Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1079/16.9T8BJA.E1
Relator: FRANCISCO MATOS
Descritores: REPARAÇÃO AUTOMÓVEL
VALOR DE SUBSTITUIÇÃO
Data do Acordão: 11/08/2018
Votação: MAIORIA COM VOTO DE VENCIDO
Texto Integral: S
Sumário: Provando a seguradora a onerosidade excessiva da reparação do veículo sinistrado, em função da desproporção entre o valor desta e o valor de substituição do veículo, incumbe ao credor provar que o concreto valor patrimonial do veículo não coincide, por superior, com o seu valor de substituição no momento anterior ao acidente.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Proc. nº 1079/16.9T8BJA.E1


Acordam na 2ª secção do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório.
1. Transportes (…), Lda., com sede na Estada de S. (…), nº 31, Casal do (…), Batalha, instaurou contra Companhia de Seguros (…), S.A., com sede na Avª da (…), em Lisboa, ação declarativa com processo comum.
Alegou, em resumo, que no dia 23 de Outubro de 2015, cerca das 8,30 horas, ao Km 356 da IP2, no troço que liga Castro Verde a Beja, o veículo pesado de mercadorias, com a matricula 10-91-(…), formando conjunto com o semi-reboque com a matricula L-(…), propriedade da A. e conduzido por (…), foi embatido pelo trator com a matricula 67-85-(…) e semi-reboque acoplado com a matrícula C-(…), seguro na Ré, depois do seu condutor, (…), provindo da EN 122, se haver introduzido no IP2, com violação do sinal de paragem obrigatória e de proibição de viragem à esquerda, que lhe deparava no local do entroncamento das duas vias de trânsito.
Em consequência do embate, o veículo da A. sofreu danos cuja reparação ascendeu a € 17.874,73 e, por falta de diligência da R. em assumir a sua reparação, esteve imobilizado entre 23/10/2015 e 13/4/2016, ocasionando à A. um prejuízo mensal médio de € 8.057,66.
Concluiu pedindo a condenação da R., a título de indemnização, no pagamento da quantia de € 69.443,77, acrescida de juros.
Contestou a R. argumentando que o acidente determinou a perda total do veículo da A., mostrando-se a R. obrigada a indemnizar a A. pela diferença entre o valor venal do veículo à data do acidente (entre € 7.000,00 e € 7.500,00) e o valor dos salvados (€ 2.950,00) e que, por carta de 12/2/2016, propôs à A. o pagamento desta diferença e esta recusou e, contradizendo os factos alegados pela A., defendeu, em síntese, que a A. não demonstra haver pago a reparação do veículo, nem haver tido os prejuízos com a imobilização do veículo que alega.
Concluiu pela improcedência da ação na parte em que visa a indemnização da A. em quantia superior a € 4.548,00.

2. Foi proferido despacho que afirmou a validade e regularidade da instância, identificou o objecto do litígio e enunciou os temas da prova.

Teve lugar a audiência de discussão e julgamento e depois foi proferida sentença em cujo dispositivo designadamente se consignou:
Pelo exposto, o Tribunal julga a ação parcialmente procedente e consequentemente condena a Ré Seguradoras (…), S.A. no pagamento à autora da quantia de € 4.548,00 (quatro mil, quinhentos e quarenta e oito euros), acrescida dos juros de mora vincendos.”

3. O recurso.
A A. recorre da sentença, exarando as seguintes conclusões que se transcrevem:
“1ª. Além dos Factos dados como provados, devem ter-se por provados os seguintes factos, que foram dados como não provados:

a) “O tempo da reparação do veículo do A. foi de 15 dias úteis.”

b) “Entre a data do acidente e o dia 13/4/2016 a A. deixou de receber a quantia de € 51.569,04, por não poder utilizar o veículo sinistrado.”

2ª. O ponto 16 dos Factos Provados deve ficar com a seguinte redação:

“Pouco tempo antes do acidente, havia sido substituído o diferencial do veículo da A. numa reparação de 2.460,00 € e cerca de um ano antes havia sido reparado o motor, cuja reparação importou em € 17.749,00.”

3ª. O ponto 22 dos Factos Provados deve ficar com a seguinte redação:

“À data do acidente o valor venal considerado pela Ré era entre 7.000,00 e 7.500,00 €, calculado com base meramente no ano, estado (normal) e quilometragem do veículo.”

4ª. O valor de uso ou utilização do veículo que o mesmo representava para a A., à data do acidente, e em termos médios e constantes, era o valor de uso de 268,58 € diário, uma vez que, nos serviços contratados com a (…) auferia, em média, por mês 8.057,66 € (por dia, 268,58 €).

5ª. O corte abrupto da utilização ou da privação do uso do veículo foi causado pelo acidente, da responsabilidade do segurado da Ré.

6ª. O lucro cessante da A. corresponde igualmente a esse montante, uma vez que, com a imobilização do veículo, deixou de poder prestar os serviços há muitos meses contratados com a (…), que permitiam à A. o lucro médio de 268,58 €/dia.

7ª. A Ré não alegou nem provou qualquer facto que impedisse o direito da A. de ser indemnizada quer pelos danos emergentes, quer pela privação do uso do veículo, quer por lucros cessantes.

8ª. Mesmo que – sem conceder, porém – fosse considerado apenas o período de imobilização entre a data do acidente e a receção da carta de 12/2/2016, em que a A. comunica a sua posição de não reparar o veículo, oferecendo o valor venal que ela calculara, teríamos 110 dias de imobilização do veículo sem que a Ré procedesse à reparação do veículo, pusesse à disposição da A. outro veículo ou tivesse sequer oferecido o valor venal.

9ª. A Ré, porque a restauração natural era exigível, no presente caso, tem de pagar o valor da reparação do veículo, no montante de € 17.874,73.

10ª. Ao decidir como se decidiu na douta sentença, foram violados, entre outras, as seguintes disposições legais: artº. 342º, nº 2, 483º, 562º, 564º, 566º, nº 1 do C.C. e 607º, nºs. 3 e 4 do C.P.C..

Termos em que, Venerandos Desembargadores, alterando a matéria de facto no sentido proposto nas conclusões supra (1ª, 2ª e 3ª) e revogando a douta sentença, deve ser proferido douto Acórdão que julgue a ação totalmente procedente, por provada, condenando-se a Ré a pagar à A. a indemnização de 69.443,77 € e nos juros legais vincendos desde a citação até efetivo embolso, como peticionado.

Assim se fazendo Justiça material.”

Respondeu a Ré por forma a defender a confirmação da sentença recorrida.

Admitido o recurso e observados os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


II. Objeto do recurso.
Considerando as conclusões da motivação do recurso e sendo estas que delimitam o seu objeto, importa decidir (i) a impugnação da matéria de facto (ii) se o A. tem direito à indemnizações peticionadas.

III. Fundamentação.
1. Factos.
1.1. A decisão recorrida julgou assim os factos:
Factos Provados:
1. No dia 23 de Outubro de 2015, cerca das 8.30 H., ocorreu um acidente de trânsito na estrada IP2, que liga Castro Verde a Beja, ao Km 356;

2. No sentido Castro Verde – Beja, transitava, naquele dia e hora, pela referida via e pela metade direita da faixa de rodagem, o veículo pesado de mercadorias, marca Volvo, FH 12, com a matrícula 10-91-(…), formando conjunto com o semi-reboque de matrícula L-(…), propriedade da A. e conduzido por (…);

3. A via encontrava-se em obras do lado esquerdo, atento o sentido Castro Verde – Beja, estando livre a metade direita da faixa de rodagem, que tinha a largura livre de 3,80 m;

4. Estrada que tinha, à data do acidente, metros antes do entroncamento com o IP2, sinalização de paragem obrigatória (sinal de cedência de passagem) e de proibição de virar à esquerda;

5. No momento em que o veículo (conjunto de trator e semi-reboque – 10-91-… e L-…) da A. passava no enfiamento do entroncamento com a estrada 122, o veículo pesado 67-85-… (trator) e seu semi-reboque acoplado, C-…, invadiu a via IP2;

6. Embateu na parte lateral direita da frente do veículo da A. sobre a roda da frente e cabine, porta, para-choques e depósito do gasóleo, que arrancou, e atingindo ainda o semi-reboque;

7. O veículo 67-85-…/C-… era conduzido por (…), no interesse e com autorização da sua proprietária Transportes (…), Lda. e encontrava-se seguro na Ré pela apólice (…);

8. Em consequência do embate o veículo da A. sofreu os seguintes danos: pala sol, farolim, para-brisas, moldura de retenção, goteira, painel de canto, painel da frente, grelha, aro de farol e farol direito, farolim pisca, farolim parque, para-choques, haste do espelho, tampa, cabo de espelho da porta, carcaça do espelho, vidro do espelho, friso, carcaça do retrovisor, vidro da porta direita, vedação, friso de vedação, caixilho da porta, tacos, extensão da porta, pegadeira da porta, fecho, tampa 8361, guarda-lamas da frente, depósito de combustível, cinta de fixação e barra de ligação;

9. A reparação do veículo foi orçada em € 14.532,30, a que acresceu o IVA no valor de € 3.342,43;

10. Tal orçamento feito por estimativa e sem desmontagem, podendo ser superior;

11. Após o acidente a Ré, não mandou reparar o veículo nem colocou outro à disposição da A.;

12. A Ré dirigiu à A. uma carta datada de 12.02.2016 em que além do mais se pode ler: “No seguimento da vistoria efetuada constatámos que a viatura de V. Exª. sofreu danos cuja reparação se torna excessivamente onerosa face ao seu valor de mercado antes do acidente.

Na situação em concreto, considerando o valor estimado para a reparação (…) a melhor proposta de aquisição da sua viatura com danos (…) bem como o valor de mercado antes do acidente (…) colocamos à disposição de V. Exª. a quantia de € 4.548,00 (…)” ;

13. A tal carta respondeu a A., em 16/3/2016, através do seu mandatário, dizendo que o veículo tinha um valor superior ao que a Ré indicava, que havia sofrido uma intervenção ao motor de € 17.749,00 em Dezembro de 2014, que o mesmo se encontrava afeto a serviços prestados à (…), que a sua facturação média mensal era de € 10.019,01;

14. A Ré dirigiu à A. uma carta datada de 21.03.2016 em que além do mais se pode ler: “Informamos que muito embora consideremos correta a nossa proposta, unicamente para não nos colocarmos numa posição de intransigência e procurando ultimar de imediato o assunto, aceitamos dilatar a nossa proposta para € 4.850,00 (…)”;

15. A A. não aceitou o valor colocado à disposição pela Ré;

16. Pouco tempo antes do acidente, havia sido substituído o diferencial do veículo da A. numa reparação de € 2.460,00 e cerca de um ano antes havia sido reparado o motor;

17. À data do acidente o veículo da A. encontrava-se afeto a serviços de transportes de britas e betuminoso, contratados entre a A. e (…) desde há meses antes da data do acidente, tendo faturado, nos sete meses anteriores ao acidente, por serviços prestados de transporte com o veículo sinistrado, a quantia (sem Iva) de € 70.133,07;

18. Gastou em gasóleo, nesse mesmo período, nesses serviços de transporte, a quantia de € 13.729,45, sendo que o abastecimento era feito na (…);

19. A A. mandou reparar o veículo sinistrado, com o que gastou € 17.874,73;

20. O ano de matrícula do veículo da A. era de 1996;

21. À data do acidente havia percorrido, pelo menos, 946.833 Kms;

22. À data do acidente o seu valor venal era entre € 7.000,00 e € 7.500,00;

23. Após o acidente os salvados valiam € 2.952,00;

24. Em Julho de 2016 o veículo da A. não tinha IPO válida nem se encontrava seguro em qualquer seguradora;

25. A R. só conseguiu fazer a peritagem do veículo da A. e elaborar o orçamento da respectiva reparação em 02.02.2016;

26. A A. comprou um veículo semelhante ao sinistrado em 29/10/2015.

Factos não provados

A. O tempo da reparação do veículo da A. foi de 15 dias úteis;

B. Entre a data do acidente e o dia 13.04.2016 a A. deixou de receber a quantia de € 51.569,04 por não poder utilizar o veículo sinistrado;

C. A A. comprou o veículo referido em 26 para substituir o veículo sinistrado.

1.2. A impugnação da decisão de facto.

Pretende a Recorrente que se altere os pontos 16 e 22 dos factos provados por forma a constar, respetivamente, que “pouco tempo antes do acidente, havia sido substituído o diferencial do veículo da A. numa reparação de 2.460 € e cerca de um ano antes havia sido reparado o motor, cuja reparação importou em 17.749 €” e “à data do acidente o valor venal considerado pela Ré era entre 7.000 e 7.500 €, calculado com base meramente no ano, estado (normal) e quilometragem do veículo” e que se julgue provada a matéria constantes das alíneas A e B dos factos não provados.

A impugnação tem fundamento nos depoimentos das testemunhas … (quanto ao valor venal do veículo), …, …, … (quanto ao período de tempo da reparação) e ilações da matéria provada em 17 (quanto aos prejuízos decorrentes da impossibilidade de uso do veículo entre a data do acidente e o dia 13.04.2016).

O ponto 22 dos factos provados reporta-se ao valor venal do veículo – à data do acidente o seu valor venal era entre € 7.000,00 e € 7.500,00 – facto alegado pela Recorrida (artº 5º da contestação) e a decisão que a Recorrente preconiza quanto a esta matéria – à data do acidente o valor venal considerado pela Ré era entre 7.000 e 7.500 €, calculado com base meramente no ano, estado (normal) e quilometragem do veículo – é a sua não prova; seja porque a redação proposta retira a natureza de valor venal ao valor encontrado, o valor venal de um veículo é o valor da sua substituição ou mais genericamente o seu valor de mercado e não o valor que uma determinada pessoa, no caso a Recorrida, lhe atribui; seja porque lhe introduz fatores de insuficiência de cálculo – com base meramente – que se destinam a negar a sua validade.

A decisão recorrida motivou a resposta encontrada para esta matéria nos depoimentos das testemunhas (…) e (…).

Ouvidos os depoimentos destas testemunhas deles não se poderá dizer que resulta com absoluta certeza que o veículo da Recorrente, à data do acidente, tinha um valor de mercado entre € 7.000,00 e € 7.500,00 mas resulta, a nosso ver, com alto grau de probabilidade que seja este o seu valor, por corresponder ao valor médio de mercado para os veículos com características idênticas e ano de matrícula e quilometragem aproximados. E tanto basta; a prova, como ensina Manuel de Andrade, “não é a certeza lógica, mas tão só um alto grau de probabilidade, suficiente para as necessidades práticas da vida (certeza histórico-empírica)” e cintando outros, continua, “trazendo para aqui a terminologia dos filósofos, pode dizer-se que haverá prova acerca dum ponto de facto logo que o material probatório existente nos autos já permita ao juiz uma opinião (mais do que a ignorância ou a duvida, e menos do que a certeza, que corresponde à evidência) quanto a esse ponto”[1].

A prova produzida não impõe, a nosso ver, decisão diversa quanto a esta matéria.

A alteração preconizada para a matéria constante no ponto 16 dos factos provados - pouco tempo antes do acidente, havia sido substituído o diferencial do veículo da A. numa reparação de 2.460 € e cerca de um ano antes havia sido reparado o motor, cuja reparação importou em 17.749 €”, agora sublinhada, não constitui um facto essencial para a decisão da causa - o litígio não tem por objeto qualquer reparação do veículo antes do acidente – é um facto instrumental[2] destinado a demonstrar o valor venal do veículo; na tese da Recorrente, o veículo não têm o valor que a decisão recorrida lhe atribuiu, porquanto este valor foi encontrado com recurso a critérios (ano de matricula, quilometragem, aspeto) superados pela reparação do diferencial e do motor do veículo, omitidos, pela decisão recorrida, na determinação do seu valor venal.
Qual seja este valor – o valor adequado para o veículo – a Recorrente não diz. Anotamos esta circunstância, não para retirar, nesta fase, qualquer exigência de alegação de factos da Recorrente quanto a esta matéria, mas para evidenciar que não tendo a Recorrente contraposto, ao valor venal do veículo alegado pela Recorrida, outro qualquer valor, a matéria impugnada, enquanto facto instrumental, destinado a inferir um facto principal (o valor do veículo diferente do julgado provado) que não foi alegado surge inócuo para a decisão da causa.
Improcede a impugnação quanto a esta matéria e a solução de direito que, a nosso ver, o recurso reclama prejudica a apreciação da demais matéria impugnada (als. A e B dos factos não provados), como infra procuraremos deixar demonstrado.

2. Direito
2.1. Se a Recorrida deve ser condenada a indemnizar a Recorrente pelos prejuízos decorrentes do custo da reparação do veículo e da sua imobilização entre o dia do acidente (23/10/2015) e o dia para entrega do veículo reparado (13/4/2016).
2.1.1. A decisão recorrida considerou que, em consequência do acidente, o veículo da Recorrente ficou na situação de perda total e condenou a Recorrida no pagamento da quantia de € 4.458,00, correspondente à diferença entre o valor venal do veículo (€ 7.500,00) e os salvados (€ 2.950,00).
A Recorrente não se conforma com esta condenação e pretende a Recorrida seja condenada a reconstituir o veículo, ou seja, a pagar a sua reparação, no montante de € 17.874,73.
A obrigação de reparar prejuízos comporta, como principio geral, o dever de reconstituição ou reposição natural, “[q]em estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação” (artº 562º do Código Civil).
Casos existem, porém, em que a indemnização é fixada em dinheiro e, entre eles, os casos em que a reconstituição natural seja excessivamente onerosa para o devedor (artº 566º, nº 1, do Código Civil).
Nestas situações e “[s]em prejuízo do preceituado noutras disposições, a indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos” (ibidem, nº 2).
Na anotação de P. Lima e A. Varela, a reconstituição natural é excessivamente onerosa para o devedor, “quando houver manifesta desproporção entre o interesse do lesado, que importa recompor, e o custo que a reparação natural envolve para o responsável” e, os autorizados Comentadores, prosseguem exemplificando: “Imaginemos um caso: inutilizou-se um automóvel velho que vale 100, e são precisos 200 para o substituir por um novo. Seria injusta a substituição, onerando o devedor com um encargo superior ao prejuízo e beneficiando o credor com a substituição dum automóvel velho por um novo”.[3]
No caso dos autos demonstra-se que o veículo tinha, à data do acidente, um valor venal entre € 7.000,00 e € 7.500,00 (ponto 22 dos factos provados), ou seja, com esta quantia a Recorrente podia comprar, à referida data, um veículo com as caraterísticas, estado de conservação e funcionamento, do veículo sinistrado e que a reparação do veículo importa a quantia de € 17.874,73 (ponto 19 dos factos provados).
Representando o custo da reparação do veículo mais do dobro do valor que a Recorrente teria que suportar pela sua substituição por outro, com idênticas características e funcionalidades, evidencia-se, a nosso ver, manifesta desproporção entre o interesse do lesado, que importa recompor, e o custo que a reparação natural envolve para o responsável ou, na terminologia da lei, a reconstituição natural é excessivamente onerosa para o devedor e a indemnização deverá ser fixada em dinheiro.
Para o cálculo desta indemnização, o artigo 41º, do DL n.º 291/2007, de 21/8 (Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel), que resultou da transposição para o ordenamento jurídico nacional da Diretiva n.º 2005/14/CE, prevê o seguinte:
“1- Entende-se que um veículo interveniente num acidente se considera em situação de perda total, na qual a obrigação de indemnização é cumprida em dinheiro e não através da reparação do veículo, quando se verifique uma das seguintes hipóteses:
(…)
c) Se constate que o valor estimado para a reparação dos danos sofridos, adicionado ao valor do salvado, ultrapassa 100% do valor venal do veículo consoante se trate respetivamente de um veículo com menos ou mais de dois anos.
(…)
3- O valor da indemnização por perda total corresponde ao valor venal do veículo antes do sinistro calculado nos termos do número anterior, deduzido do valor do respetivo salvado caso este permaneça na posse do seu proprietário, de forma a reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à indemnização”.
A decisão recorrida, na parte em que condenou a Recorrida a pagar à Recorrente a quantia de € 4.586,00, enquanto diferença entre o valor venal do veículo (€ 7.500,00) e os salvados (€ 2.950,00), conforma-se com estas regras e com os factos provados (pontos 22 e 23).
Solução que, aliás e a nosso ver, não afronta a jurisprudência citada pela Recorrente, assente no princípio que o valor venal dum veículo não reflete, só por si, o seu valor patrimonial, uma vez que para este concorrem designadamente o valor do uso que dele retira o seu proprietário, a possibilidade de aquisição de outro veículo com características idênticas e com aptidão para satisfazer as mesmas necessidades.
Na enunciação da lei, o valor venal dum veículo corresponde “ao seu valor de substituição no momento anterior ao acidente” (nº 3, do citado artº 41º, nº 2, do D.L. nº 291/2007), conceito que nos remete para o seu valor de mercado, ou seja, o valor pelo qual é possível adquirir um determinado veículo com determinadas caraterísticas (modelo, marca, equipamentos, etc…) e apto a satisfazer determinadas necessidades (familiares, desportivas, agrícolas, industriais, etc…) a que acresce, no caso dos veículos usados, o seu estado geral (quilómetros percorridos, estado da chapa, pintura, interiores, etc…); apesar disto é configurável, tal como a jurisprudência tem vindo a entender, que um determinado veículo usado tenha caraterísticas específicas face aos similares existentes no mercado e se destine a satisfazer necessidades peculiares do seu proprietário, especificidades que o seu valor de substituição, determinado exclusivamente pelas leis da oferta e da procura, não comporta.
Mas o ónus de afirmação destas especiais peculiaridades ou especificidades, atenta esta sua natureza e, no limite, a sua inseparabilidade da pessoa do credor, há-de reconhecer-se, dificilmente pode ser cumprido pelo devedor e querendo o credor prevalecer-se delas, incumbe-lhe a sua prova, ou seja, incumbe-lhe provar que o valor patrimonial do veículo, por superior, não coincide com o seu valor de substituição, facto constitutivo da posição ativa em que consiste a sua pretensão à reconstituição natural.
“Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado” (artº 342º, do CC) e como ensina Menezes Cordeiro, [d]ireito surge, aqui, em sentido amplo: trata-se de qualquer posição jurídica ativa de que o interessado queira prevalecer-se”[4].
Assim, provando a seguradora a onerosidade excessiva da reparação do veículo sinistrado, em função da desproporção entre o valor desta e o valor de substituição do veículo, incumbe ao credor provar que o concreto valor patrimonial do veículo não coincide, por superior, com o seu valor de substituição no momento anterior ao acidente.
No caso dos autos, esta prova não se mostra feita, porquanto não obstante se prove que “pouco tempo antes do acidente, havia substituído o diferencial do veículo (…), numa reparação de € 2.460,00 e cerca de um ano antes havia sido reparado o motor” [ponto 16 dos factos provados], não se demonstra que, em concreto, estas circunstâncias hajam determinado um valor patrimonial do veículo superior ao provado, aliás, com alguma margem de segurança (entre € 7.000,00 e € 7.500,00).
Razões que, a nosso ver, concorrem para a confirmação da decisão recorrida quanto a esta questão.
2.1.2. Na consideração que a Recorrente não alegou e consequentemente não provou, quaisquer prejuízos decorrentes da imobilização do veículo, a decisão recorrida declinou a pretensão indemnizatória da ora Recorrente quanto a estes prejuízos.
Consignou, a propósito: “Ora no caso dos autos a autora não alegou que tivesse efetivamente deixado de efetuar qualquer serviço e consequentemente deixado de receber o respetivo valor por conta da imobilização do veículo sinistrado. Aquilo que a autora alega é que até à ocorrência do acidente prestou determinados serviços, concluindo que assim seria dai para a frente. Ora tal não basta para que lhe seja reconhecido o direito a uma indemnização. Com efeito teria sido necessário a autora alegar e demonstrar em concreto quais os serviços que deixou de efetuar e qual o montante que deixou de receber por isso.
Alegar os trabalhos efetuados no passado e dai pretender extrair que assim sucederia durante todo o tempo em que a viatura ficou imobilizada não é suficiente para se concluir pelo direito a uma indemnização. De resto importa ainda não esquecer que no caso o período a considerar nunca seria até à reparação do veículo já que como se viu a autora não tem direito a tal reparação mas apenas ao valor calculado nos termos supra expostos. Assim, a ser devido o pagamento de alguma quantia o cálculo do respetivo montante teria necessariamente que ter em conta a data em que foi colocado à disposição da autora o referido valor, tendo a mesma declinado o respetivo pagamento”.
Os factos provados não evidenciam a existência de um qualquer prejuízo efetivo (sofrido) ocasionado à Recorrente com a imobilização do veículo, não evidenciam, nem podiam evidenciar porquanto a petição inicial, se bem vemos, não se fundamenta neles, o que se alega é que o uso veículo pela Recorrente, à data do acidente, se encontrava afeto a serviços de transporte de britas e betuminosas, contratados entre esta e a … (artº 21º da p.i.), que a execução destes serviços haviam permitido à Recorrente faturar a quantia de € 70.133,07, nos sete meses anteriores ao acidente (facto que se prova em 17) e que o uso do veículo teria permitido idêntica faturação nos meses seguintes ao acidente.
“O dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão” (artº 564º, nº 1, do CC).
Previsão que comporta a indemnização dos designados danos emergentes e lucros cessantes; os primeiros, explicam P. Lima e A. Varela, “(…) correspondem aos prejuízos sofridos, ou seja, à diminuição do património (já existente) do lesado; os segundos, aos ganhos que se frustraram, aos prejuízos que lhe advieram por não ter aumentado, em consequência da lesão, o seu património.”[5]
Resulta da firma da Recorrente – Transportes (…), Lda. – que esta tem por escopo a atividade de transportes e decorre dos factos provados que o veículo sinistrado estava afeto a estes fins sociais (ponto 17 dos factos provados).
A privação do uso dum veículo, por uma empresa de transportes, afeto ao exercício dos seus fins sociais constitui, a nosso ver, só por si, um prejuízo, uma vez que é da natureza da sua atividade não só a efetiva execução de serviços de transporte mas também a disponibilidade de meios, frustrada, nesta parte, com a imobilização do veículo.
A imobilização do veículo da Recorrente ocasionou-lhe, assim, prejuízos, tanto mais que a Recorrida, como era sua obrigação no âmbito do procedimento de regularização de sinistros (artº 42º do referido DL n.º 291/2007) não colocou outro veículo à disposição da Recorrente (artº 29º da contestação).
Prejuízos que tiveram o seu termo em 12/2/2016, data em que a Recorrida colocou à disposição da Recorrente a indemnização de € 4.548,00, que se afigura ser a devida em consequência da situação de perda total do veículo.
A Recorrente calcula este prejuízo com base na faturação média dos últimos sete meses de uso do veículo (€ 10.019,01), a que subtrai as despesas mensais de gasóleo (€ 1.961,35) e, assim, conclui pela quantia de € 268,58 [(10.019,01 - 1.961,35) : 30].
Mas este valor, alcançado com a simples dedução das despesas de gasóleo à faturação, não expressa o lucro da Recorrente, pois existem outras despesas, v.g. desgaste de várias componentes do veículo e encargos com o pessoal manobrador, que entram nesta equação e que o valor encontrado pela Recorrente não reflete, tal como a Recorrida não deixou de anotar.
Despesas, reconhece-se, cuja determinação rigorosa é de difícil averiguação, justificando-se o recurso a um juízo equitativo e, por via dele, fixa-se em 201,43 [268,58 – 268,58 x 25%] o benefício diário que a Recorrente deixou de obter em consequência da privação do uso do veículo e, assim, em 22.157,30 [201,43 x 110] a indemnização devida pela perda do uso do veículo entre o dia do acidente (23/10/2015) e o dia em que a Recorrida colocou à disposição da Recorrente a indemnização (12/02/2016), excluídos os feriados.
Com este âmbito, procede o recurso.

Assim se decidindo, mostra-se prejudicada a impugnação da matéria de facto quanto ao facto constante da alínea A. e à conclusão constante da alínea B, ambas dos factos não provados, pois seja qual for o seu resultado a solução de direito não se altera.

2.2. Custas.

Porque vencidos nos recurso, o pagamento das custas incumbe a ambas as partes, fixando-se a proporção devida em ½ (artº 527º, nºs1 e 2, do CPC).

Sumário (da responsabilidade do relator – artº 663º, nº 7, do CPC):

Provando a seguradora a onerosidade excessiva da reparação do veículo sinistrado, em função da desproporção entre o valor desta e o valor de substituição do veículo, incumbe ao credor provar que o concreto valor patrimonial do veículo não coincide, por superior, com o seu valor de substituição no momento anterior ao acidente.


IV. Dispositivo:
Delibera-se, pelo exposto, na procedência parcial do recurso, em:
a) condenar a Recorrida a pagar à Recorrente a quantia de € 22.157,30, a título de indemnização pela perda do uso do veículo.
b) confirmar, no mais, a sentença recorrida.
c) condenar a Recorrente e a Recorrida no pagamento das custas, na proporção de ½.
Évora, 8/11/2018
Francisco Matos
José Tomé Carvalho

Declaração de voto

Vencido parcialmente, no que concerne ao pedido de pagamento do custo de reparação do veículo, de € 17.874,73, que, s.m.o., deveria merecer provimento.

Passo a expor os fundamentos da minha discordância.

- Discordância quanto à matéria de facto:

A impugnação do ponto 16 dos factos provados não apenas deveria ser expressamente conhecida, como deveria merecer provimento.

Com efeito, está alegado no art. 17.º da p.i. que o veículo “havia sofrido uma intervenção ao motor de 17.749 € em Dezembro de 2014”, matéria esta que não foi objeto de impugnação na contestação e que por isso se deve considerar assente.

Ademais, a realização da reparação no motor foi confirmada em audiência pelo mecânico que a efetuou – a testemunha (…), a partir de 7m10s.

Por outro lado, não resulta de qualquer elemento probatório seguro a realização de uma autêntica pesquisa de mercado acerca do valor de viaturas com características semelhantes à dos autos e no mesmo estado de conservação e de funcionamento, havendo a notar que a mesma testemunha (…) afirmou que só a reparação do motor custou mais que o “valor venal” atribuído pela Seguradora – cerca de 21m50s do seu depoimento.

Entendo, pois, que o ponto 22 deveria merecer uma resposta restritiva, nos seguintes termos: “A Ré Seguradora atribuiu ao veículo um valor venal situado entre os € 7.000 e os € 7.500.”

- Discordância quanto à matéria de direito:

Mesmo mantendo a matéria de facto tal como foi estabelecida na primeira instância, a decisão deveria ser outra.

Como defendi no Acórdão desta Relação de Évora de 02.10.2018 (Proc. 5234/17.6T8LSB.E1, publicado em www.dgsi.pt), por força do princípio da restauração natural contido no art. 566.º, n.º 1, do Código Civil, compete ao lesado demonstrar os danos sofridos, enquanto ao lesante caberá o ónus da prova da excessiva onerosidade, tendo em conta dois fatores: o preço da reparação e o valor patrimonial do veículo, não o seu valor venal.

Este valor patrimonial tem em conta, não apenas o valor venal do veículo, mas também o valor de uso para o proprietário e a possibilidade de aquisição de outro veículo com características semelhantes e apto a satisfazer as mesmas necessidades.

Não tendo a Seguradora demonstrado o efetivo valor patrimonial do veículo, aferido de acordo com os critérios supra referidos, deve concluir-se que esta não logrou cumprir o seu ónus de prova da excessiva onerosidade da restauração natural.

Estes são, pois, os motivos do meu voto de vencido.

Mário Branco Coelho__________________________________________________

[1] Noções Elementares de Processo Civil, 1979, págs. 191 e 192.
[2] Os factos instrumentais “são aqueles de cuja prova se pode inferir a demonstração dos correspondentes factos principais”, “assumindo, pois, em exclusivo uma função probatória e não uma função de preenchimento e substanciação jurídico-material das pretensões e da defesa” – cfr. Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, pág. 72 e Lopes do Rego, Comentário ao Código de Processo Civil, 2ª ed., vol. I, pág. 252.
[3] Código Civil Anotado, 4ª ed., pág. 582.
[4] Tratado de Direito Civil, vol. V, pág. 466.
[5] Ob. cit. pág. 579.