Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
8/11.GCODM.S1
Relator: RENATO BARROSO
Descritores: CRIME CONTINUADO
ABUSO SEXUAL DE MENOR DEPENDENTE
MEDIDA DA PENA
Data do Acordão: 10/16/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário:
I – A pedra de toque do crime continuado, que lhe determina os limites e lhe configura a natureza, está na circunstância da acção se desenrolar no quadro de uma situação exterior ao agente, de forma a poder dizer-se que era para este cada vez menos exigível que se comportasse de acordo com o direito.
II – Isso não sucede quando a acção se deve a um desígnio inicialmente formado pelo arguido, que transparece de, durante seis anos, reiteradamente, ter procurado a sua filha, menor, quando esta se encontrava sozinha e, aproveitando-se desta circunstância, tinha relações sexuais com ela.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES, EM CONFERÊNCIA, NA 1ª SUBSECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÂO DE ÉVORA

1. RELATÓRIO


A – Decisão Recorrida

No processo comum colectivo nº 8/11.GCODM.S1, da Comarca do Alentejo Litoral, Odemira, o M.P. deduziu acusação contra o arguido A, pela prática, em autoria material, na forma consumada e concurso efectivo, dos seguintes crimes :
- vinte e três ( 23 ) crimes de abuso sexual de crianças agravado, p.p. pelos Artsº 171 nsº 1 e 2, 177, nº1, al. a), e 179 al. a), todos do CP ;
- um ( 1 ) crime de abuso sexual de crianças agravado, p.p. pelos Artsº 171 nsº1 e 2, 177 nsº 1, al. a), 4 e 7, e 179 al. a), todos do CP ;
- três ( 3 ) crimes de abuso sexual de abuso sexual de menor dependente agravado, p.p. pelos Artsº 172 nº1, 177 nº1 al. a) e 179º al. a), todos do CP ;
- um ( 1 ) crime de abuso sexual de abuso sexual de menor dependente agravado, p.p. pelos Artsº 172 nº1, 177 nsº 1, al. a), 4 e 7, e 179 al. a), todos do CP;
- um ( 1 ) crime de aborto, p.p. pelo Artº 140 nº1 do CP e
- quatro ( 4 ) crimes de violência doméstica, p.p. pelo Artº 152 nsº1 als. b) e d), 2 e 4 a 6, do CP.

O Ministério Público, em representação da menor B ,deduziu ainda pedido de indemnização civil contra o arguido peticionando a condenação deste no pagamento àquela da quantia de € 50.000,00 ( cinquenta mil euros ) a título de indemnização por danos morais.
Efectuado Julgamento, foram a acusação e o pedido de indemnização civil julgados parcialmente procedentes, por provados, e, em consequência :

Foi o arguido absolvido da prática de 2 ( dois ) dos 23 ( vinte e três ) crimes de abuso sexual de crianças agravado, p.p. pelos Artsº 171 nsº1 e 2, 177º, nº1 al. a) e 179 al. a), todos do Código Penal e de 1 (um) dos 3 (três) crimes de abuso sexual de abuso sexual de menor dependente agravado, p.p. pelos Artsº 172 nº1, 177º nº1 al. a) e 179 al. a), todos do Código Penal, pelos quais vinha acusado.

Foi o arguido condenado :
- pela prática, entre o verão de 2004 e 23/01/10, como autor, em concurso real, de 21 ( vinte e um ) crimes de abuso sexual de criança, agravados, p.p. nos termos das disposições conjugadas dos Artsº 172 nsº1 e 2, 177 nº1 al. a) e 179 do Código Penal, na redacção anterior à conferida pela Lei nº 59/07, de 04/09, no caso dos crimes praticados antes de 15/09/07 e dos Artsº 171 nsº1 e 2, 177 nº1 al. a) e 179 al. a), todos do Código Penal, na actual redacção, conferida pela mencionada lei, na pena de 5 ( cinco ) anos de prisão por cada um ;
- pela prática, como autor, entre Outubro e Dezembro de 2007, de 1 ( um ) crime de abuso sexual de criança agravado p.p. nos termos das disposições conjugadas dos Artsº 171 nsº1 e 2, 177º nº 4 e 179 al. a), todos do Código Penal, na pena de 5 ( cinco ) anos e 8 ( oito ) meses de prisão;
- pela prática, entre 23/01/10 e Setembro de 2010, como autor, em concurso real, de 2 ( dois ) crimes de abuso sexual de menor dependente, agravados, p.p. nos termos das disposições conjugadas dos Artsº 172 nº1, 177 nº1, al. a) e 179º, al. a), todos do Código Penal, na pena de 2 ( dois ) anos e 6 (seis) meses de prisão por cada um ;
- pela prática, como autor, em Setembro de 2010, de 1 ( um ) crime de abuso sexual de menor dependente agravado, p.p. nos termos das disposições conjugadas dos Artsº 172 nº1, 177 nº4 e 179 al. a), todos do Código Penal, na pena de 2 ( dois ) anos e 8 ( oito ) meses de prisão;
- pela prática, como autor, em Fevereiro de 2010, de 1 ( um ) crime de aborto p.p. Artº 140 nº1, do Código Penal, na pena de 3 ( três ) anos de prisão;
- pela prática, como autor, de 4 ( quatro ) crimes de violência doméstica, p.p. nos termos do Artº 152 nsº1, als. b) e d), 2, 4 e 6, do Código Penal, na pena de 2 ( dois ) anos e 6 ( seis ) meses de prisão por cada um.
Em cúmulo jurídico de todas estas penas, foi o arguido condenado na pena única de 14 ( catorze ) anos e 10 ( dez ) meses de prisão.

Em sede de indemnização civil, foi o arguido condenado a pagar à demandante a quantia de € 50.000,00 ( cinquenta mil euros ), a título de indemnização por danos não patrimoniais.

Mais decidiu o Tribunal Colectivo, decretar a inibição do poder paternal do arguido relativamente à sua filha B pelo período que falta até a mesma atingir a maioridade, ao abrigo do disposto nos Artsº 179 al. a) e 152 nº6, ambos do Código Penal.

B – Recurso

Inconformado com o assim decidido, recorreu o arguido, direccionando o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo concluído as respectivas motivações da seguinte forma ( transcrição ) :
I - O arguido entende que relativamente aos crimes de abuso sexual de crianças e abuso sexual de menores dependentes e pelos quais foi condenado, é de aplicar a figura do crime continuado, nos termos do art.º 30º do C.Penal, pois verificam-se os pressupostos do mesmo ;
II - Logo, por aqueles crimes, deverá o arguido ser condenado em penas inferiores aquelas que foram efectivamente aplicadas;
III - O arguido discorda das penas parcelares aplicadas na condenação dos restantes crimes imputados, por as mesmas serem manifestamente excessivas e não traduzirem toda a factualidade dada como provada e não levarem em linha de conta todas as atenuantes que militam a favor do arguido;
IV - Como consequência a pena única aplicada e depois de operado o cúmulo jurídico, é excessiva, pois não levou em conta algumas atenuantes que beneficiavam o arguido;
O douto acórdão proferido pelo Tribunal “a quo” violou, assim, o disposto nos arts.º 30º, 40º e 71º, todos do Código Penal.
Termos em que deve ser concedido provimento ao recurso, revogando-se o douto acórdão na parte que ora se recorre.

C – Resposta ao Recurso

O M. P, junto do tribunal recorrido, respondeu ao recurso, concluindo do seguinte modo ( transcrição ):

I - A conduta criminosa do arguido Fernando Jorge Gonçalves Vaz não se amolda à figura jurídica do crime continuado.
II - A medida concreta das penas, parcelares e única, cominadas ao arguido é equilibrada e ajusta-se à estigmatização da sua actuação e aos critérios legais dos artigos 40.º, 71.º e 77.º do Código Penal.
III - O tribunal colectivo fez uma correcta interpretação e aplicação da lei.
IV - Nenhuma das críticas que o arguido aponta ao douto acórdão é, por isso, merecida.
V. Exas, no entanto, com mais elevada prudência e sabedoria, decidirão, como sempre, a habitual Justiça.

D – Tramitação subsequente

Recebido o recurso no Tribunal recorrido, foi o mesmo remetido ao Supremo Tribunal de Justiça.
Aí, foi decidido que esse Alto Tribunal não era o competente para conhecer do recurso, na medida em que o mesmo colocava a questão de direito da subsunção á figura do crime continuado dos crimes de abuso sexual de criança agravado e de abuso sexual de menor dependente agravado, pelos quais o arguido foi condenado em penas, ( à excepção de um deles ) iguais ou inferiores a 5 anos de prisão e ainda, a questão da redução das penas parcelares em foi condenado pelos restantes crimes, todas elas, em medida inferior a 5 anos de prisão.
Em consequência e ainda que com um voto de vencido, foi determinado que os autos fossem remetidos a esta Relação por ser a competente para o conhecimento do recurso.
Aqui recebidos, foram os autos com vista á Exma Procuradora Geral Adjunta, que afirmou concordar com as razões invocadas pelo MP na 1.ª instância para a manutenção da decisão recorrida.
Observado o disposto no Artº 417 nº2 do CPP, não foi apresentada resposta.
Efectuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.
Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO

A – Objecto do recurso

De acordo com o disposto no Artº 412 do CPP e com a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no D.R. I-A de 28/12/95 ( neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Setembro de 2007, proferido no processo n.º 07P2583, acessível em HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/"www.dgsi.pt, que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria ) o objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
Na verdade e apesar do recorrente delimitar, com as conclusões que extrai das suas motivações de recurso, o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, este contudo, como se afirma no citado aresto de fixação de jurisprudência, deve apreciar oficiosamente da eventual existência dos vícios previstos no nº2 do Artº 410 do CPP, mesmo que o recurso se atenha a questões de direito.
As possibilidades de conhecimento oficioso, por parte deste Tribunal da Relação, decorrem, assim, da necessidade de indagação da verificação de algum dos vícios da decisão recorrida, previstos no nº 2 do Artº 410 do CPP, ou de alguma das causas de nulidade dessa decisão, consagradas no nº1 do Artº 379 do mesmo diploma legal.
In casu e cotejando a decisão em crise, não se vislumbra qualquer uma dessas situações, seja pela via da nulidade, seja ainda, pelos vícios referidos no nº2 do Artº 410 do CPP, os quais, recorde-se, têm de resultar do acórdão recorrido considerado na sua globalidade, por si só ou conjugado com as regras de experiência comum, sem possibilidade de recurso a quaisquer elementos que ao mesmo sejam estranhos, ainda que constem dos autos.
Efectivamente, do seu exame, não ocorre qualquer falha na avaliação da prova feita pelo Tribunal a quo, revelando-se a mesma como coerente com as regras de experiência comum e conforme à prova produzida, na medida em que os factos assumidos como provados são suporte bastante para a decisão a que se chegou, não se detectando incompatibilidade entre eles e os factos dados como não provados ou entre a fundamentação e a decisão.
Assim sendo, considera-se definitivamente fixada a decisão proferida pela 1ª Instância sobre a matéria de facto.
Também não se verifica a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada ( Artº 410 nº3 do CPP )
Posto isto, inexistindo qualquer questão merecedora de aferição oficiosa, o objecto do recurso cinge-se, tão só, às conclusões do recorrente, nas quais se solicita o seguinte :

1) Aplicação da figura do crime continuado aos crimes de abuso sexual de crianças e de abuso sexual de menores dependentes pelos quais foi condenado, com a consequente diminuição das respectivas penas ;
2) Aplicação de penas mais baixas na demais penas parcelares em que foi condenado ;
3) Aplicação, em consequência do deferimento do atrás peticionado, de um cúmulo jurídico de penas inferior ao determinado pelo tribunal a quo, que, desse modo, violou o disposto nos Artsº 30, 40 e 71, ambos do C. Penal.

B – Apreciação

Definidas as questões a tratar, importa considerar o que se mostra fixado, em termos factuais, pela instância recorrida.
Aí, foi dado como provado e não provado, o seguinte ( transcrição ):
1. O arguido A e B viveram maritalmente desde o ano de 1992 e são progenitores de B, nascida a 23.01.1996, D, nascido a 01.10.1997, e de E, nascido a 03.07.1999.
2. Todos residiram na área do concelho de Odemira durante cerca de 10 anos, sendo que ultimamente residiam na Rua (…), Odemira;
3. Em data não concretamente apurada, no Verão do ano de 2004, quando a menor B tinha 8 anos e a família ainda residia perto de Relíquias, estava deitada no sofá com o pai a assistir a programas televisivos, este começou a apalpar-lhe os seios e o corpo todo, despiu-a totalmente e, com o pénis erecto, penetrou a sua vagina, o que lhe provocou dores;
4. Desde então, o arguido, com uma periodicidade trimestral, manteve relações sexuais, de cópula completa, com a filha, o que fez sem usar preservativo ou qualquer meio contraceptivo, excepção feita a duas situações, sendo que dum desses relacionamentos resultou a gravidez da menor quando tinha 11 anos de idade, entre Outubro e Dezembro de 2007;
5. O arguido procurava a menor, para ter relações sexuais com ela, no quarto dela e no sofá da sala de estar, quando estavam sozinhos em casa ou quando os restantes membros da família já dormiam;
6. Pelo menos em duas ocasiões, o arguido manteve relações sexuais com a filha dentro do carro, sendo que uma dessas situações ocorreu quando ainda viviam em Relíquias, no dia dum aniversário da menor, perto de um cruzamento que dá acesso à localidade de Vale Ferro;
7. Em Agosto de 2007 a menor começou a ser menstruada e em Dezembro de 2007 contou ao arguido que lhe faltara a menstruação naquele mês e que andava com enjoos;
8. O arguido disse à filha para esperar um mês de forma a confirmar a existência de gravidez;
9. Decorrido esse mês, constando que a menor estava grávida, o arguido deu-lhe 2 comprimidos, sendo um para ingerir e outro que lhe introduziu na vagina;
10. Em consequência, passados alguns dias, em Fevereiro de 2008, a menor (que já tinha 12 anos de idade) abortou, expulsando prematuramente o feto do ventre, ao sofrer uma forte hemorragia e expelir, pela vagina, uma bola de sangue, o que foi visto pela mãe, mas esta não lhe perguntou nada nem a levou ao médico;
11. Depois do sucedido, a cada três meses o arguido continuou a manter pelo menos uma relação sexual, de cópula completa, com a filha, até Setembro de 2010, data em que foi praticado o último acto sexual, do qual resultou uma segunda gravidez da menor;
12. Assim o arguido manteve relações sexuais de cópula completa com filha pelo menos 22 vezes antes da mesma atingir os 14 anos de idade (o que aconteceu em 23.01.2010), tendo duma delas resultado uma gravidez que culminou com o aborto, e pelo menos 3 vezes após a menor ter completado os 14 anos até Setembro de 2010, tendo resultado uma outra gravidez do último desses relacionamentos;
13. Em Outubro de 2010 B notou a falta da menstruação e no mês seguinte fez um teste de gravidez que deu resultado positivo;
14. Mais tarde, a menor comentou com uma colega de escola que poderia estar grávida;
15. Em Fevereiro de 2011, a menor acabou por confirmar ao pai que achava que estava grávida e este pediu-lhe para fazer um teste de gravidez na sua presença, o qual também deu resultado positivo;
16. O arguido disse à filha que, se fosse tarde de mais para tomar novamente os comprimidos para abortar, seria ele a contar à companheira que a filha estava grávida e que esta nunca deveria identificar o pai da criança;
17. Passados uns dias e devido aos enjoos e insistência das amigas, a menor acabou por, na escola, contar-lhes que estava grávida e que era vítima de abusos sexuais por parte do pai, tendo sido estas quem contou o sucedido à psicóloga da escola;
18. O arguido era o progenitor do feto, já tendo ocorrido o nascimento;
19. A menor nunca teve relações sexuais de qualquer natureza com outra pessoa para além do arguido, o que era do conhecimento deste;
20. Mais sabia o arguido que, atenta a idade da sua filha e a ascendência que tinha sobre ela, esta não tinha o necessário discernimento para livremente consentir na prática de quaisquer actos sexuais, bem como sabia que os actos supra descritos são de cariz sexual e, não obstante, quis praticá-los com intenção de satisfazer o seu desejo e caprichos sexuais, o que conseguiu;
21. O arguido sabia igualmente que realizava uma interrupção da gravidez à filha, sem o consentimento desta e sem qualquer prescrição ou supervisão médica, o que conseguiu;
22. O arguido é violento e, por várias vezes, bateu na companheira e nos três filhos, pelo que todos têm medo do arguido;
23. Após virem para Portugal, o arguido começou a infligir maus-tratos físicos e psíquicos à companheira, batendo-lhe com chapadas na cara e dando-lhe puxões de cabelos e chamava-lhe, na língua alemã, de prostituta e vaca e ameaçava-a de morte;
24. O arguido batia nos filhos de forma exagerada, desferindo-lhes palmadas na cara e nos braços, sendo que por vezes batia no filho D com pontapés e socos, o que determinou a abertura de um processo na Comissão de Protecção de Crianças e Jovens de Odemira;
25. Como consequência da actuação do arguido, a companheira e os filhos sentiram dores, medo e viviam em constante sobressalto, o que perturbou o seu bem-estar físico e psíquico;
26. O arguido atuou da forma descrita com a intenção de humilhar, causar medo e inquietar a companheira e os filhos, bem sabendo que isso afectava a sua saúde e bem-estar, o que quis e conseguiu;
27. O arguido agiu sempre de forma livre e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei;
- Do PIC provou-se que:
28. B é filha do arguido e de C, cujos progenitores viveram maritalmente, encontrando-se o pai preso preventivo e a mãe mostrou-se indisponível para cuidar da filha, desde que os presentes autos tiveram o seu início;
29. No âmbito de Processo de Promoção e Protecção nº 1/11.3Y9ASL, que corre termos no Juízo de Trabalho e de Família e Menores de Sines, considerou-se que nenhum dos progenitores reunia as condições para cuidar da menor, tendo-lhe sido aplicada a medida de acolhimento em instituição, que entretanto foi substituída pela medida de apoio junto de outro familiar;
30. Em virtude dos actos de molestamento sexual, física e psíquica perpetrados pelo pai, a menor sofreu dores, vergonha e tristeza, o que prejudicou o desenvolvimento harmonioso da sua personalidade, mostrando baixa auto-estima e baixo rendimento escolar;
31. Além disso, a menor foi afastada do seu meio natural de vida, tendo vivido numa instituição pelo período aproximado de 4 meses, o que lhe causou maior tristeza e desalento;
- Provou-se ainda que:
32. A, filho único, foi criado até aos 12 anos de idade pelos avós paternos, que eram pessoas socialmente inseridas, de condição modesta, que sempre lhe procuraram veicular normas e valores de acordo com a ordem social e lhe asseguraram a satisfação das necessidades básicas e a frequência escolar durante o 1º ciclo;
33. Segundo o próprio arguido, entre os 8 anos e os 12 anos manteve relações homossexuais consentidas com um primo mais velho, sem que a família se apercebesse e manteve tais práticas até aos 17 anos, já na Alemanha, com um vizinho adulto;
34. Para este país deslocou-se aos 12 anos para junto da mãe e do padrasto, integrando-se sem dificuldade no novo ambiente familiar e social, concretamente numa comunidade de população operária;
35. Concluiu a escolaridade obrigatória através de ensino profissional e aos 16 anos começou a trabalhar em publicidade, tendo desenvolvido depois outras atividades;
36. Aos 18 anos autonomizou-se em termos económicos e habitacionais e aos 20 anos, apercebeu-se que a sua orientação sexual era dirigida para o sexo oposto. Uniu-se maritalmente a uma jovem alemã de menor idade, situação que teve a oposição da família da mesma;
37. Este conflito repercutiu-se negativamente na vida do casal suscitando problemas relacionais entre os cônjuges, que se vieram a arrastar no tempo, sem que a hipótese de ruptura fosse colocada. Passavam longos períodos sem manter vida sexual entre si o que, segundo o arguido, o levou a manter uma ligação extra conjugal;
38. Paralelamente, o arguido passou também a dedicar-se aos “jogos de azar”, o que acentuou a perturbação conjugal do casal. No entanto, o sustento do agregado, que já incluía três filhos, continuava a ser assegurado pelo trabalho do arguido;
39. Em 2001, o agregado optou por se fixar em Portugal concretamente em Odemira;
40. Em Odemira, o arguido continuou a ser o suporte económico da família, mantendo actividade laboral próspera. Trabalhou inicialmente na agricultura, depois como bombeiro profissional, actividade que já desenvolvia na Alemanha como voluntário. Mais tarde, foi admitido no quadro de pessoal da Câmara Municipal de Odemira, na qualidade de coveiro e depois constituiu-se como empresário de prestação de serviços de higiene e limpeza;
41. O arguido revelava hábitos de trabalho e competências reconhecidas, não só pela capacidade de adaptação a várias actividades, como também pelas qualidades que apresentava no desempenho. O trabalho que fazia era perfeito e a disponibilidade que apresentava em termos de colaboração, ao nível da ajuda aos outros levava a que a comunidade local tivesse simpatia e confiança pela sua pessoa. Tinha contratos de prestação de serviços de higiene e limpeza com escolas e outras instituições, mantendo--se também como bombeiro voluntário. Por vezes, ainda auxiliava o Clube Desportivo de Odemira no transporte gratuito de desportistas;
42. Era correto com as pessoas em geral e aparentava manter um relacionamento familiar, conjugal e parental normal, sem sinais de promiscuidade;
43. Não obstante, em casa vivia-se outra realidade, não havia vida sexual no casal e a meio da noite o arguido procurava habitualmente, segundo o próprio, compensar esta situação junto da filha;
44. Na sequência de uma denúncia feita acerca do estado de gravidez em que se encontrava, a menor foi retirada à família, sem contestação por parte dos pais, e o arguido, enquanto esperou pela ordem de prisão preventiva, manteve a postura habitual de tranquilidade e racionalidade, tendo tratado de todos os assuntos formais para a cessação da atividade, bem como outros de natureza económica;
45. Passadas cerca de duas semanas foi preso preventivamente no EPRB, onde se tem mantido com um comportamento isento de reparos, onde foi visitado pelo cônjuge e pelos dois filhos, rapazes;
46. Continua a apresentar-se tranquilo e prevê ser privado da liberdade por vários anos, perspetivando reaproximar-se dos filhos e da sua mãe, ainda emigrante na Alemanha. Quanto ao cônjuge considera-se em situação de rutura definitiva;
47. Reconhece que a conduta em apreço nos autos é censurável e aceita pacificamente as consequências jurídico-penais a que se expôs, mas não demonstra sentimento de culpa ou arrependimento. Não se sente agressor, nem sente a filha e a criança, que com ela procriou, como vítimas;
48. A nível da comunidade de residência a instauração dos autos gerou grande impacto, tendo a situação despoletado grande desapontamento em relação ao arguido e repúdio, sendo indesejável o seu regresso àquela comunidade;
49. Do CRC do arguido não constam quaisquer antecedentes criminais.

Não se provou que:
1. Até a menor completar 12 anos o arguido manteve com ela 16 actos sexuais de cópula completa;
2. As relações sexuais ocorridas no carro aconteceram depois do arguido sair para tomar café depois de jantar e levado a filha consigo, quando regressavam de Odemira em direcção a casa;
3. O aniversário referido em 6.) dos factos provados foi o 10º aniversário da menor;
4. Aquando da situação referida em 7.) dos factos provados o arguido disse também à filha que provavelmente estava grávida;
5. O aborto deu-se exatamente na noite de 8 para 9 de Fevereiro de 2008;
6. Depois do aborto o arguido começou a ter relações sexuais com a filha com maior frequência: durante cerca de três meses com periodicidade mensal, depois fazia uma pausa de cerca de três meses, seguido de um novo período de três meses com periodicidade mensal e de uma nova pausa de três meses, assim sucessivamente, pelo que, até a menor completar 14 anos de idade (26.01.2006), o arguido praticou com ela pelo menos 12 atos sexuais de cópula completa;
7. O arguido manteve relações sexuais de cópula completa com filha pelo menos 4 vezes desde que esta completou 14 anos de idade (23.01.2010) até Setembro de 2010;
8. A mãe duma colega da menor falou com o arguido sobre a segunda gravidez;
9. O arguido começou a infligir maus-tratos físicos e psíquicos à companheira quando ainda viviam na Alemanha;
10. O arguido agredia a companheira com pontapés nas pernas e barriga e chamava-lhe cabra.

Pelo tribunal recorrido, foi assim justificada a motivação da decisão de facto ( transcrição ):

« O Tribunal fundou a sua convicção com base na apreciação crítica das declarações do arguido e da prova testemunhal ouvida em julgamento, nomeadamente as declarações para memória futura prestadas pela menor B e os depoimentos de F, técnica da EMAT da Segurança Social de Beja, G e H, colegas da menor, I, psicóloga que esteve ao serviço na escola da menor, J, professora na escola da menor, C e D, respetivamente companheira e filho do arguido, tudo conjugado com a prova documental e pericial existente nos autos como melhor se passa a descrever.
Começando pelo arguido, importa desde logo salientar que o mesmo confessou ter mantido as relações sexuais de cópula completa com a sua filha a partir dos 11 anos de idade da mesma, com uma periodicidade trimestral, começando por dizer que teriam sido cerca de 10 atos sexuais para depois admitir que podem ter sido mais. Confirmou também ambas as gravidezes da menor, o aborto na primeira gravidez com os comprimidos que deu à menor e a manutenção das relações sexuais após o aborto, negando contudo que as mesmas acontecessem com periodicidade mensal.
No que respeita ao relacionamento sexual com a menor existiram assim dois aspetos essenciais em que o arguido nega a acusação: afirma que os relacionamentos não começaram quando a menor tinha 8 anos e nega a periodicidade mensal de relacionamento.
Ora, porque se tratam de factos a que mais ninguém assistiu, para contrariar a versão do arguido, foram determinantes as declarações para memória futura prestadas pela menor BChristin Erdweg Gonçalves Vaz, transcritas a fls. 926 e ss, ouvidas em audiência de discussão e julgamento. Os depoimentos das testemunhas F, técnica da EMAT da Segurança Social de Beja, G e H, colegas da menor, I, psicóloga que esteve ao serviço na escola da menor, J, professora na escola da menor, apenas permitiram saber de que modo se tornou conhecida a existência dos abusos sobre a menor e um conhecimento indirecto dos factos, obtido a partir dos relatos que a própria menor lhes fez, mas que ainda assim foram relevantes para credibilizar as declarações da menor na medida em que são consonantes com os factos que a própria menor afirmou perante o tribunal.
Ora, nas referidas declarações para memória futura, a menor mostrou-se emocionada, chegando a chorar e a dizer que não consegue descrever os abusos, levando a uma pausa nas declarações, mas depois acaba por efetuar uma descrição sequencial dos abusos sexuais que sofreu, relatando pormenores, apresentando uma versão coerente dos factos de que tinha memória, sem deixar de em certos aspetos referir já não se recordar, em termos que mereceram credibilidade ao tribunal.
Acresce que também o psicólogo clínico que esteve presente aquando da prestação de declarações de memória futura da menor, elaborou o relatório constante de fls. 811 e 812, no qual consignou que a menor “(…) foi sempre sincera no seu depoimento, o qual nos pareceu sustentado pelos inúmeros detalhes e pormenores que descreveu sem hesitar e com convicção no decorrer do seu depoimento (…) evidenciando inequivocamente que relatou sempre a verdade dos factos. Com efeito, seria uma tarefa muito difícil ou quase impossível inventar tantos factos e ocorrências (…)” .
Por outro lado também foi elaborada perícia à personalidade da menor, mencionando-se no relatório de fls. 582 a 607, no qual se efetua a transcrição de vários trechos das declarações da menor consonantes com os que constam das declarações para memória futura, que “A descrição dos factos é feita de forma bastante contida e com activação emocional, havendo concordância entre a expressão facial e o discurso. A postura é tensa, sendo evidente a existência de ansiedade, que se manteve durante grande parte do relato. Também em algumas ocasiões durante este relato, B não conseguiu controlar as emoções e chorou (…)”. Pronunciando-se especificamente quanto à credibilidade do depoimento da menor o mesmo relatório pericial consigna que “B consegue contextualizar as alegadas situações de abuso, referindo os locais e as circunstâncias em que aconteceram, bem como é capaz de referir detalhes característicos do mesmo. Com efeito, nas suas declarações refere quer detalhes específicos da situação, quer detalhes supérfluos. Descreve a interacção e verbalização entre ela e o alegado agressor e menciona ainda o seu próprio estado mental, bem como o do alegado agressor. Salienta-se ainda o facto de apresentar dúvidas acerca do seu próprio testemunho e de dizer que não se recorda de situações especificas do mesmo, circunstâncias que se assumem como fortes indicadores de credibilidade, uma vez que em situações de falsas declarações a criança ou adolescente dificilmente reconhece que não sabe, não se recorda ou tem dúvidas, procurando responder a tudo que lhe é perguntado. Ainda em relação à incapacidade para lembrar aspectos importantes da situação abusiva, esta pode dever-se ao facto de terem sido abusos continuados ao longo do tempo, mas também pode decorrer do evitamento persistente dos estímulos associados ao trauma, como se verifica nas situações de perturbação pós-stress traumático. Foi utilizada uma linguagem adequada ao seu desenvolvimento cognitivo e afectivo, o que diminui a probabilidade de estarmos perante uma situação de sugestionamento por parte de terceiros. Ainda relativamente ao sugestionamento, nas declarações para Memória Futura, B é capaz de corrigir o verbalizado pelo interlocutor “não foi bem assim (...)“ (fis. 371), evidenciando desta forma capacidade de resistir ao sugestionamento. Por outro lado, não apurámos a existência de benefícios secundários, nem de elementos que possam ser interpretados como factores de simulação ou de dissimulação. Não houve igualmente uma motivação para a denúncia, tendo esta sido despoletada por terceiros (amigas a quem terá contado os alegados abusos).”
Foi assim com base em todos os referidos elementos que o tribunal conferiu determinante credibilidade ás declarações para memória futura supra referidas e com base nas mesmas deu como provada a factualidade relacionada com os abusos sexuais, as gravidezes e o aborto.
Especificamente no que respeita ao início das relações sexuais a menor começa por localizar a primeira relação sexual no verão de 2004, quando tinha 8 anos de idade, enunciando o local onde a situação se passou, confirmando que houve penetração do pénis na vagina e que se lembra de ter ficado com as cuecas sujas de sangue, indicando assim pormenores que conferem credibilidade ao seu depoimento. Por outro lado, também no âmbito da perícia à personalidade se constata pelo já mencionado relatório que também nessa sede a menor mencionou terem as relações tido início nessa altura. Também as testemunhas G, colega e amiga da menor, e I, psicóloga com quem a menor falou na escola, mencionam que o relato que a menor lhes fez menciona os abusos desde os 8 anos, factos que também eles reforçam a credibilidade do depoimento da menor.
Já quanto à alteração da periodicidade dos relacionamentos sexuais após o aborto, de trimestral para mensal durante três meses, alternando com trimestral, entendeu o tribunal não a dar como verificada e dar como assente a periodicidade mínima que não temos dúvidas que efectivamente se verificou e que o próprio arguido confirmou. É que nesta sede as declarações da menor revelam hesitação e dúvida como resulta da transcrição das declarações a fls. 931, em que a menor começa por dizer que passou a haver umas vezes que era de 3 em 3 meses para depois ser 1 vez por mês mas logo de seguida, quando perguntada durante quanto tempo isso teria durado, disse não se recordar nem saber que pausas existiam entre os relacionamentos. Perante tais dúvidas entendeu assim o tribunal dar como provada a periodicidade trimestral por não existiram elementos seguros que permitissem quantificar quantos relacionamentos com menor espaçamento temporal terão existido.
No que respeita ao número de relacionamentos a contabilização resulta da contagem de pelo menos um por cada trimestre após o verão de 2004, donde resultam 2 em 2004, 4 em cada um dos anos de 2005 a 2009, e 3 em 2010, sendo que estes últimos foram praticados quando a menor já tinha 14 anos. Note-se nesta sede que a menor afiançou que já depois de ter feito os 14 anos existiram mais de 2 relacionamentos e que o último foi em Setembro, o que continua a ser compaginável com a periodicidade trimestral que para todo o tempo demos como provada.
O tribunal teve ainda em conta o relatório pericial de investigação biológica da paternidade de fls. 388 a 390 que permite concluir que o arguido é o pai da criança gerada pela menor B (índice de probabilidade de 99,99999997%), os elementos clínicos de fls. 224/225, donde resulta confirmada a segunda gravidez e o período da concepção do feto – apontando para as 23 semanas no final de Fevereiro de 2011, confirma a relação sexual em Setembro de 2010, como relata a menor -, a certidão do processo de promoção e protecção de fls. 83 a 119 donde resulta a medida aí decidida, o afastamento da família, e se vislumbra que também nessa sede a menor relatou os abusos sexuais que sofria, e as certidões de nascimento de fls. 743, 745 e 747, donde resultam confirmadas as datas de nascimento e filiação dos filhos do arguido. O relatório sobre da perícia à personalidade da menor relevou também para a prova das implicações dos abusos sexuais na personalidade da menor, sendo que para o efeito relevaram também os depoimentos das testemunhas I e J na medida em que confirmaram o estado emocional em que a menor se encontrava quando os factos foram revelados: choro, preocupação e apreensão pelas repercussões do conhecimento dos abusos.
No que respeita à violência doméstica ponderaram-se, além das declarações prestadas pela menor B para memória futura, já referidas, os depoimentos de C e D, respetivamente companheira e filho do arguido, tendo a primeira confirmado que depois de viram viver para Portugal o arguido lhe batia a ela e aos filhos, sobretudo ao D, sendo que nos últimos 3 anos, normalmente quando bebia, o arguido lhe desferia chapadas e puxava-lhe os cabelos e chamava-lhe nomes como vaca e prostituta, o que acontecia aproximadamente uma vez por mês e que a ameaçou de morte por duas vezes. Mais afirmou que o arguido batia várias vezes ao D, usando as mãos mas que também o chegou a fazer com pontapés nas costelas. Por sua vez o D confirmou que o pai lhe batia várias vezes, chegando a ficar com nódoas negras pois chegava embriagado a casa e descarregava em cima da mãe, dele e dos irmãos, que também eram agredidos.
Os elementos subjectivos inferem-se a partir da conduta objectiva.
Os factos relacionados com o percurso de vida, enquadramento familiar, escolar e profissional do arguido, personalidade, comportamento sexual – pontos 32.) a 48.) dos factos provados – resultam do relatório social de fls. 1008/1012.
A ausência de antecedentes criminais deriva do certificado de registo criminal junto aos autos.
A factualidade que se deu como não provada assim foi considerada por estar em oposição com os factos que consideramos provados – já motivados – ou por não terem acolhimento nas declarações prestadas pela menor nem pelas restantes testemunhas ou em que a própria menor enunciava a existência de dúvidas. »
Estabelecida a base factual pelo acórdão em análise, importa apreciar da bondade do peticionado pelo recorrente :

B.1. Do cúmulo jurídico para os crimes de abuso sexual de crianças e abuso sexual de menores dependentes :

Alega o recorrente, nesta sede, que dos factos dados por provados, se induz uma actuação una e prolongada no tempo por parte do arguido, desde os 8 ao 15 anos de idade da sua filha, a qual foi facilitada pela existência de condicionalismos exteriores propiciadores dessa repetição criminosa, diminuindo, por isso, sensivelmente a sua culpa, como sejam, as circunstâncias do arguido se ter aproveitado do facto de estar sozinho com a filha e ainda desta, após os primeiros crimes, não os ter revelado a ninguém.
Conclui, assim, existirem razões para a aplicação da figura do crime continuado aos ilícitos de abuso sexual de crianças e abuso sexual de menores dependentes, pelos quais foi condenado, com a consequente diminuição das penas.
Contudo e salvo o devido respeito por opinião contrária, não lhe assiste qualquer razão.
Como recorda o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25/03/09, proferido no processo 09P0490, relatado pelo Conselheiro Armindo Monteiro e em relação ao alteração legislativa produzida quanto ao nº3 do Artº 30 do C. Penal :
« A alteração introduzida é … pura tautologia, de alcance inovador limitado ou mesmo nulo, desnecessária, em nada prejudicando a jurisprudência sedimentada ao nível do STJ, ou seja, a de que, quando a violação plúrima do mesmo bem jurídico eminentemente pessoal é referida à mesma pessoa e cometida num quadro em que, por circunstâncias exteriores ao agente, a sua culpa se mostre consideravelmente diminuída, integra a prática de crime continuado, sem prescindir-se da indagação casuística dos requisitos do crime continuado, afastando-o quando se não observarem.
Esse aditamento não permite, assim, uma interpretação perversa em termos de uma violação plúrima de bens eminentemente pessoais em que a ofendida é a mesma pessoa se reconduzir ao crime continuado, afastando-se um concurso real; só significa que este deve firmar-se se esgotantemente se mostrarem preenchidos os seus pressupostos, enunciados no n.º 2, de que se não pode desligar numa interpretação sistemática e global do preceito.
Interpretação em contrário seria, até, manifestamente atentatória da CRP, restringindo a um limite inaceitável o respeito pela dignidade humana, violando o preceituado no art.º 1.º, comprimindo de forma intolerável direitos fundamentais, em ofensa ao disposto no art.º 18.º da CRP.
Assim, quer o aditamento pela Lei n.º 59/2007 do n.º 3 ao art.º 30.º do Código Penal, quer a reformulação da sua redacção pela Lei n.º 40/2010, não exclui, antes continua a pressupor, a verificação dos requisitos do crime continuado »
Sobre o assunto, cfr. ainda os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 16-1-2008, proferido no processo 4735/07-3.ª; de 1-10-2008, processo 2872/08; e de 19-3-2009, processo 09P0483, todos acessíveis em www.dgsi.pt.
Há assim que determinar qual a correcta e adequada valoração juridico-criminal da factualidade apurada, tendo em conta as regras ínsitas no Artº 30 do C. Penal.
Nesta norma, assume-se no seu nº1, a regra basilar da punibilidade, ou seja, que a cada infracção criminal efectivamente cometida - seja de tipos diferentes, seja do mesmo tipo legal de crime - corresponde a prática de um crime.
O termo efectivamente, como ensina Eduardo Correia, cujas lições se seguem de perto ( Cfr. Direito Criminal, Tomo II, 1971, págs. 197/222 e Unidade e Pluralidade de Infracções, págs. 160/291 ), relaciona-se com a circunstância de a anti-juridicidade de comportamentos se reportar não a uma mera contagem naturalística dos crimes cometidos - no sentido de que a cada acção criminosa corresponderia uma violação normativa - mas antes, à negação valorativa do agente de forma a que hajam tantos crimes como o número de valores por si violados em determinada actividade delitiva.
Se assim é, se diversos bens jurídicos são violados ainda que numa só acção, aqueles determinarão o número de crimes cometidos pelo agente e, ao contrário, para um só valor negado, apenas um crime se revelará, ainda que múltipla seja a actividade criminosa.
Contudo, este raciocínio básico não é suficiente para dirimir o número de infracção, porquanto, qualquer acção típica, para além da sua ilicitude material exige, naturalmente, a imputação ao nível da culpa, o mesmo é dizer, implica que sobre o agente seja possível formular um juízo de censura.
Daí que os problemas se levantem quando tal juízo concreto de reprovação tenha de ser feito várias vezes em relação a actividades violadoras do mesmo bem jurídico, já que a repetidos juízos de censura, ainda que incidentes sobre idêntica valoração criminal, terão de corresponder uma pluralidade de infracções.
Quid juris ?
Desde logo, como ensina o aludido Prof., assumir que a culpa é o limite da unidade da infracção.
Depois, ter como certo que a uma « ... pluralidade de resoluções - de resoluções no sentido determinações da vontade, de realizações do projecto criminoso - o juízo de censura será plúrimo. » ( ob. cit., pág. 202 )
Por fim e este é um elemento que se julga absolutamente indispensável para compreender a teoria da unidade e pluralidade de infracções, aferir a dinâmica criminosa em função da sua conexão temporal, ou seja, para se afirmar uma unidade resolutiva é necessário poder afirmar que o agente actuou de forma a não ter de renovar a sua motivação delitiva.
É neste conjunto de asserções, que de forma breve e concisa se julga ter exposto, que assenta o denominado critério teológico, que distingue entre unidade e pluralidade de infracções e que foi consagrado no nº1 do Artº 30 do C.Penal, supra citado, designadamente, na expressão efectivamente dele constante.
Contudo, excepções existem a esta regra geral.
Por um lado, as situações em que apesar de várias normas violadas só aparentemente se concretiza uma pluralidade de infracções.
Por outro lado, quando toda a pluralidade de resoluções não seja aparente, exigindo um outro tratamento dogmático.
No primeiro caso estamos perante as situações denominadas de concurso aparente de infracções, situações que nada relevaram para a apreciação dos autos e que por isso neles não nos deteremos, apenas se acrescentando, de forma muito sintética, que o concurso aparente de infracções se revela quando o comportamento do agente preenche vários tipos legais de crime, mas o conteúdo da conduta é totalmente abrangido por um só dos tipos, em virtude das diversas relacionações entre as normas, que se podem conjugar, seja por razões de especialidade, seja por razões de consumpção, seja ainda, por motivos de subsidiariedade, ou de se tratar de um facto posterior não punível.
Já a segunda das mencionadas situações pode relevar, para a apreciação criminal dos autos e nele teremos que nos debruçar.
Aí, defronta-se o problema do crime continuado, que é uma verdadeira excepção à regra da equiparação da pluralidade de tipos violados - ou violação plúrima do mesmo tipo abstracto - à pluralidade de crimes.
A figura do crime continuado tem na sua génese razões de economia processual, sentidas pela judicatura, relacionadas ainda com a extensão do caso julgado e com a determinação dos poderes cognitivos do juiz.
O Prof. Eduardo Correia, que foi determinante para a delimitação dogmática e conceptual da figura, ensina que ao contrário de uma compreensão estritamente lógico-jurídica do instituto, em que apenas se determinariam os elementos fácticos que poderiam explicar a unidade do crime, ter-se-ia que procurar a razão do mesmo na « ... gravidade diminuída que uma tal situação revela em face do concurso real de infracções e .... assim encontrar, no menor grau de culpa do agente a chave do problema ... » ( 1ªob. citada, pág. 209 )
Foi esta construção de raiz teológica que presidiu à elaboração normativa plasmada naquilo que é hoje o nº2 do Artº 30 do C. Penal e que estava, de forma idêntica, reproduzido no C. Penal de 1982.
Aí se diz que « Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada de forma essencialmente homogénea e no quadro de solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente »
São assim fundamentalmente três os requisitos do crime continuado :
- o bem jurídico violado sucessivamente pelo agente tem de ser o mesmo, ainda que as infracções criminais por si cometidas se reportam a mais do que um tipo legal de crime aquilo a que o Prof. Eduardo Correia chamou a unidade do injusto do resultado ;
- a execução criminógena tem de ser homogénea, ou seja, praticada sob o mesmo núcleo, em que a essência dos actos delitivos se enquadrem em idênticos procedimentos e com tais propósitos delituosos, aquilo a que, nos mesmos termos, foi denominado, respectivamente, a unidade do injusto objectivo da acção e a unidade do injusto pessoal da acção ;
- tal execução ter-se-á de desenrolar no quadro de uma situação exterior ao agente, de forma a se poder dizer que lhe era cada vez menos exigível se comportar de acordo com o direito.
Começando pelo fim e porque o último dos requisitos é, verdadeiramente, a pedra de toque de todo o instituto, o que lhe determina os limites e lhe configura a natureza, dir-se-á que a essência do crime continuado está na diminuição considerável da culpa, em virtude da persistência de uma situação exterior, exógena ao agente, que facilita a actividade delituosa e a continuação da antijuricidade.
Não basta, portanto, uma mera diminuição da culpa para se poder falar em crime continuado.
Se a sua última ratio reside na diminuição da culpa do agente, apenas se justifica este tratamento de favor em relação ao agente - fazendo cair apenas numa única incriminação todo um conjunto de condutas que por assentarem em múltiplas resoluções criminosas estariam fadadas para serem vistas como uma multiplicidade de infracções - se tal diminuição for considerável, o que quer dizer que o núcleo da questão terá de radicar, precisamente, no circunstancialismo exterior ao agente que lhe facilita a continuação da actividade delitiva.
Por outras palavras, o que é fundamental, é que as múltiplas actividades criminosas tenham sido determinadas na disposição exterior das coisas, as quais, facilitam a repetição, sendo cada vez menos exigível ao agente que actue de acordo com os comandos legais.
Esta disposição exterior das coisas para o facto, esta oportunidade favorável - que se pode traduzir na perpetuidade do objecto da acção, na disponibilidade sucessiva dos meios de execução, na possibilidade de alargar o âmbito da sua actividade criminosa, na relação que se estabelece entre o agente e a vítima, entre outros exemplos que a Doutrina e a Jurisprudência avança para a caracterização da figura - torna o fim criminoso mais facilmente atingível pelo arguido e foi-lhe criada, fundamentalmente, por factores externos, pelo quadro da solicitação exterior de que fala o nº2 do Artº 30 do C. Penal.
Este é que é o factor decisivo para que se justifique uma diminuição considerável do juízo de reprovação do agente, unificando-se todas as condutas criminosas numa só.
Ao contrário, se a realização plúrima do mesmo tipo de crime se deve a um desígnio inicialmente formado pelo agente de, através de actos sucessivos, violar o respectivo comando legal, a consumação dessas actividades parcelares não pode integrar a figura do crime continuado, como bem se referiu no Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 04/05/83, in B.M.J. 327/447.
Também nesse sentido, ou seja, de o crime continuado estar afastado nos casos em que o agente actua, ainda que de forma homogénea, no desenvolvimento de um plano que traçou previamente, o Ac. do S.T.J. de 07/12/93, no Proc. 437779 da 3ªSecção.
Ora, cotejando a factualidade apurada, desde logo, com o requisito em análise, desde logo se constata que o mesmo é, ali, inexistente.
Com efeito e ao contrário do que defende o recorrente, não se vislumbra a configuração de qualquer situação que lhe seja exterior, para a qual nada tenha contribuído e que o tenha determinado à repetida prática dos crimes de abuso sexual de crianças e abuso sexual de menores dependentes.
Nada se provou neste domínio, nenhum factor ou circunstância exógena ao agente que o tenha levado à configuração material do cenário em que se desenvolveu a actividade criminosa.
Ao contrário, a mesma, tal como foi apurada pelo Tribunal ad quem, foi criada, desenvolvida, mantida e paulatinamente utilizada pelo arguido, no âmbito das suas intenções criminosas, sem ter sido minimamente condicionada ou provocada por factores que lhes fossem alheios.
Na verdade, como decorre da factualidade acima descrita, era o arguido quem procurava a menor, quando esta se encontrava sozinha, para aí, com o à vontade resultante dessa circunstância, ter relações sexuais com a mesma, assim concretizando o cenário delituoso que congeminou.
A repetição criminosa não ocorre, portanto, por via de qualquer factor exógeno ao arguido mas, ao invés, pelo escrupuloso cumprimento do seu plano criminoso, pelos quais, repetida e sequencialmente, abusava sexualmente da sua filha menor.
Nem se diga, em contraponto do exposto, que a diminuição sensível da culpa exigida pelo Artº 30 do C. Penal resulta da circunstância da vítima não ter denunciado o infractor após os primeiros factos, assim o induzindo a prosseguir as condutas criminosas.
Com efeito, mal se entende este argumento, quando os crimes em causa se prolongaram durante seis anos, sem que o arguido tivesse arrepiado caminho, mesmo depois de ter engravidado a sua filha menor de 14 anos !!!
Onde está a diminuição sensível da culpa ? Como pode ela ser compaginável como tal cenário de manutenção e durabilidade do actuacção delitiva ?
Como bem se diz na resposta do M.P. na 1ª instância e aqui, com a devida vénia, se repete, fazendo apelo às considerações de Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal à Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Ed. Universidade Católica, págs. 138 e 139, anotações 25 e 28 :“não há crime continuado se o agente pratica o crime uma vez por semana ou uma vez por mês. A mediação de um período de tempo tão dilatado entre os factos criminosos permite ao agente mobilizar os factores críticos da sua personalidade para avaliar a sua anterior conduta de acordo com o Direito e distanciar-se da mesma. Não o fazendo, já não se depara com uma culpa sensivelmente diminuída, mas com um dolo empedernido no crime” e ainda que
“o abuso sexual repetido de uma criança provoca uma tortura psicológica na criança que vive no pavor constante de vir a ser mais uma vez abusada pelo seu abusador. A consciência, o aproveitamento e até o gozo do abusador com esta tortura psicológica são incompatíveis com a afirmação de uma culpa diminuída do agente abusador. Quando for esse o caso, não há diminuição sensível da culpa, ao contrário há uma culpa agravada do agente do crime”, culpa agravada que ainda se torna mais evidente quando o agente é progenitor da vítima, como sucede no caso dos autos. De outra forma “os pais que abusam sexualmente dos seus filhos veriam a sua responsabilidade criminal atenuada e os seus próprios filhos seriam concorrentes na prática do crime, através de uma vontade que a lei não releva, numa lógica desmentida pela própria lei ao agravar, no artigo 177.º, n.º 1, al. a), do Código Penal (…) esse procedimento”.
Assim sendo, em caso algum se pode configurar, nos autos, um cenário de crime continuado, desde logo, como se disse e agora se repete, pela ausência do primeiro dos vectores em aferição, e que consubstancia, recorde-se, o âmago desta figura jurídica, qual seja, a existência de um circunstancialismo exterior ao arguido, que o tenha conduzido à repetição criminosa com diminuição considerável da sua culpa.
Cabe então recordar a lição do Nosso Mais Alto Tribunal, em Acórdão de 25 de Junho de 1986, in B.M.J. 358/267, que mantêm plena actualidade e cujos ensinamentos têm vindo a ser sucessivamente repetidos, em que assinalou que a realização plúrima do mesmo tipo de crime pode constituir : um só crime, se ao longo de toda a realização persistir o dolo inicial ; um só crime na forma continuada, se toda a actuação obedecer ao mesmo dolo, mas este estiver interligado por factores externos que arrastam o agente para a reiteração criminosa ; ou ainda, não se verificando qualquer uma das duas hipóteses anteriores, um concurso de infracções.
Foi por este sentido que decidiu e bem o tribunal recorrido, inexistindo qualquer violação do disposto no Artº 30 do C. Penal.
Falece por isso o recurso nesta parte.

B.2. Da aplicação de penas parcelares mais baixas

Invoca o recorrente na sequência do atrás exposto, que por via da peticionada aplicação da figura do cúmulo jurídico, desde logo teriam de ser aplicadas outras penas, próximas dos seus limites mínimos, para os crimes de abuso sexual de crianças e abuso sexual de menores dependentes.
Por outro lado, no que respeita ao crime de aborto, a circunstância de o mesmo não ter provocado consequências físicas na menor, deveria valer um sancionamento inferior ao aplicado ( 3 anos de prisão ).
Por fim e agora quanto aos crimes de violência doméstica, as penas aplicadas afiguram-se excessivas, na medida em que o arguido apenas actuou de forma « correctiva » para com os seus filhos, não usando de violência gratuita, ou de « forma exagerada » como foi dado assente pelo Tribunal Colectivo.
Também aqui, entendemos não assistir razão ao recorrente.
No que respeita ao primeiro dos invocados argumentos, o mesmo cai pela base, desde logo, pela circunstância, já vista, da não aplicação da figura do crime continuado aos crimes de abuso sexual de crianças e de abuso sexual de menores dependentes.
Quanto aos restantes, entende-se que o Tribunal a quo, justificou, com suficiência, as medidas das penas parcelares que aplicou ao arguido, nada havendo a alterar nesta matéria.

Atentemos no que aí se disse a tal propósito ( transcrição ) :
« No caso concreto há assim que ponderar:
- O grau de ilicitude do facto, que se afigura mediano relativamente a todos os ilícitos, ponderando no que respeita aos crimes de abuso sexual de crianças agravados e de abuso sexual de menor dependente agravados, ponderando a sequência temporal dos actos, o contexto em que eram praticados – no carro ou na própria casa de família -, no aborto, a forma como o mesmo foi concretizado, e na violência doméstica, as formas de agressão, a natureza das ameaças e injúria à companheira e a duração temporal dos factos.
- A gravidade das consequências, muito gravosas no que respeita à menor B relativamente aos crimes sexuais e aborto, que claramente marcam a sua adolescência e em geral serem comportamentos que causaram o desagregar duma família;
- O dolo do arguido, que reveste a forma de dolo directo, intenso em todos os casos;
- o percurso de vida, situação familiar e profissional, características de personalidade e situação económica, na medida dos factos que resultaram provados – pontos 32. a 48. - e aqui se dão por reproduzidos;
- A conduta anterior ao facto e posterior a este, sendo de atentar a inexistência de antecedentes criminais do arguido.
Por outro lado há que ter em conta que as necessidades de prevenção geral são elevadas atenta a frequência com que são praticados crimes desta natureza, e que as necessidades de prevenção especial também são intensas por, pese embora a ausência de antecedentes do arguido, o número de crimes, de vítimas e a duração temporal dos factos indicia forte tendência para a actividades delituosas cometidas.»

Como se sabe, na determinação da pena concreta, importa ter em conta, nos termos do Artº 71 do C. Penal, as necessidades de prevenção geral e especial que nos autos se imponham, bem como, as exigências de reprovação do crime, não olvidando que a pena tem de ser orientada em função da culpa concreta do agente e que deve ser proporcional a esta, em sentido pedagógico e ressocializador.
Como ensina Figueiredo Dias in Direito Penal, Parte Geral, Tomo 2, As consequências jurídicas do crime. 1988, pág. 279 e segs :
« As exigências de prevenção geral, ... constituirão o limiar mínimo da pena, abaixo do qual já não será possível ir, sob pena de se pôr em risco a função tutelar do Direito e as expectativas comunitárias na validade da norma violada ;
As exigências de culpa do agente serão o limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas, por respeito ao princípio politico-criminal da necessidade da pena ( Artº 18 nº2 da CRP ) e do principio constitucional da dignidade da pessoa humana ( consagrado no nº1 do mesmo comando )
Por fim, as exigências de prevenção especial de socialização, sendo elas que irão determinar, em último termo e dentro dos limites referidos, a medida concreta da pena »
Importa ainda ter em conta que :
« A função primordial de uma pena, sem embargo dos aspectos decorrentes de uma prevenção especial positiva, consiste na prevenção dos comportamentos danosos incidentes sobre bens jurídicos penalmente protegidos.
O seu limite máximo fixar-se-á, em homenagem à salvaguarda da dignidade humana do condenado, em função da medida da culpa revelada, que assim a delimitará, por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que social e normativamente se imponham.
O seu limite mínimo é dado pelo quantum da pena que em concreto ainda realize eficazmente essa protecção dos bens jurídicos.
Dentro destes dois limites situar-se-á o espaço possível para resposta às necessidades da reintegração social do agente.
Ainda, embora com pressuposto e limite na culpa do agente, o único entendimento consentâneo com as finalidades de aplicação da pena é a tutela de bens jurídicos e, (só) na medida do possível, a reinserção do agente na comunidade - cf. Anabela Miranda Rodrigues, RPCC, Ano 12º, nº 2, pág. 182» – Ac. do STJ de 4-10-07, Proc. nº 2692/07 - 5ª »
Ora, confrontando o raciocínio expendido pela instância recorrida, constata-se que ali foram tidos em conta, na determinação das penas parcelares a aplicar aos crimes cometidos pelo arguido, todos os critérios legais a que alude o Artº 71 do C. Penal, não podendo o arguido queixar-se de severidade por banda do tribunal a quo.
Com efeito, o cenário dos autos é de uma extrema gravidade e com um elevadíssimo juízo de censura susceptível de ser formulado sobre o agente, cristalizado na relação pessoal e familiar que tinha para com a vítima, o modo como os crimes foram cometidos, o longo período temporal em que tal cometimento foi sendo repetido e as tremendas consequências psicológicas que necessariamente advirão, para a sua filha B, dos crimes sexuais de que foi vítima, sendo que o conhecimento sobre a profundidade, extensão, alcance e durabilidade das mesmas, sempre pecará por defeito.
Nenhuma razão existe assim, para alterar as penas aplicadas aos crimes de abuso sexual de crianças e de abuso sexual de menores dependentes, as quais se mostram, face ao que se disse, adequadas à gravidade e ilicitude dos factos cometidos, e às razões de prevenção geral e especial que no caso concorrem, como se torna evidente se atendermos ao facto daquelas se situarem apenas um ano acima dos limites mínimos aplicáveis.
Idêntico critério foi decidido em relação ao crime de aborto, onde mal se compreende a alegação do recorrente.
Com efeito, independentemente de não se ter provado a existência de consequências nefastas, de ordem física, para a vítima, a verdade é que estamos a falar de um aborto de uma menina de 12 anos de idade e que era filha do arguido depois de ter sido engravidada por este !
Este simples facto, parece ser suficiente para que se justifique a aplicação de uma pena situada 1 ano acima do limite mínimo …
De igual modo quanto aos ilícitos de violência doméstica, os quais foram sancionados pelo tribunal a quo, cada um deles, apenas com seis meses acima do mínimo aplicável, benignidade esta, contudo, com a qual o arguido também não se conformou !
É certo que a expressão « exagerada », constante do Artº 24 dos factos provados, apelidando-se, desde modo, a forma como o arguido batia nos filhos, deveria ter sido evitada, pelo juízo conclusivo que implica.
Todavia, no mesmo artº e no anterior, descreve-se, com suficiência bastante, o modo como o arguido agredia física e psiquicamente a companheira « … batendo-lhe com chapadas na cara … dando-lhe puxões de cabelo … » chamando-lhe « …na língua alemã, de prostituta e vaca e ameaçando-a de morte » e os filhos « …desferindo-lhe palmadas na cara e nos braços, sendo que por vezes batia no filho D com pontapés e socos, o que determinou a abertura de um processo na Comissão de Protecção de Crianças e Jovens de Odemira »
Está assim amplamente desenhado o quadro de violência no qual o arguido se relacionava com a companheira e filhos, no qual todos tinham medo dele, vivendo em constante sobressalto ( Cfr, Artsº 22 e 25 da matéria de facto provada ), bem longe dos meros correctivos que o arguido alega em seu favor.
Não é isso que resulta dos factos assumidos como provados pelo tribunal recorrido e face aos mesmos, justifica-se amplamente a aplicação daquelas medidas parcelares.
Em suma, na determinação das penas concretas a todos os crimes cometidos pelo arguido, o tribunal recorrido deu cumprimento ao disposto nos Artsº 40 e 71 nº2, ambos do Código Penal, não se mostrando as mesmas desproporcionadas face às circunstâncias do caso concreto.
Não se vislumbrando desrespeito pelos aludidos preceitos legais, inexiste qualquer razão para proceder á alteração das aludidas penas parcelares, soçobrando também o recurso nesta parte.

B.2. Da aplicação de um cúmulo jurídico mais baixo

Entende aqui o recorrente, que a aplicação de uma pena única de 14 anos e 10 meses de prisão é manifestamente excessiva, não se tendo levado em linha de conta as atenuantes que o beneficiam, designadamente, a ausência de antecedentes criminais, o facto de ter assumido/confessado muitos dos factos que lhe foram imputados, ser um indivíduo com hábitos de trabalho e o suporte económico da família, sendo-lhe reconhecidas competências e qualidade nas tarefas que desempenhava, como bombeiro voluntário, transportando gratuitamente os desportistas, sendo considerado como uma pessoa correcta para com os outros, aparentando manter um relacionamento familiar, conjugal e parental normal, sem sinais de promiscuidade.
Todavia e ainda que tudo o que é invocado pelo arguido conste efectivamente dos factos provados ( Artsº 40 a 42 desse domínio ), a verdade é que os mesmos, para além de não serem suficientes para lhe diminuir, de forma assinalável, o grau de censura pelos seus comportamentos, indiciam até, na análise conjugada com outros factos, uma personalidade deveras preocupante.
Com efeito, foi também dado como provado que o arguido, « enquanto esperou pela ordem de prisão preventiva, manteve a postura habitual de tranquilidade e racionalidade, tendo tratado de todos os assuntos formais para a cessação da atividade, bem como outros de natureza económica » e que, continuando « … a apresentar-se tranquilo … », « reconhece que a conduta em apreço nos autos é censurável e aceita pacificamente as consequências jurídico-penais a que se expôs, mas não demonstra sentimento de culpa ou arrependimento. Não se sente agressor, nem sente a filha e a criança, que com ela procriou, como vítimas ».
Não existe assim, por parte do arguido, uma interiorização do elevado desvalor social do seu comportamento, uma assumpção própria da sua profunda culpa, desde logo, porquanto nem sequer se reconhece como agressor, nem a sua filha como vítima, que dele procriou !
Ora, esta anomia para com os valores sociais, esta indiferença pelos direitos e liberdades de terceiros – no caso, a sua filha menor – levaram-no a praticar actos de natureza sexual, repetidos ao longo dos anos e que nem a gravidez por si provocada no corpo da sua filha e consequente aborto, o levaram a renunciar.
Se o arguido não reconhece como criminosas as suas condutas – pois não se identifica como agente de crime, nem admite que a sua filha possa ser vítima – desde logo se desenha uma culpa na formação de personalidade, no sentido de ser nela, como bem nota a decisão recorrida, que os factos tiveram génese.
Sendo fortes, pela própria natureza dos crimes, as exigências de prevenção geral – como é bem indicador o facto dado provado no Artº 48 – ainda mais prementes se afirmam as exigências de prevenção especial, como resposta a mais uma situação de DrºJekyll and Mr Hyde, tão fascinante literariamente, mas tão preocupante, em termos criminólogos, pela circunstância de no tecido social, no seio de uma comunidade, alguém ser capaz de ter um comportamento padronizado, de simpatia para com os outros, de competências laborais e aparente normalidade, para depois, na perversa intimidade da casa de família, no silêncio cúmplice daquelas quatro paredes, se revelar um homem violento para com a mulher e os filhos, violando uma filha ao longo dos anos e engravidando-a !
Como bem se diz, na decisão recorrida, em sede de cúmulo jurídico, o legislador tem em vista « … sancionar os factos e a personalidade do agente no seu conjunto, o agente é punido tendo em atenção não apenas um mero somatório dos factos individualmente praticados, mas antes de forma mais elaborada, dando atenção àquele conjunto, numa dimensão penal nova que abrange o conjunto dos factos, a gravidade do ilícito global praticado, a culpa, as exigências gerais de prevenção, tanto geral, como de análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização) - Prof. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, págs . 290 -292.
Imprescindível na valoração global dos factos, para fins de determinação da pena de concurso, é analisar se entre eles existe conexão e qual o seu tipo; na avaliação da personalidade releva sobretudo se o conjunto global dos factos é reconduzível a uma tendência criminosa, dando-se sinais de extrema dificuldade em manter conduta lícita, caso que exaspera a pena dentro da moldura de punição em nome de necessidades acrescidas de ressocialização do agente e do sentimento comunitário de reforço da eficácia da norma violada ou indagar se o facto se deve à simples tradução de comportamentos desviantes, meramente acidentes de percurso, que toleram intervenção punitiva de menor vigor, expressão de uma pluriocasionalidade, sem radicar na personalidade, tendo presente o efeito da pena sobre o seu comportamento futuro – Prof. Figueiredo Dias , ob. cit . § 421 »
Ora, como se sabe, a pena única tem como limite mínimo, a pena parcelar mais grave e como limite máximo, a soma das penas concretamente determinadas, o que quer dizer, que no caso dos autos, a baliza se situa entre um mínimo de 5 anos e 8 meses de prisão e um máximo de 25 anos de prisão, já que o cúmulo material das penas aplicadas atinge 131 anos e 4 meses de prisão !
Por tudo quanto atrás se disse, tendo em conta todas as circunstâncias que no caso concorrem, atenuantes ou agravantes, torna-se claro que se o cúmulo jurídico determinado pela instância recorrida padece de alguma reparo, será de uma eventual generosidade na fixação da pena única aplicada ao arguido.
Nesta medida, não se revelando, também aqui, como era invocado, qualquer violação do disposto nos Artsº 40 e 71, do C. Penal, o recurso terá de improceder.

3. DECISÃO

Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso e em consequência, manter, na íntegra, o acórdão recorrido.
Custas a cargo do recorrente, fixando-se a taxa de justiça, atendendo ao trabalho e complexidade das questões suscitadas, em 3 UC, ao abrigo do disposto nos Arts 513 nº 1 e 514 nº 1, ambos do CPP e 8 do Regulamento das Custas Processuais e tabela III anexa.
Comunique a presente decisão à instância recorrida, nos termos e para os efeitos do disposto nos Artsº 414 nº7 e 215 nº6, ambos do CPP.
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Consigna-se, nos termos e para os efeitos do disposto no Artº 94 nº2 do CPP, que o mesmo foi integralmente revisto e elaborado pelo primeiro signatário.
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Évora, 16 de Outubro de 2012

Renato Damas Barroso
António Manuel Clemente Lima