Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
197/13.0GELLE.E2
Relator: BEATRIZ MARQUES BORGES
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Data do Acordão: 11/08/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. No ordenamento jurídico penal português encontram-se previstas duas formas distinta de impugnar a matéria de facto: uma pela via ampla (artigo 412.º, n.ºs 3 e 4 do CPP) e outra pela via restrita (artigo 410.º, n.º 2, alíneas a) b) e c) do CPP).
II. A impugnação pela via ampla está sujeita ao cumprimento das formalidades do n.º 3, alíneas a), b) e c) e do n.º 4 do artigo 412.º do CPP, devendo os elementos ali referenciados constarem não só do corpo das motivações de recurso, mas também das conclusões.
III. Ainda que, cumpridas as formalidades dos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do CPP, a alteração da matéria de facto só pode ser determinada pelo Tribunal ad quem quando o Julgador a quo tiver percecionado incorretamente o declarado durante a audiência de julgamento e a apreciação por si realizada violar os casos de “prova vinculada” e/ou as regras da experiência e, neste último caso, a solução encontrada não for possível ou de todo plausível.
IV. Mesmo existindo duas versões dos factos encontrando-se a decisão do Julgador, devidamente fundamentada, e consubstanciando esta uma solução plausível, ela é inatacável, pois proferida de acordo com o princípio da livre apreciação, ínsito no artigo 127.º do CPP.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na 2.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO
1. Da decisão
No Processo Comum Singular n.º 197/13.0GELLE da Comarca Faro, Juízo Local Criminal de Loulé - Juiz 2, submetido a julgamento, foi o arguido AA.
1.1. Na parte criminal:
A. Condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física qualificada (artigos 143.º e 145.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea b) do CP), na pena de treze meses de prisão;
B. Suspensa a execução da pena de prisão pelo período de treze meses;
C. Subordinada a suspensão da execução da pena de prisão à condição de o arguido entregar à assistente a quantia de 2.000 €, no mencionado período de treze meses, a deduzir no montante devido a título de indemnização arbitrada;
1.2. Na parte cível:
Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido pela assistente/demandante BB e, consequentemente, condenar o arguido/demandado AA no pagamento de uma indemnização no valor total de 2.000 €;
1.3. Absolvido no demais peticionado.

2. Do recurso
2.1. Das conclusões do arguido
Inconformado com a decisão o arguido interpôs recurso extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):
“I- Pela sentença agora impugnada foi o arguido considerado culpado pela prática, em autoria material, e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p.e p. pelos arts. 143.º e 145.º, nº 1, al. a) e 2, por referência ao art. 132.º, n.º 2, al. b), todos do Código Penal, e em consequência condenado na pena de 13 (treze) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, condenando-o no pagamento de uma indemnização civil à Assistente no montante de 2.000,00€, subordinando a suspensão da execução da pena à condição do pagamento desse montante, no mencionado período de treze meses.
II- Efectivamente, ficou o Tribunal “a quo” convencido da verificação dos factos vertidos nos pontos 3 a 6, e 12 a 15 dos “Factos Provados”.
III- Ou seja que: No dia 14.11.2012, pelas 20h30, quando a assistente estava grávida de seis meses da filha do casal, no interior da residência do casal, o arguido AA desferiu uma violenta bofetada que atingiu a ofendida BB no rosto, causando-lhe dores e hematomas; Quis o arguido AA causar tais lesões e dores à assistente BB; Bem sabia o arguido AA que a assistente BB era sua companheira e que é mãe dos seus filhos e que lhe devia respeito e consideração, e ainda assim quis, o que conseguiu, molestá-la fisicamente; Agiu o arguido AA de forma livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal, ao que foi indiferente. Com os factos descritos em 1. a 6., o arguido colocou em causa a integridade física e psíquica da assistente; A ofendida pediu o auxílio das autoridades, chamando a GNR ao local; A assistente saiu da casa de morada de família, junto com o seu filho CC e estando grávida de cerca de 4/5 meses; A assistente ficou receosa, nervosa, com baixa autoestima, falta de confiança, medo e inquietação”.
IV- No ponto 7 dos “Factos Provados” vem ainda referido a título de “Antecedentes Criminais que: O arguido tem averbada no seu certificado de registo criminal a seguinte condenação: - Pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, praticado em 03.01.2015 (…) a pena de 180 dias de multa.
V- Segundo se lê da Motivação da decisão de facto, onde o Tribunal explana os motivos de facto e de direito que fundamentaram a sua decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a sua convicção, verifica-se que a resposta aos supra referidos pontos 3 a 6, dos factos provados, atendeu ao auto de notícia de fls. 3 e 4 do processo apenso n.º 706/12...., prova documental conjugada com a prova testemunhal produzida mormente as declarações da assistente, das testemunhas
VI- Mais referindo no que respeita à valoração da prova, reger-se pelo disposto no art. 127.º Código de Processo Penal, que prevê que a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do tribunal (apenas afastada nos casos expressamente previstos na lei, como o art. 163.º e 169.º Código de Processo Penal), e que o tribunal formou a sua convicção à luz das regras da experiência comum e da lógica do homem médio, fazendo a análise crítica e conjugada da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, nomeadamente os depoimentos das testemunhas e os documentos analisados
VII- Em relação ao ponto 7 dos Factos provados, refere-se de forma equívoca (em relação aos presentes autos), quanto os antecedentes criminais do arguido, a condenação em multa por ofensas corporais no âmbito do Proc. n.º 652/14...., que correu termos no Juízo de Instância Criminal de ... – Juiz ..., sucede que os factos em causa nesse processo ocorreram em data posterior (03-01-2015) aos factos em apreço nos presentes, ou seja, em 14-11-2012, o ora Recorrente não antecedentes criminais, não tinha sido acusado ou condenado por qualquer crime cometido contra a Assistente ou contra quem quer que fosse, no entanto esta confusão de datas, em que a subsequente passa a antecedente, permitiu à MMª Juíza “a quo”, um vício de raciocínio, para na análise do depoimento do arguido descredibilizar a veracidade das suas afirmações ao salientar em sede de Motivação que “, porque o arguido referiu nunca ter agredido fisicamente a assistente, sendo que o mesmo conta já com um registo criminal por facto da natureza idêntica, perpetrado contra assistente. Por esta razão, as declarações sempre resultariam minadas, por manifesta falta de verdade”, é que no âmbito espácio-temporal da matéria que se estava a discutir nos presentes autos não havia qualquer condenação anterior por factos perpetrados contra a assistente, e foi isso que o arguido com a maior naturalidade e verdade respondeu ao tribunal. Aliás diga-se, de passagem, que no referido processo de ... a Assistente também foi condenada por idêntico crime cometido na pessoa da mãe do arguido, que era à data já septuagenária e doente do foro oncológico.
VIII- Ora, em concreto a convicção do tribunal assentou quer sobre prova documental, quer nas declarações da Assistente, conjugada com os depoimentos das testemunhas DD, EE, FF, GG, que considerou credíveis, e nas declarações do Arguido, que considerou não credíveis.
IX- Ora, o Recorrente entende que numa análise imparcial da prova produzida, não pode deixar de constatar-se que o depoimento da Assistente, produzido em audiência não pode, pelas incongruências evidenciadas, e até porque contrariado pelo depoimento das testemunhas indirectas, não pode basear uma decisão de condenação, muito menos uma condenação em pena de prisão, ainda que suspensa na sua execução. Senão atente-se ao teor dos depoimentos transcritos.
X- Do depoimento prestado pela Assistente retira-se num primeiro relato (em que não lhe colocaram questões) que, no dia em causa, em Novembro de 2012, estando a família (pai, mãe grávida e filho) na cozinha, o arguido dirigiu-se ao filho CC de 5 anos, de “forma mais brusca”, começando a empurrá-lo, e que a mãe, como o arguido alegadamente em outras ocasiões tivesse agredido o filho, a aqui assistente interpôs-se entre ambos, e o arguido empurrou-a, para depois continuar a importunar o filho, tendo então a assistente voltado a confrontá-lo e desferiu-lhe este uma bofetada na cara. Num segundo momento, já na sequência de interrogatório, referiu a Assistente que a bofetada foi desferida de mão aberta, e que antes disso o arguido a empurrou contra o frigorífico, perguntada se sentiu dor, respondeu que ficou assustada, não por ela, por estar grávida, mas por o arguido ter continuado a importunar o filho, e de seguida quando a Assistente foi “novamente ter com ele”, tentando afastá-lo do filho, e foi nessa ocasião que lhe deu a bofetada, mais referindo que mandou o filho para o quarto e que este estava desesperado e a chorar, acrescentou que o arguido durante esse período e mesmo depois nada disse ou verbalizou. Numa fase mais avançada do depoimento já refere que a bofetada afinal não foi só na face, mas que apanhou também a boca para ligar este acontecimento a duas cirurgias, a que se sujeitou em 2016 e 2018, referindo que de várias agressões alegadamente perpetradas pelo arguido na sua boca teria ficado com a mesma totalmente deformada, que a boca “rebentou” e “tinha uma cicatriz interna e tiveram que remover porque estava deformada, tinha uns altos e fui submetida duas vezes a cirurgia, e não foi uma cirurgia num hospital privado com um cirurgião plástico, foi num hospital público” esquecendo de referir, por não lhe ser conveniente, e por prejudicar o labéu infamante que veio proferir contra o arguido nos presentes autos, que desde o começo do seu relacionamento com este, se sujeitava, com frequência, a pequenas cirurgias de preenchimento labial com a Toxina Botulínica, (vulgo Botox), na clinica de cirurgia plástica, do Dr. HH, de quem era amiga, bem como a sessões de Lipo Aspiração em diversas partes do corpo, numa clínica em ..., estas situações, e os efeitos perversos daí decorrentes, é que lhe terão deixado marcas no corpo, mormente “uma cicatriz interior em toda a extensão da boca” como também referiu, e que a obrigaram às referidas cirurgias desta feita em hospital público.
XI- 17. As intervenções cirúrgicas referidas tinham assim a ver com as consequências das operações estéticas a que, há muitos anos, a assistente se vinha submetendo, mas também eventualmente com um episódio de rara violência ocorrido em 2015 em ... durante uma entrega dos filhos CC e AA à assistente, em casa da avó paterna, mãe do arguido, em que, aquela sim, espancou selvaticamente uma septuagenária, com uma doença oncológica grave, agressão pela qual a assistente veio a ser condenada no âmbito do processo nº 652/14...., do Juízo Local Criminal de ... – J....
XII- 18. Seja como for a MMª Juíza “a quo”, e bem, considerou que as referidas operações cirúrgicas nada tinham a ver com a situação em discussão nos autos, referindo que nesta parte as declarações da Assistente não lhe pareceram verosímeis, mas podia e devia ter tirado outra conclusão quanto à credibilidade do depoimento no seu todo, até porque a Assistente, em fase posterior, não se coibiu de apresentar como testemunha o filho do casal, CC, a quem instruiu para repetir que as operações da mãe à boca eram consequência da alegada bofetada desferida pelo pai, julgando o menor que as cirurgias tinham sido realizadas logo a seguir a Novembro de 2012, testemunho que aliás o tribunal desconsiderou no seu todo por entender haver suspeitas e instrumentalização, ou seja não o tendo considerado espontâneo, nem imparcial.
XIII- 19. Atente-se ainda que o depoimento da Assistente, prestado em tribunal, para ser verosímil e credível devia ter começado por especificar qual fora a origem, o que é que originara, que circunstância em concreto conduzira às alegadas agressões, quer à mãe, quer ao filho, perpetradas pelo arguido. A Assistente limitou-se a fazer um enquadramento do comportamento “habitual” do arguido: “o AA normalmente tinha às vezes comportamentos impulsivos, assim duma situação normal despoletava uma confusão, ou uma discussão, e começava normalmente em gritos e depois ia escalando também consoante as situações”, sendo que, na situação dos autos acabou por não referir qualquer discussão, muito menos o teor da mesma, e era importante que o tivesse feito, para se atestar a coerência e credibilidade do referido depoimento. Até porque, em comparação, o depoimento do Arguido refere claramente uma discussão e o teor da mesma.
XIV- 20. Neste aspecto até o depoimento do filho CC, desconsiderado pelo tribunal, se repristina em abono da versão do Arguido, ao referir que estando com a cama feita na sala, tudo terá começado com uma discussão entre a mãe e o pai ocorrida na cozinha, onde o menor não se encontrava, e que viu o pai a empurrar a progenitora, e depois a desferir-lhe um “bofetão”, mas como nesta narrativa o filho CC também se coloca fora da discussão entre os progenitores, e em local diferente da casa, contraria frontalmente a versão pela mãe, quando esta alega que interveio para salvar o filho, digamos assim com exagero, das “garras do pai”.
XV- 21. Por outro lado, a versão da Assistente não tem qualquer correspondência com o que a alegada Ofendida veio a contar aos militares da GNR por ela chamados, e que se encontra plasmada no Auto de Notícia. Segundo os elementos da patrulha, que compareceram prontamente no local, nunca aparece referido o filho (no entanto em desespero e a chorar a fazer fé nas palavras da mãe) como tendo sido o pomo da discórdia entre o casal, criança que nunca foi ouvida pelos agentes, mas que a Assistente veio em fase de julgamento requerer a respectiva inquirição.
XVI- 22. O depoimento da Assistente falece ainda em termos de credibilidade, em face das regras da lógica e da experiência comum, quando refere um conflito que se agrava, mas onde o arguido não profere uma única palavra, “não diz nada”, embora também seja acusado pela Assistente de em situações de discussão e confusão, começar aos “gritos e escalar”, contradizendo outra ideia também insinuada maldosamente pela Assistente de que o ex-companheiro frequentemente a insultava, bem como ao filho menor.
XVII- 23. Por outro lado, os agentes que elaboraram o Auto de Noticia deixaram escrito que quem estava fora de si era apenas a Assistente, o que sendo compaginável com o facto de ser ela a agredida, também não elimina a hipótese de discussão acalorada, e já relativamente ao Arguido quando no mesmo auto se diz que estava calmo, ou aparentando calma, contrariando a imagem de impulsividade, também que minutos antes estivesse a agredir a Assistente.
XVIII-11. Relativamente à marca na face da Assistente, o seu relato inicial é de uma estalada na face direita, alegadamente desferida pelo arguido com mão aberta, deixando lá uma marca, para logo de seguida na resposta ao interrogatório da sua advogada, a estalada na face ter alastrado para o lábio, para fazer a ligação com duas cirurgias ocorridas 4 a 5 anos, justificando que o arguido tinha a “mão grande”, e que portanto também lhe atingira a boca. No entanto esta versão é contrariada pelos Militares da GNR presentes no local, os quais uma vez inquiridos, embora já não se lembrassem da ocorrência, confirmaram ter redigido e assinado o referido Auto, onde apenas se refere uma vermelhidão na face direita da Assistente, não mencionando quaisquer hematomas ou lesões na face, ou no lábio, nem tendo vislumbrado quaisquer arranhões ou vestígios de sangue, sendo que a testemunha FF, médica de clínica geral, e amiga da Assistente, também que num dia em que a amiga lhe pediu para pernoitar com o filho em sua casa (perto da casa do casal desavindo), ela apresentava a cara vermelha, mas que podia ser de se ter enervado, nunca tendo presenciado, enquanto conviveu com o casal, quaisquer agressões físicas, apenas agressões verbais, não tendo especificado de quem em relação a quem.
XIX- 12. Cabe aqui dizer, a talhe de foice, que se os militares da GNR presentes no local tivessem constatado vestígios de autêntica agressão física, e não a mera exaltação da Assistente, que até poderia ter a ver com eventual discussão entre o casal, mas também com o estado de gravidez avançado daquela, se tivessem constatado algum tipo de lesão, se houvesse “evidentes marcas” de agressão na cara da alegada vítima, teriam não só levado a Assistente, para o posto da GNR competente, e aí efectuado o competente registo fotográfico das partes do corpo visivelmente afectadas, ou a própria o teria feito, como a teriam encaminhado para as urgências do Hospital de ..., a fim de ser observada por pessoal médico competente, e elaborado o necessário relatório do episódio clinico que lhe correspondesse, o que efectivamente não aconteceu.
XX- Neste processo não só não há testemunhos directos (credíveis) dos alegados factos, nem quaisquer outros meios de prova para além dos testemunhos indirectos, que não confirmam o alegado pela Assistente.
XXI- Temos assim duas versões diferentes: a da Assistente, no sentido da verificação dos factos, e a do Arguido, no sentido da negação.
XXII- Relativamente ainda ao depoimento da Assistente, para além da falta de coerência, de contradição nos termos, de contrariar as regras da experiência comum, já mencionados, há apontar outros dois aspectos que minam decisivamente a respectiva credibilidade, e que bulem com a boa fé, mormente a boa fé processual, constituindo uma notória falta de respeito pelo tribunal, tornando a justiça numa irrisão: não só o facto de ter instrumentalizado o filho do casal na sua “vendetta” pessoal, indicando-o como testemunha contra o pai, e levando-o a produzir um depoimento não genuíno e tendencioso, mas também a tentativa baldada de estar presente ao pé do filho, quando este fosse ouvido, primeiro requerendo que o depoimento fosse colhido através da aplicação Webex, conforme requerimento com a Referência CITIUS nº 9752409, de 07/02/2022, onde concluia nos seguintes termos: “Por conseguinte reitera-se o anteriormente requerido no sentido de ser esta testemunha ouvida por WEBEX, atenta a distância territorial, dispondo do mesmo email da Assistente para efeitos de recebimento do convite.”, pretensão que só não foi concretizada porque a isso se opôs o arguido através do requerimento com a Referência CITIUS nº: 9790937, de 16/02/2022; e depois no dia da inquirição, em 17/03/2022, no tribunal da Comarca ..., fazendo questão de estar presente na sala onde a testemunha iria prestar o depoimento.
XXIII-Já quanto às declarações do Arguido, apesar de se poder constatar pela transcrição supra, que se tratou de um depoimento escorreito, sério, e verosímil, portanto genuíno, a MMª Juiz “a quo” entendeu que aquelas declarações não mereciam qualquer crédito, por 3 razões: “por alegadamente ter sido “infirmado pela prova produzida”, que como se deixou dito não se verificou, por alegadamente ter mentido ao tribunal sobre os seus antecedentes criminais, o que não corresponde á verdade como se deixou dito supra, no ponto 7, e que aqui se dá como integralmente reproduzido, reafirmando-se que não havia antecedentes criminais do Arguido há data dos factos objecto de julgamento nos presentes autos.
XXIV- Quanto ao facto de atribuir a presença da GNR em sua casa como integrando-se um plano engendrado pela Assistente, conhecedora dos mecanismos da lei e da justiça, enquanto advogada, o que não deixou de o surpreender (como também referiu na suas declarações), apesar das ameaças que a ex-companheira lhe fazia, tenha-se em conta o labéu infamante inicial dirigido pela Assistente contra o Arguido, constante quer da acusação pública e da acusação particular deduzida nos presentes autos, quer no processo nº 652/14...., supra referido, uma prosa criminal que só foi possível “descascar” na fase de instrução, através de um paciente e minucioso trabalho de verificação dos factos, das provas, e do direito aplicável, levado a cabo quer pelos Exmºs Procuradores, quer dos Juízes das várias instâncias, com especial destaque para a Juíza de Instrução Criminal de ....
XXV- Diga-se ainda em abono da credibilidade do depoimento do arguido que a questão da vermelhidão poder ter a ver com a tez alvar da Assistente, que ruborescia facilmente quando esta se enervava, os militares da GNR terão verificado vermelhidão só do lado direito, mas a testemunha FF, médica, que terá estado com a Assistente, a seguir aos militares, não refere nenhuma marca especial cara daquela, diz que teria o rosto vermelho, mas que poderia ser de estar nervosa, ora se a ofendida apresentasse uma marca visível de agressão, certamente que a sua amiga de infância não deixaria de verificá-lo, até com melhor acuidade e rigor do que os agentes, por ser médica, e a Assistente não deixaria também seguramente de lhe chamara a atenção para tal facto.
XXVI-19. Assim sendo, o Tribunal “a quo” não devia ter aceite acriticamente a versão da Assistente, conjugada com a demais prova e falta dela, nem desconsiderar, como o fez o depoimento do arguido, e em consequência não devia ter dado como provada e assente a matéria da “Fundamentação”, constante dos pontos 3 a 6, dos “Factos Provados”, devendo isso sim ter considerado tais factos como integrando o elenco dos “Não Provados” , ficando também prejudicados os pontos 12 a 15 dos “Factos Provados” relativos ao Pedido Cível.
XXVII- 20. Como bem refere FIGUEIREDO DIAS: “À luz do princípio da investigação bem se compreende, efectivamente, que todos os factos relevantes para a decisão (quer respeitem ao facto criminoso, quer à pena) que, apesar de toda a prova recolhida, não possam ser subtraídos “à dúvida razoável” do tribunal, também não possam considerar-se como provados. E se, por outro lado, aquele mesmo princípio obriga em último termo o tribunal a reunir as provas necessárias à decisão, logo se compreende que a falta delas não possa, de modo algum, desfavorecer a posição do arguido: un non liquet na questão da prova – não permitido nunca ao juiz, como se sabe, que omita a decisão – tem de ser sempre valorado a favor do arguido. É com esse sentido e conteúdo que se afirma o princípio in dubio pro reo (Cfr. “Princípios Gerais de Processo Penal”, § 7III).
XXVIII- Tudo isto para concluir que não se provaram os elementos típicos, subjectivos e objectivos, do tipo de crime pelo qual o arguido vinha pronunciado, pelo que devia ter sido dele absolvido, com as legais consequências
XXIX- Ao considerar o arguido culpado da prática do Crime de ofensa à integridade física qualificada, condenando-o na pena de 13 (treze) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, violou a sentença ora impugnado a lei, “in casu” o artigo 32º, nº2, da CRP, e os artigos 143.º e 145.º, nº 1, al. a) e 2, por referência ao art. 132.º, n.º 2, al. b), todos do Código Penal, pelo que deve ser revogada e substituída por outra que, ponderando e sopesando devidamente os elementos de prova existentes nos autos, e respeitando o princípio “in dubio pro reo”, absolva o ora recorrente daquele crime, bem como do pedido cível formulado. (…)”.

2.2. Das contra-alegações da assistente BB
Respondeu a assistente defendendo o acerto da decisão recorrida, tendo apresentado as seguintes conclusões (transcrição):
“Ao decidir como decidiu o Tribunal a quo fez uma correta interpretação e aplicação do Direito aos factos, os quais se acham devidamente julgados, pelo que deverá ser negado provimento ao recurso interposto pelo arguido, por total improcedência, e, consequentemente, manter-se inalterada a douta sentença proferida, confirmando-se integralmente o seu dispositivo condenatório imputado ao arguido.”

2.3. Das contra-alegações do Ministério Público
Respondeu o Ministério Público defendendo o acerto da decisão recorrida.

2.4. Do Parecer do MP em 2.ª instância
Na Relação o Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu Parecer no sentido de ser julgada a improcedência total do recurso interposto pelo arguido.

2.5. Da tramitação subsequente
Foi observado o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do CPP, tendo a assistente e o arguido apresentado resposta reiterando as posições anteriormente assumidas.
Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos teve lugar a conferência.
Cumpre apreciar e decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
1. Objeto do recurso
De acordo com o disposto no artigo 412.º do CPP e atenta a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no DR I-A de 28/12/95 o objeto do recurso define-se pelas conclusões apresentadas pelo recorrente na respetiva motivação, sem prejuízo de serem apreciadas as questões de conhecimento oficioso.

2. Questões a examinar
Analisadas as conclusões de recurso as questões a conhecer consistem a apurar se ocorreu errada apreciação da prova (artigo 127.º) e violação do princípio do in dubio pro reo, com repercussão no direito aplicado.


3. Apreciação
3.1. Da decisão recorrida
Definidas as questões a tratar, importa considerar o que se mostra decidido pela instância recorrida.

3.1.1. Factos provados na 1.ª instância
O Tribunal a quo considerou provados os seguintes factos (transcrição):
“Dos factos constantes do Despacho de Pronúncia:
1. O arguido AA e a assistente BB viveram em comunhão de vida e habitação, como se de marido e mulher se tratassem, desde meados de 2002 até Maio de 2013, residindo no ..., Lote ..., Casa ..., em ..., área deste município ....
2. Dessa relação nasceram dois filhos: CC, no dia 10-10-2007 e II, no dia 29-01-2013.
3. No dia 14.11.2012, pelas 20h30, quando a assistente estava grávida de seis meses da filha do casal, no interior da residência do casal, o arguido AA desferiu uma violenta bofetada que atingiu a ofendida BB no rosto, causando-lhe dores e hematomas.
4. Quis o arguido AA causar tais lesões e dores à assistente BB.
5. Bem sabia o arguido AA que a assistente BB era sua companheira e que é mãe dos seus filhos e que lhe devia respeito e consideração, e ainda assim quis, o que conseguiu, molestá-la fisicamente.
6. Agiu o arguido AA de forma livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal, ao que foi indiferente.
Dos antecedentes criminais:
7. O arguido tem averbada no seu certificado de registo criminal a seguinte condenação:
- Pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, praticado em 03.01.2015, tendo sido condenado por sentença transitada em 15.06.2020, no âmbito do Proc. n.º652/14...., que correu termos no Juízo de Instância Criminal de ... – Juiz ..., na pena de 180 dias de multa, à taxa diária de €7,00, num total de €1.260,00,
Das condições socioeconómicas do arguido:
8. O arguido trabalha na área da restauração (abastecimento de restaurantes), auferindo cerca de €400,00 mensais;
9. Reside com a companheira, em casa de familiares, pagando uma renda mensal de €300,00 mensais, prestando ainda serviços aos mesmos;
10. Paga cerca de €100,00 mensais pelo fornecimento de água, luz e gás;
11. É licenciado em engenharia agrónoma.
Do pedido de indemnização civil:
12. Com os factos descritos em 1. a 6., o arguido colocou em causa a integridade física e psíquica da assistente;
13. A ofendida pediu o auxílio das autoridades, chamando a GNR ao local;
14. A assistente saiu da casa de morada de família, junto com o seu filho CC e estando grávida de cerca de 4/5 meses;
15. A assistente ficou receosa, nervosa, com baixa autoestima, falta de confiança, medo e inquietação;
Das condições socioeconómicas da assistente:
16. A assistente é advogada, auferindo cerca de €1.000,00 mensais;
17. Reside com os filhos, em casa arrendada, pela qual paga €780,00 mensais;
18. Gasta cerca de €120,00 pelo fornecimento de água, luz e gás.”.

3.1.2. Factos não provados na 1.ª instância
O Tribunal a quo considerou não se terem provado quaisquer outros factos com interesse para a causa nomeadamente que (transcrição):
“Com interesse para a decisão da causa, não se provou:
Da contestação:
a. Durante o período referido em 1., o arguido tinha um trabalho esgotante, que o obrigava a constantes deslocações por todo o país;
b. Das poucas vezes que o casal esteve junto, o arguido pressentia o início de um conflito ou discussão, em que a assistente era useira e vezeira, ou saía de casa, ou vinha passar o fim-de-semana a ..., sozinho;
c. A “vida em comum” entre o arguido e a assistente nunca foi realmente próxima, já que BB tinha a vida toda organizada no ..., com o grupo de amigos de longa data, idas ao ginásio, a vida profissional de advogada, sendo que o arguido não fazia parte desse círculo mais próximo;
d. Quando o arguido passou a estar mais tempo fora de casa por causa do trabalho e dos problemas de saúde da sua mãe (doença do foro oncológico), a assistente deixou de moderar a linguagem e passou a utilizar as seguintes expressões referindo-se ao arguido e à mãe deste: “cabrão”, “filho da puta”, “és igualzinho à tua mãe”, “a mulher do saco”, “não tens tempo para mim por causa dessa bruxa”, pretendia viajar, queria ser colocada em primeiro lugar e era completamente insensível em relação aos problemas de saúde da mãe do arguido;
e. A irritação e frustração da assistente aumentou a partir do momento em que este veio passar com mais frequência os fins de semana a ..., sem a presença daquela, tendo algumas vezes, quando o apanhava no ..., além de lhe dirigir os mais soezes palavrões, também tentado agredi-lo.
f. O arguido nunca entrou em conflito com ninguém, muito menos com uma pessoa que era na altura sua companheira e mãe dos seus filhos, sempre a tendo respeitado e considerado.
Do pedido de indemnização civil
g. Como consequência das condutas descritas em 1. a 6., a assistente sofreu lesões permanentes, ficando com a boca deformada, o que levou a que fosse submetida cirurgicamente em 2016 e em 2018 para remoção de tecido cicatrizal.
Os demais factos invocados na acusação particular não foram considerados porque sobre os mesmos foi proferido despacho de inadmissibilidade legal e/ou não pronúncia.
Os factos constantes do pedido de indemnização cível e acima não mencionados não foram atendidos, porque acoplados aos factos constantes da acusação particular e à acusação pública e sobre os quais a decisão instrutória se pronunciou.
Os demais factos são conclusivos, constituem matéria de direito, não têm relevância para a decisão da causa ou encontram-se em contradição com os factos considerados provados e não provados.”.

3.1.3. Da fundamentação da convicção pelo Tribunal recorrido
O Tribunal motivou a factualidade provada e não provada pela seguinte forma (transcrição):
“Nos termos do art. 374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, o tribunal deve indicar os motivos de facto e de direito que fundamentam a sua decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a sua convicção.
No que respeita à valoração da prova, rege o disposto no art. 127.º Código de Processo Penal, que prevê que a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do tribunal (apenas afastada nos casos expressamente previstos na lei, como o art. 163.º e 169.º Código de Processo Penal).
Assim, o tribunal formou a sua convicção à luz das regras da experiência comum e da lógica do homem médio, fazendo a análise crítica e conjugada da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, nomeadamente os depoimentos das testemunhas e os documentos analisados.
Quanto aos factos provados:
No que respeita aos factos 1 a 4 e 12 a 15, o tribunal tomou em consideração a prova documental, mais concretamente a seguinte:
- Assentos de nascimento de fls. 90 e 91;
- Auto de notícia de fls. 3 e 4 do processo apenso n.º 706/12....;
- Certidões de sentença de fls. 678 e ss. e de acórdão de fls. 841 e ss.
Os referidos documentos foram conjugados com a prova testemunhal produzida.
A assistente prestou declarações, confirmando ter tido uma relação análoga à dos cônjuges com o arguido entre 2002 a 2013, no âmbito da qual nasceram 2 filhos. Durante o período de coabitação, residiram em .... Mais adiantou que, em Novembro de 2012, quando se encontrava grávida, pela hora de jantar, o casal entrava-se na sua residência, juntamente com o filho de ambos (que, na altura, teria cerca de 5 anos), momento em que o arguido se dirigiu de forma brusca para o menor, empurrando-o, razão pela qual a assistente interveio. Acto contínuo, o arguido empurrou a assistente e deu-lhe uma bofetada na cara, de mão aberta, tendo a mesma embatido contra o frigorífico. Na sequência da bofetada, ficou com o rosto vermelho, sentindo ainda dor física e, sobretudo, psicológica. Mais esclareceu ter chamado a polícia, a qual confirmou as marcas que a mesma apresentava na face, tendo o arguido referido aos militares que a assistente tinha caído. Pese embora a assistente tenha interesse no desfecho do presente processo, quer por via do pedido indemnização cível, quer porque é notória a desavença existente entre a assistente e o arguido, a qual remontará desde longa data, as declarações da assistente foram convincentes, sobretudo porque concatenadas com a demais prova produzida (e a que infra se fará referência). As suas declarações só não mereceram credibilidade na parte em que pretendeu estabelecer um nexo causal entre a referida agressão e a operação cirúrgica à boca para remoção de uma cicatriz, a que veio posteriormente a ser sujeita, porquanto a mesma fez referência a várias agressões ao longo de toda a vida conjugal, sendo que o arguido apenas se encontra a ser julgado por uma só agressão. Ademais, a bofetada foi desferida na face e não na boca, nada tendo ressaltado da prova produzida no sentido de que, por via daquela, a assistente tenha ficado com sangue, com alguma ferida exposta ou qualquer outra lesão de onde se pudesse concluir pela existência de lesões passíveis de causar cicatrizes. Ainda no que toca aos danos sofridos, a assistente referiu ter sentido medo de que o arguido repetisse a agressão e, ademais, que pudesse afectar o estado de gravidez em que se encontrava, ficando muito ansiosa e triste, o que é perfeitamente compatível com as regras da lógica e da experiência comum.
A testemunha DD, militar da GNR, embora não se tenha recordado dos factos em causa, dado ser muito grande o número de denúncias corridas em contexto doméstico, afirmou de forma peremptória que tudo quanto redigido no auto de notícia corresponde à verdade. Foi confrontado com o auto de notícia de folhas 45 do apenso, confirmando a sua assinatura e teor. No que concerne à lesão sofrida pela assistente, reiterou que se o auto faz referência a ter sido visualizado um vermelhão na zona do rosto, é porque efectivamente assim tal constatado. Efectivamente, do referido auto de notícia consta o seguinte: «De realçar que a denunciante tinha um vermelhão visível, na face, do lado direito (…)»
A testemunha EE, militar da GNR, depôs em sentido idêntico, ou seja, o de que, muito embora não se recordasse da situação em concreto (julgando recordar-se de uma situação que envolvia um menor, mas a que não fez expressamente fazer referência, por poder estar equivocado), confirma que tudo quanto se declara no auto de notícia é o verificado/constatado na ocorrência para a qual são chamados. Foi confrontado com o auto de notícia de fls. 45, confirmando o seu teor e, bem ainda, tratar-se da situação de que se recordava.
A testemunha FF, amiga da assistente, confirmou ter conhecimento da existência de conflitos entre a mesma e o arguido. Esclareceu ter conhecimento de duas situações em que a assistente foi agredida fisicamente, sendo que, e para o que ora importa, num dia que não soube concretizar, ao final dia, e quando a assistente se encontrava grávida da sua filha (e em estado de algum avanço), aquela lhe telefonou relatando o sucedido e a perguntar se podia pernoitar em sua casa por uns dias, juntamente com o seu filho, ao que a mesma acedeu. Por conseguinte, a assistente dirigiu-se a sua casa, apresentando o rosto vermelho, estando muito transtornada e alterada, acabando por permanecer na sua residência por duas ou três semanas. Concluiu referindo que a assistente, nesse período, andou com medo e nervosa, sobretudo por causa da gravidez. Não obstante a relação de amizade com a assistente, o depoimento desta testemunha mostrou-se tranquilo e isento, não demonstrando qualquer animosidade em relação ao arguido, nem intenção de testemunhar a seu desfavor, tanto mais quando acabou por esclarecer que desde 2013 que já não mantém um contacto regular com a assistente. Por outro lado, sendo médica de profissão, a mesma também não demonstrou dúvida ou surpresa no sentido de que os factos então relatados pela assistente não fossem compatíveis com a vermelhidão que a mesma apresentava na face, nem com o estado de transtorno e nervosismo que a mesma sofreu nos dias imediatos.
O depoimento da testemunha JJ não foi considerado para os presentes autos, porque os factos de que o mesmo tinha conhecimento não se encontram com estes relacionados.
A testemunha CC, filho menor da assistente e do arguido, não prestou depoimento de capital importância para a criação da convicção do Tribunal. De facto, o tribunal não pode deixar de considerar que, atenta a estreita relação do menor com a sua mãe e, em contraposição, o pouco contacto que tem com o arguido, o mesmo possa ter sido, por qualquer forma, influenciado no seu depoimento (intencional ou não intencionalmente). Por outro lado, embora o mesmo tenha feito referência ao facto de, durante o período em que os seus progenitores viveram juntos, houve situações desagradáveis que ficaram na sua memória, o mesmo começou por fazer referência a uma situação em que, após uma discussão, o arguido terá pegado numa faca, agarrando a assistente, dizendo que lhe ia cortar os dedos. Só mais adiante acabou por fazer referência a outra situação, em que os seus progenitores discutiram novamente e em que o arguido desferiu umas chapadas e uns empurrões à assistente. Porém, o mesmo revelou um discurso pouco natural e espontâneo, tanto mais porque acabou por referir que em consequência destas agressões a sua mãe ficou mal da cara e da boca, tendo inclusivamente de ser operada. Ora, como é evidente, as suas declarações nesta parte não foram minimamente credíveis. Veja-se que, à data dos factos, o menor tinha 5 anos, pelo que não é verosímil que o mesmo conseguisse estabelecer o nexo causal entre a referida agressão e a operação cirúrgica a que a sua mãe foi sujeita (o que só poderá ter ocorrido por via de conversas que teve com a sua mãe ou que ouviu). Por outro lado, o menor referiu que, segundo se recordava, a cirurgia terá ocorrido pouco tempo depois da dita agressão (o que se infirma pelo documento folhas 546, de onde resulta que a cirurgia ocorreu já em 2016 e 2019, ou seja, muitos anos após os factos ora em julgamento). Por fim, e eventualmente decorrente da sua tenra idade, o mesmo não se recordou se a assistente, por via da agressão que sofreu, ficou com alguma vermelhidão/marca na cara ou sequer se a polícia se deslocou ao local, o que demonstra que o mesmo não tem clara memória dos factos. Confirmou, contudo, que a assistente, em data que não se recordava, saiu de casa, ficando uns dias em casa de uma amiga, o que já coincide com o depoimento da testemunha FF, tendo sido considerado nesta parte.
A testemunha KK, amigo da assistente, confirmou que, num dia que não soube precisar, mas em que a arguida se encontrava grávida pela segunda vez, esta lhe telefonou, estando «fora de si», por ter sido maltratada, razão pela qual tinha saído de casa. Muito embora o seu discurso tenha demonstrado alguma exacerbação, fazendo menção a uma situação de violência extrema, muito significativa e repugnante, a mesma acabou por confirmar que, no dia em causa, esteve com a assistente e que a mesma apresentava o rosto vermelho, mostrando-se ainda muito nervosa. Também confirmou que a assistente tinha evidentes marcas na face e que se fazia acompanhar do seu filho menor. Desta forma, apesar de algum exagero na forma como descreveu os factos, a verdade é que a situação por este relatada se coaduna na perfeição com os factos descritos pela assistente e confirmados pelos militares da GNR, ou seja, os de que no dia em causa se deslocaram à residência e que verificaram que a assistente tinha uma marca na face. Por outro lado, o depoimento desta testemunha coincide também com o prestado pela testemunha FF, na parte em que após esta ocorrência a assistente saiu de casa, fazendo-se acompanhar do seu filho menor, a qual atestou também a vermelhidão na face da assistente.
O arguido prestou declarações, tendo negado a totalidade da prática dos factos pelos quais veio pronunciado. Esclareceu que, durante o período durante o qual viveu com a assistente em condições análogas às dos cônjuges, houve várias discussões, tal como as têm todos os casais, e que no caso se fundavam na falta de assistência que o arguido dava à família, uma vez que tinha de se ausentar diversas vezes, por razões profissionais e familiares (por ter família em ...). Referiu recordar-se do dia aqui em questão, por ter acabado de chegar de ..., mas informando a assistente de que teria novamente de se ausentar, o que despoletou uma discussão entre o casal, a que este virou costas, como sempre fazia, o que enervava ainda mais a assistente. Negou ter existido qualquer confronto físico, mas tão só verbal, afirmando de forma veemente nunca ter agredido fisicamente a assistente. Porém, as suas declarações não mereceram qualquer crédito. Em primeiro lugar, porque infirmado pela prova produzida e a que supra se fez referência. Em segundo lugar, porque o arguido referiu nunca ter agredido fisicamente a assistente, sendo que o mesmo conta já com um registo criminal por facto da natureza idêntica, perpetrado contra assistente. Por esta razão, as declarações sempre resultariam minadas, por manifesta falta de verdade. Em terceiro lugar, porque quando questionado sobre a razão pela qual, assim sendo, a GNR foi chamada ao local, o arguido referiu que tal sucedeu porque a assistente era advogada e tinha contactos, o que não tem qualquer lógica, nem razão de ser, tanto mais quando os militares que se deslocaram ao local nem demonstraram conhecer a assistente ou ter com a mesma qualquer relação. Também quando questionado sobre a razão pela qual a mesma apresentou face vermelha, o mesmo referiu genericamente que a arguida tinha uma anemia, pelo que sempre que ficava nervosa, levantava a voz ou fazia algum esforço físico ficava com o rosto vermelho (utilizando a expressão «rosetas»). Ora, considerando que a assistente tinha uma vermelhidão de apenas um lado da cara e não de ambos, não se alcança como é que a mesma pôde ter como causa uma pretensa anemia. As declarações mostraram-se ainda pouco espontâneas, tendo o mesmo repetido por diversas vezes a mesma versão dos factos, isto é, que as discussões ocorriam por conta das suas obrigações profissionais, pretendendo invocar declarações prestadas noutros processos, a fim de refutar os factos em questão e em nada com estes relacionados. Deste modo, as suas declarações não permitiram infirmar a prova produzida, nem sequer colocar em dúvida a veracidade da sua ocorrência. A circunstância de não terem sido juntas aos autos quaisquer fotografias demonstrativas da lesão sofrida pela assistente não constitui qualquer obstáculo à decisão supra tomada, pois as mesmas constituiriam um meio de prova adicional e não o único relevante.
Os factos 5 e 6 – elemento subjectivo – resultaram provados através do cotejo dos factos objectivos dados como provados, conjugados com as regras da experiência comum.
Como refere Cavaleiro de Ferreira (Curso de Processo Pena lII, ..., Ed. Danúbio, pág.292), existem elementos do crime (factos) que, no caso da falta de confissão, só são suceptíveis de prova indirecta, como são todos os elementos de estrutura psicológica.
Com efeito, o comum dos cidadãos não podia deixar de conhecer o desvalor da sua conduta, ou seja, de saber que a ofensa física perpetrada contra a assistente era idónea a causar lesões e dor, tanto mais quando a mesma se encontrava grávida. O arguido não podia, pois, deixar de saber que a sua conduta constituía um crime, não se inibindo, contudo, de a praticar.
O facto 7 (antecedentes criminais) resultou provado através da análise do certificado de registo criminal junto aos autos (fls. 1195 a 1197).
Os factos 8 a 11 (condições socioeconómicas do arguido) resultaram provados através das declarações do arguido, que nesta parte mereceu credibilidade.
Os factos 16 a 18 (condições socioeconómicas da assistente) resultaram das suas declarações, que também mereceram credibilidade.
*
Quanto aos factos não provados:
Os factos a) a f) não resultaram provados porque sobre os mesmos não se produziu qualquer prova, tendo apenas o arguido feito breve referência aos mesmos e cuja veracidade, pelas razões supra aduzidas e para as quais se remete por economia processual, não mereceram credibilidade.
Quanto ao facto g), o mesmo não resultou provado porque a agressão que o arguido infligiu contra a assistente consistiu numa bofetada, causando-lhe dores e hematomas. Tal ofensa levou a que a assistente ficasse com a face vermelha e não com qualquer ferimento, golpe ou escoriação na boca. Ademais, e como já supra se adiantou, as referidas cicatrizes terão, na tese da assistente, advindo de diversas agressões de que terá sido vítima, sendo que apenas uma se encontra aqui em equação. Assim, não foi possível estabelecer qualquer nexo causal entre, por um lado, a referida bofetada e quaisquer lesões na boca e, por outro, entre estas e a necessidade de intervenções cirúrgicas, as quais terão ocorrido em 2016 e 2018 (também não colhendo o argumento de que tal hiato de tempo se deveu ao atraso do serviço nacional de saúde, tanto mais quando dos documentos juntos não consta a causa, pelo menos provável, das referidas cicatrizes).”

3.1.4. Da fundamentação de direito pelo Tribunal recorrido
O Tribunal a quo fundamentou de direito pela seguinte forma (transcrição):
“(…) Estando já indicada a matéria de facto provada e não provada, façamos o seu enquadramento jurídico-penal.
O arguido vem pronunciado pela prática de um crime de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p.e p. pelos arts. 143.º e 145.º, nº 1, al. a) e 2, por referência ao art. 132.º, n.º 2, al. a), todos do Código Penal.
Antes de prosseguirmos, adiante-se que a referência ao art. «132.º, n.º 2, al. a)» se revela um manifesto lapso (pois faz referência a agressões perpetradas contra descendente, ascendente, adoptado ou adoptante, que aqui não é manifestamente o caso), dado que a correcta referência será à alínea b) do mesmo preceito legal (ou seja, quando o agente reside em condições análogas às dos cônjuges com a vítima).
Caso assim se não considere, sempre importaria proceder à alteração da qualificação jurídica para esta alínea, alteração esta que, porque se trata do mesmo tipo de crime e com idêntica cominação, não tem obstáculo legal e não importa a concessão de prazo para defesa (cfr. art. 358.º a contrario e art. 1.º, alínea f), ambos do Código de Processo Penal).
Neste sentido, veja-se Paulo Pinto de Albuquerque (in «Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem», 4ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, pág. 930).
*
O bem jurídico protegido pela referida incriminação é somente a integridade física, para alguns autores (neste sentido, Paula Ribeiro de Faria, in «Comentário Conimbricense do Código Penal» – Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, página 207) e também a psíquica quando tiver um reflexo objectivável relevante, como medo ou susto que causem mal-estar físico, dores de cabeça ou dificuldades respiratórias (neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, pág. 555).
O tipo objectivo deste crime ficará preenchido mediante a verificação de qualquer ofensa ao corpo ou à saúde, independentemente da dor ou do sofrimento que tenham sido causados ou de se provocar qualquer incapacidade para o trabalho.
No que respeita ao elemento subjectivo, o crime de ofensa à integridade física é um crime doloso, conforme resulta da articulação do seu conteúdo com o preceituado no artigo 13.º do Código Penal, admitindo-se o dolo em qualquer uma das modalidades referidas no artigo 14.º do mesmo código.
Por sua vez, prevê o artigo 145.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, do Código Penal que:
«1 - Se as ofensas à integridade física forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, este é punido:
a), com pena de prisão até quatro anos no caso do artigo 143.º;
(…).
2 - São susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, entre outras, as circunstâncias previstas no nº 2 do artigo 132.º»
A respeito deste preceito legal, cumpre referir que o legislador pretendeu consagrar no âmbito das ofensas corporais uma estrutura típica paralela à estabelecida no homicídio, criando um tipo qualificado de ofensas corporais com base nas circunstâncias qualificativas do art. 132.º, n.º 2 do Código Penal.
Trata-se, pois, de um tipo de culpa agravada de ofensa à integridade física em situações que sejam reveladoras de «especial censurabilidade» ou «perversidade» do agente, recorrendo o legislador, por remissão, para as circunstâncias que já havia previsto quanto ao homicídio qualificado, à técnica dos «exemplos padrão».
Quer isto dizer que essas circunstâncias não funcionam de modo automático, ou seja, o seu preenchimento não implica necessariamente a agravação do tipo penal, antes pressupondo uma valoração do julgador quanto à existência de uma especial censurabilidade ou perversidade do agente concretamente revelada na conduta por si adoptada (neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit., pág. 510).
Também como concluiu, a título meramente exemplificativo, o Tribunal da Relação de Coimbra, em Acórdão proferido em 10.12.2008, Proc. n.º 220/07.7GCACB.C1, disponível in www.dgsi.pt:
«I - A qualificação da ofensa à integridade física, tributária qualificação do homicídio no C. Penal, é efectuada através da combinação de uma cláusula genérica de agravação, prevista no nº 1 do art. 132º – a especial censurabilidade ou perversidade do agente, ou seja, um especial tipo de culpa – com a técnica dos exemplos-padrão ou exemplos típicos, enunciados no nº 2 do mesmo artigo. Os exemplos-padrão indiciam e explicitam o sentido da cláusula geral que, por sua vez, corrige o conteúdo objectivo daqueles.
II. – A verificação, no caso concreto, de um ou mais exemplos-padrão não significa, necessariamente, a realização do especial tipo de culpa e consequente qualificação do homicídio ou qualificação da ofensa à integridade física, da mesma forma que, a não verificação de um qualquer exemplo-padrão não impede a qualificação, desde logo por que o uso, n.º2 do art. 132º, da expressão “entre outras” indica que não estamos perante um elenco taxativo. Mas o que se exige é a verificação no caso concreto, de elementos substancialmente análogos aos tipicamente descritos, ou seja, que embora não expressamente previstos na lei, correspondam ao sentido, desvalor e gravidade de um exemplo-padrão
III. - A especial censurabilidade – e é o conceito de censurabilidade que fundamenta a concepção normativa da culpa – prende-se com a atitude do agente relativamente a formas de cometimento do facto especialmente desvaliosas. A especial perversidade refere-se às condutas que reflectem no facto concreto as qualidades especialmente desvaliosas da personalidade do agente.»
No que respeita ao caso dos autos, a qualificação opera por força do disposto no art. 132.º, n.º 2, alínea b) do Código Penal, que prevê que é susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a circunstância de o agente praticar o facto contra pessoa com quem o agente mantenha uma relação análoga à dos cônjuges.
Assim, tendo em consideração o acervo factual que resultou provado, dúvidas não há de que o arguido praticou o crime pelo qual vem acusado, pois agrediu fisicamente a assistente, causando-lhe dores e hematomas. Deste modo, a conduta do arguido preenche objectivamente o crime de ofensa à integridade física.
Pese embora, como se referiu, a qualificação não seja de verificação automática, julga-se que os factos ora em causa permitem concluir por uma especial censurabilidade, na medida em que o mesmo actuou contra a pessoa com quem vivia em termos idênticos aos maritais, mãe do seu primeiro filho e, sobretudo, grávida aquando da prática dos factos, qualificando assim o crime em causa.
No que tange à imputação subjectiva, é consabido que para que um indivíduo seja jurídico-penalmente responsabilizado é mister que se verifiquem os seguintes requisitos: a prática, pelo agente, de um facto típico, ilícito, e culposo, seja a título de dolo ou negligência, bem como que exista uma conexão objectiva da conduta do indivíduo à produção de um certo resultado ou evento.
No caso, face à matéria de facto dada por provada, conclui-se que o arguido agiu com dolo directo, nos termos do artigo 14.º, n.º 1 do Código Penal, tendo conhecimento e vontade de realização do facto típico, bem sabendo que ao levar a cabo a conduta supra descrita lesava o corpo da assistente, resultado esse que pretendia alcançar e que alcançou.
Nestes termos, não emergindo da factualidade considerada provada qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, mostrando-se preenchido, quer o elemento objectivo, quer o elemento subjectivo, forçoso é concluir que o arguido praticou os factos pelos quais veio pronunciado, impondo-se a sua condenação.
IV. ESCOLHA E MEDIDA DA PENA
Nos termos do art. 40.º, n.º 1 e 2 do Código Penal, a aplicação das penas visa a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, não podendo em caso algum a pena ultrapassar a medida da culpa do agente.
Conforme ensina Figueiredo Dias, in «Direito Penal Português – Parte Geral – As consequências
Jurídicas do Crime II», Coimbra Editora, Reimpressão, 2005, p. 198, a determinação da medida da pena obedece a 3 fases, que consistem:
- Na determinação da moldura penal (medida legal ou abstracta da pena) aplicável ao caso;
- Na escolha da espécie da pena que efectivamente deve ser imposta;
- Na determinação da medida judicial ou concreta da pena.
Na determinação da medida da pena, têm-se em contra critérios de prevenção geral e especial.
Pela prevenção geral (positiva) faz-se apelo à consciencialização geral da importância social do bem jurídico tutelado e ao restabelecimento ou revigoramento da confiança da comunidade na efectiva tutela penal dos bens tutelados. Com a prevenção especial, pretende-se a ressocialização do delinquente (prevenção especial positiva) e a dissuasão da prática de futuros crimes (prevenção especial negativa) – cfr., a título meramente exemplificativo, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 10.03.2010, in www.dgsi.pt.
Cumpre decidir.
a) Da moldura legal ou abstracta
O crime de ofensa à integridade física qualificada é punível com a pena de prisão até quatro anos – art. 145.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal.
Prevendo o preceito incriminador em causa apenas a punição com pena de prisão, não há lugar à escolha da pena, nos termos do art. 70.º do Código Penal, havendo que condenar o arguido em pena de prisão.
*
b) Determinação da medida concreta da pena
Como supra se adiantou, no que concerne à determinação da medida da pena concretamente a aplicar, nos termos do disposto no art. 71.º, n.º 1, do Código Penal, será feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção geral e especial, devendo o Tribunal atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do elemento do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele.
Constituindo a culpa o limite inultrapassável da medida da pena (art. 40.º, n.º 2, do Código Penal), e decorrendo o seu limite mínimo de considerações ligadas à prevenção geral, a medida exacta da pena será fruto das exigências de prevenção especial.
O bem jurídico protegido pela norma violada, a necessidade de resposta a essa violação e a personalidade do agente, manifestada no facto, hão-de influir decisivamente na medida concreta da pena.
No caso sub judice, cabe ponderar globalmente:
- O grau de ilicitude - são elevadas as necessidades de prevenção geral, atento o elevado número de crimes desta natureza na comunidade. A danosidade é mediana, pois embora as lesões causadas à assistente não tenham deixado sequelas físicas futuras, a mesma encontrava-se grávida à data da prática dos factos, sendo especialmente vulnerável e podendo ter existido consequências gravosas e irreversíveis. Ademais, causaram na assistente um sentimento de ansiedade, nervosismo e medo – art. 71.º, n.º 2, alínea a);
- A intensidade do dolo – que é elevada, pois o arguido actuou com dolo directo - 71.º, n.º 2, alínea b); - Os sentimentos manifestados no cometimento do crime, que militam contra o arguido, dado não existir qualquer causa de justificação ou desculpação - art. 71.º, n.º 2, alínea c);
- As condições pessoais do arguido – que militam a seu favor, dado que o mesmo se encontra pessoal, familiar e profissionalmente inserido – art. 71.º, n.º 2, alínea d);
- A conduta anterior ao facto e posterior a este – o arguido tem um antecedente criminal, por facto de idêntica natureza, perpetrado contra a mesma vítima e não reconheceu o desvalor da sua conduta, insistindo que os mesmos não corresponderam à verdade;
- A preparação para manter uma conduta lícita – que ainda se afigura existir, porquanto, embora o mesmo não tenha reconhecido os factos, os mesmos remontam a 2012, ou seja, há mais de 10 anos e num contexto familiar que não mais existe – art. 71.º, n.º 2, alínea f).
Tudo visto e ponderado, entende-se como justo e proporcional condenar o arguido na pena de 13 (treze) meses de prisão.
*
c) Da substituição ou suspensão da pena de prisão
Tendo em conta a pena de prisão aplicada ao arguido, cumpre agora avaliar da possibilidade da sua substituição por multa (art. 45.º do Código Penal), por trabalho a favor da comunidade (art. 58.º do Código Penal), da possibilidade de suspensão da execução da pena de prisão decretada (art. 50.º do Código Penal) ou, sendo aplicada pena efectiva, do seu cumprimento em regime de permanência na habitação (art. 43.º do Código Penal).
Nos termos do art. 45.º, n.º 1 do Código Penal, a pena de prisão aplicada em medida não superior a um ano é substituída por pena de multa ou por outra pena não privativa da liberdade, excepto se a execução da pena de prisão for exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes.
No caso concreto, a pena de prisão é superior a um ano, pelo que não é legalmente admissível a sua substituição por pena de multa.
Não é aplicável o art. 46.º do Código Penal, por falta de preenchimento dos pressupostos legais.
Também não é equacionável a pena de prisão substituída por trabalho a favor da comunidade (art. 58.º do Código Penal), na medida em que o arguido não reconheceu a sua conduta, nem o desvalor do seu comportamento, mais invocando nunca ter agredido fisicamente a assistente quando o seu registo criminal comprova o inverso.
Resultou, pois, que o arguido faltou à verdade nas suas declarações. E não obstante haja quem defenda que os arguidos têm direito a mentir na audiência de julgamento, o Tribunal com tal não concorda. É certo que os mesmos não estão obrigados a falar, e falando, faltando à verdade não incorrem em responsabilidade criminal, mas nem por isso a sua conduta é inconsequente.
Estamos, a este respeito, com Fernando Gama Lobo, in Código do Processo Penal Anotado, Almedina, 3.ª Edição, pág. 88, que defende que: «Importa não confundir este direito ao silêncio, com o por vezes invocado “direito de mentir”. Não existe o “direito” de mentir em nenhum ordenamento civilizacional, seja ele jurídico, social, religioso, etc…a mentira, qualquer que seja o ângulo de análise, revela sempre uma qualidade desvaliosa do carácter da pessoa, o que não é irrelevante em matéria de censura penal. Logo, não é possível falar da mentira como um direito. Se o arguido mentir e for apanhado a mentir, deverá tirar-se disso as consequências penais mais agravadas, ao nível da escolha e medida da pena que lhe for aplicada (v. art. 71.º-2-c)-d)).
Assim, concluiu-se que a substituição da pena de prisão por trabalho a favor da comunidade não realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Prescreve, contudo, o art. 50.º, nº 1 do Código Penal, «o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição».
Para além da medida concreta da pena de prisão aplicada, é pressuposto material da suspensão da execução da pena de prisão a formulação de um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento futuro do arguido, no sentido de que a simples censura do facto e a ameaça da prisão se mostram adequadas a dissuadi-lo da prática de futuros crimes, ou seja, parte-se da fundada expectativa de que o arguido, considerado merecedor de confiança, há-de sentir a condenação como uma advertência e não voltará a delinquir.
No caso, o arguido foi condenado na pena única de treze meses de prisão estando, portanto, preenchido o pressuposto da pena não superior a 5 anos – cfr. art. 50.º, n.º 5 do Código Penal.
Pese embora o arguido tenha negado a prática dos factos, entende-se que é possível emitir um juízo de prognose positivo em relação ao mesmo, no sentido de que a mera ameaça de cumprimento da pena de prisão será suficiente para o manter afastado do crime, para tal considerando que não se conhece a prática de qualquer outro ilícito posterior ao do ora em causa, o facto de o arguido e a assistente não mais residirem em condições análogas às dos cônjuges.
Atentos os vectores essenciais que norteiam o instituto da suspensão da execução da pena de prisão, quais sejam a personalidade do agente, as suas condições de vida, a sua conduta antes e após o crime, as circunstâncias deste e o prognóstico favorável (realização, de forma adequada e suficiente, das finalidades da punição com a ameaça da prisão), e atenta a matéria de facto dada por provada, entende-se que o arguido deve beneficiar da suspensão da execução da pena de prisão, o que se determina.
*
Nos termos do nº 5 do referido art. 50.º do Código Penal, o período de suspensão é fixado entre um e cinco anos.
In casu, julga-se adequado suspender a execução da pena de prisão por igual período ao da condenação (treze meses).
Não obstante, nos termos do art. 51.º, n.º 1 do Código Penal, a suspensão da execução da pena de prisão pode ser subordinada ao cumprimento de deveres impostos ao condenado e destinados a reparar o mal do crime.
No caso, a gravidade dos factos reclama a sujeição do arguido ao cumprimento de deveres e de regras de conduta, só assim se logrando adequar a suspensão da execução da pena de prisão às finalidades e necessidades da punição em concreto.
Assim, ao abrigo do disposto no art. 51.º, n.º 1, al. c) do Código Penal, o Tribunal determina a subordinação da suspensão da execução da pena de prisão ao cumprimento da obrigação de entregar à assistente a quantia que infra se determinará, no prazo da suspensão, devendo fazer prova do aludido pagamento nos autos.
Face ao exposto, o Tribunal decide suspender a pena de prisão de treze meses aplicada ao arguido, por igual período, subordinada à obrigação da entrega da quantia que infra se determinará.
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V. DO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
A assistente deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido, peticionando o pagamento de €40.000,00, a título de danos não patrimoniais.
De acordo com o disposto no art. 129.º do Código Penal, «A indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil». Porém, o princípio da adesão constante do art. 71º do Código de Processo Penal impõe que o mesmo seja deduzido no processo penal, com excepção dos casos previstos no art. 72.º do Código de Processo Penal.
A fonte da indemnização será, naturalmente, a responsabilidade civil extracontratual, regulada no art. 483.º, n.º 1 do Código Civil, fundada na prática de crime, nos termos do qual a obrigação de indemnizar decorrente da responsabilidade civil implica:
(i) A existência de um facto voluntário do agente;
(ii) Que o facto do agente seja ilícito, por violação de um direito subjectivo de outrem ou pela violação de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios;
(iii) A verificação de um nexo de imputação subjectiva do facto ao lesante (culpa);
(iv) Que à violação do direito subjectivo ou da lei sobrevenha um dano e, por último,
(v) Que haja um nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano sofrido pela vítima (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 4ª. Ed., pág. 471).
No caso:
- O arguido voluntariamente, pois a sua conduta – agressão à assistente - constituiu uma forma de conduta humana, controlável e dominável pela vontade;
- O facto ilícito é a prática do crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelo art. 145.º, nº 1, al. a) e n.º 2, por referência ao art. 132.º, nº 1 e 2, alínea b), todos do Código Penal.
- No que respeita à culpa, está provado que o arguido actuou com dolo directo;
- Relativamente aos danos, está demonstrado que a assistente sofreu danos físicos (lesões sofridas) e morais (decorrentes das dores, do medo e nervosismo);
- Por último, é necessária a existência de nexo de causalidade entre a conduta do agente e os danos, o que se verifica, pois a conduta do arguido foi causa directa e necessária dos danos sofridos pela assistente.
Segundo o disposto no artigo 496.º do Código Civil, os danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, devem ser indemnizados.
No Acórdão de 07.06.2011, Proc. n.º 288/2002.L1.S1, disponível in www.dgsi.pt, o Supremo Tribunal de Justiça de Justiça definiu os danos não patrimoniais como sendo «os prejuízos insusceptíveis de avaliação pecuniária – porque atingem bens que não integram o património do lesado – cuja obrigação ressarcitória assume uma natureza marcadamente compensatória; assim o quantitativo a fixar há de ser o bastante para contrapor às dores e sofrimentos ou, ao menos, minorar de modo significativo os danos delas provenientes)».
Baixando ao caso concreto, deriva da matéria de facto provada que a conduta dolosa do arguido, de cariz ilícito, foi causa directa e necessária do sofrimento físico e emocional da assistente/demandante, traduzido em dor, receio e nervosismo.
Consequentemente, a conduta do arguido/demandado causou danos à integridade física e moral à assistente/demandante, valor jurídico legalmente tutelado, inter allia, pelo disposto nos arts. 25.º da Constituição da República Portuguesa e 70.º do Código Civil. Tais danos têm natureza não patrimonial, que atinge uma significativa relevância e, portanto, são merecedores da tutela reconstitutiva do Direito – cfr. art. 496.º, n.º 1 do Código Civil.
No que respeita ao montante da indemnização, o n.º 4 do supra referido preceito legal prescreve que:
«4 - O montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.º; no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos dos números anteriores.»
No apuramento do quantum indemnizatório por danos morais, e diferentemente da avaliação dos danos patrimoniais, o Tribunal não vai verificar quanto é que as coisas valem, mas sim encontrar o valor necessário para obter aquelas satisfações que constituem a reparação indirecta possível.
O dinheiro não tem a virtualidade de apagar o dano, mas este pode contrabalançado «mediante uma soma capaz de proporcionar prazeres ou satisfações à vítima, que de algum modo atenuem, ou em todo o caso, compensem esse dano» - neste sentido, vide o Acórdão do Tribunal da Relação de ..., de 06.12.2017, Proc. n.º 378/15.1PEVFX.L1-3, disponível in www.dgsi.
Desta feita, cumpre ao Tribunal arbitrar um valor ressarcitório susceptível de compensar os danos sofridos pelos demandantes, de acordo com o disposto nos artigos 494.º, aplicável ex vi artigo 496.º, n.º 4, e 566.º, n.º 3, todos do Código Civil.
Com efeito, terá de ser levado em linha de conta, por um lado, a intensidade da ilicitude da conduta do arguido/demandado, a sua culpa e a suas condições socioeconómicas e, por outro, as consequências dali advenientes (já acima abordadas) e as condições socioeconómicas da assistente.
Por outro lado, importará não olvidar que o valor peticionado - €40.000,00 – tinha como referência toda a factualidade constante da acusação pública/particular, tendo também como vítimas os seus filhos menores, o que não foi considerado no despacho de pronúncia.
Tudo ponderado, o Tribunal entende ser justo e adequado atribuir a compensação de 2.000,00€ (dois mil euros) à assistente/demandante, em virtude dos danos não patrimoniais por esta sofridos.
Deste modo, há que julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido pela assistente/demandante, condenando o arguido a pagar a quantia de €2.000,00 (dois mil euros).”.

3.2. Da apreciação do recurso interposto pelo arguido
Apreciemos, agora as questões suscitadas pelo arguido no recurso e já assinaladas em II., ponto 2. deste Acórdão, começando por apreciar a impugnação da matéria de facto[1].

3.2.1. Impugnação da matéria de facto
No ordenamento jurídico penal português encontram-se previstas duas formas distinta de impugnar a matéria de facto: uma pela via ampla (artigo 412.º, n.ºs 3 e 4 do CPP) e outra pela via restrita (artigo 410.º, n.º 2, alíneas a) b) e c) do CPP).
A primeira consiste na reapreciação da prova gravada e tem de ser invocada pelo recorrente, pois não é de conhecimento oficioso, recaindo sobre o recorrente o duplo ónus de especificação previsto no artigo 412.º, n.ºs 3 e 4 do CPP. A segunda designada por impugnação restrita, que consiste na invocação dos vícios previstos nas alíneas a), b) e c) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP que, aliás, são de conhecimento oficioso.
O recorrente pretendeu utilizar a primeira daquelas formas, pois embora não o refira expressamente, ao impugnar a matéria de facto dada como provada referente aos atos praticados contra a assistente, nos termos em que o fez – convocando a prova por declarações e testemunhal, produzida na audiência de julgamento e ao criticar a apreciação/valoração dessa prova, feita pelo tribunal recorrido, o arguido/recorrente quis fundamentar essa impugnação no erro de julgamento.
A impugnação ampla da decisão proferida sobre a matéria de facto depende da observância dos requisitos consagrados nos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do CPP, ou seja:
«(...) 3 – Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
4 – Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação. (...)».
Ocorrendo a impugnação da matéria de facto, com observância das regras acabadas de mencionar, o Tribunal, conforme dispõe no n.º 6 do artigo 412.º do CPP, «procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta de verdade e a boa decisão da causa
O recorrente impugnou os pontos 3., 4., 5., 6., 7. e 12. a 15. da matéria dada como provada. O recorrente, por outro lado, apesar de não ter observado cabalmente o ónus de especificação previsto na alínea b) do n.º 3 do artigo 412.º do CPP, pois que, não indicou, como devia ter feito, nas conclusões que extraiu da motivação do recurso, as passagens da gravação das declarações e depoimentos em que se funda a impugnação, fê-lo no corpo da motivação o recurso. Entendemos neste domínio, não se dever ser demasiado formalista e, não se decidindo, como não se decidiu, pelo convite ao aperfeiçoamento, dever-se-á considerar cumprido este ónus.
Em todo o caso, no âmbito do artigo 412.º, n.º s 3 e 4 do CPP encontramo-nos no domínio do erro na “aquisição” da prova, que ocorre quando o Julgador perceciona mal a prova – porque o conteúdo dos depoimentos não corresponde ao que, efetivamente, foi dito por quem os prestou.
No recurso interposto, todavia, não resulta ter o Tribunal compreendido mal aquilo que foi dito pelas testemunhas, arguido e assistente ouvidos em julgamento, pelo contrário o Julgador percecionou corretamente o declarado durante a audiência de julgamento.
Tanto quanto é possível descortinar da peça recursiva, o que dela emerge, é uma discordância do recorrente relativamente à convicção alcançada pelo julgador, pretendendo que o tribunal a quo julgasse de acordo com a própria convicção do recorrente, sendo que esse ato pertence em exclusivo ao tribunal que apreciou a prova segundo as regras da experiência e a sua livre convicção (cf. artigo 127.º do CPP).
Em bom rigor, o recorrente não indica prova que imponha decisão diversa da recorrida, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b) do CPP. Ou seja, o recorrente embora contraponha à convicção do julgador uma outra convicção diferente esta não tem a aptidão de provocar uma modificação na decisão de facto.
O recorrente teria de desenvolver um quadro argumentativo demonstrativo, através da análise das provas por si especificadas, que a convicção formada pelo julgador, relativamente aos pontos de facto impugnados, era impossível ou desprovida de razoabilidade. É esse o sentido da expressão "provas que impõem decisão diversa da recorrida'', constante da alínea b) do n.° 3 do artigo 412.º do CPP, que consubstancia um ónus imposto ao recorrente, no sentido de ter de demonstrar que as provas produzidas impõem uma decisão diferente da proferida. "Impor" decisão diferente não significa "admitir" uma outra decisão diferente. É mais do que isso e quer dizer que a decisão proferida, face às provas, não é possível ou não é plausível.
Na decisão recorrida é explicado de forma lógica e plausível a razão pela qual o tribunal considerou apurada a bofetada desferida pelo arguido na face direita da assistente e a restante matéria com ela conexionada, a saber:
- Nas declarações da assistente que a confirmou;
- No auto de notícia, cujo conteúdo foi confirmado pelos dois militares da GNR ouvidos em julgamento, de onde resulta «(…) que a denunciante tinha um vermelhão visível, na face, do lado direito (…)»
- Nas declarações da testemunha FF (médica de profissão e que não mantém contacto com a assistente desde 2013) de onde resulta ter-lhe a assistente telefonado a relatar o sucedido (agressão) e a perguntar se podia pernoitar em sua casa, ao que a mesma acedeu. Dirigindo-se a assistente à casa da testemunha esta constatou que a queixosa apresentava vermelhidão na face.
- Nas declarações da testemunha KK que referiu ter estado com a assistente no dia em causa apresentando a mesma o rosto vermelho e mostrando-se muito nervosa.
Depois na sentença recorrida acrescenta-se que o arguido:
“Negou ter existido qualquer confronto físico, mas tão só verbal, afirmando de forma veemente nunca ter agredido fisicamente a assistente. Porém, as suas declarações não mereceram qualquer crédito. Em primeiro lugar, porque infirmado pela prova produzida e a que supra se fez referência. Em segundo lugar, porque o arguido referiu nunca ter agredido fisicamente a assistente, sendo que o mesmo conta já com um registo criminal por facto da natureza idêntica, perpetrado contra assistente[2]. Por esta razão, as declarações sempre resultariam minadas, por manifesta falta de verdade. Em terceiro lugar, porque quando questionado sobre a razão pela qual, assim sendo, a GNR foi chamada ao local, o arguido referiu que tal sucedeu porque a assistente era advogada e tinha contactos, o que não tem qualquer lógica, nem razão de ser, tanto mais quando os militares que se deslocaram ao local nem demonstraram conhecer a assistente ou ter com a mesma qualquer relação. Também quando questionado sobre a razão pela qual a mesma apresentou face vermelha, o mesmo referiu genericamente que a arguida tinha uma anemia, pelo que sempre que ficava nervosa, levantava a voz ou fazia algum esforço físico ficava com o rosto vermelho (utilizando a expressão «rosetas»). Ora, considerando que a assistente tinha uma vermelhidão de apenas um lado da cara e não de ambos, não se alcança como é que a mesma pôde ter como causa uma pretensa anemia.”.
As restantes provas, como o depoimento do filho do casal e outros segmentos das declarações da assistente, foram, também, analisadas pelo Tribunal a quo, que justificou a sua desconsideração parcial.
Nenhuma prova relevante e decisiva deixou de ser analisada e apreciada pelo julgador em 1.ª instância e a que foi considerada não coloca em causa o entendimento plasmado na decisão recorrida nem os elementos de prova impõem uma decisão diversa da proferida.
Mesmo existindo duas versões dos factos encontrando-se a decisão do Julgador, devidamente fundamentada, e consubstanciando esta uma solução plausível, ela é inatacável, pois foi proferida de acordo com o princípio da livre apreciação, ínsito no artigo 127.º do CPP.
O poder da Relação para alterar a matéria de facto constitui apenas um remédio a utilizar nos casos em que os elementos constantes dos autos apontam inequivocamente para uma resposta diferente da acolhida pela 1.ª instância. Já não nas situações em que, existindo versões contraditórias, o tribunal recorrido, beneficiando da oralidade e da imediação, firmou a sua convicção numa delas (ou na parte de cada uma delas que se apresentou como coerente e plausível). Não se evidenciando no juízo alcançado qualquer atropelo das regras da lógica, da ciência e da experiência comum, a resposta dada pela 1.ª instância é de manter, por ter suporte no artigo 127.º do CPP.
Invoca, ainda, o recorrente que, perante a existência de versões contraditórias/opostas, da assistente e a do arguido, o Tribunal a quo teria de confrontar-se com a dúvida sobre se os factos imputados ao arguido efetivamente ocorreram, dando esses factos como não provados, com a consequente absolvição do arguido e que ao decidir, em sentido diverso, condenando o arguido, o Tribunal a quo violou o princípio do in dubio pro reo.
O princípio in dubio pro reo, decorre do princípio constitucional da presunção da inocência previsto no artigo 32.º, n.º 2 da CRP, e constitui um limite normativo do princípio da livre apreciação da prova, na medida em que impõe e ao julgador que, quando confrontado com a dúvida, razoável e fundada, em matéria de prova, resolva tal dúvida em sentido favorável ao arguido.
É entendimento jurisprudencial, pacificamente aceite, apenas poder o tribunal de recurso censurar o não uso do princípio in dubio pro reo se da decisão recorrida resultar ter o tribunal a quo chegado a um estado de dúvida insanável e, perante essa dúvida, optar por decidir em sentido desfavorável ao arguido, ou se, apreciando a impugnação ampla da matéria de facto, por erro de julgamento, for levado a considerar que, em face da prova produzida, essa dúvida – razoável e fundada – deveria suscitar-se no espírito do julgador, impondo-se que a resolvesse em sentido favorável ao arguido.
Do texto da sentença recorrida, não resulta ter-se o julgador confrontado com qualquer dúvida sobre os factos dados como provados e que são objeto de impugnação no recurso. Ao invés, resulta da motivação da decisão de facto ter o Tribunal a quo sedimentado a convicção segura de o arguido ter praticado os factos em questão.
O Tribunal recorrido constatou a existência de uma relação conflituosa entre o arguido e a assistente, patente das declarações prestadas pela assistente, arguido e filho destes, do teor da sentença e do acórdão proferidos no âmbito do processo n.º 652/14.... e, ainda, da certidão extraída do processo de regulação das responsabilidades parentais dos filhos menores do casal (fls. 415 a 464). No caso a valorização das declarações da assistente em detrimento das declarações prestadas pelo arguido foi reforçada por outros meios de prova, que conduziram a um juízo de certeza que foi para além da dúvida razoável surgida perante o confronto das declarações da assistente e do arguido.
Em relação aos factos em apreciação, ocorridos em 14.11.2012, consta que os militares da GNR se deslocaram ao local viram uma vermelhidão na face do lado direito da assistente, marca essa confirmada pelas testemunhas FF e KK que estiveram na presença da assistente nesse dia já após ter sido desferida a bofetada e em momento posterior ao contacto mantido com os militares da GNR.
Assim, quanto a estes factos, verificando-se que a assistente apresentava marcas de agressão na face compatíveis com uma bofetada, atestadas por quatro testemunhas (marca essa que permaneceu no rosto da assistente, pelo menos durante parte desse dia), essa circunstância reforçou as declarações da vítima em detrimento das do arguido, não tendo o Tribunal tido quaisquer dúvidas da agressão perpetrada pelo agente sobre a então companheira.
Nesta conformidade, impõe-se concluir não existir violação, por parte do Tribunal a quo, do princípio in dubio pro reo.
Por conseguinte, também nesta parte, improcede o recurso, mostrando-se fixada definitivamente a matéria de facto tal como acolhida pelo Julgador em 1.ª instância.

3.2.2. Impugnação da matéria de direito
Sedimentada que se encontra a matéria de facto, dela resulta estarem preenchidos os elementos objetivos e subjetivos do tipo de crime pelo qual o arguido foi pronunciado e condenado pelo que a qualificação jurídica dos factos se encontra corretamente realizada.
Por outro lado, atenta, ainda, essa materialidade apurada, a moldura abstrata da pena (1 mês a 4 anos de prisão) e as circunstâncias relevantes para a determinação da medida concreta da pena, em particular a conduta posterior ao facto (o agente ter registo criminal pela prática de um crime da mesma natureza; não ter confessado ou revelado arrependimento[3] - artigo 71.º, n.º 2, alínea e) do CPP), as suas condições pessoais (ser engenheiro agrónomo sendo-lhe exigível, face ao seu estatuto social, um outro comportamento o que reclama, no caso concreto, um reforço das necessidades de prevenção especial) e as elevadas necessidades de prevenção geral reclamadas pelo tipo de crime (ofensa à integridade física perpetrada no âmbito de relação análoga à dos cônjuges), considera-se o quantum da pena fixada em 1.ª instância proporcionado, não se justificando a intervenção corretiva da Relação, sendo de manter a decisão recorrida.

III. DECISÃO
Nestes termos e com os fundamentos expostos:
1. Nega-se provimento ao recurso interposto pelo arguido e em consequência, mantem-se na íntegra, a sentença recorrida.
2. Custas pelo arguido/recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC (artigos 513.º, n.ºs 1 e 3 e 514.º, n.ºs 1 do CPP e artigo 8.º, n.º 9 e tabela III anexa, do Código das Custas Processuais).

Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 94.º, n.º 2 do CPP consigna-se que o presente Acórdão foi elaborado pela relatora e integralmente revisto pelos signatários.
Évora, 8 de novembro de 2022.
Beatriz Marques Borges – Relatora
João Carrola
Maria Leonor Esteves

___________________________________
[1] Seguiremos de perto quanto a este ponto a fundamentação utilizada no Acórdão desta RE de 13.9.2022 proferido no P. 698/17.0PBSTR.E1 e relatado por Fátima Bernardes.
[2] À data do julgamento na sessão de 30.10.2020 já o arguido havia sido condenado por decisão transitada em julgado proferida no processo n.º 652/14...., que correu termos no Juízo de Instância Criminal de ... –Juiz ..., por ofensas corporais perpetradas contra a aqui assistente, não podendo desconhecer a relevância dessa circunstância, designadamente para efeitos da determinação da medida da pena (artigo 71.º, n.º 2, alínea e) do CPP).
[3] Embora o arguido tenha o direito ao silêncio será utilizado em seu beneficio, no momento da fixação da medida concreta da pena, a circunstância de confessar integralmente e sem reservas os factos e de revelar verdadeiro arrependimento.