RE de 02/02/2016, proc. 114/13.7TARMR.E1, Ac. da RG de 06/02/2017, proc. 1802/14.6TAGMR.G1 e Ac. da RC de 03/06/2015, proc. 12/14.7GBRST.C1, in www.dgsi.pt.
[12] Cf., por todos, Ac. do STJ de 12/03/2009, proc. 07P1769, in www.dgsi.pt.
[13] Cf. Cristina Líbano Monteiro, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, Coimbra Editora, 2001, pág. 419.
[14] Cf. André Lamas Leite, “O crime de descaminho ou destruição de objetos colocados sob o poder público”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 24, n.º 2 (abril-junho 2014), Coimbra Editora, págs. 239 e 240.
[15] Cf., por todos, na doutrina, Simas Santos e Leal-Henriques, in Código Penal Anotado, Vol. IV, 4ª edição, Rei dos Livros, págs. 678 e 679 e, na jurisprudência, Acórdãos da RC de 19/01/2011, proc. 237/08.4GCTND.C1 e de 05/11/2014, proc. 755/04.3TAVFR.P1, in www.dgsi.pt.
[16] Cf. Simas Santos e Leal-Henriques, in ob. cit. págs. 679 e Vol. III, pág. 895.
[17] Manuel da Costa Andrade, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, Coimbra Editora, 1999, págs. 223 e 224.
[18] Cf. Simas Santos e Leal-Henriques, in ob. e loc. cit.
[19] Proferido no proc. 485/09.0TABJA.E1, in www.dgsi.pt
[20] Proferido no proc. 39/17.7EALSB.L1-9, in www.dgsi.pt.
[21] Ac. da RL de 10/03/2022, proc. 52594/06.0YYLSB-2, in www.dgsi.pt.
[22] Cf., por todos, Ac. do STJ de 15/03/2023, proc. 19/21.8TRGMR.S1 e da RG de 20/03/2023, proc. 630/21.7JABRG-B.G1, in www.dgsi.pt.
[23] Cf. Borges de Pinho, in Dos crimes contra o património e contra o Estado no novo Código Penal: Breves notas e observações, Braga, Barbosa & Xavier, 1983, pág. 27.
[24] In ob. cit., pág. 435.