Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
226/22.6GBTNV.E1
Relator: GOMES DE SOUSA
Descritores: REGISTO CRIMINAL
ESTRANGEIRO
DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA
VALORAÇÃO DA PROVA
Data do Acordão: 11/22/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. No ordenamento jurídico português as decisões que tenham aplicado pena de multa principal a pessoa singular cessam a sua vigência no registo criminal decorridos 5 anos sobre a extinção da pena e desde que, entretanto, não tenha ocorrido nova condenação por crime de qualquer natureza.
II. Mas relativamente a uma condenação do arguido em França é aplicável a lei francesa.
III. A Lei nº 37/2015, de 5de maio concretiza a transposição para a ordem jurídica interna da Decisão-Quadro 2009/315/JAI, do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009, relativa à organização e ao conteúdo do intercâmbio de informações extraídas do registo criminal entre os Estados-Membros.
IV. Um dos mais relevantes instrumentos da união política que é a União Europeia, da qual fazem parte Portugal e a França, é o princípio do reconhecimento mútuo das decisões penais, nascido na sequência do Conselho Europeu de Tampere de outubro de 1999 e vertido nas conclusões do Conselho de 29 de novembro de 2000.
V. Afirma-se naquela Decisão-Quadro, no seu considerando n.º 2, que «A presente decisão-quadro contribui para atingir os objetivos previstos pela medida n.º 3 do programa, que propõe instaurar um modelo-tipo de pedido de antecedentes judiciários, traduzido em todas as línguas da União, inspirando-se no modelo elaborado no âmbito das instâncias de Schengen».
VI. Pese embora Decisões-Quadro beneficiem do designado efeito direto vertical, não é possível entender a lei nacional – designadamente a Lei n.º 37/2015 – como permitindo interpretar contra-legem a referida Decisão-Quadro no sentido de retirar autonomia à legislação francesa, revogando-a. Daqui decorrendo que a decisão judicial francesa e suas consequências, mormente quanto ao seu prazo de cancelamento registral têm de ser respeitadas.
VII. Tendo a condenação do recorrente em França ocorrido pela prática de um delit, punível pelo Code de la route com uma pena criminal, porque conduzia com uma taxa de álcool de 0,80 g/l ou mais (e não uma contravention, - que chega aos 0,79 g/l) e não estando caducada, deve ser valorada como antecedente criminal.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal da Relação de Évora:

A - Relatório
No Tribunal Judicial da Comarca de Santarém - Juízo Local Criminal de Torres Novas -correu termos o processo sumário supra numerado no qual o arguido AA foi condenado, como autor material de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível pelos arts. 292º e 69º nº 1, ambos do Código Penal:
- na pena de 65 (sessenta e cinco) dias de multa, à taxa diária de €6,50 (seis euros e cinquenta cêntimos), o que perfaz o valor total de €422,50 (quatrocentos e vinte e dois euros e cinquenta cêntimos);
- e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, pelo período de 3 (três) meses e 15 (quinze dias), devendo o arguido entregar a sua carta de condução neste tribunal ou no posto policial da sua área de residência no prazo de dez dias a contar do trânsito em julgado da sentença, sob pena de, não o fazendo, incorrer na prática de um crime de desobediência e ser ordenada a apreensão da carta de condução;
- nas custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 1 UC (artsº 513º, C.P.P. e 8º, 5º Regulamento Custas Processuais e Tabela III Anexa), já reduzida a metade, atenta a confissão do arguido (art.º 344º, do C.P.P) e demais encargos previstos no artº 16º, do R.C.P.;
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A final recorreu o arguido da sentença proferida concluindo a motivação do recurso com as seguintes conclusões:
1 - O presente recurso tem como objecto a revogação da medida da pena acessória aplicada ao ora recorrente.
2 - O recorrente vinha acusado da prática, em autoria material ena forma consumada, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292º, nº 1, do Código Penal, com referência ao disposto no artigo 69º, nº 1, alínea a), do mesmo diploma, tendo sido condenado pela sua prática na pena de 65 (sessenta e cinco) dias de multa à razão diária de 6,50 € (seis euros e cinquenta cêntimos) perfazendo o montante total de 422,50 € (quatrocentos e vinte e dois euros e cinquenta cêntimos) e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 3 (três) meses e 15 (quinze dias).
3 - A moldura penal do crime pelo qual o arguido, ora recorrente, veio condenado é, conforme disposto no artigo 292º, nº 1, do Código Penal em pena de prisão até 1 ano ou pena de multa até 120 dias sendo a moldura penal da sanção acessória, nos termos do disposto no artigo 69º, nº 1, alínea a) do Código Penal, entre três meses e três anos de proibição de conduzir veículos com motor.
4 - Para fundamentar a sua sentença, o douto Tribunal a quo considerou, conforme se encontra gravado das 09:52:42 horas às 10:04:53 horas e conforme dispõe o nº 3 do artigo 71º do Código Penal, a confissão livre, integral e sem reservas do recorrente, o talão de teste junto aos autos, a sua inserção familiar, social e profissional e o certificado de registo criminal.
5 - A medida das penas – principal e acessória – têm por referência o disposto nos artigos 40º e 71º do Código Penal devendo ser encontradas e fixadas nos limites exigidos essencialmente pelo grau de culpa, da ilicitude e pela necessidade de prevenção geral e especial.
6. A determinação da medida da pena acessória opera-se mediante recurso aos critérios do artigo 71º do Código Penal com a ressalva de que a finalidade a atingir é mais restrita na medida em que a sanção em causa tem em vista tão só prevenir a perigosidade do agente.
7. Do certificado de registo criminal junto aos autos consta a condenação em França pela prática de crime de condução de veículo em estado de embriaguez em 2013 com uma taxa de álcool no sangue de 0,80 g/l.
8. Ora, analisando por analogia os nºs 2 e 3 do artigo 75º do Código Penal, o registo criminal não deveria ter sido valorado porquanto já se passaram mais de cinco anos sobre a prática dos factos e o crime de que fora condenado em França não o é segundo a lei portuguesa. Em Portugal o agente seria apenas punido segundo as normas de ilícito de mera ordenação social, sendo condenado pela prática de uma contraordenação. (Vide Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido no âmbito do processo nº 27/16.0GTCBR.C1 em 13/09/2019 disponível em www.dgsi.pt)
9. Assim, entendemos que o douto Tribunal a quo não deveria ter valorado o registo criminal do ora recorrente e aplicar a pena acessória de inibição de conduzir pelo mínimo previsto na lei, ou seja, ser condenado na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de três meses.
Nestes termos e nos melhores de direito, deve o presente recurso ser declarado procedente e, em consequência, ser revogada a decisão recorrida no que tange à medida da pena da sanção acessória aplicada.
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O Ministério Público junto do Tribunal ... respondeu às alegações do recorrente, pugnando pela improcedência do recurso.
1ª- O recorrente não coloca em causa a matéria de facto dada como provada, mas apenas a medida concreta da pena acessória aplicada de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de três meses e quinze dias.
2.ª- A escolha da pena deve obedecer, nos termos do artigo 40º do Código Penal, às finalidades de prevenção geral positiva ou de integração, enquanto proteção de bens jurídicos e às finalidades de prevenção especial de socialização, com vista à reintegração do agente na comunidade.
3.ª- Cabe à pena um fim de utilidade social, nomeadamente, reafirmar a confiança comunitária na vigência das normas violadas (prevenção geral positiva), na dissuasão dirigida à generalidade dos indivíduos da prática de crimes (prevenção geral negativa) e na educação do agente para o Direito (prevenção especial).
4.ª- No respeitante às necessidades de prevenção geral, importa atender à elevada taxa de sinistralidade rodoviária que afeta o país (e esta região), revestindo-se como tal de especial relevância as finalidades de prevenção geral em relação a este tipo de crime, muitas vezes gerador de acidentes deviação, pelo que se torna premente impor ao arguido uma pena que contribua para a consciencialização dos condutores portugueses para a gravidade dos comportamentos que adotam ao conduzir.
5.ª- Assim, as necessidades de prevenção geral são elevadíssimas, atento os índices de sinistralidade automóvel, na grande maioria das vezes incrementadas pela violação das regras estradais, com consequências trágicas ao nível de casos de morte e ferimentos graves.
6.ª- No respeitante às necessidades de prevenção especial, as mesmas situam-se dentro da média, uma vez que o comportamento do arguido ao conduzir um veículo automóvel, de forma voluntária e consciente, após ter ingerido bebidas alcoólicas suscetíveis de acusar a taxa de alcoolémia que acusou, é merecedor de um juízo de censura adequado.
7.ª-O recorrente tem no seu certificado de registo criminal uma infração, registada em França, a qual ali ficará a constar até 23 de setembro de 2053 e não pelo período de cinco anos como decorre da lei portuguesa, pelo que a mesma terá de ser valorada para a determinação, quer da pena principal, quer da pena acessória.
8.ª- Isso mesmo decorre do disposto no artigo 27.º, n.º 1 da Lei n.º 37/2015, de 5 de maio, que nos diz o seguinte: “As decisões que constem do registo especial de decisões estrangeiras mantêm-se vigentes neste registo em conformidade com as comunicações recebidas do Estado membro da condenação e até ser recebida a informação da respetiva supressão ou cancelamento no registo criminal desse Estado membro.”
9.ª- Atendendo a esta disposição legal, tendo o arguido antecedentes criminais no seu registo criminal, os mesmos devem ser levados em consideração, na ponderação das penas a aplicar.
10.ª- Assim, em estrito cumprimento das normas e princípios que norteiam a escolha da pena, a Mmº Juiz a quo ponderou e bem, as circunstâncias que, no caso, e na justa medida, agravam e atenuam a responsabilidade do arguido, bem como as exigências de prevenção geral e especial. Considerando que a medida abstrata da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor é de 3 meses a 3 anos (artigo 69º, nº 1, alínea a) do Código Penal), a concreta pena de três meses e quinze dias de proibição de conduzir fixada, muito próximo do limite mínimo legal, não se mostra exagerada.
11.ª- Acresce que, no caso concreto a pena anteriormente aplicada ao arguido não evitou que voltasse a cometer o mesmo ilícito criminal.
12.ª- Para além do mais, também não tem razão o recorrente quando pretende que os factos praticados em França, sejam considerados à luz das normas jurídicas portuguesas, invocando que o crime pelo qual foi condenado em França, não o seria segundo a lei portuguesa, sendo que em Portugal seria apenas condenado pela prática de uma contraordenação.
13.ª- Não cabe ao Tribunal recorrido realizar qualquer análise ou censura sobre a decisão proferida em França, que se encontra definitivamente julgada segundo as normas do direito francês.
14.ª- Pelo que nenhuma censura merece a medida da pena acessória aplicada, considerando-se necessária, adequada e proporcional às exigências de prevenção geral e especial, a proibição de conduzir veículos a motor, pelo período de três meses e quinze dias, a que o arguido foi condenado.
Em face do exposto, nada há a apontar à douta sentença recorrida, pelo que a mesma deverá ser mantida.
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A Exmª Procuradora-geral Adjunta neste tribunal emitiu douto parecer no sentido do não provimento do recurso.
Foi cumprido o disposto no artigo 417 n.º 2 do Código de Processo Penal e colhidos os vistos legais.
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B - Fundamentação
B.2 – Factos provados:
No dia 15 de Maio de 2022, pelas 02.52 horas, na Rua ..., em ..., ..., de ... o arguido conduzia o veículo de marca ... de matrícula ..-..-BZ, quando foi interceptado por elementos da GNR- Destacamento de ... - que o submeteram a um teste de controlo de alcoolemia através do ar expirado, tendo sido detectado que o mesmo conduzia com uma taxa de álcool no sangue de 1,834 g/I, deduzido o desconto legal da taxa de 1,93 g/l.
Ao conduzir o veículo ligeiro referido na via pública, com a referida taxa de álcool no sangue, o arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a mesma era proibida e punida por lei.
O Arguido reside com os pais em casa própria destes, é condutor de pesados, vive com os pais, trabalha por conta doutrem, da qual aufere a remuneração média mensal liquida de 800,00 euros, contribuindo para as despesas domésticas dos seus pais com 150 a 200 € mensais..
O Arguido é titular de carta de condução desde, ao menos, 20-12-2002.
O arguido confessou de forma integral e sem reservas os factos que constam da acusação.
O Arguido tem o 9º ano de escolaridade e foi anteriormente condenado por condução sob o efeito de álcool por condenação de 2013, tendo ficado proibido de conduzir pelo período de quatro meses.

B.3 – Cumpre conhecer
B.3.1 - A motivação do recurso enuncia especificamente os fundamentos do mesmo e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do seu pedido (artigo 412º do Código de Processo Penal), de forma a permitir que o tribunal superior conheça das razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida e que delimitam o âmbito do recurso.
Não se verifica qualquer das circunstâncias a que se refere o artigo 410º do Código Penal, nem a inobservância de requisito conducente a nulidade.
Tendo em mente as conclusões do recurso interposto, o objecto deste está limitado à definição da medida da sanção acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 3 (três) meses e 15 (quinze) dias, por consideração da pena aplicada em França
O recorrente invoca na sua conclusão 8ª que «analisando por analogia os nºs 2 e 3 do artigo 75º do Código Penal, o registo criminal não deveria ter sido valorado porquanto já se passaram mais de cinco anos sobre a prática dos factos e o crime de que fora condenado em França não o é segundo a lei portuguesa. Em Portugal o agente seria apenas punido segundo as normas de ilícito de mera ordenação social, sendo condenado pela prática de uma contraordenação».
Daqui conclui que o «Tribunal a quo não deveria ter valorado o registo criminal do ora recorrente e aplicar a pena acessória de inibição de conduzir pelo mínimo previsto na lei, ou seja, ser condenado na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de três meses».
Pede, portanto, que seja «revogada a decisão recorrida no que tange à medida da pena da sanção acessória aplicada».
O Ministério Público, ao invés, conclui nas suas conclusões 7ª a 9ª que:
7.ª-O recorrente tem no seu certificado de registo criminal uma infração, registada em França, a qual ali ficará a constar até 23 de setembro de 2053 e não pelo período de cinco anos como decorre da lei portuguesa, pelo que a mesma terá de ser valorada para a determinação, quer da pena principal, quer da pena acessória.
8.ª- Isso mesmo decorre do disposto no artigo 27.º, n.º 1 da Lei n.º 37/2015, de 5 de maio, que nos diz o seguinte: “As decisões que constem do registo especial de decisões estrangeiras mantêm-se vigentes neste registo em conformidade com as comunicações recebidas do Estado membro da condenação e até ser recebida a informação da respetiva supressão ou cancelamento no registo criminal desse Estado membro.”
9.ª- Atendendo a esta disposição legal, tendo o arguido antecedentes criminais no seu registo criminal, os mesmos devem ser levados em consideração, na ponderação das penas a aplicar.
O cerne do recurso coloca-se, desta forma, em saber se o tribunal recorrido considerou os antecedentes criminais do ora recorrente para além do que lhe era permitido e, na perspectiva defendida por este, concluindo pela afirmativa, o que se confirma pela audição da sentença recorrida.
Dois problemas se suscitam que se impõe tratar previamente, apesar de não abordados no recurso: um, o da validade formal e temporal dos registos criminais provenientes de Estados Membros da EU, no caso, da França; outro o dos eventuais reflexos da sentença daí proveniente na aplicação da lei portuguesa.
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B.3.2 – Sempre por referência à pena concreta aplicada, nos termos do art.º 11.º, nº 1, al. b) e nº 2 da Lei nº 37/2015, de 05-05, as decisões que tenham aplicado pena de multa principal a pessoa singular cessam a sua vigência no registo criminal decorridos 5 anos sobre a extinção da pena e desde que, entretanto, não tenha ocorrido nova condenação por crime de qualquer natureza.
Isto aplica-se, é claro, no ordenamento jurídico português, enquanto lei nacional.
Tanto assim que no ordenamento jurídico português a doutrina e a jurisprudência são praticamente unânimes no sentido de afirmar que “o registo criminal integra o reportório das decisões de natureza penal proferidas pelas instâncias judiciárias do Estado, representando um instrumento indispensável para o adequado funcionamento da justiça penal: não só ao nível da determinação e medida das sanções (nomeadamente da escolha da pena), mas ainda com vista ao efectivo cumprimento das interdições de direitos porventura decorrentes da sentença; e não apenas no plano substantivo, como no plano do processo, onde o conhecimento dos antecedentes criminais pode relevar para os mais variados efeitos, desde os de aplicação de uma medida de coacção processual aos de credibilidade da prova testemunhal ou das declarações do arguido e da própria comprovação do cometimento do facto” (Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, Editorial Notícias, 1993, pág. 641).
A informação nesse âmbito constitui verdadeiro meio de prova. Em conformidade, não só com “os preceitos que regulam o registo assumem natureza material de normas processuais, mas deve ainda considerar-se que o cancelamento dos cadastros para fins judiciais integra uma verdadeira proibição de prova” (mesmo Autor, ob. cit., págs. 645/646).
Assim, esse cancelamento redunda em que os elementos por ele abrangidos deixem de poder integrar o conteúdo da informação, o mesmo é dizer, que não podem produzir qualquer efeito, consubstanciando-se, quando decorra do mero decurso do tempo, como sucede na situação trazida pelo recorrente, como reabilitação ope legis e irrevogável.
Tal como se pronunciou Almeida Costa (in “O Registo Criminal - História, Direito comparado, Análise político-criminal do instituto”): Quanto ao acesso para fins processuais, afigura-se de consagrar uma «reabilitação definitiva» ab initio, irrevogável desde a respectiva concessão. O decurso de um prazo de cinco anos ou de dez anos (consoante os casos) sem que o delinquente pratique novos crimes parece afastar qualquer conexão com posteriores infracções que venha a cometer. Tal circunstância exclui a necessidade da sua ponderação em futuros processos.(…) O cancelamento dos cadastros parece implicar uma proibição de prova quanto aos factos por ele abrangidos. A ser de outro modo, não se compreenderia o fundamento da sua consagração. Ao incidir sobre o mecanismo em que, por definição, assenta a informação dos tribunais, o legislador só pode ter querido significar que, doravante, as sentenças canceladas se consideram extintas no plano jurídico, não se lhes ligando quaisquer efeitos de tal natureza (v.g. quanto à medida da pena)”.
Mas a questão colocada nos autos não se insere nesta orientação pois que se não trata de excluir um registo criminal português sujeito ao ordenamento jurídico luso. A questão é de um outro nível, trata-se de fazer interpretação jurídica do ordenamento português em harmonia com o direito comunitário.
Relativamente à condenação do arguido em França é aplicável a lei francesa, sendo certo que do registo apenas consta a condenação em proibição de condução por 4 meses, desconhecendo-se se outra pena acompanhou essa o que, no caso, é irrelevante.
Sabe-se apenas que tal pena (melhor dito, o registo de tal pena) – como consta do CRC de fls.33 - apenas será cancelado em 23-09-2053. Logo, em termos de ordenamentos jurídicos destes dois Estados-Membros da UE, a pena aplicada em França em 2013 pode ser considerada e valorada.
A questão colocada pelo recorrente reside em saber se o Estado português pode, por iniciativa de um seu tribunal, considerar cancelado por desaplicação tal registo criminal de outro Estado-Membro da UE ou desconsiderar tal registo criminal francês.
O recorrente não teve em devida consideração a circunstância de a Lei nº 37/2015, de 05-05, concretizar a transposição para a ordem jurídica interna da Decisão-Quadro 2009/315/JAI, do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009, relativa à organização e ao conteúdo do intercâmbio de informações extraídas do registo criminal entre os Estados-Membros.
Sendo a União Europeia uma união política – et pour cause – respeita a réstia de soberania de cada um dos seus Estados-Membros e procurou encontrar formas de unificar um ordenamento jurídico próprio, comunitário, mantendo a autonomia – não obstante limitada – dos Estados na definição do seu próprio ordenamento jurídico e criando instrumentos de cooperação judiciária.
Um dos mais relevantes instrumentos nessa sede é o princípio do reconhecimento mútuo das decisões penais, nascido na sequência do Conselho Europeu de Tampere de Outubro de 1999 e vertido nas conclusões do Conselho de 29 de Novembro de 2000.
A Decisão-Quadro 2009/315/JAI é uma das concretizações desse objectivo de cooperação judiciária Europeia e, como se afirma no seu considerando nº 2, «A presente decisão-quadro contribui para atingir os objectivos previstos pela medida nº 3 do programa, que propõe instaurar um modelo-tipo de pedido de antecedentes judiciários, traduzido em todas as línguas da União, inspirando-se no modelo elaborado no âmbito das instâncias de Schengen».
Este princípio do reconhecimento mútuo das decisões judiciais implica algo de simples no presente caso, o respeito pela decisão judicial francesa e suas consequências, mormente quanto ao seu prazo de cancelamento registral.
Ou seja, não pode o tribunal português judiciar de forma diversa e considerar “cancelado” o registo criminal francês.
E nada do normatizado nessa Decisão-Quadro o impõe.
Por outro lado, interpretar a legislação comunitária nesse sentido seria considerar que o normativo nacional (a Lei nº 37/2015) estaria a revogar essa Decisão-Quadro e isso é algo de não permitido.
É certo que uma Decisão-Quadro não beneficia do designado efeito directo vertical, mas o caso dos autos não permite sequer interpretação conforme ou interpretação comunitariamente orientada (também designada por efeito indirecto ou interpretação consistente), jurisprudência comunitária que cria para as autoridades nacionais uma obrigação de interpretação do direito nacional determinando que, ao aplicar o direito interno, o órgão judicial encarregue da sua interpretação é obrigado a fazê-lo, tanto quanto possível, à luz do texto e das finalidades da legislação comunitária, a fim de atingir o objectivo visado por esta última (entre vários outros, o acórdão Pupino do Tribunal de Justiça de 16-06-2005, Processo C-105/03) – do relator, “Interpretar, Traduzir e Informar: “incómodos” da modernidade?”, in Julgar Online, março de 2019.
Tal interpretação comunitariamente orientada assegura a prevalência da norma comunitária, mesmo que não transposta, sem que se possa ultrapassar um limite logico-formal de uma interpretação contra-legem do direito nacional, nada obstando a uma interpretação in bonam partem (secundum legem ou praeter legem), comunitariamente orientada (autor e local citado).
Isto é, não é possível entender a lei nacional – designadamente a Lei nº 37/2015 – como permitindo interpretar contra-legem a referida Decisão-Quadro no sentido de retirar autonomia à legislação francesa, revogando-a! [ver igualmente do relator o acórdão desta Relação de Évora de 09/20/2011 no proc. 105/11.2YREVR.E1, nas proposições 4) e 5)].
Em termos substanciais acresce a circunstância de a condenação do recorrente em França não ter ocorrido pela prática de uma contravention, a sanção francesa aparentada com a contra-ordenação lusa e que chega aos 0,79 g/l.
A condenação do recorrente em França ocorreu porque conduzia com uma taxa de álcool de 0.80 g/l ou mais, o que já constitui um delit, punível pelo Code de la route com uma pena criminal.
De facto, o artigo L234-1 desse diploma dispõe:
I. - Même en l'absence de tout signe d'ivresse manifeste, le fait de conduire un véhicule sous l'empire d'un état alcoolique caractérisé par une concentration d'alcool dans le sang égale ou supérieure à 0,80 gramme par litre ou par une concentration d'alcool dans l'air expiré égale ou supérieure à 0,40 milligramme par litre est puni de deux ans d'emprisonnement et de 4 500 euros d'amende. https://www.legifrance.gouv.fr/codes/texte_lc/LEGITEXT000006074228/2022-10-20/
Ora fazer a interpretação pretendida pelo recorrente seria não só uma violação clara do direito comunitário, como seria igualmente revogar a legislação francesa. Seria, ainda, violar o ius imperii do Estado francês.
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B.3.3 – Dúvida não há de que, na determinação da pena, releva a conduta anterior do agente [art. 71.º, n.º 2, alínea e), do Código Penal], o que remete para a informação constante do registo criminal, relativamente aos quais, note-se, aquele não pode ser prejudicado, já que esses elementos, quando existam condenações, funcionam como circunstância que não o favorece, agravando a valoração que venha a ser feita.
Importante é, sim, saber se o comportamento anterior do arguido veio a ser valorado para a determinação da pena que o tribunal fixou e como.
É indubitável que sim. E bem pois que, vimos já, a pena aplicada tem natureza criminal. Desta forma, a invocação do recorrente de que a pena francesa imposta deve ser reduzida à sua natureza contra-ordenacional é insustentável, quer por ser classificada como crime pela lei francesa, quer porque - com tal natureza – pode e deve constar do registo criminal daí proveniente.
Outra seria a análise caso tal ilícito fosse definido pela lei francesa como contravention, o que não é manifestamente o caso.
E assim sendo, os reflexos possíveis daqui resultantes reconduzem-se aos critérios de determinação concreta da pena acessória imposta.
Recordamos que a proibição de conduzir veículos com motor está definida pelo legislador, no artigo 69º, nº 1, al. a) do Código Penal, como uma pena acessória – não obstante o seu regime se venha a consubstanciar numa natureza de “efeitos penais não automáticos da condenação[1] - e sempre terá como pressuposto formal a condenação do arguido numa pena por crime cometido no exercício da condução – no caso concreto a pena de multa por 65 dias – e como pressuposto material “que o exercício da condução se tenha revelado, no caso, especialmente censurável”, dessa forma se elevando “o limite da culpa pelo facto”.[2]
O assento nº 5/99 (D.R. 1ª s. A, nº 167 de 20-7-1999), determina que «O agente do crime de condução em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292º do Código Penal, deve ser sancionado, a título de pena acessória, com a proibição de conduzir prevista no artigo 69º, nº 1, alínea a), do Código Penal
Mantém-se, pois, tal pena acessória intimamente conexionada com o facto cometido, visando objectivos de prevenção geral e especial.
De facto provou-se que o arguido conduzia com uma taxa 1,834 gramas de álcool por litro de sangue, o que por si só, constitui uma grave violação das regras de trânsito.
Ganha proeminência, portanto, a necessidade de forte prevenção, quer geral, quer especial, revelando-se esta essencial para que o arguido entenda a gravidade da sua conduta, incluindo a potencialidade de a mesma causar danos graves a outrem.
E, como se afirma no acórdão do STJ de 01-11-2007 (Proc. 06P4101 – Cons. Pereira Madeira), “a imprevisibilidade e a volatilidade do comportamento do condutor embriagado, pelo comprometimento da segurança na estrada que protagoniza sempre, constitui, inevitavelmente, e salvo raríssimas excepções uma grave violação das regras de trânsito rodoviário, pelo que, em regra, a prática do crime em causa implicará a aplicação daquela pena acessória”.
Entende-se que a pena acessória fixada muito próximo do mínimo abstracto pelo tribunal recorrido está contida no limite da culpa. Não era possível ao tribunal recorrido fixar pena concreta inferior.
É, pois, de manter a sentença proferida pelo Tribunal recorrido.
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C - Dispositivo
Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste tribunal em declarar improcedente o recurso interposto.
Custas pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça em 2 (duas) U.Cs.
Évora, 22-11-2022
João Gomes de Sousa (Relator)
Carlos Campos Lobo (1.º Adjunto)
Ana Bacelar (2.ª Adjunta)

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[1] Prof. Fig. Dias, in “Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime”, Editorial Notícias, 1993, pag. 177.
[2] Autor e obra citada, pag. 165