Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2204/16.5T8FAR.E1
Relator: VÍTOR SEQUINHO
Descritores: DIVÓRCIO SEM CONSENTIMENTO DO OUTRO CÔNJUGE
ATRIBUIÇÃO DA CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
Data do Acordão: 11/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A lei não estabelece um regime substantivo para a atribuição provisória da casa de morada da família na pendência do processo de divórcio. Em face disso, para se decidir a qual dos cônjuges deve ser atribuída a casa de morada da família, deve aplicar-se, por analogia, o disposto no artigo 1793.º do Código Civil. O n.º 1 deste artigo manda atender, nomeadamente, às necessidades de cada um dos cônjuges e ao interesse dos filhos do casal.
Decisão Texto Integral: Processo n.º 2204/16.5T8FAR.E1

Relatório


(…) propôs, contra (…), acção especial de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, contestada pela ré. No decurso da acção, a ré requereu que, nos termos do n.º 7 do artigo 931.º do CPC, o tribunal fixasse um regime provisório quanto à utilização da casa de morada da família, atribuindo-lhe o direito a esse uso, a título gratuito, até à partilha ou à venda da mesma casa. O autor opôs-se a que a utilização da casa de morada da família seja atribuída à ré e sustentou ainda que, caso isso aconteça, deverá ser definida a duração de tal utilização e fixada uma contrapartida pecuniária não inferior a € 600 mensais, com aumentos anuais. Realizou-se a audiência final, na sequência da qual foi proferida sentença que decretou o divórcio e atribuiu à ré o direito de utilização da casa de morada da família, mediante uma contrapartida mensal de € 400, “perdurando este direito após a maioridade dos dois filhos do ex-casal, apenas enquanto os mesmos aí residem e o imóvel se mantenha na titularidade do autor e do seu pai”. A responsabilidade pelas custas processuais foi distribuída por autor e ré na proporção de 2/3 e 1/3, respectivamente.

O autor recorreu da sentença, formulando as seguintes conclusões:

1. O procedimento do tribunal a quo foi o da estrita observância dos formalismos legais, existindo para o autor/apelante uma correcta aplicação da lei no que concerne à decisão sobre o divórcio sem consentimento do outro cônjuge com decretação do mesmo e a consequente dissolução do casamento.

2. No que concerne à atribuição provisória da casa de morada de família e consequentemente à responsabilidade em matéria de custas, em face da prova documental junta aos autos e dos factos considerados provados, o apelante tem convicção diversa da convicção e decisão do douto tribunal a quo, circunscrevendo-se o objecto do recurso às alíneas B) e C) da douta sentença proferida pelo tribunal a quo, ou seja, à atribuição do direito de utilização da casa de morada de família à ré e à proporção da responsabilidade de custas fixada ao autor, não tendo sido devidamente considerados na decisão proferida factos dados como provados e prova documental.

3. A ré requereu a atribuição provisória da casa de morada de família na pendência da ação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, pedido a que o autor se opôs fundamentando a respectiva posição, tendo juntado aos autos um acervo documental considerável corporizado por vinte e cinco (25) documentos.

4. Os documentos juntos confirmaram todos os factos alegados pelo apelante, não foram impugnados pela então ré e foram considerados pelo tribunal a quo, incidindo a aludida prova documental sobre a propriedade da fracção casa de família, as condições financeiras do autor e as condições de saúde do autor e a prova testemunhal provou a necessidade da habitação do aqui apelante.

5. De uma apreciação articulada dos factos provados atinentes às condições de saúde e financeiras do recorrente retira-se, sem dúvida, que este não tem possibilidades de suportar uma renda de casa e conjugando a referida apreciação com o facto de o apelante ser coproprietário da fracção objecto do litígio, conclui-se que a fracção em causa é o local onde pode viver dentro dos exíguos rendimentos que possui.

6. A inexistência de definição legal para “atribuição provisória da casa de morada de família” conduz ao entendimento que uma “atribuição provisória” da casa de morada de família é apenas e tão-somente a atribuição do direito de utilização temporário ou passageiro da casa de morada de família, delimitado um determinado lapso temporal e que terá um termo previsível.

7. A atribuição provisória da casa de morada de família tem carácter excepcional por se tratar de um regime provisório, caraterizado pela transitoriedade, que não é definitivo nem tendencialmente definitivo.

8. Para além da casa de morada de família em apreço ser um bem próprio do recorrente e de seu pai (em comum e sem determinação de parte ou direito, na proporção de metade para cada um), a discordância do recorrente relativamente à douta decisão do tribunal a quo coloca-se no âmbito da atribuição do direito de utilização da casa de morada de família à apelada, alicerçando-se em duas questões essenciais: a necessidade que o recorrente tem da casa e a decisão proferida pelo douto tribunal a quo sobre o lapso temporal em que perdurará o direito de utilização da casa e morada de família pela recorrida.

9. De acordo com o texto da douta sentença, a atribuição provisória à ré do direito de utilização da casa de morada de família, perdurando esse direito após a maioridade dos dois filhos do ex-casal, apenas enquanto os mesmos aí residem e o imóvel se mantenha na titularidade do autor e de seu pai constante, concede à recorrida duas faculdades distintas, que são extremamente gravosas para o recorrente.

10. A primeira faculdade constitui em conceder à recorrida o direito de utilização da casa de morada de família e a segunda consiste em dilatar esse direito no tempo, de tal modo que perdura para além da maioridade dos filhos (um dos quais é maior na presente data) enquanto os mesmos aí residirem e o imóvel se mantenha na titularidade do ora recorrente e de seu pai.

11. Nos termos em que foi proferida, a douta decisão determina que a apelada não procure habitação nem nada faça para tal, desincentive a autonomia e saída de casa dos filhos, mesmo após a maioridade dos mesmos, para que possa continuar a permanecer no imóvel, a custos reduzidos e em condições mais que vantajosas para si própria.

12. O apelante suporta todos os pagamentos, limitando-se a apelada a custear os consumos domésticos dos quais exclusivamente usufrui, não pagando nenhuma despesa, nem as referentes às dívidas comuns do dissolvido casal nem à casa de morada de família, designadamente o IMI, as prestações mensais de condomínio ou as de conservação extraordinárias do prédio.

13. O valor do condomínio da casa de morada de família é elevado considerando os rendimentos do recorrente, uma vez que as prestações periódicas mensais/trimestrais são compostas por fundo comum de reserva (FCR), quota e seguro, as quais são acrescidas de despesas extraordinárias com vedação, intercomunicadores, pintura, entre outras.

14. A renda mensal no montante de mensal de € 400,00 (quatrocentos euros) fixada na douta sentença, será repartida entre os dois coproprietários, recebendo o recorrente apenas e eventualmente € 200,00 (duzentos euros) pela sua meação, aos quais terá de deduzir os custos com impostos e condomínio.

15. A recorrida não custeia nenhuma das despesas com a fracção em que reside, não paga nenhuma das despesas/dívidas com o património comum do casal, incluindo-se nesses não pagamentos o IUC da viatura automóvel que utiliza exclusivamente em seu próprio benefício.

16. A atribuição da casa de morada de família à apelada determina que o recorrente apesar de ter necessidade de habitação ou de dinheiro para que possa arrendar uma habitação se veja impossibilitado de o fazer.

17. A fracção localiza-se no Largo das (…) em Vilamoura e está muito bem situada junto à Praça … (vulgo rotunda principal de Vilamoura); contudo, a realidade do mercado imobiliário impõe-se, sendo certo que mesmo que o apelante promova a venda da fracção nenhum potencial interessado a quererá comprar, quando tomar conhecimento da situação.

18. A douta decisão proferida ao fazer perdurar o direito de utilização da casa de morada de família pela recorrida para além da maioridade dos dois filhos enquanto os mesmos residirem nessa fração, transmutou a atribuição provisória da casa de morada de família numa atribuição definitiva.

19. Caso assim não se entenda, a atribuição deste direito de utilização à apelada poderá considerar-se tendencialmente definitivo, porquanto não foi imposto ou fixado um limite temporal, mercê do qual o termo do direito de uso é expectável ou determinável, uma vez que perdurando o direito de utilização para além da maioridade dos filhos, os mesmos podem permanecer ad aeternum na fracção com a mãe ou, no mínimo, podem dar a aparência de permanecerem na aludida habitação com o escopo de que a recorrida mantenha uma situação confortável para si própria.

20. O espírito do preceito legal que preceitua a possibilidade de atribuição provisória da casa de morada de família não é permitir que uma atribuição provisória da casa de morada de família se converta em definitiva.

21. O douto tribunal a quo estribou a respectiva decisão nas razões que se citam, entre outras, que o réu alegou ter necessidade da casa de família e requereu a sua atribuição, que se provou que o réu aufere uma pensão, tem problemas de saúde e vive em casa da sobrinha da namorada e que a casa de morada de família é um bem próprio seu, que o interesse do filho menor constitui um factor favorável à atribuição à ré do direito de utilização da casa de morada de família concluindo que o conjunto de factos apurados apontam no sentido da atribuição da casa de morada de família à ré.

22. É do conhecimento comum e dos tribunais que os valores das rendas praticados hodiernamente não se compadecem com pensões de reforma exíguas, como é a reduzidíssima pensão de reforma do recorrente a qual não é compatível nem apta a que este possa celebrar um arrendamento.

23. Em sede de sentença ficaram provados factos que ilustram as reais condições de saúde e financeiras do recorrente, os quais se encontram em contradição com a decisão proferida, uma vez que o apelante vive numa casa emprestada, a qual não é propriedade de familiar seu e cuja entrega aos legítimos donos lhe pode ser solicitada a qualquer momento.

24. A ocorrência do óbito do pai da recorrida constitui um facto importante, superveniente ao termo da audiência de discussão e julgamento, colocando a recorrida em igualdade de circunstâncias com o recorrente no que concerne à propriedade de imóvel para habitação.

25. O falecido pai da apelada deixou como bens de herança pelo menos uma casa de habitação sita em Quarteira-Vilamoura, na mesma área da actual residência desta, tendo esta herdado uma casa para habitação, consequentemente tornou-se proprietária ou coproprietária do imóvel devoluto, pode habitar no mesmo, não sendo compelida a mudar da zona em que reside e trabalha, uma vez que o aludido imóvel se situa na mesma área (Vilamoura-Quarteira).

26. No que respeita à aplicabilidade dos critérios do art. 1793º, n.º 1, do Cód. Civil, doutrina relevante como a subscrita pelo Professor Pereira Coelho vertida na douta sentença refere como pressupostos da aludida aplicabilidade, entre outros, a necessidade da casa ou a premência da necessidade como o factor principal a atender, a situação patrimonial» dos cônjuges ou ex-cônjuges, ou seja, saber quais os rendimentos e proventos de um e de outro, o interesse dos filhos e, ainda, “as demais «razões atendíveis» como sejam a idade e o estado de saúde dos cônjuges ou ex-cônjuges, a localização da casa relativamente ao local de trabalho de um e outro, o facto de algum deles dispor eventualmente de outra casa em que possa estabelecer a sua residência.”

27. Os ex-cônjuges estão em igualdade de circunstâncias: actualmente cada um deles é proprietário ou coproprietário um imóvel destinado a habitação, localizando-se esses imóveis na mesma área Vilamoura-Quarteira.

28. A apelada trabalha em Quarteira local onde possui uma loja de produtos esotéricos e dá consultas e o apelante é uma pessoa comprovadamente doente, incapacitada para o exercício de uma profissão possuindo escassos recursos financeiros.

29. Apenas um dos filhos do ex-casal é menor, estando confiado à guarda e cuidados da mãe, se for alterada a residência dentro da mesma localidade, o seu interesse não é atingido, uma vez que os estabelecimentos de ensino público que servem a cidade de Quarteira e Vilamoura são os mesmos.

30. Quanto à “situação patrimonial” dos ex-cônjuges, ou seja, quais os respectivos rendimentos e proventos, o recorrente recebe uma parca pensão de reforma por invalidez a qual acrescida do duodécimo perfaz a quantia mensal líquida de € 214,36, que embora tenha outros rendimentos estes são totalmente consumidos com o pagamento de dívidas da responsabilidade de ambos ex-cônjuges e a recorrida possui uma loja de produtos esotéricos e dá consultas em Quarteira.

31. Nestes termos, constituindo o factor principal a atender a necessidade da casa de morada de família, o douto tribunal ad quem para além dos outros pressupostos pode considerar as demais “razões atendíveis “na atribuição do direito de utilização da casa de morada de família ao recorrente”.

32. No caso vertente constituem “razões atendíveis”: a idade e o estado de saúde do recorrente, o facto da recorrida dispor de outra casa em que pode estabelecer a sua residência e a localização dessa casa relativamente ao local de trabalho da recorrida.

33. Tendo o interesse do filho menor constituído o facto favorável na atribuição da casa de morada de família à recorrida, considerando os factos provados, a aludida atribuição feita pelo douto tribunal a quo pelo menos deveria ter estabelecido o direito de utilização da mesma em termos idênticos ao preceituado quanto aos alimentos devidos ao filho em caso de divórcio e após a maioridade (Cód. Civil, art. 1905º, n.º 2 e art. 1880º), ou seja, até à data em que o filho agora menor completasse os 25 anos de idade, salvo se concluísse antes daquela data o seu processo de educação ou sua formação profissional ou se este tiver sido livremente interrompido.

34. A conjugação dos factos provados e das demais razões atendíveis com o factor principal a atender a “premência da necessidade” da casa de morada de família e com o facto superveniente consubstanciado na propriedade de uma casa na qual a recorrida pode residir sem se atingir o interesse do filho menor, origina a que deva ser atribuído ao recorrente o direito de utilização da casa de morada de família sita no Largo da (…), Cota (…), fração (…), em Vilamoura correspondente à fracção autónoma inscrita na matriz predial urbana sob o artigo n.º (…) da freguesia de Quarteira, concelho de Loulé e descrita na Conservatória do Registo Predial sob o n.º …/19910402 da mesma freguesia e concelho.

35. O douto acórdão do TRP de 03-04-2017 (RP20170403579/ 11.1TBVCDE.P1 in www.dgsi.pt) no respectivo sumário sustenta o seguinte:

“I - Apesar de o n.º 1 do artigo 1793.º do Código Civil permitir, em caso de divórcio, a constituição por decisão judicial de uma relação de arrendamento da casa de morada de família a favor de um dos ex-cônjuges, quando a mesma seja bem próprio do outro cônjuge, ainda que contra a vontade deste, numa situação em se prova a carência económica de ambas as partes não pode o julgador ficar indiferente ao critério da propriedade da casa em discussão.

II - Sendo a casa de morada de família bem próprio de um dos ex-cônjuges, não deve ser atribuída em arrendamento ao outro, quando o dono dela careça e não tenha meios económicos para encontrar outra habitação.”

36. Os serviços tributários não facultam ao recorrente documento comprovativo da titularidade dos bens da requerida designadamente caderneta predial ou outro, razão pela qual se requer que a recorrida junte comprovativo (imposto de selo, caderneta predial, descrição predial) referente à sucessão ocorrida por óbito dos falecidos pais.

37. No que respeita às custas a douta sentença fixou “Custas pelo Autor e Ré na proporção de 2/3 e 1/3, (artigo 527º, n.º 2, do CPC)”, decisão da qual o apelante discorda, a qual no seu entendimento, deveria ser em partes iguais para ambos litigantes atendendo ao vencimento e sucumbência.

38. No caso dos autos o recorrente intentou a acção de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, tendo o douto tribunal a quo considerado provados os factos alegados pelo recorrente autor e decretado divórcio com a consequente dissolução do casamento, havendo vencimento do apelante nessa parte e a ré intentou incidente de atribuição provisória da casa de morada de família no decurso do processo no qual o apelante ficou vencido.

39. Dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for (n.º 2 do art. 527º do CPC), todavia a douta sentença limita-se a fixar a proporção, sendo omissa quanto ao fundamento da condenação do recorrente na proporção de 2/3 das custas.

40. Do atrás exposto, resulta clara a discordância do apelante relativamente à decisão vertida nas alíneas b) e c) da douta sentença proferida pelo douto tribunal a quo, porquanto deverão ser revogadas as referidas alíneas e em consequência ser atribuída a casa de morada de família ao recorrente ou, em alternativa, caso o douto tribunal ad quem assim não entenda, ser fixado um limite temporal no direito de utilização da casa de morada de família que não exceda os 25 anos de idade do filho menor, e em consequência ser revogada a condenação em custas como é de Justiça.

O recurso foi admitido.


Objecto do recurso


Tendo em conta as conclusões das alegações de recurso, que definem o objecto deste e delimitam o âmbito da intervenção do tribunal de recurso, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, as questões a resolver são as seguintes:

1 – A quem deve ser atribuído o direito à utilização da casa de morada da família;

2 – Duração desse direito;

3 – Montante da contrapartida pecuniária pela referida utilização;

4 – Repartição da responsabilidade pelas custas processuais.


Factualidade apurada


Na sentença recorrida, foram julgados provados os seguintes factos:

1. Autor e ré contraíram casamento civil em 27 de Maio de 1989, sem precedência de convenção antenupcial, pelo que vigora entre ambos o regime da comunhão de adquiridos.

2. Desde finais de 2011, em data que o autor não consegue precisar, separou-se da ré, indo residir inicialmente com seu pai, (…), em (…) e, posteriormente, para a casa onde reside actualmente, sita na Avenida (…), lote (…), 1º-C, em Quarteira.

3. Desde a data da referida separação autor e ré não mais viveram sob o mesmo tecto, ou por qualquer forma viveram em comunhão de leito, mesa e habitação.

4. Desde finais de 2011, há cerca de cinco anos, que autor e ré fazem a sua vida de forma totalmente independente e autónoma.

5. O autor não tem qualquer intenção de manter o vínculo matrimonial ou de restabelecer a vida em comum, que findou há mais de 5 (cinco) anos.

6. Na constância do casamento do autor com a ré nasceram 3 filhos, dos quais um menor de idade: (…), nascido em 12/11/2003.

7. Quanto ao menor (…), as responsabilidades parentais encontram-se reguladas por sentença proferida em 10/12/2014, no âmbito do processo que correu termos, sob o n.º 279/14.0T8FAR deste tribunal.

8. A ré vive com sérias dificuldades, os filhos vivem consigo, um ainda menor e outro que, embora maior de idade, não é completamente independente por razões de saúde.

9. Apesar das dificuldades, a ré suporta as despesas da casa de morada de família.

10. A ré não tem qualquer intenção de viver em comum com o autor nem pretende restabelecer a relação conjugal, pretendendo que o casamento seja dissolvido por divórcio.

11. A casa de morada de família é uma fracção autónoma inscrita na matriz predial urbana sob o artigo n.º (…) da freguesia de Quarteira, concelho de Loulé e descrita na Conservatória do Registo Predial sob o n.º …/19910402 da mesma freguesia e concelho.

12. A titularidade da fracção pertence ao autor e ao seu pai, em comum e sem determinação de parte ou direito.

13. A metade do prédio adveio à propriedade do requerido por sucessão hereditária de sua mãe, (…), falecida no estado de divorciada, em 10-04-2010.

14. O autor encontra-se obrigado ao pagamento de uma pensão de alimentos no montante de € 150,00 mensais ao filho menor, que não tem pago.

15. A ré tem uma loja de produtos esotéricos sita no (…), em Quarteira, onde também dá consultas.

16. O autor está reformado por invalidez, recebendo mensalmente do ISS, IP uma pensão no montante de € 203,35 acrescido de € 11,01 referente a 50% do duodécimo mensal, o que perfaz a quantia mensal líquida de € 214,36 (duzentos e catorze euros e trinta e seis cêntimos).

17. Apesar do autor ter outros rendimentos (rendas mensais), os mesmos encontram-se onerados com o pagamento de dívidas comuns do casal, algumas contraídas em momento anterior à separação de facto, outras decorrentes de obrigações fiscais que não foram cumpridas e, ainda, obrigações decorrentes da fracção em que a requerente habita.

18. Existem rendas provenientes de um estabelecimento comercial (bar), sito no Sector (…) da Zona (…) de Vilamoura, com o montante mensal de € 400,00, as quais têm sido sucessivamente penhoradas no âmbito de processos de execução fiscal.

19. Para além destas importâncias, existe uma dívida contraída por ambos junto da (…) – Instituição Financeira Crédito, SA, para compra de recheio da casa de morada de família, cuja cobrança coerciva corre termos no processo de execução n.º 3218/15.8T8LLE – Juízo de Execução de Loulé no montante total provisório de € 6.128,18.

20. À execução movida pela Autoridade Tributária em que foram penhoradas as rendas, sucedeu a execução movida pela (…), encontrando-se a quantia exequenda a ser paga atualmente com a penhora das rendas do estabelecimento comercial sito no Sector (…) da Zona (…) de Vilamoura.

21. As prestações do condomínio do prédio a que pertence a fracção correspondente à casa de morada de família têm sido pagas pelo autor e por seu pai, encontrando-se liquidadas as prestações dos anos 2013, 2014, 2015 2016 e estando a ser pago o ano de 2017 no montante previsto de € 1.074,91.

22. O autor padece de problemas de saúde cardiovascular, os quais a requerente não desconhece, porquanto tiveram início antes de 2009, mais de dois anos antes da separação de facto do casal.

23. Em Setembro de 2009, o requerido sofreu uma síncope cardíaca, tendo sido internado no Hospital de Faro EPE.

24. No mês de março de 2014 sofreu acidente vascular cerebral (AVC).

25. No início do mês de Dezembro de 2015, foi submetido a nova cirurgia para remoção de pacemaker antigo, com a implantação de novo sistema CDI no coração no Hospital de Santa Cruz, em Lisboa.

26. Em 23 de Dezembro de 2015, o autor foi intervencionado para remoção do sistema CDI implantado e recolocação no coração na mesma unidade hospitalar.

27. Foi internado no Hospital de Faro entre os dias 22-06-2016 e 05-07-2016 em consequência de enfarte renal direito.

28. Em 02-11-2016, o requerido foi internado de novo no Hospital de Faro motivado por enfarte renal esquerdo, tendo permanecido em internamento até 16-11-2016.

29. O autor apresenta um quadro de má função renal global (enfarte bilateral).

30. Às outras patologias de que padece, associa-se hérnia discal para o que lhe foi prescrito o uso de cinta lombar.

31. Para o tratamento das várias doenças coexistentes, o requerido tem a correspetiva prescrição farmacológica necessária e permanente que lhe consome uma boa importância dos seus proventos.

32. O autor está a viver, em casa de terceiros, com a namorada.

Não foram oferecidas contra-alegações.

O recurso foi admitido.


Fundamentação


1 – A quem deve ser atribuído o direito à utilização da casa de morada da família:

O n.º 7 do artigo 931.º do CPC estabelece, na parte que agora nos interessa, que, em qualquer altura do processo de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, o juiz, por iniciativa própria ou a requerimento de alguma das partes, e se o julgar conveniente, pode fixar um regime provisório quanto à utilização da casa de morada da família. Trata-se de um processo especialíssimo, que se situa no âmbito da jurisdição voluntária, estando, pois, sujeito a critérios, não de legalidade estrita, mas de conveniência e oportunidade.

A lei não estabelece um regime substantivo para tal atribuição provisória da casa de morada da família na pendência do processo de divórcio. Em face disso, para se decidir a qual dos cônjuges deve ser atribuída a casa de morada da família, deve aplicar-se, por analogia, o disposto no artigo 1793.º do Código Civil. O n.º 1 deste artigo manda atender, nomeadamente, às necessidades de cada um dos cônjuges e ao interesse dos filhos do casal.

A sentença recorrida ponderou os factos provados à luz destes critérios e concluiu que a casa de morada da família deve ser atribuída à recorrida. Consideramos que, neste aspecto, o tribunal a quo decidiu bem. É evidente, em face dos factos julgados provados, que quer o recorrente, quer a recorrida, se encontram em situação bastante difícil, a vários níveis. Avulta, contudo, a circunstância de o filho menor do casal estar à guarda da recorrida e de os dois restantes filhos do casal também viverem com esta, sendo certo que um deles, apesar de maior, não é completamente independente por razões de saúde. A remoção imediata destas quatro pessoas da casa de morada da família criaria uma situação muitíssimo mais gravosa que a actual, em que, apesar de ser a título precário, o recorrente tem uma casa onde viver. A recorrida necessita bastante mais da casa de morada da família que o recorrente e a ponderação do interesse dos filhos do casal também aconselha a que todos eles fiquem, provisoriamente, a viver naquela casa.

Refira-se, a propósito, que a invocação, pelo recorrente, nas conclusões 24, 25, 27, 34 e 36, como factos supervenientes ao termo da audiência de discussão e julgamento, do óbito do pai da recorrida e da existência, na herança deste, de uma casa de habitação sita em Quarteira-Vilamoura, na mesma área da actual residência da recorrida, não podem ser tidos em consideração. Como é sabido e resulta dos artigos 627.º, n.º 1, 639.º, n.ºs 1 e 2 e 640.º do CPC, os recursos ordinários visam o reexame de questões que foram submetidas à apreciação do tribunal a quo e não o conhecimento de questões novas, excepto se estas forem de conhecimento oficioso. Muito menos visam o conhecimento de questões suscitadas com fundamento em factos novos, isto é, trazidos ao processo posteriormente à prolação da decisão recorrida e, logicamente, não provados.

Concluindo, a sentença recorrida não merece censura no que concerne à atribuição provisória do direito à utilização da casa de morada da família à recorrida.

2 – Duração do direito à utilização da casa de morada da família atribuído à recorrida:

O tribunal a quo atribuiu o direito de utilização da casa de morada da família à recorrida, estabelecendo que tal direito perduraria “após a maioridade dos dois filhos do ex-casal, apenas enquanto os mesmos aí residem e o imóvel se mantenha na titularidade do autor e do seu pai”.

Neste aspecto, o inconformismo do recorrente tem inteira razão de ser. Como anteriormente referimos, o incidente de atribuição do direito à utilização da casa de morada da família tem apenas em vista a fixação de um regime provisório sobre essa matéria. Quando a casa de morada da família é bem comum do casal, esse regime destina-se a vigorar, em regra, até à sua partilha ou venda. No caso dos autos, apesar de o pedido da recorrida ser nesse sentido, tal não é possível, pois a casa de morada da família pertence, em compropriedade, ao recorrente e a seu pai. Não obstante, impõe-se fixar um prazo de duração do direito de utilização da casa de morada da família por parte da recorrida que, por um lado, salvaguarde os interesses a que aludimos para fundamentar a atribuição desse direito, mas, por outro, se harmonize com a finalidade deste incidente, que é, repetimos, a fixação de um regime provisório. A solução encontrada pela sentença recorrida redunda em fazer depender a extinção do direito da recorrida de um facto futuro e incerto, porque dependente da vontade de terceiros, e, por essa razão, além de carecer de justificação substancial, não se harmoniza com a natureza deste incidente.

Ponderando os interesses do recorrente e da recorrida e tendo em mente que, como também já referimos, nos encontramos no âmbito da jurisdição voluntária, no qual a decisão a tomar deverá pautar-se por critérios de conveniência e oportunidade e não de legalidade estrita, consideramos razoável um prazo de cerca de 5 anos para a duração do direito de utilização da casa de morada da família por parte da recorrida. Ou seja, a recorrida terá de restituir a casa aos seus proprietários até ao dia 31 de Dezembro de 2023. Esta solução, além da vantagem da simplicidade, evitando futuras discussões sobre a verificação dos pressupostos da extinção do direito de utilização, concede, à recorrida, tempo suficiente para orientar a sua vida no sentido de sair de uma casa que não lhe pertence e, ao recorrente, a segurança de que, a médio prazo, conseguirá reaver a referida casa.

3 – Montante da contrapartida pecuniária pela utilização da casa de morada da família:

A sentença recorrida fixou a contrapartida pecuniária pela utilização da casa de morada da família em € 400 mensais. O recorrente considera este valor insuficiente, argumentando que é ele quem suporta o IMI, as prestações mensais de condomínio e as despesas de conservação extraordinárias do prédio.

Neste ponto, a sentença recorrida não merece censura. Considerando as condições de vida da recorrida que foi possível apurar, esta última muito dificilmente conseguiria suportar uma contrapartida de montante superior a € 400 por mês. E seria, obviamente, irrazoável fixar um valor que não estivesse ao alcance da recorrida. Deverá, pois, manter-se o montante fixado pelo tribunal a quo como contrapartida pecuniária pela utilização da casa de morada da família pela recorrida.

4 – Repartição da responsabilidade pelas custas processuais:

O recorrente insurge-se, por fim, contra a sua condenação pelo pagamento de 2/3 das custas processuais. Há que reconhecer-lhe razão, pois foi parte vencedora no que concerne ao pedido de divórcio e vencida no que concerne à atribuição da casa de morada de família. Considerando o disposto no artigo 527.º, n.º 2, do CPC, a repartição das custas devia ter sido em partes iguais.

Concluindo:

O recurso deverá ser julgado parcialmente procedente, mantendo-se a atribuição provisória do direito à utilização da casa de morada da família à recorrida, mediante o pagamento de uma contrapartida mensal de € 400, mas apenas até ao dia 31 de Dezembro de 2023. As custas da acção deverão ser suportadas por recorrente e recorrida em partes iguais, o mesmo acontecendo com as deste recurso.


Decisão


Acordam os juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso parcialmente procedente:

- Confirmando a sentença recorrida no que concerne à atribuição provisória do direito à utilização da casa de morada da família à recorrida e ao montante da contrapartida pecuniária a cargo desta por tal utilização;

- Revogando a sentença recorrida no que concerne ao momento da extinção do direito à utilização da casa de morada da família pela recorrida e determinando que essa extinção ocorrerá em 31 de Dezembro de 2023, data em que a recorrida deverá restituir a casa aos seus proprietários;

- Revogando a sentença recorrida no que concerne à repartição da responsabilidade pelas custas processuais, que passa a caber ao recorrente e à recorrida na proporção de metade para cada um.

Custas do recurso por recorrente e recorrida, em partes iguais.

Notifique.

Évora, 8 de Novembro de 2018

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

Conceição Ferreira

Rui Machado e Moura