Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
526/16.4 GFSTB.E1
Relator: MARIA FILOMENA SOARES
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
IMPUTAÇÕES GENÉRICAS
ABSOLVIÇÃO
Data do Acordão: 11/22/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário:
I - Não são factos susceptíveis de fundamentar um juízo de censura jurídico-penal as imputações genéricas em que não se indica ou concretiza o lugar, o tempo, a motivação, o grau de participação ou as circunstâncias relevantes à tipificação da acção, mas, outrossim, apenas ou tão só um conjunto fáctico não concretizado, vago ou indeterminado.

II - E, se tais factos se têm por não escritos, não há factos que tenham a virtualidade para preencher a tipicidade do ilícito em causa, e, consequentemente, sobre eles não pode ser declarada a prescrição do respectivo procedimento criminal, prescrição que se há-de referir, naturalmente, à factualidade com relevância normativa, com relevância jurídico-penal.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Criminal (1ª Subsecção) do Tribunal da Relação de Évora:

I

No âmbito do processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, nº 526/16.4 GFSTB, do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, Juízo Local Criminal de Setúbal, Juiz 1, mediante acusação pública, precedendo pedido de indemnização civil [deduzido pela ofendida/assistente/demandante contra o arguido/demandado, peticionando deste o pagamento da quantia de € 15 000,00, a título de compensação dos prejuízos morais sofridos] e bem assim contestação, foi submetido a julgamento o arguido JC, (devidamente identificado a fls. 272 dos autos), e por sentença proferida e depositada em 27.11.2017 foi decidido:
“(…)
a) Declarar extinto o procedimento criminal atinente aos factos praticados desde 1966 e até 2000, por prescrição - artigo 118º, nº 1 b) do Código Penal;

b) Condenar o arguido JC, pela prática de um crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152º, n.º 1 a) e nº 2 do Código Penal na pena de três anos de prisão;

c) Suspender a pena de prisão aplicada por igual período (artigos 50º nº 1 e nº 5 e 53º do Código Penal) com regime de prova, assente num plano de reinserção social.

d) Aplicar ao arguido a pena acessória de proibição de contactos com a ofendida prevista no artigo 152º, nº 4 do Código Penal, pelo período de 3 (três) anos;

e) Condenar o arguido nas custas criminais do processo, fixando-se em 2 UC`s a taxa de justiça,

f) Condenar o arguido / demandado a pagar à demandante civil LC a quantia de € 5.000,00 (cinco mil euros) a título de danos morais, sem juros, por estar actualizada, absolvendo-o do mais peticionado;

g) Condeno a demandante e o demandado cível nas custas do pedido de indemnização civil, na proporção do decaimento (artigo 523.º, do Código de Processo Penal; artigo 446.0).
(…)”.
Inconformado com esta decisão, dela recorreu o arguido, extraindo da respectiva motivação de recurso as seguintes conclusões:

1. A condenação do Recorrente, nos termos plasmados na sentença recorrida, é uma medida repressora sustentada pelo livre arbítrio do julgador;

2. A matéria de facto dada como provada carece de sustentabilidade, fruto da inexistência de claros elementos de prova que permitam condenar o arguido nos termos insertos na sentença recorrida;

3. Ocorreu a violação dos mais elementares direitos de defesa do arguido, atento o pendor genérico e impreciso da factualidade que lhe está imputada na acusação e o seu evidente desenquadramento espácio-temporal;

4. Considerando que o procedimento criminal, concernente aos factos ocorridos entre 1966 e 2000 tem-se por prescrito, o Tribunal Recorrido nem sequer devia ter apreciado tal matéria de facto e integrá-la na factualidade assente no aresto recorrido;

5. Considerando o hiato temporal ocorrido entre o ano de 1966 e o ano 2000, devem ser expurgados da sentença recorrida os factos já prescritos mas que o Tribunal "a quo" deu como provados e que constam nos pontos 4), 5), 9) e 12) da fundamentação de facto;

6. No ponto 6) dos factos provados não se alcança a que data se refere o Tribunal Recorrido quando faz alusão "Também desde aquela data, ainda que em dias não apurados ( ... )"

7. Presumindo-se que o Tribunal Recorrido esteja a aludir ao lapso temporal indicado no ponto 4) dos factos provados, os factos indicados no ponto 6) devem se ter também por prescritos, uma vez que segundo a assistente todo o chorrilho de injurias e ameaças descritas no ponto 6) dos factos provados ocorreram antes do ano 2000, durante o período em que o casal residia e trabalhava em Lisboa, ou seja muito antes do arguido ter passado a residir sozinho em Alvarenga, que ocorreu a partir do ano 2000, conforme resulta do ponto 22) dos factos assentes (cfr. acta de sessão de julgamento de 18110/2017- 1."Parte do Depoimento da Assistente - Duracão: 45 minutos e 56 segundos - passagens:00:15:20 a 00:19:30: 00.19:50 a 00:29:50: 00:29:50 a 00:30:15: 00:36:00 a 00:45:35).

8. Por conseguinte também o aludido no ponto 6) dos factos provados da sentença recorrida devem ter-se por prescritos:

9. E igual raciocínio, se aplica ao facto descrito do ponto 7) dos factos provados, porquanto, o único relato que a Assistente faz de o arguido ter dirigido tais expressões é alusivo ao período anterior ao ano 2000 (cfr. acta de sessão de julgamento de 18110/2017­1." Parte do Depoimento da Assistente - Duracão: 45 minutos e 56 segundos - passagem:00:40:10 a 00:45:35).

10. O ponto 8) dos factos provados, encontra-se desprovido do devido enquadramento espácio-temporal, tendo natureza imprecisa e genérica, em clara ofensa ao princípio da legalidade e da tipicidade, violando, ademais, o disposto nos artigos 3.°, 4.°, 283.°, n.º 3, alínea b) do Código de Processo Penal:

11. Ainda que tal matéria tenha sido debatida em julgamento, não foi confirmada por qualquer das testemunhas que prestaram depoimento, tendo somente a Assistente feito alusão vaga ao mesmo, mas muito longe da sua cabal concretização (cfr. acta de sessão de julgamento de 18/10/2017 - 1." Parte do Depoimento da Assistente - Duracão: 45 minutos e 56 segundos - passagem: 00:30:00 a 00:30:301/ 2." Parte do Depoimento da Assistente - Duracão: 53 minutos e 51 segundos - passagem: 00:03:30 a 00:05:30).

12. O ponto 10 dos factos provados não constitui gravidade passível de integrar o crime de violência doméstica e não pode constituir fundamento para qualificar penalmente a conduta do arguido:

13. A matéria de facto assente no ponto 11) dos factos provados ocorreu há 25 anos conforme é confirmado pela própria Assistente (cfr. acta de sessão de julgamento de 18/10/2017 - 1." Parte do Depoimento da Assistente - Duracão: 45 minutos e 56 segundos ­passagem: 00:30:00 a 00:30:30/ 2." Parte do Depoimento da Assistente - Duracão: 53 minutos e 51 segundos - passagem: 00:03:30 a 00:05:301. pelo que, a responsabilidade criminal respeitante à prática de tais factos encontra-se assim igualmente prescrita:

14. Tal ponto deve ser excluído dos factos provados da fundamentação de facto da Sentença recorrida;

15. O facto alusivo no ponto 13 dos factos provados é o único que, tanto na acusação, como na sentença se encontra devidamente concretizado e enquadrado no espaço e no tempo, mas que o arguido contrariou através do depoimento da testemunha RC, filho comum do arguido e assistente, que estava presente na casa de morada de família do casal na data da ocorrência do aludido facto, tendo demonstrado que o arguido não iniciou qualquer discussão com a assistente, nem tão pouco, de forma intencional abriu "( ... ) a porta do frigorífico e atirou para o chão todos os alimentos que este continha no seu interior" (cfr. acta de sessão de julgamento de 02110/2017 - Depoimento da testemunha RC - Duracão: 01 hora 05 minutos e 27 segundos - passagem:00:13:15 a 00:17:40).

16. Este facto não deve ser considerado provado e ainda que o seja não é passível de assumir gravidade para imputar ao arguido a prática de qualquer ilícito criminal, pelo que não deve servir de base para condenar o arguido pela prática do crime que lhe havia sido imputado na Acusação;

17. O ponto 14 dos factos provados tem natureza meramente conclusiva e não pode ser aferido de forma isolada e sem a prévia concretização dos factos que, dentro dos limites estabelecidos pelo prazo prescricional, deviam constar na acusação, sendo manifestamente inócuo e deve ser declarado como não escrito;

18. Não é feita prova das conclusões vertidas no ponto 15) dos factos provados da Sentença;

19. Não se encontram demonstrados os elementos subjectivos do tipo de crime imputado ao arguido e invocado nos pontos 16 e 17 da fundamentação de facto, uma vez que resulta demonstrado que o arguido não se encontra na posse de todas as suas faculdades mentais, manifestando períodos de falta de lucidez o que acaba por também por resultar evidente ao avaliarmos as breves declarações que o arguido prestou em sede de julgamento (cfr. acta de sessão de julgamento de 18/10/2017 - 2." Parte do Depoimento da Assistente - Duracão: 53 minutos e 51 segundos - passagem: 00:41 :00 a 00:41:30). (cfr. acta de sessão de julgamento de 02110/2017 - Depoimento da testemunha RC - Duracão: 01 hora 05 minutos e 27 segundos - passagem: 00:03:50 a 00:10:001. (cfr. acta de sessão de julgamento de 25/09/2017 - Depoimento do arguido - Duracão: 14 minutose 16 segundos - passagens: 00:00:01 a 00:02:47 e 00:07:30 a 00:14:16).

20. Não se pode concluir que em relação a factos que, eventualmente, terão ocorrido mais recentemente, o arguido tivesse agido de forma livre, deliberada e consciente, o que é passível de afastar a culpa pela prática de algum facto passível de, abstractamente, consubstanciar o ilícito criminal de que é acusado;

21. Não subsistem elementos de prova passíveis de considerar assente o ponto 27) dos factos provados;

22. Ademais, o facto descrito no ponto 27) não assume um grau de gravidade e censurabilidade passível de responsabilidade criminal;

23. O ponto 28) padece de manifesta obscuridade;

24. Em relação a esse facto, o recorrente jamais podia exercer cabalmente o seu direito de defesa, uma vez que não é concretizado, ainda que aproximadamente, a data em que ocorreram os factos;

25. O ponto 29) respeita a um lapso temporal de tal maneira extenso que afasta qualquer viabilidade para que o arguido se pudesse pronunciar, em sede de defesa acerca do mesmo;

26. Os factos insertos nos pontos 30) e 31) não são passíveis de integrar o crime de violência doméstica previsto no artigo 152.° do Código Penal;

27. O ponto 32, presumindo-se que seja alusivo a factos ocorridos a partir de 2010, não se encontra demonstrado, atentas as declarações da assistente, não concretizadoras de qualquer dos factos descritos no ponto 6) dos factos provados (cfr. acta de sessão de julgamento de 18110/2017 - 2." Parte do Depoimento da Assistente - Duracão: 53 minutos e 51 segundos - passagem: 00:31 :00 a 00:33:00l.

28. Andou mal o Tribunal "a quo" ao elencar como provados os factos constantes na fundamentação de facto da sentença Recorrida;

29. A livre convicção do julgador não pode colidir com as regras processuais elementares, o que sucedeu no presente processo;

30. O Tribunal Recorrido não pode sustentar a sua convicção com base em factos eivados de enorme perversidade, mas ocorridos há mais de vinte anos e sem enquadramento de tempo e de lugar;

31. Atenta a produção de prova testemunhal e as declarações da Assistente, o Tribunal Recorrido devia ter assumido uma posição manifestamente diferente em relação à matéria de facto discutida, ainda que alusiva a acontecimentos ocorridos após o ano de 2010;

32. Considerado prescrito o procedimento criminal em relação aos factos ocorridos entre 1966 e o ano 2000, devem ser expurgados da matéria de facto provada da sentença, os factos insertos nos pontos 4), 5), 6), 7), 9), 11), 12) da matéria assente da fundamentação de facto da sentença recorrida;

33. Atenta a reapreciação da prova suscitada, devem ser dados como não provados os factos insertos nos pontos 8), 13), 14), 15), 16), 17), 27), 28), 29), 32) da matéria assente da fundamentação de facto da sentença recorrida:

34. Atento a que tais actos não enquadram o tipo de crime previsto no artigo 152.° do Código Penal, nem assumem gravidade passível de responsabilidade criminal, devem ter-se por não escritos os factos insertos nos pontos 10), 30) e

31) da matéria assente da fundamentação de facto da sentença recorrida, não devendo os mesmos ser passíveis de sustentar a aplicação ao arguido da pena prevista na norma supra citada;

35. A acusação, bem como a promoção de alteração não substancial dos factos, devem ser consideradas nulas, por incumprimento do princípio da legalidade e da tipicidade e manifesta violação do artigo 283.°, n.º 3, alínea b) do Código de Processo Penal;

36. Para além dos factos que devem ser dados por prescritos, mas que o Tribunal Recorrido deu como provados, subsistem outros, em particular os insertos nos pontos 8), 13), 14), 15), 16), 17), 27), 28), 29), 32) que não respeitam as regras de imputação concreta do facto a fim de subsumi-lo ao tipo de crime de que vem acusado o arguido;

37. Tais factos correspondem a imputações genéricas, sem precisão do lugar onde ocorreram e sem qualquer enquadramento temporal, limitando-se o Tribunal Recorrido a transmitir que ocorreram após 2010, ou seja num lapso temporal de mais de sete anos;

38. No que concerne aos factos que o Tribunal Recorrido deu como provados, estamos perante matéria insusceptível de promover a condenação do arguido, não havendo alusão a motivações e grau de participação, bem como das demais circunstâncias relevantes destinadas a apurar a eventual responsabilidade do Recorrente;

39. O Tribunal Recorrido aplica um severo castigo ao arguido tendo por base uma suposta conduta que se difundiu no tempo, visando julgar retroactivamente o modo como viveu o arguido com a assistente;

40. A decisão recorrida encontra-se em oposição à generalidade da nossa jurisprudência que é paradigmática em relação à imputação penal no âmbito dos crimes por violência doméstica (cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 01/10/2013 - Processo n.º 948/11.7PBSTR.E1: acórdão do Supremo Tribunal de Justiço de 02/07/2008 ­Processo n.º 07P3861);

41. Os factos insertos nos pontos 4), 5), 6), 7), 9), 11), 12) e os incluídos nos pontos 8), 13), 14), 27), 28), 29), 32) representam uma clara imprecisão do matéria de facto provado e colidem com o direito ao contraditório, na esfera da defesa do arguido;

42. Igual raciocínio se aplica aos factos dos pontos 10), 30) e 31), se bem que neste caso, apesar da sua natureza genérica, tal matéria não é passível de objectivamente preencher o tipo de crime de violência doméstica;

43. A sentença recorrido promove uma decisão assente em factos espraiados num lapso temporal de mais de 50 anos, procurando reduzir tal período em função das vicissitudes da vida do casal (tendo por referência o regresso ao lar conjugal pelo arguido em 2010), mas mantendo uma clara imprecisão em relação à concretização dos acontecimentos cuja responsabilidade é imputado ao arguido:

44. Segundo tal perspectiva estamos perante uma clara violação por parte do Tribunal Recorrido das disposições normativas previstas nos artigos 3.°, 4.°, 283.°, n.º 3, alínea b) do Código de Processo Penal e artigo 32.° da Constituição do Repúblico Portuguesa;

45. Por conseguinte os factos dados como provados nos pontos 4), 5), 6), 7), 9), 11), 12) (sem prejuízo da invocação prescrição) e os incluídos nos pontos 8), 10), 13), 14), 27), 28), 29), 30, 31) e 32) da fundamentação de facto serem considerados como não escritos por violação irreparável do direito ao contraditório e das garantias do arguido;

46. Em relação aos pontos 10), 30) e 31) dos factos provados, os mesmos não podem ser considerados aptos a, objectivamente, preencherem o tipo de crime de violência doméstica ou outro tipo de crime previsto na nossa lei penal, tendo a decisão recorrida, nesta parte violado o disposto nos artigos 1.º, n.º 1 e 152.° do Código Penal e artigo 29.°, n.º 1 Constituição do Repúblico Portuguesa;

47. Ainda que a sentença não seja passível de alteração nos termos supra expostos, o que não se concede e só por dever de patrocínio se equaciona, ainda assim, o aludido aresto deve ser alterado segundo a óptica da determinação da pena e da condenação do arguido na indemnização peticionada pela Assistente;

48. Atendendo aos elementos constantes nos autos, andou mal Tribunal Recorrido ao aplicar ao arguido uma pena de prisão de 3 anos, acrescido da pena acessória de proibição de contactos;

49. Tal decisão não cumpre os critérios de prevenção geral e especial de aplicação das penas, assim como coloca em causa a próprio integridade e subsistência do arguido;

50. A proibição de contactos, nos termos promovidos pelo Tribunal Recorrido implica que o arguido fique impedido de continuar a residir na sua habitação, que constitui a casa de morada de família onde reside com o seu cônjuge, o ora assistente;

51. O arguido é pessoa de 76 anos de idade e conforme resulta dos depoimentos prestados tanto pela Assistente como pelo seu filho, encontra-se presentemente com a sua saúde bastante debilitada e não se encontra em condições de cuidar de si próprio, circunstâncias que são reconhecidas pelo Tribunal Recorrido na determinação da medida da pena;

52. A situação económica do arguido, também não permite ao mesmo a possibilidade de reorganizar a sua vida através da sua integração numa outra habitação que não aquela onde reside actualmente;

53. A aplicação da pena acessória nos termos estabelecidos pelo Tribunal Recorrido, põe em causa a própria integridade física do arguido e faz perigar, inclusive, a sua própria sobrevivência;

54. A decisão de suspensão da execução da pena de prisão, assente no regime de prova e num plano de reinserção do arguido é medida adequada para salvaguardar as exigências de prevenção geral e especial;

55. Assente tal medida num sistema de monitorização da conduta do arguido, ficam igualmente, salvaguardados os direitos da Assistente;

56. A aplicação da pena de prisão, suspensa na sua execução, com regime de prova é medida repressora e ressocializadora mais que suficiente e proporcional para salvaguardar as finalidades de punição da pena;

57. Outrossim, segundo os pressupostos da culpa, gravidade dos danos e circunstâncias sociais e económicas do arguido, acrescido da ausência de antecedentes criminais, o Tribunal Recorrido devia ter aplicado a moldura penal nos seus limites mínimos, ou seja, uma pena não superior a dois anos de prisão, suspensa na sua execução por tal período;

58. A sentença recorrida, nesta parte, é violadora do estatuído nos artigos 40.°, n.ºs 1 e 2, 71.° e 152.°, n.º 4 do Código Penal;

59. Por sua vez, no que respeita à indemnização em que o arguido foi condenado a pagar à Assistente, entende-se que a Sentença Recorrido peca por excesso;

60. Não resultam demonstrados quaisquer danos patrimoniais que a Assistente tenha sofrido em função da conduta do arguido;

61. No caso sub-judice o Tribunal Recorrido estabeleceu um quantitativo indemnizatório manifestamente excessivo em oposição às regras da equidade e em oposição ao grau de culpa do agente e demais critérios como a situação económica do arguido e a situação económica do lesado, as especiais circunstâncias do caso, a gravidade do dano, ou seja, todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida;

62. O grau de culpa do arguido deve ser considerado mais diminuído, assim como a gravidade das lesões sofridas pela Assistente, uma vez que o Tribunal Recorrido devia ter em consideração os factos que considerou provados, ocorridos após o ano 2010 e que terão consistido na prática de ofensas verbais e ameaças, não tendo ocorrido a prática de factos mais graves, como aqueles que a Assistente invoca terem ocorrido após a data do casamento e até ao ano 2010;

63. A situação económica do arguido, conforme sustenta o Tribunal Recorrido, é baixa, pelo que a fixação de uma indemnização de € 5 000,00 é um valor desproporcionalmente excessivo e do qual o arguido não dispõe e cujo obrigatoriedade de pagamento pode fazer perigar o próprio sustento do mesmo;

64. Tal indemnização é fixada em quantia bem acima dos valores que em relação aos casos mais graves tem sido estabelecido pelos Tribunais portugueses (cfr. acórdão do Tribunal do Relação de Coimbra de 29-04-2015 - processo n.º 27/13.2GCLMG.C1; acórdão do Tribunal do Relação de Évora de 21/04/2015 - processo n.º 65/11.0GEALR.E1; acórdão do Tribunal do Relação de Guimarães de 06/02/2017 - processo n.º 201/16.06GBBCL.G1);

65. O aresto recorrido viola, segundo a perspectiva da fixação da indemnização a favor da assistente, o disposto nos artigos 483.°, 494.° e 496.°, todos do Código Civil;

66. O Valor da indemnização civil atribuído à Assistente deve ser reduzido em obediência às regras de boa prudência, de bom senso prático, justeza da medida aplicada e criteriosa ponderação das realidades da vida;

67. Segundo a perspectiva da determinação da pena e da condenação a título de indemnização civil o Tribunal Recorrido não cumpriu os princípios do proporcionalidade e da culpa e por conseguinte violou o disposto nos artigos 40.°, n.º 1 e 71.°, n.º 1 do Código Penal.

Termos em que ora se requer a V. Exas. VENERANDOS JUÍZES DESEMBARGADORES DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA se dignem conceder provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença recorrida, e em consequência:

a) Absolver o arguido JC da prática do crime de violência doméstica, que lhe foi imputado nestes autos e do pedido de indemnização civil formulado pelo Assistente.

Caso não seja esse o Vosso douto entendimento:
b) Que seja reduzida a pena de prisão aplicada ao arguido paro o seu limite mínimo previsto no artigo 152.°, n.º 2 do Código Penal, mantendo-se a suspensão da execução de tal pena pelo período correspondente a esse limite mínimo legal;

c) Que seja revogada a pena acessória de proibição de contactos com a assistente, na perspectiva de tal pena implicar que o arguido deixe de habitar na sua residência;

d) Que o valor da indemnização civil atribuído à Assistente seja reduzido em obediência às regras de boa prudência, de bom senso prático, justeza da medida aplicada e criteriosa ponderação das realidades da vida do arguido.

E decidindo nos termos ora propostos farão V. EXAS, VENERANDOS JUIZES DESEMBARGADORES, como é Vosso apanágio, a acostumada JUSTIÇA!”.

Admitido o recurso [cfr. fls. 325], e notificados os devidos sujeitos processuais, apresentaram articulado de resposta:

»» A assistente, alegando, em síntese, que:

I. O Arguido vinha acusado da prática de um crime de Violência Doméstica agravado p.p. Art.º 152°, n.º 1 al. a), n.º 2 e n.º 4 do CP, mais foi deduzido pedido de indemnização civil pela Assistente.

II. Em julgamento o Arguido não prestou declarações.

III. Face à prova produzida em Julgamento não surgiu no espirito do Julgador a duvida, e teve a certeza absoluta que arguido praticou os factos.

IV. Diz o Art° 127 do CPP que a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente, este sistema assenta na livre convicção do julgador com base na experiência, possui regras de motivação com a finalidade de permitirem um controlo quer por parte dos destinatários, quer por parte de um Tribunal superior em sede de recurso

V. Assim nenhum reparo há a fazer à douta Sentença recorrida, que fundamentou de forma exemplar a sua motivação e o que levou o julgador a decidir da forma como decidiu.

VI. Expõe de forma clara e perceptível, quais as provas e o raciocínio lógico seguido na sua análise, que permitiu ao Tribunal "aquo" concluir pela verificação da matéria de facto apurada ou não.

VII. A audiência de julgamento pauta-se, entre outros princípios, pelo princípio da imediação, que se traduz no contacto pessoal e presencial entre o Juiz e os diversos meios de prova, e também pela oralidade, princípios estes que permitem que as provas sejam apreciadas por quem assistiu à sua produção.

VIII. Foi a Meritíssima Juiz "aquo" que, presidiu a audiência, ouviu, perguntou, observou os comportamentos de todos os sujeitos processuais, e com isso formou a sua convicção.

IX. Após a prova produzida e o julgamento realizado com base no rt°127 do CPP, ou seja, a livre convicção do julgador, não existindo no seu pensamento dúvida razoável, condenou e bem o Arguido, do crime que vinha acusado e do respectivo pedido de indemnização civil, fazendo-se justiça.”;

»» A Digna Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal de primeira instância, alegando, em síntese conclusiva, que:

1. Vem o recurso em causa interposto da sentença proferida nos presentes autos que condenou o arguido JC pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.ºs l, al. a) e 2 do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova assente num plano de reinserção social do condenado, e na pena acessória de proibição de contactos com a ofendida LR pelo período de 3 (três) anos.

2. Não se conformando com a sentença proferida, entendeu por bem o arguido levá-la à censura de V. Exas., pedindo, em suma, a sua revogação e substituição por outra que o absolva da prática do crime porque foi condenado ou, caso assim não se entenda, o condene em pena de prisão fixada no seu limite mínimo, suspensa na sua execução por igual período, mais pugnando pela revogação da pena acessória em que, além do mais, foi condenado.

3. Analisado o teor da sentença ora recorrida e os fundamentos de recurso, consideramos que, salvo o devido respeito por opinião contrária, não assiste razão ao arguido.

4. Assim, em primeiro lugar, refira-se que, ao contrário do que parece entender o Recorrente, os factos constantes dos pontos 6 e 7 abarcam todo o período temporal em causa na acusação, ou seja, desde 21 de Maio de 1966 até 22 de Setembro de 2016, excepção feita ao período compreendido entre o ano de 2000 e o ano de 2010, em que ficou provado não ter existido qualquer contacto entre o arguido e assistente

5. Depois, diga-se que o Recorrente parece confundir o destino que sempre o Tribunal a quo tinha de dar aos factos constantes da acusação, da contestação e do pedido de indemnização civil, reconduzindo-os ao elenco dos factos dados como provados ou como não provados e a apreciação de direito que depois o Tribunal a quo efectuou, vindo a concluir pela prescrição daqueles factos praticados pelo arguido entre o ano de 1966 e o ano de 2000, desconsiderando-os, evidentemente, na decisão condenatória a que, por fim, chegou.

6. Só depois de efectuada a primeira operação estava o Tribunal a quo em condições, de subsumindo ao direito aplicável a factualidade assim apurada, efectuar a segunda, que daquela dependia desde logo, para efeito da sua integração no tipo legal de violência doméstica em causa nos autos, da identificação do prazo prescricional aplicável e das causas de suspensão e de interrupção daquele prazo verificadas no caso concreto.

7. Pelo que não se vê como deveriam ser expurgados da matéria de facto dada por provada na sentença os factos atinentes ao comportamento adoptado pelo arguido entre 1966 e 2010.

8. Já relativamente à matéria de facto provada constante dos pontos 8, 10, 13, 14,15, 16, 17, 27, 28, 29, 30 e 31, que o Recorrente defende que, pelo contrário, deveria ter sido dada como não provada, também aqui entendemos não lhe assistir razão uma vez que a decisão recorrida esclarece quais os elementos de prova que levaram à formação da convicção do julgador, e de que forma é que os mesmos - declarações da assistente, prova testemunhal e documental - analisados de acordo com as regras da experiência conduziram à aquisição da convicção do Tribunal a quo.

9. Sendo certo que pela mera leitura da sentença ora recorrida, resulta que a Mma. Juiz do Tribunal a quo cumpriu a exigência de fundamentação que sobre si impendia, fundamentando a sua sentença de forma clara e sucinta, mas completa.

10. Acresce que o recorrente não demonstra que o Tribunal, ao decidir como decidiu, ao dar como provados os factos que assim considerou, contrariou as regras da experiência comum e desrespeitou princípios basilares do direito probatório, como seja valorando prova proibida ou não considerando prova legalmente vinculada.

11. Reconhecendo-se que foi o apuramento dos factos feito pelo Tribunal a quo em sede de audiência de discussão e julgamento que permitiu melhor concretizar alguns dos factos vertidos na acusação e apurar outros que, não constituindo uma alteração substancial dos descritos na acusação, comunicou à Defesa e veio a dar como provados, entendemos, tal como considerado pela Mma. Juíza do Tribunal a quo, que a acusação não se mostra ferida do vício de nulidade ou outro, nem de tal padece a demais factualidade dada como provada na sentença.

12. Estando balizada na acusação o período temporal em que o comportamento do arguido persistiu, com a indicação da data de início e do fim do mesmo, cremos estar cumprida a exigência de narração dos factos no despacho acusatório tal como previsto no artigo 283.º, n.º 3, al. b) do CPP.

13. E uma vez que o arguido esteve presente na audiência de julgamento e representado por advogado pôde livremente exercer o seu direito ao contraditório, optando por não prestar declarações, tendo também sido notificado nos termos e para os efeitos determinados no artigo 358.º do Código de Processo Penal das alterações não substanciais de factos apurados pelo Tribunal a quo.

14. Razões pelas quais se entende que não foram violadas quaisquer garantias de defesa do arguido.

15. Também não se vê em que medida, nem tal alegação se mostra concretizada, que tenham sido violados os princípios da legalidade e da tipicidade.

16. Com efeito, consideramos, ao contrário do Recorrente que a matéria de facto dada como provada na sentença sob censura, desconsiderada aquela que foi declarada prescrita, integra a prática pelo arguido de um crime de violência doméstica previsto e punido pelo artigo l52.º, n.ºs 1, al. a) e 2 do Código Penal tendo a decisão recorrida feita correcta subsunção dos factos ao direito, uma vez que resultou provado que o arguido com o comportamento adoptado (tal como descrito nos pontos 6,7, 8, l0, 13, 27, 28, 29, 30, 31 e 32 da matéria dada como assente) quis e logrou atingir a assistente, sua mulher e mãe dos seus filhos, na sua honra e consideração, liberdade pessoal, no seu direito ao descanso, ofendendo-a na sua dignidade humana.

17. Assim por se mostrarem preenchidos todos os elementos objectivos e subjectivo, na modalidade de dolo directo, do crime de violência doméstica de que vinha o arguido acusado, andou bem o Tribunal a quo ao condená-lo pela sua prática.

18. A medida da pena de prisão concretamente aplicada mostra-se, a nosso ver, perfeitamente ajustada e proporcional às finalidades preventivas que prossegue, não ultrapassando a medida da culpa do agente, não merecendo, assim, nenhum reparo a sua fixação acima do seu limite mínimo, em concreto em 3 anos, determinando-se a suspensão da execução da mesma por igual período, com regime de prova assente num plano de reinserção social.

19. Sendo certo que, conforme resulta da sentença sob censura, na determinação concreta da pena aplicada ao arguido, o Tribunal a quo considerou ainda todos os factos e circunstâncias que depunham quer a favor do arguido quer contra o mesmo.

20. Termos em que consideramos não terem sido pelo Tribunal a quo violados os normativos constantes dos artigos 40.º, n.ºs 1 e 2 e 71.º do Código Penal.

21. E o mesmo se diga relativamente ao artigo 152.º, n.º4 do Código Penal que prevê, além do mais, a aplicação de pena acessória de proibição de contactos com a Vítima de crime de violência doméstica, já que, para a sua aplicação, o Tribunal a quo considerou a circunstância de que a problemática existente entre o arguido e a Assistente se não mostrava resolvida nem assegurada para o futuro e que atenta a avaliação do risco realizada pelo competente órgão de polícia criminal que o reputou como sendo Elevado se justificava materialmente a aplicação da mesma.

22. A pena acessória em questão visa, além do mais, a protecção da Vítima, cujo interesse, e não os do arguido, condenado, terá de merecer a atenção do Tribunal a quo, sendo que as dificuldades sentidas por este por via da execução de tal pena serão um ónus que terá de suportar considerando a condenação por si sofrida, dificuldades essas cuja superação poderá por este ser procurada junto dos seus familiares ou da segurança social.

23. Termos em que se entende mostrar-se in casu justificada a aplicação ao arguido de uma pena de acessória proibição de contactos com a Vítima pelo mesmo período da suspensão da execução da pena principal.

24. Pelo que exposto fica entendemos que nenhuma razão assiste ao arguido, ora Recorrente, já que nem a acusação nem a sentença sob crise enferma de qualquer vício, tendo o Tribunal a quo julgado correctamente os factos dados como provados, com respeito pelo princípio da livre apreciação da prova e de acordo com as regras da lógica e da experiência comum, não se verificando, in casu, qualquer violação dos princípios da legalidade e da tipicidade, nem tão-pouco das garantias de defesa do arguido, mostrando-se, ainda, adequada e proporcional a concreta medida da pena de prisão aplicada e justificada a pena acessória de proibição de contactos com a Vítima na medida imposta.

Deste modo, porque nada encontramos que nos mereça censura na douta decisão recorrida, entendemos que deverá ser negado provimento ao presente recurso, confirmando-se aquela decisão, assim se fazendo, JUSTIÇA!!!”.

Remetidos os autos a esta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, no âmbito do qual afirma, em síntese, que “(…) a Sentença enferma de nulidade, por insuficiência de fundamentação, nos termos do disposto nos artºs 374º, nº 2 e 379º, nº 1, a) e c), do CPP. (…) as consequências de a prescrição (parcial) ter sido declarada, na Sentença, só após a fixação da matéria de facto provada e não provada, deu no que deu, implicando que fique sem saber-se o que o Tribunal teve, ou não, em conta, que factos e que provas foram, ou não determinantes, seja na formação da convicção, seja na determinação da medidas das penas (tão pouco da fundamentação quanto a estas seja possível retirar o que quer que seja, no que à questão que nos ocupa diz respeito). Ao invés do que defende o MP e a Sentença acolheu, impor-se-ia que, face ao objecto do processo, delimitado este pelo teor da Acusação e pelos factos comunicados pelo Tribunal ao abrigo do disposto no artº 358º, do CPP, O Tribunal tivesse, previamente, declarado a prescrição do procedimento criminal dos factos que considerasse prescritos, assim os expurgando, desde logo, do thema decidendum e, como tal, do julgamento e da Sentença. (…)”.

Em consequência conclui que o recurso interposto deve ser julgado procedente, “(…) pese embora com consequências diferentes das que propõe, antes se declarando nula a Sentença, determinando-se a prolação de nova Sentença que, suprindo a assinalada nulidade, obedeça à metodologia ora sugerida.”.

Cumpriu-se o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, não tendo sido feito uso do direito de resposta.

Foi efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais.
Foi realizada a Conferência.
Cumpre apreciar e decidir.

II
Como é sabido, o âmbito do recurso - seu objecto e poderes de cognição - afere-se e delimita-se através das conclusões extraídas pelo recorrente e formuladas na motivação (cfr. artigos 403º, nº 1 e 412º, nºs 1, 2 e 3, do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam as previstas no artigo 410º, nº 2, do aludido diploma, as cominadas como nulidade da sentença (cfr. artigo 379º, nºs 1 e 2, do mesmo Código) e as nulidades que não devam considerar-se sanadas (cfr. artigos 410º, nº 3 e 119º, nº 1, do Código de Processo Penal; a este propósito v.g. ainda o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 7/95, de 19.10.1995, publicado no D.R. I-A Série, de 28.12.1995 e, entre muitos outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 25.06.1998, in B.M.J. nº 478, pág. 242, de 03.02.1999, in B.M.J. nº 484, pág. 271 e de 12.09.2007, proferido no processo nº 07P2583, acessível em www.dgsi.pt e bem assim Simas Santos e Leal-Henriques, em “Recursos em Processo Penal”, Rei dos Livros, 7ª edição, pág. 71 a 82).

Porque assim, se o recorrente não retoma nas conclusões da respectiva motivação as questões que desenvolveu no corpo da motivação, porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso, o Tribunal ad quem só conhecerá das questões que constam das conclusões.

Acresce que, no âmbito dos poderes de cognição do Tribunal, este “não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito”, como decorre claramente do preceituado no artigo 5º, nº 3, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 4º, do Código de Processo Penal.

Nestes termos e vistas as conclusões do recurso em apreço, verificamos que as questões suscitadas são as seguintes (agora ordenadas segundo um critério de lógica e cronologia preclusivas):

(i) - Se o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento da matéria de facto, nos termos do estatuído no artigo 412º, nºs 3 e 4, do citado diploma legal;

(ii) - Se o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento na matéria de direito ao subsumir a factualidade dada como provada à prática pelo arguido de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nº 1, alínea a) e 2, do Código Penal;

(iii) - Se o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento da matéria de direito no tocante ao quantum da pena de prisão imposta, em violação do disposto nos artigos 40º, nº e 71º, nº 1, do Código Penal e bem assim ao aplicar ao arguido a pena acessória de proibição de contactos com a vítima/ofendida prevista no nº 4, do citado artigo 152º, do mesmo compêndio legal;

(iv) - Se o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento da matéria de direito no que respeita ao quantum arbitrado a título de indemnização civil por danos morais devido pelo arguido à ofendida/assistente/demandante.

III
A sentença recorrida encontra-se fundamentada nos seguintes termos:
“(…)
II. Fundamentação de Facto:

1. Factos provados:
Encontram-se provados os seguintes factos:

Da Acusação:
1) O arguido casou com LR em 21 de Maio de 1966.

2) A casa de morada de família situa-se na Rua …, Pinhal Novo, área desta comarca.

3) Deste relacionamento resultou o nascimento dos três filhos comuns do casal: APC, nascida em 26.09.1966; MC, nascido em 26.12.1967; e RC, nascido em 19.10.1971.

4) Desde o dia do casamento e até ao ano de 2000, ainda que em datas não apuradas, o arguido atingiu o corpo e a saúde da ofendida com chapadas na face, assim como com socos e pontapés por todo o corpo, mesmo quando esta se encontrava grávida dos três filhos comuns do casal, actualmente já todos maiores de idade.

5) Em resultado destas agressões, a ofendida ficava com hematomas visíveis por todo o corpo, no entanto nunca recorreu a assistência hospitalar, por vergonha, e receando eventuais retaliações do arguido.

6) Também desde aquela data, ainda que em dias não apurados, o arguido dirige diariamente à ofendida expressões que sabe serem atentatórias da sua honra e que a atemorizam, tais como " minha puta agora é que vais morrer... és uma puta ... tu tens muitos amantes ... andas com os vizinhos e com os teus colegas de trabalho ... és uma ladra ... és uma vaca ... hei-de te matar, mas não uma pistola, nem com uma faca, eu sei como hei-de fazer, porque não quero ir preso ... a tua mãe é uma puta anda com vários homens ... os teus irmão são uns cabrões ... se não saíres desta casa a bem vais sair a mal ... vais ver o que te vou fazer".

7) Muitas destas expressões eram dirigidas pelo arguido à ofendida, na presença de familiares do casal, o que humilhava ainda mais LR, ficando esta em pânico, receando que o arguido concretizasse as ameaças de atentar contra a sua vida.

8) O arguido também ameaça reiteradamente a ofendida, manuseando para o efeito facas de cozinha, cujas características não foi possível apurar.

9) Até ao ano de 2000, o arguido obrigava a ofendida a entregar-lhe todo o seu ordenado / reforma, gastando-o sem dar satisfações à mulher, deixando apenas algum dinheiro numa gaveta, que apenas dava para a ofendida comprar comida para fazer o jantar do agregado familiar, chegando mesmo a alimentar-se apenas de pão e água.

10) O arguido diariamente, também coloca música muito alta, em aparelho de som existente na casa de morada de família, mesmo durante a noite e madrugada, para desta forma impedir que a ofendida consiga dormir, colocando em causa a sua paz e sossego.

11) Há cerca de 25 anos o arguido informou a ofendida que pretendia separar-se, abandonando a casa de morada de família, mas acabava sempre por voltar, obrigando a ofendida a manter consigo relações sexuais, contra a sua vontade expressa e utilizando a sua superioridade física dizendo-lhe " tenho uma mulher em casa e tenho de ir pagar a uma prostituta? Se não fizeres o que eu quero dou com um sarrafo por ti abaixo".

12) Antes de 2000 o arguido em fúria e no decorrer de discussão com a ofendida, estragou uma toalha existente no interior da casa de morada de família.

13) No dia 22 de Setembro de 2016, pelas 14.00 horas, no interior da casa de morada de família, o arguido iniciou discussão com a ofendida, e abrindo a porta do frigórico atirou para o chão todos os alimentos que este continha no seu interior.

14) Estas agressões, ameaças e humilhações ocorrem há mais de 50 anos, no interior da casa de morada de família, e na presença dos três filhos comuns do casal quando estes ainda residiam com os progenitores e eram menores de idade, com a ressalva vertida em 25).

15) O arguido agiu consciente e voluntariamente, bem sabendo que, de forma reiterada atingia o corpo e a saúde da sua mulher LR, debilitando-a psicologicamente, fazendo-a recear pela sua vida, cerceando assim a sua liberdade pessoal, prejudicando o seu bem-estar psicossocial e ofendendo-a na sua honra e dignidade humana, assim como na sua liberdade sexual e sentimento de pudor.

16) O arguido agiu sempre de modo livre, deliberado e consciente, conhecedor da ilicitude dos seus actos.

17) Sabia que as suas condutas eram proibidas por lei.

Provou-se ainda que:
18) Após o casamento referido em 1) o arguido e a Assistente fixaram residência em Lisboa.

19) Em 1984 o arguido passou a residir num barracão sito no quintal da habitação.

20) Em 1987 passou a residir num lar de idosos que geria e que funcionou em três locais diversos da cidade de Lisboa.

21) Após, em data não apurada mas posterior a 1987 e anterior a 2000, a Assistente passou a residir em casa de uma filha e o arguido do numa casa sita na cidade de Lisboa, passando temporadas numa outra residência sita em Alvarenga.

22) Em 2000 o arguido fixou residência permanente em Alvarenga.

23) Em 2003 a Assistente passou então a habitar no local referido em 2).

24) Em 2010 o arguido passou também a residir no local a que se alude em 2).

25) Entre 2000 e 2010 não existiram quaisquer contactos entre arguido e assistente, excepto uma ocasião em que esta se deslocou a Alvarenga por temer que o arguido se estivesse a desfazer de bens comuns.

26) O referido em 14) não sucedeu entre 2000 e 2010.

27) Não obstante ter passado a residir no local referido em 2), o arguido recusou-se sempre a comparticipar nas despesas, dizendo à Assistente "sai-me daqui para fora, eu não vou pagar nada”.

28) Desde então o arguido passou a confrontar a Assistente fazendo uso de facas, enquanto dizia "tu não sabes o que eu sou capaz de te fazer", trancando-se esta no quarto, com medo, enquanto o arguido desferia murros na porta do quarto dizendo "abre a porta sua ladra”.

29) Em data não concretamente apurada mas posterior a 24) o arguido esteve a fazer barulho das 00h00m às 04h00m, fazendo uso de um serrote e de um objecto de plástico, com o fito de perturbar a Assistente.

30) Igualmente desde essa data e com a mesma finalidade o arguido, por diversas vezes, bateu com paus e atirou objectos para o chão.

31) Por diversas vezes no mesmo período o arguido aguardou que a Assistente limpasse o chão da cozinha para de imediato aí ir entornar vinho ou água.

32) Neste período o arguido voltou a dirigir-se à Assistente nos termos descritos em 6) e de forma continuada, apelidando-a ainda de "arrastadeira" quando começou a ter dificuldades de locomoção.

33) O arguido não tem antecedentes criminais.

34) É latoeiro reformado, recebendo pensão no valor de € 771,53.

35) Actualmente reside no sótão da habitação referida em 2).

36) Tem o 40 ano de escolaridade.

37) Reavaliado o risco dm 07/09/2017, o mesmo foi considerado elevado.

Do Pedido de Indemnização Civil.-
38) A Assistente tem suportado todas as despesas domésticas com a sua reforma.

39) Muitas vezes foi ajudada por amigas.

40) A Assistente, apesar de necessitar de apoio psicológico nunca o pode procurar por falta de dinheiro.

2. Factos não provados:

Da Acusação:
a) O número de porta da habitação referida em 2) é o 24.

b) A Assistente nunca recorreu a assistência médica.

c) O referido em 7) sucedia também na presença de amigos do casal.

d) Aquando do que consta de 8), o arguido dizia à Assistente "Eu mato-te".

e) Para garantir que a ofendida satisfaz os seus desejos sexuais, o arguido agride-a com murros e chapadas por todo o corpo, para a constranger a suportar as suas vontades, ao mesmo tempo que lhe diz" és uma puta ... és uma vaca ... ei hei-de matar-te".

f) O arguido em fúria e no decorrer das discussões que mantem diariamente com a ofendida, destrói e parte diversos objectos de utilidade doméstica existentes no interior da casa de morada de família.

g) Após o referido em 13), o arguido ordenou à ofendida que apanhasse todos os referenciados alimentos, ao que esta obedeceu, receando voltar a ser agredida.

Da contestação:
h) O arguido é que é vítima dos actos da Assistente, tendo sido humilhado, enxovalhado, votado à insignificância e vexado pela Assistente que ao longo dos anos tem vivido obcecada em dizer mal do arguido, tratando-o perante todos como se de lixo se tratasse.

i) Ao longo da vida o arguido tudo fez para cumprir os desejos e desígnios da mulher.

j) O sótão onde o arguido permanece nem porta tem e a subida da escada é penosa para o arguido.

k) O arguido não está autorizado a estar na sala nem a ver televisão, dispondo apenas de um pequeno rádio despertador para se entreter ao serão, que passa sozinho.

3. Motivação
O Tribunal formou a sua convicção conjugando os meios de prova disponíveis, designadamente as declarações prestadas em sede de audiência de discussão e julgamento pela Assistente e pelas testemunhas na medida em que as mesmas revelaram possuir conhecimento pessoal e directo dos factos, na prova documental junta aos autos e ainda no certificado de registo criminal do arguido.

Todos estes elementos de prova foram apreciados à luz do preceituado no artigo 1270 do Código de Processo Penal, o que vale por dizer mutatis mutandis, que o foram segundo a livre convicção do julgador, de acordo com as regras da vida e da experiência comum. Como é sabido, a livre apreciação da prova não é uma tarefa puramente emocional, subjectiva. Pelo contrário, o julgador, procurando alcançar a verdade material, actua observando as regras da experiência comum e critérios objectivos, de modo a que a conclusão a que chega, mas também o percurso que trilhou, sejam susceptíveis de controlo. Como é aliás jurisprudência constitucional assente, a livre apreciação da prova há-de traduzir-se em valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas de experiência e dos conhecimentos científicos, que permita ao julgador objectivar a apreciação dos factos, requisitos necessários para uma efectiva motivação da decisão (Vide, sobre o tema, Acórdãos do TC na 1165/96 e 464/97 in www.tribunalconstitucional.pt).

Concretizando.
O arguido exerceu o direito ao silêncio, tendo apenas prestado declarações no que tange às suas condições de vida. A assistente, por sua vez, relatou os factos de forma absolutamente credível e sincera, merecendo acolhimento. Pese embora a sua particular posição em relação ao arguido, relatou de forma clara e precisa os factos que a envolveram, com firmeza e seriedade.

Não se logrou descortinar que procurasse ampliar os factos sobre que depôs, nem que pretendesse prejudicar o arguido, como seria até tentador, atenta a natureza humana e considerado o contexto e a gravidade das situações que se apreciam. Pelo contrário, fez sempre questão de se ater a um relato fiel dos factos, sendo que foi a própria quem negou os factos que se reconduziram depois ao conjunto de factos não provados. Assim se atribuiu credibilidade ao seu depoimento o qual se fez reconduzir o seu relato ao elenco de factos provados. A testemunha MA manifestou não ter conhecimento directo dos factos, tendo apenas explicado de forma sincera e sentida que a assistente é uma mulher muito triste e que está muito debilitada e que tem dificuldades económicas, sendo que por vezes até passa fome pelo que a tem ajudado em géneros e uma outra sua amiga em dinheiro.

IG, militar da GNR, explicou de forma profissional e segura que se deslocou à residência no Pinhal Novo em 22/07/2016, aí tendo encontrado o arguido, a assistente e um filho de ambos, mas já estando o ambiente tranquilo, tendo colhido as informações que exarou na peça de expediente de fls. 34 e ss.

A testemunha de defesa RC, filho do arguido e da assistente, excepção feita a factos neutros atinentes a datas e locais de residência, não se nos afigurou minimamente credível tendo afirmado que o relacionamento dos pais sempre foi perfeitamente saudável, para depois dizer que não podiam falar um com um outro que de imediato se gerava uma discussão e para terminar dizendo que os pais se separaram, só recentemente tendo voltado a viver juntos no Pinhal Novo. Ora, no segmento em que a testemunha se referiu ao carácter saudável do relacionamento, as suas declarações manifestamente não colheram, não só pela forma como foram prestadas como após o confronto com a demais prova, tendo o tribunal ficado com a convicção que a testemunha se encontra preocupada com o actual estado do arguido, mercê da sua idade e quis atenuar ou omitir os seus comportamentos. Assim e em suma as suas declarações tiveram apenas a virtualidade de auxiliar o tribunal nas datas e locais onde o arguido viveu, não colhendo na parte restante.

Ora, a factualidade dada como provada em 1) e 2) foi referida pela assistente, bem como a exarada em 3), sendo que os respectivos assentos de nascimento constam de fls. 98 a 101, estanho o casamento averbado ao assento de nascimento da assistente.

O que consta de 4) e 5) foi também relatado pela própria a assistente, com dor e sofrimento, tendo concretizado que s agressões físicas deixaram de suceder a partir do momento em que o arguido fixou residência permanente em Alvarenga, posto que até então, mesmo não pernoitando no mesmo espaço, mas estando ambos em Lisboa, essa violência continuou, ainda com menos frequência do que aquando da coabitação.

Quanto a 6) e 7) assim o declarou também a assistente em declarações que se revelaram perfeitamente credíveis, coerentes e espontâneas, confirmando todas as expressões que na acusação se refere terem-lhe sido dirigidas pelo arguido, de forma regular, ao longo da vivência comum, excepção feita ao interregno decorrido de 2000 a 2010, em que não existiu qualquer contacto. Mais particularizou, com actualidade, o que consta de 27), 28) e 32).

Mais uma vez o facto constante de 8) adveio desde logo das declarações da assistente que relatou os factos de forma absolutamente credível e sincera, merecendo acolhimento. O mesmo se diga quanto a 9), com a limitação temporal manifestada pela própria assistente e aí exarada. E quanto 10).

No que tange a 11), foi a assistente quem assim o referiu, com mágoa e embaraço. Em consonância, o filho e testemunha RC referiu-se à primeira parte de tal factualidade. O que se escreveu em 12) foi relatado pela assistente, constituindo um minus em relação ao que contava da acusação e se escreveu no ponto f) dos factos não provados.

Quanto a 13) consideraram-se igualmente as suas declarações, que mais uma vez são menos amplas que o que constava da acusação, por isso se tendo dado como não provado o que se escreveu em g).

Quanto a 14), assim foi referido pela assistente.

O que consta de 15) a 17) resulta da análise do comportamento do arguido e consequências na assistente à luz das regras da experiência comum e da normalidade do acontecer, pois outras não podem ter sido as representações e intenções do arguido que não a aí plasmadas, bem como os sofrimentos da vítima.

As precisões espácio-temporais dadas como provadas de 18) a 26) foram explicadas pela assistente e em parte confirmadas pela testemunha RC.

A factualidade descrita de 27) a 32) resultou, mais uma vez, das declarações fidedignas da assistente.

No que tange ao referido em 33), atentou-se no certificado de registo criminal do arguido constante dos autos.

Em relação às actuais condições de vida do arguido, constantes de 34) a 36), o tribunal teve em conta as declarações do próprio, plausíveis e sinceras, merecendo acolhimento.

O que consta de 37) resulta da reavaliação do risco de fls. 171 e ss..

No que concerne aos factos não provados e constantes de a) a e), foram os mesmos negados pela própria assistente, importando aqui precisar, quanto a b), que a assistente explicou que chegou a ser vista por médicos na Manutenção Militar, onde trabalhavam, mas que nunca admitiu ser vítima de agressões por parte do marido por vergonha e receio de represálias.

Quanto a h) e i), tal não se provou minimamente, antes se tendo provado uma versão bem contrária dos factos, sendo a vítima a assistente e não o arguido. No que tange a j) e k) não se produziu qualquer prova a este respeito, não tendo tal transparecido das declarações prestadas.

Não constavam da acusação nem foram invocados em sede de audiência de discussão e julgamento outros factos que tivessem relevo para a boa decisão da causa e pudessem acrescer aos que já se consignaram no elenco de factos provados.

III. Apreciação jurídica da factualidade assente
1. Do enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido

Ao arguido é imputada a prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 1520 nº 1 a), nº 2 e nº 4 do Código Penal.

Estatui o artigo 1520, n01, do Código Penal que "quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais: a) ao cônjuge ou ex-cônjuge (...) é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal."

Por sua vez, prevê o nº 2 do mesmo normativo que "se o agente praticar o facto no domicílio comum ou no domicílio da vítima".

Esta redacção passou a integrar o nosso ordenamento na sequência da entrada em vigor da Lei 59/2007, de 4 de Setembro.

A introdução do crime de maus-tratos no nosso ordenamento jurídico-penal em 1982 visou reprimir criminalmente, além do mais, formas de violência no seio familiar, na sequência de uma consciencialização ético-social da gravidade de tais comportamentos violadores de alguns direitos fundamentais das pessoas.

Assim sendo, a ratio dirigiu-se à protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana, podendo dizer-se que o bem jurídico protegido é a saúde, enquanto bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental e que pode ser afectado por uma variedade de comportamentos que impeçam ou dificultem o normal e saudável desenvolvimento da personalidade (neste sentido, Comentário Conimbricense do Código Penal, I vol. pág 332).

A função da incriminação, no que ao caso importa, é assim de prevenir as frequentes formas de violência no âmbito da sociedade conjugal.

A reforma do Código Penal efectuada pelo Decreto- Lei na 48/95 de 15 de Março introduziu importantes alterações ao regime até aí existente, passando a incriminar a par dos maus tratos físicos, os maus tratos psíquicos.

Conforme refere Taipa de Carvalho, (Código Penal Conimbricense, Coimbra, Tomo I, pág. 332), a ratio do tipo não está na protecção da comunidade familiar, conjugal, ( ... ), mas sim na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana. O âmbito punitivo deste tipo de crime inclui os comportamentos que lesam esta dignidade.

Entende Plácido Conde Fernandes (Violência Doméstica, Novo Quadro Penal e Processual Penal, Jornadas sobre a Revisão do Código Penal, Revista do CEJ, 1.º semestre de 2008, n.º 8, pág. 305) referindo-se ao actual crime de violência doméstica previsto no Código Penal, que não se vê "razão para alterar o entendimento, já sedimentado, sobre a natureza do bem jurídico protegido, como sendo a saúde, enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana e da garantia da integridade pessoal contra os tratos cruéis, degradantes ou desumanos, num bem jurídico complexo que abrange a tutela da sua saúde física, psíquica, emocional e moral."

No que concerne particularmente aos maus tratos conjugais, estes consubstanciar-se-ão na perpetração de qualquer acto de violência que afecte, por alguma forma, a saúde física, psíquica e emocional do cônjuge vítima, diminuindo ou afectando, do mesmo modo, a sua dignidade enquanto pessoa inserida numa realidade conjugal igualitária.

As condutas previstas e punidas por este artigo podem ser de várias espécies: maus tratos físicos (isto é, ofensas corpora1s simples), maus tratos psíquicos (humilhações, provocações, molestações, ameaças mesmo que não configuradoras em si do crime de ameaça, entre outros), incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais.

Uma questão hoje claramente resolvida mas que foi polémica até à entrada em vigor da actual redacção do artigo 1520 do Código Penal foi a questão da reiteração da conduta, a qual apenas se compreendia no âmbito da anterior redacção do crime de maus tratos. Para grande parte da doutrina, para que o tipo de crime se mostrasse preenchido, era necessária a existência de uma reiteração das condutas, ou seja, era indispensável que se verificasse uma determinada continuidade temporal no modo de agir.

Conforme referiam Simas Santos e Leal Henriques por referência à anterior redacção do Código Penal, (Código Penal Anotado, 20 Volume, Rei dos Livros, 1996, pág. 152), "não basta uma acção isolada do agente para que se preencha o tipo (estaríamos então no domínio das ofensas à integridade física). Afigura-se-nos que o crime se realiza com a reiteração do comportamento, em determinado período de tempo". No mesmo sentido, se pronunciou igualmente Taipa de Carvalho, (ob. cit., pág. 334).

Igualmente na jurisprudência, uma corrente maioritária entendia ser exigível esta reiteração de condutas. Veja-se a título exemplificativo e inter alia, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30/10/2003 (CJSTJ, 2003, tomo 3, pág. 208 e ss.): "Resulta do próprio dispositivo legal que não basta uma acção isolada do agente para que se preencha o tipo. Terá, por isso, de se tratar de uma acção plúrima e repetitiva, reiterada".

Porém, mesmo no âmbito da anterior redacção do Código Penal foi coexistindo uma corrente jurisprudencial segundo a qual, em casos de especial violência, uma única agressão seria bastante para preencher o tipo legal. Assim o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14/11/1997 (CJSTJ, 1997, tomo 3, pág. 235 e ss.), defendendo "a incriminação, decorrente da lei penal, de condutas agressivas, mesmo que praticadas uma só vez, que se revistam de gravidade suficiente para poderem ser enquadradas na figura dos maus tratos".

Esta questão ficou definitivamente resolvida com a introdução da expressão "de modo reiterado ou não" no corpo do artigo 1520 do Código Penal, tendo-se claramente optado pela tese propugnada pela segunda das correntes jurisprudenciais acabadas de referir.

No que concerne ao elemento subjectivo, para que este se verifique exige a lei o dolo.

Tal como refere Maia Gonçalves, (Código Penal Anotado, Almedina, 7ª Edição, pág. 504), após a revisão operada em 1995, não se exige agora qualquer dolo específico, bastando-se a lei com os requisitos gerais do dolo. Na versão originária, exigia-se que o autor agisse por malvadez ou egoísmo, isto é, era necessário um dolo específico para que se preenchesse o tipo.

Antes de mais, contudo, importa atentar no que foi referido na contestação apresentada pelo arguido, onde se defende que "a douta acusação pública (...) é constituída na sua maioria, por facto imprecisos e genéricos quanto ao tempo e lugar.".

Efectivamente, muito mais se apurou em sede de audiência de discussão e julgamento, o que sucedeu com base nas declarações da assistente, tendo sido possível concretizar muitos dos factos vertidos na acusação de forma genérica.

Como se lê no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 01/10/2003, proferido num caso também de violência doméstica (in www.dgsi.pt. Processo na 948/11.7PBSTRE1, Relator Sr. Juiz Desembargador João Gomes de Sousa), "Num tipo de crime onde a reiteração e intensidade do agir humano está no centro da definição de um tipo penal muito amplo (maus-tratos, violência doméstica, tráfico de droga), a precisa e possível indicação e concretude dos factos necessários à integração no tipo é elemento essencial do julgamento. E é, na sequência, o cerne do direito de defesa. Se a alegação factual - em qualquer imputação penal - não pode ser facilitada pelo uso de fórmulas "vagas, imprecisas, nebulosas, difusas, obscuras", neste tipo de crime a exigência é maior dada a amplitude do tipo penal.

Por isso, será de ter por não escritas aquelas formas de imputação genérica. Apenas uma excepção se abre e diz respeito ao "facto" dado como provado em 2) com este teor: Durante tal lapso de tempo e em datas e locais não concretamente determinados, o arguido, por motivos não apurados, agrediu e insultou a sua cônjuge, apelidando-a de "porca", "vaca" e "puta", entre outras palavras, bem como a ameaçou dizendo-lhe "não tenho pistola mas com uma navalha ou com um machado mato-te"». Ora, considerando que o arguido A e a assistente B foram casados entre si desde 16 de Março de 1978 até ao corrente ano (facto provado em 1), isto quer significar que o facto provado corresponde mais ou menos a isto:

"Desde tempos imemoriais, não se sabe bem onde nem porquê, o arguido "agrediu e insultou a sua cônjuge, apelidando-a de "porca", "vaca" e "puta", entre outras palavras, bem como a ameaçou dizendo-lhe "não tenho pistola mas com uma navalha ou com um machado mato-te"». Desde logo, é um período temporal de 34 (trinta e quatro) anos!!! Depois "agrediu", "insultou" e "ameaçou" são conceitos de direito, não são factos." Ora, por uma razão de honestidade intelectual, cremos a alegação da defesa segue o entendimento desta jurisprudência, que não desconhecemos.

Contudo, veja-se também o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 23/09/2013 (in www.dgsi.pt., processono1631/12.1PBBRG.G1. Relator Fernando Monterroso) : "I. A norma do art. 283º nº 3 al. b) do CPP apenas impõe a obrigatoriedade da narração dos factos da acusação conter a indicação do lugar, do tempo e da motivação da sua prática, se tal for possível. II. No crime de violência doméstica o que está normalmente em causa não é a punição autónoma de cada um dos atos que integram o conceito de violência doméstica, mas um comportamento reiterado. Balizando a acusação o período em que tal comportamento persistiu, com indicação do início e do fim do mesmo, mostra-se cumprida a exigência daquela norma quanto á indicação do «tempo»."

Ora, a verdade é que a acusação balizou os facto no tempo, ainda que de forma semelhante à ocorrida no caso analisado naquele primeiro acórdão pois refere que o casamento ocorreu em 21 de Maio de 1966 e depois que "Desde o dia do casamento, ainda que em datas não apuradas, o arguido atinge o corpo e a saúde da ofendida com chapadas na face, assim como com socos e pontapés por todo o corpo", o que vale por dizer "em datas não apuradas ocorridas nos últimos 51 anos". Contudo, não só esse maior rigor nem sempre é compatível com as situações de violência doméstica, como no caso dos autos, esse trabalho de concretização, fê-lo o tribunal, em sede de audiência de discussão e julgamento, através da tomada de declarações à assistente, estando o arguido representado por advogado e podendo exercer o seu direito ao contraditório, tendo ainda sido notificado das alterações não substanciais de factos realizadas nos termo e para os efeitos previstos no artigo 3580 do Código de Processo Penal. Termos em que considera o tribunal que a acusação, ainda que por pouco, não está ferida de nulidade nos termos previstos no artigo 2830, na 3 al. b) do Código de Processo Penal a contrario e que tendo sido possível concretizar pelo tribunal, mediante as declarações da Assistente, os marcos temporais relevantes.

E chegados a este pouco, cumpre analisar uma outra questão, mais uma vez pertinente, suscitada pelo arguido em sede de contestação, a saber a da prescrição do procedimento criminal.

Como se lê no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 19/11/2015 (in www.dgsi.pt. Processo:no1242/14.7GBBCL.G1. Relatora Alcina da Costa Ribeiro) "Tratando-se de um crime único, embora de execução reiterada, a consumação do crime de maus-tratos (lei anterior), violência doméstica (lei vigente) ocorre com a prática do último acto de execução.".

Com efeito, a prática deste crime, de modo geral, traduz-se numa conduta reiterada ou prolongada no tempo. O que não quer dizer que existam casos únicos que, devido à sua gravidade, ao comprometimento da vida em comum e a afectação da dignidade e liberdade do cônjuge ofendido, configurem o elemento objectivo desse tipo legal de crime.

A conexão temporal entre os vários actos que vão integrar os elementos típicos do crime, em nada releva para efeitos da configuração dessa conduta como uma continuação criminosa, antes, vulgarmente, a prática desses sucessivos actos radica numa única resolução criminosa, consubstanciando-se num crime único com uma execução prolongada no tempo. No que concerne à contagem do prazo de prescrição do procedimento criminal, esta especificidade habitual deste tipo de crime é particularmente proeminente.

O prazo de prescrição, que se mantém nos 10 anos, nos termos do disposto no artigo 1180 nº l al. b) do C. Penal, inicia-se, apenas, ou tão só, a partir da prática do último facto que integra a reiteração dos actos criminosos em questão. Importa assim e no caso dos autos apurar quando se deu esse último facto criminoso mas perceber também, se existiu algum lapso temporal durante o qual não tenha existido a aludida execução reiterada e de forma suficientemente longa para que se possa afirmar que aquela única resolução criminosa foi quebrada e que posteriormente se lhe seguiu uma outra e nova resolução criminosa, acompanhada de novos actos de execução reiterada.

Veja-se a este respeito e em caso semelhante, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 19/11/2013 (in www.dgsi.pt. Processo nº 119/12.5GBRMZ.El, Relatora Maria Isabel Duarte), ai se tendo apurado que provado e entendido que "determinados factos provados imputados ao arguido, tal como é referido na sentença recorrida, " terão ocorrido até 1998, ainda que tal não suceda com todos os factos que o arguido refere, uma vez que os que constam do art. 30 foram praticados, como daí consta e resultou provado, não só anteriormente a essa data, mas também posteriormente, ao longo de todos os anos em que o arguido e a assistente coabitaram (ou seja, desde 1987 até Julho de 2012", e, acrescentemos nós, em nada altera a situação o facto de ter havido períodos de tempo em que o arguido esteve emigrado, pois que, o vínculo matrimonial, a ligação, e os maus-tratos se mantiveram, ainda que, com interregnos de tempo, fazendo sentido, o afirmado pelo tribunal "a quo", de que, ", entre os anos de 1994 ou 1995 e 2000 e, novamente, entre 2004 e Dezembro de 2010, o arguido emigrou, encontrando-se ausente do país, durante esses períodos, entre os meses de Março e Dezembro, e regressando ainda para férias durante 15 dias em Agosto ou Setembro, não exclui que os factos descritos sob o ponto 3 tenham sido praticados pelo arguido de forma regular, uma vez que resulta das declarações da assistente e das testemunhas B e D que, mesmo nessas fases, o arguido mantinha tal conduta durante os meses em que se encontrava em Portugal, retomando-a, de forma mais intensa, quando regressou definitivamente." Neste caso considerou-se que a reiteração de factos deve ser globalmente apreciada e valorada como integrando um comportamento repetido, dominado por um único sentido de desvalor jurídico e que a sua consumação ocorre com a prática do último acto de execução, motivo pelo qual não estava prescrito o procedimento criminal relativo aos factos mais antigos.

No caso dos autos, contudo, cremos que idêntico raciocínio apenas se pode fazer quanto aos factos dados como provados em 11): "Há cerca de 25 anos o arguido informou a ofendida que pretendia separar-se, abandonando a casa de morada de família, mas acabava sempre por voltar, obrigando a ofendida a manter consigo relações sexuais, contra a sua vontade expressa e utilizando a sua superioridade física dizendo-lhe " tenho uma mulher em casa e tenho de ir pagar a uma prostituta? Se não fizeres o que eu quero dou com um sarrafo por ti abaixo" valendo aqui mutatis mutandis os argumentos acabados de referir e considerados naquele douto acórdão, sendo certo que o tribunal apurou ainda a factualidade vertida de 19) (isto é, que em 1984 o arguido passou a residir num barracão sito no quintal da habitação, em 1987 passou a residir num lar de idosos que geria e que funcionou em três locais diversos da cidade de Lisboa e após, em data não apurada mas posterior a 1987 e anterior a 2000, a Assistente passou a residir em casa de uma filha e o arguido numa casa sita na cidade de Lisboa, passando temporadas numa outra residência sita em Alvarenga.) mas que em tais períodos sucedia igualmente o que consta de 4), 5), 9) e 12): Desde o dia do casamento e até ao ano de 2000, ainda que em datas não apuradas, o arguido atingiu o corpo e a saúde da ofendida com chapadas na face, assim como com socos e pontapés por todo o corpo, mesmo quando esta se encontrava grávida dos três filhos comuns do casal, actualmente já todos maiores de idade; Em resultado destas agressões, a ofendida ficava com hematomas visíveis por todo o corpo, no entanto nunca recorreu a assistência hospitalar, por vergonha, e receando eventuais retaliações do arguido; Até ao ano de 2000, o arguido obrigava a ofendida a entregar-lhe todo o seu ordenado / reforma, gastando-o sem dar satisfações à mulher, deixando apenas algum dinheiro numa gaveta, que apenas dava para a ofendida comprar comida para fazer o jantar do agregado familiar, chegando mesmo a alimentar-se apenas de pão e água; Antes de 2000 o arguido em fúria e no decorrer de discussão com a ofendida, estragou uma toalha existente no interior da casa de morada de família.

Assim e quanto a este conjunto de factos provados, temos a nosso ver uma única resolução criminosa e uma execução reiterada dos correspondentes factos.

Contudo, provou-se também o que consta de 22) a 25), isto é, que em 2000 o arguido fixou residência permanente em Alvarenga, que em 2003 a Assistente passou então a habitar no Pinhal Novo e que apenas em 2010 o arguido passou também a residir nesse local, sendo que entre 2000 e 2010 não existiram quaisquer contactos entre arguido e assistente, excepto uma ocasião em que esta se deslocou a Alvarenga por temer que o arguido se estivesse a desfazer de bens comuns. Deste modo e a nosso ver durante esta separação e ausência de contactos ocorreu uma quebra, objectiva e subjectivamente apurada e durante tal lapso de tempo o arguido não quis e agiu do modo que vinha fazendo até então.

Mais tarde, passados dez anos, quando malogradamente em 2010 passa a residir de novo com a assistente desta feita no Pinhal Novo, retomaram-se os contactos e a coabitação e, com elas, formulou o arguido noiva resolução criminosa de atingir a assistente na sua dignidade humana, saúde, liberdade, honra e bem-estar físico e psíquico e agindo em conformidade iniciou uma série de actos, uns de modo semelhante ao que já havia adoptado no passado e outros de forma diversa, como veremos.

Temos em que, assistindo nesta parte razão ao arguido, se considera que o procedimento criminal atinente a todos os actos praticados desde 1966 e até 2000 se encontra prescrito, por ter decorrido o prazo normal de prescrição acrescido de metade no ano de 2015 sem que até aí tivesse ocorrido qualquer das causas de suspensão ou interrupção do prazo de prescrição previstas nos artigos 1200 e 1210 do Código Penal (constituição como arguido em 26/10/2016 – fls. 26; acusação deduzida em 10/05/2017 – fls. 109 e ss e notificada ao arguido em 23/05/2017 - fls. 114).

Assim, declara-se extinto o procedimento criminal atinente aos factos praticados desde 1966 e até 2000, por prescrição, determinando-se nesta parte o arquivamento dos autos.

ln casu e no mais, apurou-se além do mais que o arguido novamente dirigiu diariamente à ofendida expressões que sabe serem atentatórias da sua honra e que a atemorizam, tais como as descritas em 6) e de forma continuada, apelidando-a ainda de "arrastadeira" quando começou a ter dificuldades de locomoção.

Mais se provou que o arguido também ameaça reiteradamente a ofendida, manuseando para o efeito facas de cozinha, cujas características não foi possível apurar, enquanto dizia "tu não sabes o que eu sou capaz de te fazer", trancando-se esta no quarto, com medo, enquanto o arguido desferia murros na porta do quarto dizendo "abre a porta sua ladra". Também se provou que diariamente, coloca música muito alta, em aparelho de som existente na casa de morada de família, mesmo durante a noite e madruga, para desta forma impedir que a ofendida consiga dormir, colocando em causa a sua paz e sossego. Em data não concretamente apurada mas posterior a 24) o arguido esteve a fazer barulho das 00h00m às 04h00m, fazendo uso de um serrote e de um objecto de plástico, com o fito de perturbar a Assistente. Igualmente desde essa data e com a mesma finalidade o arguido, por diversas vezes, bateu com paus e atirou objectos para o chão. Por diversas vezes no mesmo período o arguido aguardou que a Assistente limpasse o chão da cozinha para de imediato aí ir entornar vinho ou água.

Apurou-se ainda que no dia 22 de Setembro de 2016, pelas 14.00 horas, no interior da casa de morada de família, o arguido iniciou discussão com a ofendida, e abrindo a porta do frigórico atirou para o chão todos os alimentos que este continha no seu interior. O arguido recusou-se sempre a comparticipar nas despesas, dizendo à Assistente "sai-me daqui para fora, eu não vou pagar nada".

Face ao exposto, dúvidas não existem, atenta a matéria de facto provada e o que vem de dizer-se sobre o tipo legal de crime se encontram preenchidos os elementos objectivos do tipo legal em apreço, tendo o arguido atingido a assistente na sua honra e consideração, liberdade pessoal, coarctando o seu direito ao descanso, ofendendo-a na sua dignidade humana e deixando-a em difícil condição económica, sendo que na senda do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 16/01/2013 (in www.dgai.pt. processono486/08.SGAPMS.C1. Relatora Sra. Juiz Desembargadora Maria Pilar de Oliveira), a privação dos bens essenciais no espaço da residência que será o reduto de maior tranquilidade de qualquer pessoa, constituindo uma forte humilhação e privação do que de mais essencial se espera desse espaço privado, atentatória da dignidade humana.

Os factos em crise passaram-se no domicílio comum, referido em 2).

Atentemos agora no elemento subjectivo do crime em apreço.

Nesta sede provou-se que o arguido agiu consciente e voluntariamente, bem sabendo que, de forma reiterada atingia o corpo e a saúde da sua mulher LR, debilitando-a psicologicamente, fazendo-a recear pela sua vida, cerceando assim a sua liberdade pessoal, prejudicando o seu bem-estar psicossocial e ofendendo-a na sua honra e dignidade humana, assim como na sua liberdade sexual e sentimento de pudor. O arguido agiu sempre de modo livre, deliberado e consciente, conhecedor da ilicitude dos seus actos. Sabia que as suas condutas eram proibidas por lei.

Em face do exposto, é patente que se encontram preenchidos não só os elementos objectivos, mas também o subjectivo do crime em análise, na modalidade de dolo directo (artigo 140 do Código Penal) estando verificado o cometimento por parte do arguido de um crime de violência doméstica previsto e punido pelo nº 1 a) e nº 2 do artigo 1520 do Código Penal, pelo qual vai condenado.
(…)”.

IV
Apreciando a primeira questão, [(i)], aportada ao conhecimento deste Tribunal ad quem pelo recorrente, vejamos.

Desde já, importa relembrar que o recurso, em matéria de facto não visa, em circunstância alguma, a realização de um segundo e novo julgamento, mas tão só e apenas um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando (violação de normas de direito substantivo) ou in procedendo (violação de normas de direito processual) e, por outro, que “Perante uma determinada situação em concreto, produzidos em audiência depoimentos de sentido contrário, é natural que sejam lícitas e possíveis várias soluções, na decisão da matéria de facto. Se aquela que é assumida pelo juiz é uma das soluções admissíveis, à luz das regras da experiência comum (e se, para além disso, tal solução se mostrar suficientemente motivada e esclarecida), então estamos perante decisão inatacável no plano fáctico, pois que produzida em estrita obediência ao estatuído no artº 127º do Cod. Proc. Penal. (…) Isto é: se perante determinada situação de facto em concreto, as provas produzidas permitirem duas (ou mais) soluções possíveis e o juiz, fundamentadamente, optar por uma delas, a decisão (sobre matéria de facto) é inatacável: o recorrente (tenha ele, nos autos, a posição processual que tiver), ainda que haja feito da prova produzida uma leitura diversa da efectuada pelo julgador, não pode opor-lhe a sua convicção e reclamar, do tribunal de recurso, que por ela opte, em detrimento e atropelo do princípio da livre apreciação da prova.”- cfr. Acórdão Tribunal da Relação de Évora de 15.03.2011, proferido no processo nº 212/04.8 TACTX.E1, disponível em www.dgsi.pt/jtre.

Acresce que, a lei processual penal coloca à disposição do dissidente da decisão de facto assumida pelo Tribunal a quo dois mecanismos para a colocar em crise, em segunda instância, a saber: (i) o erro de julgamento ínsito no artigo 412º, nºs 3 e 4, do Código de Processo Penal, visando este que a reapreciação não se restrinja ao texto da decisão recorrida, antes se alargue à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência de julgamento, dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento, que se lhe impõe, dos ónus de especificação a que aludem os nºs 3 e 4, do citado preceito legal, quais sejam (a) a especificação dos “concretos pontos de facto” que considera incorrectamente julgados, especificação esta que só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que se considera incorrectamente julgado, (b) a especificação das “concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida”, especificação esta que só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida, acrescendo que o recorrente deve explicitar por que razão essa prova impõe decisão diversa e, sendo caso, (c) a especificação das “provas que devem ser renovadas”, que só se satisfaz com a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento no Tribunal de primeira instância, dos vícios referidos nas alíneas do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal e das razões para crer que aquela renovação da prova permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. artigo 430º, nº 1, do citado diploma); (ii) os vícios a que se reportam as alíneas do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal, vícios que têm que resultar do texto da decisão recorrida, por si só considerada ou conjugadamente com as regras da experiência comum, não sendo possível o apelo a elementos estranhos à decisão, ainda que provenientes dos autos ou do próprio julgamento, só sendo de ter em conta os vícios intrínsecos da própria decisão, considerada como peça autónoma.

Aqui chegados, volvendo aos autos e à peça recursiva, o arguido coloca em crise a factualidade dada como provada na decisão recorrida constante dos pontos sob os números “4)”, “5)”, “6)”, “7)”, “8)”, “9)”, “10)”, “11)”, “12)”, “13)”, “14)”, “27)”, “28)”, “29)”, “30)”, “31)” e “32)” alegando, por um lado, que os factos dados como provados “correspondem a imputações genéricas, sem precisão do lugar onde ocorreram e sem qualquer enquadramento temporal”, representando “uma clara imprecisão da matéria de facto provada”, colidindo “com o direito ao contraditório, na esfera da defesa do arguido” e violando o artigo 32º, da Constituição da República Portuguesa, por outro, que a factualidade cujo procedimento criminal foi declarado extinto por prescrição não devia ter sido levada à fundamentação/decisão de facto e deve ser dali expurgada, e, finalmente, reclamando que prova bastante não foi feita na instância que permitisse a prova de tal acervo fáctico.

Atentando na primeira linha de argumentação recursiva, urge recordar que no crime de violência doméstica previsto no artigo 152º, do Código Penal, “Como ensina o Prof. Américo Taipa de Carvalho, o intento de prevenir e reprimir as ofensas que rebaixem de modo socialmente insuportável a dignidade pessoal da vítima está por certo na base da criminalização específica dos maus tratos domésticos.[3]

Sobre o bem jurídico tutelado pelo crime de violência doméstica, vária tem sido a discussão, não existindo unanimidade de entendimento.

Para Nuno Brandão, ao contrário do que vem sendo defendido pela jurisprudência, não é de sufragar o entendimento que vai no sentido de o bem jurídico protegido pelo crime de violência doméstica ser a dignidade humana. Porquanto, com o delito em causa se pretende dirigir e actuar sobre condutas que estão muito longe de uma tal dignidade. Sendo mais adequada á teleologia da específica criminalização dos maus tratos intra-familiares, à sua inserção sistemática e à eficácia operativa do preceito apontar a saúde como o bem jurídico do crime de violência doméstica. Sendo objecto de tutela a integridade das funções corporais da pessoa nas suas dimensões física e psíquica[4].

Para Miguez Garcia o bem jurídico protegido pela norma será um bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental, a liberdade nas suas expressões sexual e de natureza pessoal.[5]

Para Plácido Conde Rodrigues, o bem jurídico protegido pelo tipo de crime em apreço será a saúde, enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana e da garantia da integridade pessoal contra os tratos cruéis, degradantes ou desumanos, num bem jurídico complexo que abrange a tutela da sua saúde física, psíquica, emocional e moral[6].

Como afirmação de que o bem jurídico protegido pelo tipo legal de crime em apreço é, em geral, a dignidade da pessoa humana e, em particular, a saúde, vemos vários arestos dos nossos Tribunais Superiores, de onde destacamos, entre outros, o Acórdão da Relação do Porto, de 26.05.2010, no Processo n.º 179/08.3GDSTS.P1.

E estaremos perante um crime específico impróprio, cuja ilicitude é agravada em virtude de uma relação familiar, parental ou de dependência entre o agente e a vítima. Pressupondo que o sujeito activo se encontre numa determinada relação para com o sujeito passivo, a vítima dos seus comportamentos. O sujeito passivo ou vítima só pode ser a pessoa que se encontre, para com o agente ou sujeito activo, numa relação de coabitação conjugal ou seja cônjuge.[7] De salientar que a lei prescinde da existência de laços familiares entre a vítima e o agente ao tempo do facto. Do que de tal dá bem nota o segmento da lei ao abranger o ex-cônjuge ou pessoa com quem o agente “tenha mantido” relação análoga à dos cônjuges. Alargando-se, desta sorte, a tutela às relações parentais não familiares.

A conduta típica da violência doméstica tanto se pode revestir de maus-tratos físicos, onde se incluem as ofensas corporais, como de maus tratos psíquicos, designadamente humilhações, provocações, molestações, ameaças ou outros maus tratos, como sejam as ofensas sexuais e as privações da liberdade.

E como refere Nuno Brandão, in ob. cit., a págs. 21 a 22, no crime em apreço devem estar em causa actos que pelo seu caracter violento sejam, por si só ou quando conjugados com outros, idóneos a reflectir-se negativamente sobre a saúde física ou psíquica da vítima.


Sendo que a circunstância de uma certa acção poder, a priori, integrar o conceito de maus tratos não significa necessariamente que se dê sem mais como preenchido o tipo-de-ilícito do crime de violência doméstica, tudo dependendo da respectiva situação ambiente e da imagem global do facto.

Entre todas as acções que podem ser tidas como maus tratos físicos temos de aí incluir os comportamentos agressivos contra o corpo e que preencham a factualidade típica da ofensa á integridade física; mesmo que se não comprove uma efectiva lesão da integridade corporal da pessoa visada.

No que respeita aos maus tratos psíquicos, aí podemos incluir todos os comportamentos que passem pelos insultos, as críticas e comentários destrutivos, achincalhantes ou vexatórios, as ameaças, as privações de liberdade, as perseguições…

Para se assumirem como actos típicos de maus tratos, estes comportamentos não têm de possuir relevância específica no seio de outros tipos legais de crime. Seja no sentido de que nem remotamente poderiam ser integrados em qualquer outra previsão típica, seja no de que a conduta seria de molde a preencher um específico tipo-de-ilícito, mas fica aquém do necessário para esse efeito, como se costuma enfatizar em relação às ameaças.

Há que analisar, de seguida, se para o preenchimento do tipo em questão se basta a prática de um acto isolado ou antes se tem de exigir a reiteração de conduta.

Com a alteração legislativa operada pela Lei n.º 59/07, de 4 de Setembro, veio decidir-se no sentido de bastar para o preenchimento do tipo legal de crime de violência doméstica a prática de um acto isolado e sem que se exija a reiteração de conduta. Pondo-se, desta forma, fim à polémica que existia no seio da doutrina e da jurisprudência, a respeito. Sendo hoje inequívoco que a tutela da violência doméstica se projecta não apenas sobre casos de reiteração ou habitualidade de comportamentos violentos, mas também potencialmente aplicável a uma conduta violenta. Porém, não é qualquer acção isolada de violência exercida no âmbito doméstico que poderá ser qualificada como de maus tratos com vista ao preenchimento do tipo. Como refere Nuno Brandão, in ob. cit., a págs. 21, com a revisão de 2007 foi inequivocamente aberto caminho para a integração de alguns dos casos (do facto único) no ilícito-típico de violência doméstica. Na versão final da revisão deixou de constar a referência à intensidade dos maus-tratos como alternativa à reiteração, que fazia parte da proposta de Lei 98-X. Na jurisprudência anterior á revisão era já largamente maioritária a posição de que o crime de maus tratos não pressupunha uma reiteração de condutas, podendo bastar-se com um único comportamento agressivo. Para tal, muitas vezes, erigiu-se como critério relevante que a ofensa se revestisse de uma certa gravidade, que, fundamentalmente, traduzisse crueldade e insensibilidade ou até vingança desnecessária por parte do agente.

Mais recentemente, na Relação de Coimbra, vem-se aflorando a ideia da dignidade pessoal da pessoa ofendida e à possibilidade de à mesma ser atribuído o estatuto de vítima, considerando-se que “o que importa é que os factos, isolados ou reiterados, apresentados à luz da intimidade do lar e da repercussão que eles possam ter na possibilidade de vida em comum, coloquem a pessoa ofendida numa situação que se deva considerar de vítima, mais ou menos permanente, de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade, dentro do ambiente conjugal”.[8] Apesar de entender de que os citados arestos apontam na direcção correcta, entende, porém, o Autor que há que exigir que o comportamento violento seja um tal que, pela sua brutalidade ou intensidade ou pela motivação ou estado de espírito que o anima, seja de molde a ressentir-se de modo indelével na saúde física ou psíquica da vítima.[9]

Ou como se deu nota no Acórdão da Relação do Porto, de 19.09.2012, no Processo n.º 901/11.0PAPVZ.P1, como a própria expressão legal sugere, a acção não pode limitar-se a uma mera agressão física ou verbal, ou à simples violação de alguma ou algumas das liberdades da vítima, tuteladas por outros tipos legais de crimes. Importa que a agressão em sentido lato constitua uma situação de “maus tratos”. E estes só se verificam quando a acção do agente concretiza actos violentos que, pela sua imagem global e pela gravidade da situação concreta são tipificados como crime pela sua perigosidade típica para a saúde e bem-estar físico e psíquico da vítima. Se os maus tratos constituem ofensa do corpo ou da saúde de outrem, contudo, nem toda a ofensa inserida no seio da vida familiar/doméstica representa, imediatamente, maus tratos, pois estes pressupõem que o agente ofenda a integridade física ou psíquica de um modo especialmente desvalioso e, por isso, particularmente censurável. Não são os simples actos plúrimos ou reiterados que caracterizam o crime de maus tratos a cônjuge, o que importa é que os factos, isolados ou reiterados, apreciados à luz da intimidade do lar e da repercussão que eles possam ter na possibilidade de vida em comum, coloquem a pessoa ofendida numa situação que se deva considerar de vítima, mais ou menos permanente, de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade, dentro do ambiente conjugal.


O tipo subjectivo só pode ser preenchido dolosamente. Sendo que o conhecimento correcto da identidade e das características da vítima é fundamental para a conformação do dolo do agente, como refere Pinto de Albuquerque, in ob. cit., págs. 406.” - v.g. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 20.03.2018, proferido no processo nº 9336/17.0 T8STB.E1, disponível em www.dgsi.pt/jtre [relatado pelo Juiz Desembargador que no presente aresto intervém como Adjunto].

Por outro, importa não olvidar que se nos afigura dominante a jurisprudência dos Tribunais Superiores de acordo com a qual não são factos susceptíveis de fundamentar um juízo de censura jurídico-penal as imputações genéricas em que não se indica ou concretiza o lugar, o tempo, a motivação, o grau de participação ou as circunstâncias relevantes à tipificação da acção, mas, outrossim, apenas ou tão só um conjunto fáctico não concretizado, vago ou indeterminado.

Em breve resenha, dá-se destaque à seguinte jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça:

» “(…) 5 - Não são "factos" susceptíveis de sustentar uma condenação penal as imputações genéricas, em que não se indica o lugar, nem o tempo, nem a motivação, nem o grau de participação, nem as circunstâncias relevantes, mas um conjunto fáctico não concretizado ("procediam à venda de produtos estupefacientes", "essas vendas eram feitas por todos e qualquer um dos arguidos", "a um número indeterminado de pessoas consumidoras de heroína e cocaína", "utilizavam também "correios", "utilizavam também crianças", etc.). 6 - As afirmações genéricas, contidas no elenco desses "factos" provados do acórdão recorrido, não são susceptíveis de contradita, pois não se sabe em que locais os citados arguidos venderam os estupefacientes, quando o fizeram, a quem, o que foi efectivamente vendido, se era mesmo heroína ou cocaína, etc. Por isso, a aceitação dessas afirmações como "factos" inviabiliza o direito de defesa que aos mesmos assiste e, assim, constitui uma grave ofensa aos direitos constitucionais previstos no art. 32º da Constituição.” - v.g. Acórdão de 06.05.2004, proferido no processo nº 04P908;

» “I - O princípio ou cláusula geral estabelecido no n.º 1 do art. 32.º da CRP significa, ao aludir a todas as garantias de defesa, que ao arguido, como sujeito processual, devem ser assegurados todos os direitos, mecanismos e instrumentos necessários e adequados para que possa, em plena liberdade da vontade, defender-se, designadamente para que possa contrariar a acusação ou a pronúncia, através de um julgamento imparcial, realizado com total independência do juiz, em procedimento leal e justo, sendo certo que a individualização e clareza dos factos objecto do processo são indispensáveis para que o arguido possa válida e eficazmente contraditar a acusação ou a pronúncia, única forma de se poder defender. (…)” - v.g. Acórdão de 21.02.2007, proferido no processo nº 06P4341;

» “(…) VI - Não se podem considerar como “factos” as imputações genéricas, em que não se indica o lugar, nem o tempo, nem a motivação, nem o grau de participação, nem as circunstâncias relevantes, mas um conjunto fáctico não concretizado, pois a aceitação dessas afirmações para efeitos penais inviabiliza o direito de defesa e, assim, constitui uma grave ofensa aos direitos constitucionais previstos no art.º 32.º da Constituição. Por isso, essas imputações genéricas não são “factos” susceptíveis de sustentar uma condenação penal.” - v.g. Acórdão de 15.11.2007, proferido no processo nº 07P3236;

» “(…) III - Como vem sendo afirmado pela jurisprudência dominante do STJ, as imputações genéricas, designadamente no domínio do tráfico de estupefacientes, sem qualquer especificação das condutas em que se concretizou o aludido comércio e do tempo e lugar em que tal aconteceu, por não serem passíveis de um efectivo contraditório e, portanto, do direito de defesa constitucionalmente consagrado, não podem servir de suporte à qualificação da conduta do agente. IV - Por isso, será de ter por não escrita aquela imputação genérica … (…)” - v.g. Acórdão de 02.04.2008, proferido no processo nº 07P4197;

» “(…) XX - Resultando da matéria de facto apurada apenas que (aqui se excluindo factualidade abrangida por anterior condenação judicial), após 03-11-2003, o arguido, que havia estado preso e voltara a viver com a mulher e as filhas, «continuou a consumir bebidas alcoólicas e, por algumas ocasiões, em datas não apuradas», agrediu aquela «com bofetadas» e que com «frequência era chamada a Polícia àquela residência», impõe-se concluir que a descrição da conduta do arguido considerada provada se mostra algo indefinida, vaga e genérica, tanto em relação ao tempo e ao lugar da prática dos factos, como relativamente aos próprios factos integradores das agressões e respectivas motivação e consequências, não se encontrando esclarecido o número de ocasiões em que tal ocorreu, a quantidade de bofetadas em causa ou qualquer elemento relativo à forma e intensidade como foram desferidas, ao local do corpo da ofendida atingido e às suas consequências, em termos de lesões corporais ou de efeitos psíquicos, também se desconhecendo, além do contexto de consumo de álcool, a motivação da conduta em causa, sendo certo que não se encontra assente qualquer facto integrador do elemento subjectivo constitutivo do tipo legal.

XXI - Esta imprecisão da matéria de facto provada colide com o direito ao contraditório, enquanto parte integrante do direito de defesa do arguido, constitucionalmente consagrado, traduzindo aquela uma mera imputação genérica, que a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem entendido ser insusceptível de sustentar uma condenação penal – cf. Acs. de 06-05-2004, Proc. N.º 908/04 - 5.ª, de 04-05-2005, Proc. N.º 889/05, de 07-12-2005, Proc. N.º 2945/05, de 06-07-2006, Proc. N.º 1924/06 - 5.ª, de 14-09-2006, Proc. N.º 2421/06 - 5.ª, de 24-01-2007, Proc. N.º 3647/06 - 3.ª, de 21-02-2007, Procs. N.ºs 4341/06 - 3.ª e 3932/06 - 3.ª, de 16-05-2007, Proc. N.º 1239/07 - 3.ª, de 15-11-2007, Proc. N.º 3236/07 - 5.ª, e de 02-04-2008, Proc. N.º 4197/07 - 3.ª.
(…)” - v.g. Acórdão de 02.07.2008, proferido no processo nº 07P3861, todos disponíveis em www.dgsi.pt/jstj.

Tendo em consideração o que se deixa exposto, volvendo aos autos e ao primeiro segmento argumentativo em que o recorrente funda o seu dissídio relativamente à matéria de facto dada como provada na decisão recorrida, aceitando (aquele e nós) a afirmação vertida nesta que estamos em presença de dois blocos factuais situados temporalmente, o primeiro, desde o dia do casamento, em 21.05.1966, até ao ano 2000 e, o segundo, desde o ano 2010 até ao ano 2016, [no período de cerca de dez anos, compreendido entre o ano de 2000 e o ano de 2010, não houve grosso modo quaisquer contactos entre o arguido e a ofendida, consentido o entendimento de que houve uma interrupção dos actos criminosos e da persistência da resolução criminosa], atentando no primeiro bloco factual, forçoso é concluir que assiste razão ao recorrente.

Na verdade, a descrição factual reportada ao hiato temporal em causa - de Maio de 1966 a 2000 -, de cerca de catorze anos, constante dos pontos sob os números “4)”, “5)”, “6)”, “7)”, “8)”, “10)”, “11)”, “12)” e “14)” do acervo fáctico dado como provado na decisão recorrida, da simples leitura da mesma, logo é por demais evidente ser genérica, difusa, imprecisa e vaga, como aliás, subliminarmente o reconhece o Tribunal a quo, importando, por isso, que se tenha como não escrita por violação irreparável do contraditório e das garantias de defesa em processo penal – cfr. artigo 32º, da Constituição da República Portuguesa. Como se lê Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.02.2007, proferido no processo nº 06P4341, disponível em www.dgsi.pt/jstjO princípio ou cláusula geral estabelecido no n.º 1 do art. 32.º da CRP significa, ao aludir a todas as garantias de defesa, que ao arguido, como sujeito processual, devem ser assegurados todos os direitos, mecanismos e instrumentos necessários e adequados para que possa, em plena liberdade da vontade, defender-se, designadamente para que possa contrariar a acusação ou a pronúncia, através de um julgamento imparcial, realizado com total independência do juiz, em procedimento leal e justo, sendo certo que a individualização e clareza dos factos objecto do processo são indispensáveis para que o arguido possa valida e eficazmente contraditar a acusação ou a pronúncia, única forma de se poder defender.”.
E, se tais factos se têm por não escritos, não há factos que tenham a virtualidade para preencher a tipicidade do ilícito em causa, não há factos que constituam crime e, consequentemente, sobre eles não pode ser declarada a prescrição do respectivo procedimento criminal, prescrição que se há-de referir, naturalmente, à factualidade com relevância normativa, com relevância jurídico-penal.

No que respeita ao acervo fáctico constante do ponto sob o número “9)” dos factos dados como provados na decisão recorrida, integrante (ainda) do hiato temporal em apreço, abrangido pela declaração de prescrição do procedimento criminal proferida pelo Tribunal a quo, destarte sempre se dirá que, por si só, não reveste aquele carácter violento e idóneo a reflectir-se negativamente na saúde física ou psíquica da vítima/ofendida permitindo ou consentindo a sua consideração como mau-trato para efeitos de subsunção à tipicidade objectiva do crime de violência doméstica em causa.

Mas, da leitura da factualidade dada como provada constante dos pontos sob os números “27)”, “28)”, “29)”, “30)”, “31)” e “32)” da decisão de facto assumida pelo Tribunal a quo, relativa ao hiato temporal de cerca de seis anos, de 2010 até Setembro de 2016, forçoso é concluir, igualmente, que valem mutatis mutandis as considerações acima efectuadas sobre a natureza vaga, genérica e indeterminada daquele conjunto fáctico, que importa, em consequência, que seja também declarado não escrito por violação irreparável do contraditório e das garantias de defesa do arguido em processo penal - cfr– art 32º, da Constituição da República Portuguesa.

Excepção feita à factualidade constante do ponto sob o número “13)” do acervo factual dado como provado e constante da decisão recorrida.

Recordando o respectivo teor, ali se consignou que, “No dia 22 de setembro de 2016, pelas 14,00 horas, no interior da casa de morada de família, o arguido iniciou discussão com a ofendida, e abrindo a porta do frigórico atirou para o chão todos os alimentos que este continha no seu interior”.

Ressalvado o devido respeito por diferente entendimento, ante as considerações que supra se deixaram elencadas sobre a tipicidade objectiva do crime de violência doméstica, p. e p. no artigo 152º, nº 1, do Código Penal, logo se conclui que tal factualidade não tem, por si, virtualidade para integrar o cometimento do citado ilícito. É, obviamente, uma conduta por parte do arguido dirigida à pessoa da ofendida reveladora de grosseria, falta de educação, falta de respeito, mas não uma qualquer agressão que se possa “concluir pela verificação de actos violentos que, pela sua imagem global e pela sua gravidade, devam ser tidos como desrespeitadores da pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, e, logo, susceptíveis de serem classificados como maus tratos.” - v.g. o acima citado Acórdão deste Tribunal da Relação de Évora.

E, porque assim, supérfluo se torna conhecer e apreciar da reclamada insuficiência da prova produzida na instância.

E, igualmente, prejudicada se mostra a apreciação das restantes elencadas questões trazidas ao conhecimento deste Tribunal ad quem pelo recorrente - cfr. artigo 608º, nº 2, do Código de Processo Civil aplicável ex vi do artigo 4º, do Código de Processo Penal -, porque em razão de tudo o que se deixou exposto impõe-se, sem mais, a absolvição do arguido do crime de violência doméstica por que foi condenado na primeira instância e bem assim do pedido de indemnização civil contra si deduzido (fundado na prática do perecido crime).

Em consequência de tudo o que se deixa expendido, o recurso interposto pelo arguido deve ser julgado procedente.

V
Tendo em consideração o estatuído no artigo 513º, nº 1, do Código de Processo Penal, não é devida tributação.

VI
Decisão
Nestes termos acordam em:
A) - Conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido JC e, em consequência, revogar a decisão recorrida e absolver o arguido quer da prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nºs 1, alínea a) e 2, do Código Penal, quer do pedido de indemnização civil contra si deduzido, em que foi condenado na primeira instância;

B) - Não ser devida tributação.

[Texto processado e integralmente revisto pela relatora (cfr. artigo 94º, nº 2, do Código de Processo Penal)]

Évora, 22 de Novembro de 2018
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(Maria Filomena Valido Viegas de Paula Soares)
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(José Proença da Costa)