Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
536/08.5TBCCH.E1
Relator: PAULO AMARAL
Descritores: ALTERAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO PELA RELAÇÃO
NEGÓCIO SIMULADO
Data do Acordão: 03/27/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Sumário:
I- A existência de dois contratos sucessivos de compra e venda de prédios, sendo que os primeiros vendedores são os avós da última compradora, não leva, por si só, à conclusão de que existe o negócio simulado a que se refere o art.º 242.º, n.º 2, Cód. Civil.
II- Para a atribuição de um significado relevante a esta realidade, é necessária a produção de outros meios de prova, designadamente, a testemunhal.

Sumário do relator
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Évora

“A” e, marido, “B”, residentes em …, intentaram a presente acção declarativa, de condenação, sob a forma de processo ordinário, contra “C”, residente em …, “D”, residente em …, “E”, casada com “F”, residentes em …, e “G”, casada com “H”, residentes em …, alegando, em síntese, que:
- Os pais da autora foram proprietários de dois prédios que identificam, situados na freguesia da Erra.
- Os pais da autora, “I” por si e na qualidade de procurador da sua mulher, “J”, falecidos em 29.10.2008 e 04.02.2008, respectivamente, venderam e outorgaram escrituras, em 21.01.2008 e em 13.11.2007, respectivamente, à ré “C” e à ré “D”, os prédios acima identificados, pelos valores de 10 000,00 € e 7 000,00 €, respectivamente.
- Posteriormente, a ré “D” e a ré “C” venderam à ré “E” os prédios que haviam adquirido aos falecidos, avós desta ré, pelo valor, respectivamente, de 7 500,00 € e 10 000,00 €.
- O valor real dos bens é superior ao valor declarado nas escrituras.
- As vendas realizadas tiveram por objectivo prejudicar a autora, ou seja, retirar os prédios da futura herança.
- Ao invés de doarem à neta ou venderem directamente à neta, o que não interessava, pois obrigava ao consentimento dos filhos e outros netos dos falecidos, resolveram negociar desta forma.
- E a pretensão era a autora não ter conhecimento.
- Nunca houve qualquer transacção, nem enriquecimento do património dos vendedores.
Concluem pedindo que:
a) Se declarem nulas as escrituras de compra e venda celebradas em 13.11.2007 e 21.01.2008, no Cartório Notarial de Salvaterra de Magos e as escrituras públicas realizadas em 16.05.2008 e 19.06.2008, no Cartório Notarial de Coruche;
b) Se ordene o cancelamento dos actos de registo que posteriormente aquela data, e com base nas ditas escrituras, tenham sido ou venham a ser feitos relativamente aos prédios nelas mencionados;
c) Ser a ré “G” habilitada como herdeira e ocupar a posição processual que seria dos seus pais, “I” e “J”.
Os réus contestaram, dizendo, em resumo, que os negócios vertidos nas escrituras públicas de compra e venda de 13.11.2007 e 21.01.2008, no Cartório Notarial de Salvaterra de Magos (entre os falecidos “I” e “J” como vendedores e as rés “D” e “C”, respectivamente, como compradoras) e as escrituras públicas realizadas em 16.05.2008 e 19.06.2008, no Cartório Notarial de Coruche (entre a ré “D” e a ré “C”, respectivamente, como vendedoras e a ré “E”, como compradora) foram reais, tendo sido pago o respectivo preço e a venda por parte dos falecidos tiveram essencialmente como objectivo angariar dinheiro para a sua ida para um lar.
Concluem pela improcedência da acção e pela sua absolvição do pedido.
*
Depois de realizado o julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção totalmente improcedente.
*
Desta sentença recorrem os AA. impugnando a matéria de facto e a consequente solução jurídica.
*
Os RR. não contra-alegaram.
*
Em relação à impugnação propriamente dita da matéria de facto, importa notar que o tribunal de recurso não faz um segundo julgamento. A lei não pretende um segundo julgamento na 2.ª instância mas tão-só uma melhor aferição do que foi decidido no tribunal recorrido; o que se pretende é um reexame da causa e não um exame. A «garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte (...) o princípio da livre apreciação da prova, contido no art. 655.º do Cód. Proc. Civil» (ac. da Relação de Lisboa, de 26 de Janeiro de 2011, em www.dgsi.pt). Por isso, o juízo probatório feito na 2.ª instância visa mais aferir «a razoabilidade da motivação apresentada, só intervindo quando ela se mostre improvável ou inverosímil» (ac. da Relação do Porto, de 25 de Novembro de 2009, no mesmo local) ou quando, acrescentamos nós, algum elemento probatório importante não foi considerado sendo que esta omissão pode levar a um resultado, também ele, improvável ou inverosímil.
Como se escreve no ac. desta Relação, de 27 de Setembro de 2011, «importa também atender que o recurso em matéria de facto para a Relação não constitui um novo julgamento em que toda a prova documentada é reapreciada pelo Tribunal Superior que, como se não tivesse havido o julgamento em 1.ª Instância: antes se deve entender que os recursos são remédios jurídicos que se destinam a despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo, que são expressamente indicados pelo recorrente, com referência expressa e específica aos meios de prova que impõem decisão diferente, quanto aos pontos de facto concretamente indicados, ou com referência à regra de direito respeitante à prova que teria sido violada, com indicação do sentido em que foi aplicada e qual o sentido com que devia ter sido aplicada (em www.dgsi.pt, proc. n.º 814/10.3TTSTB.E1).
Ou seja, e é isto que queremos frisar, também no tema da impugnação da matéria de facto, o Tribunal da Relação funciona como um tribunal de recurso.
Por outro lado, e como é natural, a parte que impugna a matéria de facto pretende obter só as respostas que lhe sejam favoráveis, pretende obter uma versão dos eventos que a não onere de qualquer forma. Naturalmente, aliás, é daí que vem o desacordo com o tribunal recorrido.
Mas, como é sabido, não são as partes, em caso de conflito, que decidem esta ou outras questões; elas são partes com tudo o que isso significa.
Importa notar, desde logo, o facto do despacho no qual se respondeu à matéria de facto estar devidamente fundamentado, como dele mesmo consta (não faltando aí um apontamento resumido dos depoimentos prestados pelas testemunhas ouvidas, e a referência a documentos, o confronto entre depoimentos e a sua capacidade de convicção), notando-se a preocupação do julgador em elucidar os respectivos destinatários, ou quem lê o processo, sobre o percurso que fez para responder desta e não doutra maneira à matéria em causa.
Não nos podemos esquecer, neste tipo de casos, que quem fez o julgamento foi um determinado Juiz e teve, por isso, acesso a elementos e dados a que nenhum outro julgador mais terá, sendo que a imediação é aqui fundamental.
Permitimo-nos chamar a atenção para o princípio da imediação querendo com isto dizer que a prova testemunhal é muito mais rigorosamente apreciada na 1.ª instância do que na 2.ª. Esta afirmação não significa que este tribunal não tenha que fazer, ele também, o exame crítico das provas indicadas (cfr. o recente e importante ac. do STJ, de 24 de Setembro de 2013, processo n.º 1965/04.9TBSTB.E1.S1); significa, outrossim, que o princípio da imediação é integralmente aproveitado na audiência de julgamento
Não, obviamente, que as decisões sobre a matéria de facto não possam, assim, vir a ser alteradas na 2ª instância – que o podem e devem mesmo, quando tal se justifique –, mas apenas e só para deixar assinalada a importância da imediação em matérias relacionadas com a apreciação da prova testemunhal (verdadeira ‘prova de fogo’ do juiz, como se costuma dizer). Mas também na Relação, enquanto Tribunal de instância, não deixará de vigorar o princípio da livre apreciação das provas produzidas, nos termos do n.º 1 do artigo 655.º do Código de Processo Civil (agora, art.º 607.º, n.º 5) — naturalmente, com os cuidados e cautelas que se deixam assinalados.
Além do que consta da fundamentação do despacho que decidiu a prova, e tendo esta sido ouvida por este tribunal, não se descortina aquele erro clamoroso de julgamento ou outro.
*
Tendo isto em mente, importa apreciar os termos concretos da impugnação.
*
Estão em questão os seguintes quesitos (segundo depreendemos das alegações uma vez que eles não são expressamente indicados):
9.º Quando “J” constituiu seu procurador o marido, para efeitos de outorga das escrituras de compra e venda referidas em C) e D), já se encontrava doente e com perda de lucidez?
12.º Quando a mãe morreu, o pai disse à autora que "passa tudo para nome da “E”"?
14.º Os falecidos não tinham razões de ordem económica para vender tais bens?
17.º Jamais houve entrega de preço nas vendas referidas em C), D), E) e F)?
20.º As rés combinaram entre si a celebração das identificadas escrituras com o fim de subtrair os identificados prédios ao acervo hereditário, a deixar por morte de “I” e “J”?
21.º E, assim, impedirem a autora de vir a herdar?
22.º Com a celebração das escrituras de compra e venda referidas em C), D), E) e F), pretenderam “I” e “J” fazer uma transmissão gratuita dos prédios identificados em B), para “E”?
27.º Os prédios identificados em B), ingressaram no património de “E” gratuitamente?
28.º O pai da autora referiu à ré “C” que precisava de dinheiro para colocar a sua mulher num lar interno e, que o dinheiro da venda do prédio, referido em C), lhe fazia falta para o pagamento?
*
Além destas perguntas, temos ainda um conjunto de factos provados que não podem ser ignorados. Referimo-nos à transferência de dinheiro do pai da A. para a R. Rosalina, mãe da R. “E”, que aconteceu em Junho de 2006. E temos, claro, as vendas. As realizadas pelos avós da R. “E” realizaram-se em Novembro de 2007 e Janeiro de 2008; as compras feitas pela R. “E” sucederam em Maio e Junho do mesmo ano.
No entanto, estes factos não são suficientes para caracterizar a simulação invocada (aquela que visa prejudicar os herdeiros legitimários e a que se refere o art.º 242.º, n.º 2, Cód. Civil). Pertencem a uma dada realidade objectiva que, despida de outro significado, não têm o valor, por si só, que os AA. alegam ter.
É, pois, bem necessário que a prova testemunhal que os recorrentes invocam no seu recurso seja determinante para uma solução diferente da encontrada na 1.ª instância, conforme estipula o art.º 685.º-B, n.º 1, al. b), Cód. Proc. Civil; que seja determinante para dar um certo sentido àqueles factos.
E é isso que não vemos.
*
Em relação ao quesito indicado em primeiro lugar, ele é irrelevante uma vez que se desconhece (não consta da base instrutória) a data em que foi emitida a procuração. Nem sequer é esta declaração que está aqui em causa.
Quanto aos demais (que se referem todos directamente à simulação), entendemos que a prova produzida não é suficiente para o efeito pretendido pelos recorrentes.
Estes baseiam-se fundamentalmente no depoimento de HC…, irmão da R. “D” e sogro da R. “E”.
O que esta testemunha diz, em resumo, é que o pai da A. e da R. “G” estava em desacordo com esta pois que lhe tinha pedido dinheiro para fazer obras num anexo de sua casa para receber os pais. Uma vez que a mãe da A. já não podia ficar com esta filha foi embora para outro lado de onde foi para casa da outra filha. Por isso, o pai da A. gostaria de dar algo à sua neta “E” uma vez que era em casa dos pais desta que estava a viver e que era ela que cuidava dele, oferta que a neta recusou. Mas continuou com a ideia de se desembaraçar dos prédios e, por isso, a testemunha indicou-lhe pessoas que podiam estar interessadas. Depois de realizadas as vendas, a R. “E” comprou os prédios mas para isso teve de vender o apartamento que tinha no Montijo; e comprou com o intuito de reaver os bens que tinham sido dos avós.
Não obstante o depoimento ter durado 1h06m, o certo é que apenas a primeira meia hora tem algum interesse e o resumo é o que se deixou feito.
Alegam os recorrentes que a testemunha afirmou, depois da morte da “J” que o “I” «queria passar tudo para a “E”». A testemunha em ocasião alguma mencionou alguma conversa tida com o “I” depois de este ter ficado viúvo. Por outro lado, quem fez aquela afirmação foi a Ilustre Mandatária dos AA. e não a testemunha; melhor dizendo, pôs na boca da testemunha aquelas palavras que nunca foram ditas.
Além disto, o que resulta deste depoimento é que a motivação para vender os prédios não foi o desejo de prejudicar a A.; e também resulta, sem sombra de dúvida, que a R. “E” não os recebeu gratuitamente.
*
O depoimento da testemunha MB…, neto de “I” e “J”, em nada altera os dados do problema pois que apenas se refere à falta de saúde da sua avó. Poderia ter algum interesse se estivesse em questão a procuração que esta passara a seu marido; mas já que não é isso vimos que aqui se discute.
*
Manifestamente, as respostas aos quesitos transcritos só podiam ser negativas, como realmente foram.
*
Assim, em nada se alteram as respostas dadas.
*
A matéria de facto é a seguinte:
1. A autora é tia da terceira ré, filha da sua única irmã consanguínea (Al. A)).
2. Os pais da autora, “I” e “J”, foram proprietários de:
a) Um prédio misto sito em Vale Vidro com a área de 12 175 m2, composto por cultura arvense, laranjeiras, sobreiros, dependência agrícola, montado de sobro e uma casa de rés-do-chão destinada a habitação com a área coberta de 50 m2 e descoberta de 175 m2, inscrito na matriz da freguesia da …, sob o artigo … da secção B, a parte rústica e a urbana sob o artigo … e descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º …;
b) Um prédio rústico sito em …, composto por cultura arvense, mato, sobreiros, figueiras e oliveiras, com a área de 27 500 m2, inscrito na matriz da freguesia da … sob o artigo … da secção B e descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º …, fls.104 do livro B-9 (Al. B)).
3. Os pais da autora, “I” por si e na qualidade de procurador de sua mulher, “J”, falecidos em 29.10.2008 e 04.02.2008, venderam e outorgaram escritura, em 21 de Janeiro de 2008, à primeira ré “C”, o prédio misto, sito em …, concelho de …, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo … da secção B e urbana sob o artigo … da freguesia da …, descrito a favor dos vendedores sob o n.º … na Conservatória do Registo Predial de …., pelo preço de 10 000,00 euros (Al. C)).
4. E, venderam e outorgaram escritura, no dia 13 de Novembro de 2007, nas mesmas condições, a “D”, o prédio rústico, inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo … da secção B da freguesia da …, pelo preço de 7 000,00 euros (Al. D)).
5. No dia 16 de Maio de 2008, “D” vendeu a “E”, mediante outorga de escritura, pelo valor de 7 500,00 euros o prédio que havia adquirido a “I” e “J”, identificado em D) (Al. E)).
6. No dia 19 de Junho de 2008, mediante celebração de escritura, “C” vendeu a “E”, o prédio misto que havia adquirido, identificado em C), pelo preço de 10 500,00 € (Al. F)).
7. “E” é neta de “I” e de “J” (Al. G)).
8. Os falecidos, “J” e “I” que foram casados na comunhão geral de bens deixaram como sucessoras suas duas filhas: a autora, “A” e a ré “G” (Al. H)).
9. “G” é mãe de “E” (Al. I).
10. “J” e “I” viveram em casa da ré “G”, a partir de data não concretamente apurada do ano de 2006 (1.º).
11. “J” sofreu um AVC (2.º).
12. “J”, de Outubro de 2007 até falecer, foi submetida a internamentos hospitalares: de 27.10.2007 a 31.10.2007, de 14.11.2007 a 21.11.2007, de 26.11.2007 a 03.12.2007, de 13.12.2007 a 20.12.2007 e de 16.01.2008 a 04.02.2008 (4.º, 5.º, 6.º, 7.º e 8.º).
13. No dia 17 de Junho de 2006 foram transferidas as quantias de 13 337,20 €, 1883,51 €, 16 763,71 €, 1 046,35 € e 9 980,81 €, respectivamente, das contas com os números 44106508494, 44106593637, 44172376977, 44180006735 e 44209365212 para a conta com o número 51740121744105, todas tituladas por “I”; na mesma data foi transferida a quantia de 43 011,58 € da conta n.º 51740121744105 para a conta n.º 40205346677, titulada pela ré “G” (11.º).
14. Por óbito da mãe da autora, aquando da relação de bens apresentada junto do Serviço de Finanças, não foi relacionado o valor das vendas referidas em C) e D) (13.º).
15. O valor real do prédio objecto da venda referida em C) é de 10 474,93 € (15.º).
16. O valor real do prédio objecto da venda referida em D) é de 12 807,50 € (16.º).
17. A ré “E” é filha da ré “G” (23.º).
18. O preço da compra e venda referida em C) foi pago ao pai da autora, através de cheque (29.º e 30.º).
*
Não se alterando em nada a matéria de facto, é evidente que o recurso não pode proceder.
É verdade que se mantém inalterada a realidade que consiste na venda e revenda dos prédios, sendo que os primeiros vendedores são os pais da A. e a última compradora é a sua (deles) neta. Mas como já se disse, esta realidade, por si só e sem outros elementos de prova, apenas tem o sentido que manifesta na sua forma: contratos de compra e venda, simplesmente.
Não existem os elementos próprios do negocio simulado e, menos ainda, o intuito de, com esses contratos, prejudicar a A. na sua legítima.
*
Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso.
Custas pelos recorrentes.
Évora, 27 de Março de 2014
Paulo Amaral
Rosa Barroso
José Lúcio