Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
756/05-1
Relator: FERNANDO RIBEIRO CARDOSO
Descritores: MAUS TRATOS ENTRE CÔNJUGES
AMEAÇA
NULIDADE DE SENTENÇA
EXAME CRÍTICO DA PROVA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
CONTRADIÇÃO INSANÁVEL DA FUNDAMENTAÇÃO
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
Data do Acordão: 05/24/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário:
1. O conhecimento das causas da nulidade da sentença precede a averiguação da existência dos vícios indicados no número 2 do artigo 410 do Código de Processo Penal, pois, considerada nula a sentença, perderá interesse apurar a suposta existência desses vícios, bem como as demais questões. Além disso, impõe a lei que o tribunal comece por decidir separadamente as questões prévias ou incidentais, sobre as quais ainda não tiver recaído decisão. Se dessa decisão a apreciação do mérito não tiver ficado prejudicada, então passará a decidir das questões de direito suscitadas – cf. art. 368 n.º1 do CPP, aplicável “ex vi” art. 424 n.º2 do mesmo diploma.

2. O recorrente não pode alargar o objecto do recurso a matéria não tratada no texto da motivação, inserindo-a nas conclusões, já que estas têm de reflectir o que se tratou no texto da motivação. Assim, a matéria tratada apenas nas conclusões, é totalmente irrelevante, tudo se passando como se ela não existisse.

3. Não tendo determinada prova (ou fonte de prova) aduzida pela acusação ou pela defesa influenciado o tribunal (no sentido conducente à confirmação ou infirmação do alegado), não está este obrigado a indicá-la e a expor o exame crítico que dela implicitamente fez. O tribunal não está obrigado a fazer a crítica de provas neutras. Efectivamente, se determinada prova (ou meio de prova) não contribuiu, num ou noutro sentido, para a formação da convicção do tribunal a sua menção é uma inutilidade.

4. A fundamentação da sentença deve permitir se proceda ao controle da legalidade do acto, por um lado, e servir para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correcção e justiça, por outro, representando um poderoso meio desencadeado sobre a autoridade judicial obrigando à ponderação dos motivos de facto e de direito da sua decisão, activa como uma salutar e desejável capacidade de auto controle.

5. O tribunal deve, pois, indicar os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto provado ou não provado.

6. A existência dos vícios elencados no art. 410 n.º2 do CPP só determina o reenvio do processo para novo julgamento se não for possível decidir da causa (art. 426 n.º 1 do CPP). Daqui decorre que contradições entre factos instrumentais ou irrelevantes, redacções eventualmente menos felizes, ou até lapsos na pontuação ortográfica, não podem sustentar a decisão de reenvio do processo para novo julgamento, se for perceptível a versão do tribunal quanto aos factos essenciais para a definição dos crimes e suas circunstâncias relevantes.

7. O comportamento ilícito do recorrente (maus-tratos a cônjuge) é sentido pela comunidade como sinal de desprezo pela dignidade humana, fazendo perigar as expectativas dos restantes cidadãos na eficácia do ordenamento jurídico (prevenção geral). As exigências de prevenção geral são por isso elevadas, atenta a natureza do ilícito em causa, que no nosso tempo não se pode tolerar.

A violência no seio familiar, quase sempre silenciada, é um dos grandes flagelos da nossa sociedade. Só uma cultura interiorizada de respeito pela dignidade poderá criar as condições de harmonia tão desejadas.

8. A imposição de dever a favor de instituição que presta apoio a vítimas de violência tem razoabilidade, pois, por um lado, não está demonstrado que o arguido não tenha meios económicos para pagar a quantia estabelecida e, por outro lado, se o recorrente, por qualquer razão válida, ficar impossibilitado de o fazer, a lei permite a modificação dos deveres que condicionam a suspensão da pena sempre que ocorrerem circunstâncias relevantes supervenientes (art. 51 n.º3 do CP).
FRC
Decisão Texto Integral:
Acordam, precedendo audiência, na Relação de Évora:


1. Nos autos de processo comum singular n.º …do 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de …, o arguido, J.M., melhor identificado nos autos, foi acusado da prática de factos consubstanciadores da autoria material de um crime de maus-tratos, previsto e punível nos termos do disposto no art. 152.º n.º 1 e 2, do Código Penal, bem como de um crime de ameaça, p. e p. pelo art. 153 n.º1 e 2 do mesmo diploma.

2. Submetido a julgamento, o Tribunal, por sentença de 19-1-2005 (fls. 163 a 179), no que ao presente recurso importa, decidiu:

a) Condenar o arguido pela prática, em autoria material, de um crime de maus-tratos, previsto e punido pelo artigo 152 n.º1 e 2, do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão;

b) Condenar o arguido pela prática, em autoria material, de um crime de ameaça, previsto e punido pelo artigo 153 n.º1 e 2 do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão;

c) Em cúmulo jurídico, condenar o arguido na pena única de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão:

d) Suspender, nos termos do artigo 50 do Código Penal, a execução da referida pena de prisão pelo período de 4 (quatro) anos, subordinada ao dever de o mesmo proceder, no final de cada período anual de suspensão, ao depósito da quantia de € 300,00 (trezentos euros) na Caixa Geral de Depósitos, à ordem do Tribunal, o qual, posteriormente, remeterá tais quantias, na sua totalidade, à Associação Portuguesa de Apoio à Vitima;

e) Declarar perdidos a favor do Estado os objectos identificados a fls. 57, por os mesmos terem servido para a prática de factos ilícitos típicos e, pela sua própria natureza, oferecerem sério risco de serem utilizados para o cometimento de novos crimes.

3. Inconformado, o arguido veio interpor recurso daquela sentença pugnando pela sua revogação e pela prolação de nova decisão que, tendo em conta o reexame da matéria de facto o absolva. Ou, caso tal não seja possível corrigir a falta de fundamentação para a decisão e/ou ultrapassar as contradições, deve o processo ser enviado para novo julgamento.

Extrai da correspondente motivação as seguintes (transcritas) conclusões:

1) O recorrente não praticou nenhum acto que consubstanciasse um crime de maus-tratos.

2) O recorrente não praticou nenhum acto que consubstanciasse um crime de ameaças.

3) A prova produzida não permite concluir que existem maus-tratos a cônjuge.

4) A prova produzida não permite concluir que ameaças.

5) A decisão proferida considera provados e não provados factos que são contraditórios entre si.

6) 0 Tribunal a quo incorreu no vício da contradição insanável da fundamentação.

7) Com a prova produzida em julgamento não podia o Tribunal considerar como provados os factos que considerou existindo um deficiente exame crítico da prova.

8) Existe uma errónea valoração das provas produzidas em audiência de julgamento.

9) Existe um erro notório na apreciação da prova (art. 410, 2, c) do CPP.

10) Existe insuficiência para a decisão da matéria de facto provada. 410, 2.

11) Foram violadas as disposições legais constantes dos art.51 n.º2, 152 n.º1 e 2 e 153 n.º1 do Código Penal.

12) Foram violadas as disposições legais constantes dos art. 374 n.º 2, 379 n.º 1, alíneas a), b) e c) do Código do Processo Penal.

13) A sentença proferida é nula.

14) Deve assim ser declarado que a condição de suspensão da execução da pena é impossível.

15) Deve subsistir a decisão na parte em que suspende a pena, sem qualquer condição.

4. O recurso foi admitido por despacho proferido em 21 de Fevereiro, p.p. (v.fls.199).

5. Ministério Público no tribunal “a quo” veio responder, nos termos constantes de fls.202 a 204, sustentando a improcedência do recurso, concluindo nos seguintes termos:

- O recorrente apesar da enumeração de vários vícios da sentença, aliás de conhecimento oficioso, não tem razão nessa parte;

- A prova produzida resultou da bem fundamentada ponderação das versões apresentadas em audiência, em obediência a critérios de credibilidade, com respeito pelas regras da experiência comum.

- Em rigor o recorrente apenas põe em causa – sendo assim esse o único objecto do recurso – a condição imposta para a suspensão da pena.

6. O Exmo. Procurador-Geral Adjunto nesta Relação, acompanhando a resposta que à motivação do recurso foi oferecida, em primeira instância, pelo Ministério Público, entende que o recurso deve ser julgado improcedente.

7. Cumprido o disposto no art. 417.º n.º2 do CPP e corridos os vistos legais, teve lugar a audiência, na qual foram proferidas alegações orais.
II
8. Na primeira instância foram dados como provados e não provados os seguintes factos:

8.1 – Factos provados:

I. J.M. é casado com I.M., desde o dia 8 de Novembro de 1997.
II. No dia 19 de Setembro de 2002, I.M. abandonou a residência de ambos, sita…, em Évora, levando consigo os dois filhos do casal de 2 e 4 anos de idade.

III. I. M. tomou tal atitude por causa do comportamento tido por J. M. durante o tempo em que residiram juntos.

IV. J. M. vivia obcecado com o facto de alguém se intrometer na vida do casal, designadamente, os familiares da sua mulher, mostrando-se extremamente ciumento.

V. Por isso, amedrontava constantemente I. M., exibindo a caçadeira e a pistola que possuía e dando a entender-lhe que não hesitaria em usá-las caso esta deixasse que alguém interferisse entre ambos.

VI. Em data concretamente não apurada, situada entre os três últimos meses de vivência em comum, I.M. chegou a casa com os dois filhos e encontrou o marido J. M. sentado no sofá a limpar a sua caçadeira, "Pietro Beretta", modelo "AL391 Urica ", calibre 12, com os n.º de série AA012707, apresentando o n.º AB008904, e com o livrete n.º M62377. Este ao aperceber-se da presença de sua mulher, apontou a referida arma em sua direcção dizendo, "qualquer dia vais tu".

VII. Durante o tempo de vida em comum J. M. dirigiu várias vezes à sua mulher Isabel Maia a seguinte expressão: "qualquer dia separo-te a cabeça do corpo”.

VIII. No dia 30 de Agosto de 2002, cerca das 23,00 horas, o arguido contactou telefonicamente N. C. dizendo-lhe para comparecer em sua residência, o que aquele fez.

IX. N.C. dirigiu-se de imediato, acompanhado de sua mulher A. C., à casa de J. e I. M.

X. Aí chegado, o arguido questionou N. C. sobre o comportamento que aquele tivera em 19 de Agosto de 2002, na festa de aniversário do pai de N. e I., pretendendo saber se o facto de N. C. se ter levantado abruptamente da mesa estaria relacionado com a sua presença.

XI. N. C. respondeu que não se levantara da mesa por causa da presença do arguido, tendo este retorquido que resolveria o que quer que fosse necessário "à pancada", que não tinha medo de ninguém e que enfrentaria quem quer que fosse para que ninguém se intrometesse na sua vida, incluindo N. C..

XII. De seguida, o arguido dirigiu-se a uma arca, retirando do seu interior uma pistola, cujas características concretas não se apuraram, que apontou à cabeça de N. C., puxando a culatra para trás e fazendo sair uma munição pela janela de ejecção, dizendo a N.C. que "se não for com as mãos é com isto, arrumo qualquer um".

XIII. O arguido manteve sempre um diálogo intimidatório durante a presença de N. e A. C. na sua residência, dando a entender que mataria quem tentasse interferir na sua vida e na da queixosa.

XIV. Nesse dia o arguido havia ingerido bebidas alcoólicas;

XV. Ao agir da forma descrita, o arguido quis e conseguiu maltratar I.M. sobretudo a sua saúde psíquica, fazendo-a viver em permanente sobressalto por força das expressões que proferia, bem sabendo que a sua conduta - invocando ou exibindo armas que detinha - era idónea a provocar medo em I. M., como efectivamente provocou.

XVI. Sabia, ainda, o arguido, que ao empunhar uma pistola na direcção de N. C., no contexto em que o fez, agia de forma idónea a provocar-lhe receio pela sua vida ou, pelo menos, pela sua integridade física, o que quis e conseguiu.

XVII. O arguido agiu de forma livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas são proibidas e punidas por lei.

Mais se provou:

XVIII. O arguido exerce a profissão de fiel de armazém, auferindo mensalmente a quantia de € 480,00 (quatrocentos e oitenta euros).

XIX. O arguido paga a quantia mensal de € 150,00 (cento e cinquenta euros), a título de alimentos aos seus filhos.

XX. Com o pagamento do empréstimo bancário contraído com a realização de obras na sua residência, despende mensalmente cerca de € 125,00 (cento e vinte e cinco euros).

XXI. Como habilitações literárias o arguido possui o 6.º ano de escolaridade.

XXII. No âmbito do processo sumário n.º 125/03.OGBRMZ, do Tribunal Judicial da Comarca de Reguengos de Monsaraz, J. M. foi condenado, por sentença proferida em 16.08.2003, transitada em julgado, na pena de 90 (noventa) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), num total de € 450,00 (quatrocentos e cinquenta euros), pela prática, em 16.08.2003, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292 do Código Penal.

8.2 – O tribunal deu como não provados os factos seguintes:

- Que no dia 19 de Setembro de 2002, o arguido procurou a sua sogra A.C., perguntando-lhe onde estava a sua filha I., advertindo-a que se a queixosa não regressasse matá-los-ia a todos, referindo-se à ofendida e aos seus irmãos;

- Que no dia 30 de Agosto de 2002, cerca das 23,00 horas, o arguido estivesse alcoolizado;

8.3 – Motivação da decisão de facto:

0 Tribunal baseou a sua convicção no conjunto da prova produzida em audiência de julgamento, quanto aos factos provados:

- No depoimento prestado pela testemunha N.C., o qual confirmou os factos constantes de IV, VIII, IX, X, XI, XII e XIII; além disso, referiu ter sentido medo com a actuação do arguido.

N. C. depôs de forma clara e precisa, revelando um conhecimento directo de tais factos, merecendo, por via disso, total credibilidade o seu depoimento.

- No depoimento da testemunha A.C., a qual confirmou os factos constantes de IV, VIII, IX, X, XI, XII, XIII e XIV;

A referida testemunha, atenta a descrição que fez do ocorrido no dia 30 de Agosto de 2002, demonstrou ao tribunal ter presenciado tais factos, revelando um conhecimento directo dos mesmos, tendo prestado um depoimento preciso e esclarecedor, mostrando-se crível, por via disso, o seu depoimento;

- No depoimento da testemunha I.M., a qual, confirmou todos os factos constantes da acusação, tendo deposto com invulgar clareza, sem hesitações e de forma segura, merecendo total credibilidade ao tribunal;

- Nas declarações do arguido, quanto aos factos relativos à sua condição sócio-económica e pessoal;

- Foram, ainda, relevantes para fundamentar a convicção do Tribunal os documentos juntos aos autos a fls. 54, 55, 0 57, 68, 97, 152 a 157, e bem assim, o teor do certificado de registo criminal do arguido;

Quanto à testemunha A.C., do seu depoimento resulta que, com relevo para a decisão a tomar, e com conhecimento directo, nada sabe.

No que concerne aos depoimentos das testemunhas, R.B., A.P., M.S. - amigos da família - revelaram-se os mesmos irrelevantes para a decisão da causa.

De facto, o depoimento de tais testemunhas referiu-se apenas à percepção que as mesmas tinham do relacionamento do casal, fruto de contactos sociais que mantiveram com o mesmo, nada sabendo adiantar sobre o relacionamento pessoal do arguido e de I. M. dentro da residência da família, nem sobre os demais factos constantes da(?)

No que se refere à testemunha J. S.- amigo e companheiro de caça do arguido - o seu depoimento não mereceu credibilidade ao tribunal.

Com efeito, para além de referir que foi poucas vezes a casa do casal (arguido e I.M.) e que, dos poucos contactos que teve com o casal, nada fazia adivinhar os acontecimentos, tendo ficado surpreendido, referiu ainda, que no dia 30.08.2002, pelas 23, 00 horas, se encontrava com o arguido, e com mais uns companheiros de caça - Sr. João Maia e o Sargento Arrifes - a jantar, por iniciativa da testemunha, no refeitório geral do quartel da G.N.R, em Évora;

Após o jantar deslocaram-se para a Messe dos Oficiais, e aí estiveram até às 1,30 horas - 2,00 horas da manhã.

Que se recorda dos factos, porque no dia 30 de Agosto de 2002 era um sábado e no dia seguinte era domingo, dia de caça, sendo que a testemunha não caçou nesse dia (31.08.2002) porque se encontrava de serviço.

Que se recorda dos factos, porque no dia 31 de Agosto de 2002, domingo, não pode ir à caça;

Que era frequente encontrarem-se no quartel para jantarem;

Que no dia 30.08.2002, o arguido jantou com a testemunha e o referido grupo de caça, (aí estando até às 1, 00 horas - 2, 00 horas) não se tendo ausentado até essa hora.

Tal depoimento foi corroborado pela testemunha A. A. e J.M., os quais, igualmente, não mereceram credibilidade ao tribunal.

De facto, confrontando o conteúdo de tais depoimentos com os documentos juntos a fls. 152 a 157, dos autos, constata-se os argumentos utilizados pela testemunhas para poder assegurar ao tribunal que o arguido no dia 30 de Agosto de 2002, pelas 23,00 horas não se encontrava em sua casa, mas, ao invés, a jantar no quartel da G.N.R, em Évora, falece por completo.

Asseveram as testemunhas que se recordam do aludido jantar porque no dia 31 de Agosto de 2002, era um domingo, e assim, dia de caça, e que a testemunha J.S. não pôde ir à caça por estar de serviço, sendo certo, que ainda assim, na véspera desse dia de caça haviam jantado com o arguido e outros companheiros de caça.

Acontece porém, que, conforme se infere de fls. 157 - e se pôde confirmar em calendário -, o dia 31 de Agosto de 2002 foi um sábado, e não um domingo como afirmam as testemunhas, tendo a testemunha J. S. sido escalado para o serviço nesse dia.

Assim sendo, não é verdade que no dia 31 de Agosto de 2002 tenha sido um domingo e que o arguido nesse dia tenha ido à caça com o seu grupo. Logo, não sendo o dia 30 de Agosto de 2002 véspera de dia de caça, atentos os argumentos utilizados, não poderá o tribunal considerar que resultou provado que nesse dia, pelas 23,00 horas, o arguido se encontrava com mais uns companheiros de caça - entre eles as referidas testemunhas -, a jantar no refeitório geral do quartel da G.N.R, em Évora, por ser véspera de caça e no dia seguinte, domingo, os mesmos irem caçar, à excepção de J.S..

Além disso, é por demais evidente que tais depoimentos vão de encontro à estratégia de defesa delineada pelo arguido - a qual não é censurável, uma vez que, o mesmo, não está obrigado ao dever de verdade quanto aos factos que lhe são imputados, podendo apresentar a versão que entender conveniente à sua defesa, o que não acontece com as testemunhas, que prestam juramento e estão obrigadas ao dever de verdade, sob pena de responsabilidade criminal -, o qual, quando ouvido, soube logo dizer que no dia 30.08.2002, pelas 23,00 horas, era um sábado, e que nem se encontrava em casa, o que não se veio a confirmar.

Mais credibilidade mereceu, neste segmento da factualidade, e pelas razões expendidas, os depoimentos, em sentido contrário, das testemunhas, N.C., A. C. e I. M.

Quanto ao depoimento de J. M. (pai do arguido), para além do que se aludiu, tentou esta testemunha fazer crer ao tribunal que o arguido não podia ter praticado os factos que lhe são imputados porque, por um lado, nunca teve nem tem a sua arma de caça em casa, sendo o depoente que a guarda e trata na sua residência, que nunca deu por falta da arma e que era impossível ela ter saído de lá sem o seu conhecimento, e por outro, além da referida arma, o arguido nunca teve qualquer pistola.

Ora, quanto ao primeiro dos argumentos utilizados por esta testemunha, verifica-se que não é verdade que a arma de caça do arguido - "Pietro Beretta", modelo "AL391 Urica", calibre 12, com os n.ºs de série AA012707, apresentando o n.º AB008904, e com o livrete n.º M62377 - estivesse sempre em casa da testemunha, e que por isso não fosse possível ao arguido praticar os factos que lhe são imputados.

Com efeito, como resulta das declarações do arguido e do depoimento da testemunha C.M., no dia em que a referida arma foi apreendida nestes autos - 06.01.2003 a mesma encontrava-se na herdade de Vale de Moura, em Viana do Alentejo, herdade esta onde o arguido caçava.

Sobre este facto, esclareceu o arguido que é maior e vacinado e que o seu pai, J.M., não tem que ter conhecimento de tudo o que faz, que a arma estava em Vale de Moura porque tinha ido a uma caçada à raposa e como ia voltar a caçar nessa herdade tinha lá deixado a arma, não tendo o seu pai conhecimento disso.

Ouvida, sobre esta questão, a testemunha J.M. disse que não sabia que a arma tinha saído de sua casa.

Assim, os argumentos utilizados por esta testemunha para fazer crer ao tribunal que o arguido nunca teve a sua arma em casa, naufragam por completo, pois, como se demonstrou, a arma de caça do arguido, no dia 06 de Janeiro de 2003, encontrava-se fora da casa do depoente, sem que o mesmo disso tivesse conhecimento. Não pode, por isso, e como se demonstrou, ter credibilidade tal depoimento.

Além disso, também não merece credibilidade o depoimento desta testemunha relativamente ao facto de o arguido não ter qualquer pistola em sua casa, porquanto, como o mesmo soube dizer em tribunal, desde a data do casamento do seu filho (arguido), e até ao presente, poucas vezes entrou em casa do mesmo, logo, como resulta das regras de experiência comum, não poderá saber com segurança, o que o arguido tem ou não em sua casa.

Por conseguinte, o tribunal não considera credível o referido depoimento, mais credibilidade merecendo os depoimentos, em sentido oposto, das testemunhas, N. C., A. C. e I. M.

No que se refere ao depoimento de C.M., irmã do arguido, além do já referido, esclareceu que conhecia a I. desde criança, que era sua amiga, e que nunca teve conhecimento que o arguido a maltratasse.

Além disso, com relevo para a decisão a tomar, nada mais soube adiantar, concretamente, sobre os demais factos constantes da acusação.

No que concerne aos factos não provados, resultaram os mesmos da não produção de prova em audiência de julgamento”.

9. Como é amplamente sabido, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões e por elas limitado - veja-se o Ac. do S.T.J. de 19/4/94, C.J., Ano II, Tomo II, pg. 189 e ainda, entre muitos outros, os Ac. do S.T.J. de 29/2/96, proc. n.º 46740, de 21/4/97, proc. n.º 220/97, de 2/10/97, proc. n.º 686/97 e de 27/5/98, proc. n.º 423/98, no C.P.P. Anotado de Simas Santos e Leal Henriques. 2ª Ed., pag. 808, 795 e 797, respectivamente - isto sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como o são os vícios da sentença prevenidos no art. 410 n.º2 do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito” - Ac. do Plenário das secções do STJ de 19.10.95, in D.R. I-A Série de 28.12.95.

No caso, o recorrente impugna a matéria de facto e também o direito, sendo certo que, uma vez que não foi prescindida a documentação dos actos da audiência, sendo que nesta se procedeu à gravação das declarações ali proferidas em registo magnético – cf. actas de fls. 128 e ss, e art. 364 e 428 nº 1 do C.P.P. – o tribunal poderia conhecer amplamente da matéria de facto.

Note-se que no processo penal impera o princípio da cindibilidade do recurso – cf. art. 403 e 412 do CPP – sendo certo ainda que, em conformidade, impende sobre o recorrente, caso pretenda recorrer da matéria de direito que cumpra o formalismo das alíneas a) a c) do n.º 2 do citado art. 412, enquanto no caso da impugnação da matéria de facto tem o ónus de especificar, nos termos em que se consigna nas alíneas a) a c) do nº 3 e ainda, no caso de as provas terem sido gravadas (como no caso ocorreu) fazer a referência aos suportes técnicos (caso em que haveria lugar a transcrição, embora esta seja da competência do tribunal), cf. n.º4 deste art. 412º do CPP.

A este propósito dispõe o art. 412 nº 3 do CPP que quando impugne a matéria de facto, o recorrente deve especificar:
    a) Os pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
    b) As provas que impõem decisão diversa da recorrida;
    c) As provas que devem ser renovadas;

E determina o nº 4 do mesmo artigo que “quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas als. a) e b) do número anterior fazem-se por referência aos suportes técnicos, havendo lugar a transcrição”.

É manifesto que, no que respeita à impugnação da matéria de facto, tal não foi observado pelo recorrente, na motivação ou nas conclusões.

Com efeito, o recorrente limita-se a pôr em causa a convicção a que chegou o tribunal recorrido, desvalorizando as provas em que a mesma assentou.
O que o recorrente pretende, é que o Tribunal julgue de acordo com a sua própria versão, ou mesmo convicção, sendo que tal acto de decisão pertence, em exclusivo ao Tribunal, que apreciou a prova segundo as regras da experiência e a sua livre convicção.

Isso acarreta a manifesta improcedência do recurso, quanto à impugnação da matéria de facto, pois o tribunal não pode sindicar toda a prova que foi produzida sobre a matéria em questão.

Note-se que não há que convidar o recorrente a suprir as deficiências apontadas. As normas dos nºs 3 e 4 do art. 412 do CPP não referem, ao contrário do que acontece com a norma do n.º 2, que as especificações nelas indicadas devem ou têm de ser feitas nas conclusões.

O recurso tem duas partes: a «motivação», em que o recorrente enuncia especificadamente os seus argumentos, e as «conclusões», onde são resumidas as razões do recurso – art. 412 n.º 1 do CPP.

O normal é que aquelas especificações sejam feitas na motivação. A «prova» ou «não prova» de um facto pode resultar da conjugação e relacionamento de inúmeros meios de prova produzidos na audiência de julgamento. Explicar em que medida cada um desses elementos de prova contribui para a decisão que o recorrente pretende que a Relação tome quanto à matéria de facto, é claramente função da «motivação» e não das «conclusões» que são apenas um resumo de algo que pode ter tal complexidade que implique uma longa explanação de motivos.

O Tribunal Constitucional vem repetidamente afirmando que a deficiência na formulação das conclusões (por prolixidade, por omissão das indicações mencionadas no art. 412 n.º 2 do CPP ou por outro motivo) não pode ter o efeito de levar à rejeição liminar do recurso, sem que ao recorrente seja facultada a oportunidade de suprir as deficiências. Se o recorrente na motivação expôs correctamente as suas razões, uma imperfeição das conclusões não pode ter um efeito cominatório irremediavelmente preclusivo do recurso, sob pena de violação do direito ao recurso consagrado no art. 32 n.º 1 da CRP.

É apenas esse o alcance do acórdão nº 320/02 do Tribunal Constitucional de 9-7-02, DR – 1.ª-A Série de 7-10-02. Nele foi declarada “com força obrigatória geral a inconstitucionalidade, por violação do art. 32 nº 1 da CRP, da norma constante do art. 412 nº 2 do CPP (e não, também, dos nºs 3 e 4), interpretada no sentido de que a falta de indicação, nas conclusões da motivação, de qualquer das menções contidas nas suas als. a), b), e c) tem como efeito a rejeição liminar do recurso do arguido, sem que ao mesmo seja facultada a oportunidade de suprir tal deficiência”.

Não se conhecem decisões similares quando as deficiências do recurso residem na própria motivação.

Pelo contrário, escreveu-se no Ac. do TC 259/02 de 18-6-02, publicado no DR – IIª Série de 13-12-02 que o que aquele tribunal considerou, em várias decisões, constitucionalmente desconforme foi “a rejeição de um recurso (portanto sem prévio convite ao aperfeiçoamento) quando as conclusões da motivação faltassem, fossem em grande número ou ocupando muitas páginas, nelas se cumprisse deficientemente certos ónus ou não se procedesse a certas especificações, mas não chegou a afirmar-se, por exemplo, o direito do arguido a apresentar uma segunda motivação de recurso, quando na primeira não tivesse indicado os fundamentos do recurso, ou a completar a primeira, caso nesta não tivesse indicado todos os seus possíveis fundamentos”.

E o mesmo acórdão acaba por afirmar que a existência de um despacho de aperfeiçoamento quando o vício seja da própria motivação “equivaleria, no fundo, à concessão de novo prazo para recorrer, que não pode considerar-se no próprio direito ao recurso”.

Assim, das conclusões supra transcritas impõe-se examinar as seguintes questões, alinhadas em obediência a um critério de lógica e cronologia e tal como editadas no proémio da audiência, nesta instância.

a) Se a sentença é nula, nos termos do disposto no art.379 n.º1, alin. a), b) e c) do CPP?

b) Se a sentença enferma dos vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição insanável da fundamentação ou erro notório na apreciação da prova – art. 410 n.º2, alin. a) a c) do CPP;

c) Se os factos provados integram os crimes de maus-tratos e de ameaça, prevenidos nos art. 152 n.º1 e 2 e 153 n.º1 do Código Penal;

d) Se a condição de suspensão da execução da pena é impossível e viola o disposto no art. 51 n.º2 do Código Penal.

Assim demarcado o objecto do recurso (art. 412.º n.º 1, do CPP), são estas as questões que merecem especial exame.

10. Apreciação.

Vejamos agora.

10.1. O recorrente veio invocar nas conclusões da sua motivação a nulidade da sentença recorrida, por violação do disposto no art. 379 n.º1, alin. a), b) e c) do CPP.

Entende-se que o conhecimento das causas da nulidade da sentença precede a averiguação da existência dos vícios indicados no número 2 do artigo 410 do Código de Processo Penal, pois, considerada nula a sentença, perderá interesse apurar a suposta existência desses vícios (cf. neste sentido, o Ac. da Rel. do Porto de 22/1/1992, proferido no Proc. nº 9150789, in htpp//www.dgsi.pt)], bem como as demais questões.

Além disso, impõe a lei que o tribunal comece por decidir separadamente as questões prévias ou incidentais, sobre as quais ainda não tiver recaído decisão. Se dessa decisão a apreciação do mérito não tiver ficado prejudicada, então passará a decidir das questões de direito suscitadas – cf. art. 368 n.º1 do CPP, aplicável “ex vi” art. 424 n.º2 do mesmo diploma.

Dispõe o citado art. 379 do CCP:

1. É nula a sentença:

a) Que não contiver as menções referidas no art. 374 n.º2 e 3, alin.b); ou

b) Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos no art. 358 e 359;

c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.

Dispõe o art. 374 n.º2 do CPP, quanto à fundamentação da sentença que ela "consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal".

Lendo a motivação e as conclusões do recurso, vê-se que o único vício que poderia acarretar a nulidade da sentença, nos termos do art. 379 n.º1, alin.a) do CPP, e que foi invocado pelo recorrente, é o deficiente “exame crítico da prova“, pois, quanto ao mais, a conclusão alcançada pelo recorrente sob o n.º12 carece em absoluto de motivação e suporte factual.

O recorrente não pode alargar o objecto do recurso a matéria não tratada no texto da motivação, inserindo-a nas conclusões, já que estas têm de reflectir o que se tratou no texto da motivação – cf., entre outros, o Ac. do STJ de 19.02.98, in rec. n.º 1451/97, acessível in www.dgsi.pt.

Assim, a matéria tratada apenas nas conclusões, é totalmente irrelevante, tudo se passando como se ela não existisse – ac. STJ de 14.5.98, in proc. 330/98, citado por Simas Santos e Leal-Henriques, in CPP Anotado, pag.823.

Mas enfermará a sentença de deficiente exame crítico de prova?

Esta exigência – o exame crítico das provas – só foi explicitada a partir da redacção da Lei nº 59/98, de 25/08.

É sobre as provas que o tribunal vai fazer incidir a sua análise crítica, separando as informações válidas e rejeitando as outras, de acordo com os critérios da experiência comum, mas também à luz dos conhecimentos científicos e técnicos postos à sua disposição.

Atente-se que o preceito em análise não refere apenas a «indicação e exame crítico das provas», ou seja, de todas as provas, mas a «indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal».

Ou seja, não tendo determinada prova (ou fonte de prova) aduzida pela acusação ou pela defesa influenciado o tribunal (no sentido conducente à confirmação ou infirmação do alegado), não estará este obrigado a indicá-la e a expor o exame crítico que dela implicitamente fez.

De facto, tem-se entendido que "se uma ou outra prova, particularmente desprovida de carácter vinculativo, não pesou na formação da convicção do tribunal, não é obrigado a indicá-la" (cf. Ac. STJ de 7.1.98, processo nº. 1209/97).

O tribunal não estará obrigado a fazer a crítica de provas neutras. Efectivamente, se determinada prova (ou meio de prova) não contribuiu, num ou noutro sentido, para a formação da convicção do tribunal a sua menção é uma inutilidade.

E chegados aqui estamos em condições de melhor compreender o significado da exigência legal do art. 374 n.º2 sobre a «indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal».

De acordo com a jurisprudência do T.C. (entre muitos, o Ac. T.C. n.º 680/98, no D.R. II, de 05/03/98), não basta a mera enumeração dos meios de prova, impondo-se seja explicitado o processo de formação dessa convicção, sopesando o valor desses meios perante o caso concreto.

A fundamentação da decisão do tribunal, no quadro integral das exigências que lhe são impostas por lei, há-de permitir ao tribunal superior uma avaliação segura e cabal do porquê da decisão e do processo lógico-mental que serviu de suporte ao respectivo conteúdo decisório.

Se, de facto, ao tribunal compete necessariamente dar conta das provas decisivas para a sua convicção (o que, por si, já é um limite à tradicional consideração do princípio da livre apreciação), exigir-se uma motivação profunda, que conduza a uma espécie de discurso justificativo sobre todas as operações mentais que levaram o tribunal a dar um “facto” como provado, para além de deparar com as dificuldades inerentes à composição dos tribunais colegiais e à sua forma de deliberação, poderia transformar o tribunal de recurso – quando o recurso fosse pensado a partir de uma efectiva “motivação” – num “substitutivo” do sistema de provas legais (por tal forma que o tribunal de recurso fizesse, ele próprio, uma valoração da prova, acabando, ao invés de censurar a decisão, por proceder a um juízo, mas com inversão das regras de audiência de julgamento) ou, então, numa espécie de juízos por parâmetros.

Aquilo que o tribunal de recurso pode efectivamente censurar, é a violação de todo o conjunto de princípios que estão subtraídos à livre apreciação da prova (que limitam o “arbítrio” na sua apreciação), exactamente: as regras da experiência comum, o princípio in dubio pro reo, o princípio da presunção da inocência e, em especial, aquele que está directamente ligado à afirmação de uma culpabilidade pelo facto, isenta de qualquer referência a características pessoais do arguido.

Deverá ainda ter-se em conta este aspecto: o de que a convicção só é verdadeiramente livre, quando se realiza numa audiência regida pelos princípios da publicidade, da imediação e contraditoriedade na produção da prova, bem como da concentração na apreciação complexa de todos os argumentos apresentados pelos sujeitos processuais” – cf. J.M. Damião da Cunha, “Caso Julgado Parcial – Questão da culpabilidade e questão da sanção num processo de estrutura acusatória – Publicações Universidade Católica, pag.566-567.

A motivação da decisão de facto, seja qual for o conteúdo mais ou menos exigente que se lhe dê, não pode ser um substituto do princípio da oralidade e da imediação no que tange à actividade de produção da prova, transformando-a em documentação da oralidade da audiência, nem se propõe reflectir nela exaustivamente todos os factores probatórios, argumentos, intuições, etc., que fundamentam a convicção ou resultado probatório. Mas também não basta a simples enumeração dos meios de prova sem a realização do seu exame crítico, isto é, sem que se explique, embora de forma concisa, o processo de formação dessa convicção - (cf. Ac. STJ de 24.6.99, in Proc.457/99-3.ª, SASTJ n.º32, pag.88 e Ac.STJ de 14.05.2003, in proc. Proc. 3108/02 – 3.ª Secção, acesíveis, in www.stj.pt).

Não dizendo a lei em que consiste o exame crítico das provas, esse exame tem de ser aferido por critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita avaliar cabalmente o porquê da decisão e o processo lógico/mental que serviu de suporte ao respectivo conteúdo, bastando a fundamentação e motivação necessárias à decisão - (cf. Ac. do S.T.J. de 7/2/01, proc. n.º 3998/00-3ª, SASTJ, nº 48, 50 – citado por Maia Gonçalves, CPP Anotado, pág. 739).

Assim, parafraseando Michele Taruffo (citado por Maia Costa, Revista do Ministério Público, nº 78, Motivação da matéria de facto da sentença penal/Anotação”, págs. 147-157), a fundamentação da matéria de facto tem uma dupla função: endoprocessual, já que se “...constitui um instrumento de racionalização técnica da actividade decisória do tribunal, com um triplo objectivo: fornecer ao juiz um meio de auto-controlo crítico; «convencer» as partes; e garantir ao tribunal superior, em caso de recurso, um melhor juízo sobre a decisão da primeira instância; e, extraprocessual, pois se assume como um “...instrumento para o controlo extraprocessual e geral sobre a justiça, controlo exercido pelo povo, já que é em seu nome que a justiça é administrada”, “...indispensável para o controlo democrático da administração da justiça”.

No dizer impressivo e incontornável do Acórdão do STJ de 14-5-2003 (Proc.3108/02 – 3.ª Secção), in www.stj.pt, “no nosso sistema processual as decisões de facto não assentam puramente no íntimo convencimento do julgador, num mero intuicionismo, antes se exigindo um convencimento racional, devendo, pois, o juiz pesar com justo critério lógico o valor das provas produzidas, o que está em conexão com o também neste aspecto chamado «princípio da publicidade», definido por Castro Mendes «Do Conceito de Prova», pág. 302, como sendo «aquele segundo o qual o processo - e portanto a actividade probatória e demonstrativa - deve ser conduzido de modo a permitir que qualquer pessoa siga o juízo e presumivelmente se convença como o julgador (...)», o que, no entanto, não exclui a intuição ou conhecimento por outros sentidos, em si insusceptíveis de serem demonstrados exteriormente.

Ademais, diga-se, na motivação a que se vem aludindo, tanto no aspecto da indicação das provas como da sua crítica, avultando neste último aspecto a explicitação da credibilidade dos meios probatórios, trata-se de publicitar por forma suficiente o processo probatório, não podendo esquecer-se, como vem notado por Figueiredo Dias «Direito Processual Penal», pág. 205, que para a convicção do juiz «desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g., a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais”.

Vale dizer que a motivação da decisão de facto não pode deixar de contemplar, para além da indicação das provas a partir das quais se formou a convicção do tribunal, também os motivos que levaram o juiz a considerar aquelas provas como idóneas e relevantes, eventualmente em detrimento de outras e, bem assim, os critérios utilizados na apreciação daquelas e o substracto racional que conduziu à convicção concretamente estabelecida. Veja-se, a propósito, o Acórdão, da Relação de Coimbra, de 5-10-2000 (Colectânea de Jurisprudência, ano XXV, tomo IV, pp. 53 e segs.).

Sem isso, retira-se a génese e o desenvolvimento da convicção do Tribunal do alcance crítico dos sujeitos processuais, sonega-se à decisão a esperada e exigível «força de convencimento do arguido e dos membros da comunidade jurídica relativamente à bondade da decisão encontrada» Ac. STJ de 2-5-2002 (Proc. 157/02 – 5.ª Secção), in www.stj.pt., em nítida infracção do dever de fundamentação estabelecido, maxime, nos arts. 205 n.º 1, da Constituição, e 374 n.º 2, do CPP.

Como decidiu o STJ no seu recente aresto de 17.02.2005, relatado pelo Exmo. Juiz Conselheiro Rodrigues da Costa, proferido no Rec. n.º 4300/2004, acessível in www.verbojuridico.net/, “o julgador deve fundamentar a sua convicção, explicitando as provas em que se apoiou, efectuando um exame crítico delas e mencionando as razões de credibilidade que lhe mereceram, expondo, enfim, as razões (lógicas, de ciência, da experiência comum) que tornem perceptível o processo decisório e permitam seguir o fio condutor do seu raciocínio e da sua percepção, de forma a que a decisão apareça como produto, não do acaso, dos bons ou maus humores de quem julga, de reacções inexplicáveis e secretas ou do puro exercício arbitrário do poder de julgar e decidir, mas como resultado de um processo recondutível na sua essência a uma logicidade e coerência internas, face às quais a decisão possa impor-se, com a força intrínseca que a estrutura, quer aos seus destinatários, quer à comunidade de forma geral, permitindo, do mesmo passo, a sua controlabilidade pelo tribunal superior”.

O tribunal deve, pois, indicar os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto provado ou não provado.

A exigência da motivação da decisão não se destina a obter a exteriorização das razões psicológicas da convicção do juiz, mas a permitir que o juiz convença os terceiros da correcção da sua decisão. Através da fundamentação, o juiz passa de convencido a convincente. Por isso, o necessário acatamento da lei positiva, associado à necessidade de garantir a transparência das decisões judiciais, impõe um maior esforço na racionalização do processo de formação da convicção, sendo ilegítimo esconder, por detrás de meras justificações formais, os reais motivos da decisão, ou optar pela mera enunciação dos meios de prova, sem qualquer concretização que deixe transparecer o esforço desenvolvido na execução da tarefa de apreciação da prova.

Consequentemente, a mera referência na motivação aos meios de prova (testemunhas, documentos ou relatórios periciais) nada diz sobre as provas percepcionadas e elegidas pelo tribunal como seguras para formação da sua convicção.

Como se escreveu no acórdão do STJ de 12.5.99, proferido no recurso n.º 406/99, da 3.ª Secção, “Não se sabendo a razão de ciência dos depoimentos e quais os elementos extraídos dos documentos que cita em que a mesma (a fundamentação) assenta, fica-se sem saber o processo lógico mental seguido”.

A fundamentação da sentença deve permitir se proceda ao controle da legalidade do acto, por um lado, e servir para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correcção e justiça, por outro, representando um poderoso meio desencadeado sobre a autoridade judicial obrigando à ponderação dos motivos de facto e de direito da sua decisão, activa como uma salutar e desejável capacidade de auto controle.

De todo o exposto, resulta que “se há tarefa que exige integridade de carácter, inteligência, atenção, sensibilidade, cultura, respeito pelos diferentes intervenientes processuais e disponibilidade do julgador, é a apreciação da prova, tal como está consagrada na lei[1] .

Este longo mas necessário excurso parece deixar poucas dúvidas, quanto ao entendimento que vem sendo patenteado pelas instâncias de recurso e doutrina quanto à fundamentação e exame crítico da prova.

Ora, basta uma leitura mais ou menos atenta da motivação inserta na sentença recorrida para se verificar que nela foi feito um exaustivo exame crítico da prova produzida por parte do julgador. O que existe é uma patente confusão do recorrente, pois diz na motivação que “existe um deficiente exame crítico das provas, uma vez que da análise das declarações oralmente prestadas não é admissível concluir que o arguido tenha praticado os factos que lhe são imputados, concretamente que tivesse praticado os crimes de maus tratos e de ameaças”, reconduzindo o exame crítico ao erro de julgamento, por, em seu entender, as provas deveriam ter sido valoradas noutro sentido.

Se o recorrente entendia que este exame do tribunal não é correcto, então deveria recorrer da matéria de facto, observando cabalmente o disposto no art. 412 n.º3 e 4 do CPP, invocando e valorando criticamente as eventuais provas “diversas” (as que imporiam decisão diversa da recorrida), e não alegar nulidade formal insuficiência do exame crítico das provas, vício este que manifestamente não ocorre.

Assim, a sentença recorrida não padece de qualquer nulidade, pelo que o recurso nesta parte não pode lograr acolhimento.

10.2 - Passemos à questão seguinte. Padecerá a sentença de algum dos vícios do art. 410 n.º2 do CPP, como sustenta o recorrente?

Em comum aos três vícios - "insuficiência para a decisão da matéria de facto provada"; "contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão" e "erro notório na apreciação da prova" - temos que apenas se poderá afirmar que o vício inquina a sentença em crise se resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum".

Quer isto significar, e de acordo com a melhor, se não unânime, jurisprudência (v. g., e entre muitos, Ac. do STJ, de 29.11.1989; de 19.12.1990) que não é possível o apelo a elementos estranhos ao julgamento em si mesmo, só sendo de ter em conta as contradições intrínsecas da própria decisão, considerada como peça autónoma.

A existência dos vícios ditos nas alíneas do n.º 2 do artigo 410.º, entre os quais os apontados à decisão ora em crise (" insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição insanável de fundamentação e erro notório na apreciação da prova), e como é de forma unânime aceite e defendido pela doutrina e jurisprudência dos tribunais superiores, só pode afirmar-se como verificada se resultar "...do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum".; tais vícios são apenas os intrínsecos da própria decisão, considerada como peça autónoma, não sendo de considerar e ter em conta o que do processo conste em outros locais - entre muitos, ac. do STJ, de 29.11.89, Proc. 40255/3.ª; 19.12.90, Proc. 41327/3.ª; 29.01.92, Col. Jur. XVII, tomo 1.º, 20; ac. do Trib. Const., de 05.05.93, Bol. 427-100.

As regras ou normas da experiência, como refere Cavaleiro de Ferreira, são definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes do caso concreto "sub judice", assentes na experiência comum, e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação de alicerçam, mas para além dos quais têm validade.

Uma nota importa reter: a existência dos vícios em causa só determina o reenvio do processo para novo julgamento se não for possível decidir da causa (art. 426 n.º 1 do CPP). Daqui decorre que contradições entre factos instrumentais ou irrelevantes, redacções eventualmente menos felizes, ou até lapsos na pontuação ortográfica, não podem sustentar a decisão de reenvio do processo para novo julgamento, se for perceptível a versão do tribunal quanto aos factos essenciais para a definição dos crimes e suas circunstâncias relevantes.

Quanto à "insuficiência para a decisão da matéria de facto provada", este vício, previsto no artigo 410 n.º 2, alínea a), ocorrerá quando o tribunal de primeira instância tenha deixado de se pronunciar sobre facto que, revelando interesse para a decisão da causa, tenha sido alegado pela acusação ou pela defesa, ou tenha resultado da discussão da causa.

E tal omissão de pronúncia verificar-se-á quando o tribunal não insira facto com a apontada natureza nem no rol dos factos provados nem naqueles que considerou como não provados (cf. acórdão do S.T.J., de 13.01.99, Proc. n.º 1126, 3.ª - Sec.).

Como refere o Prof. Germano Marques da Silva, «É necessário que a matéria de facto dada como provada não permita uma decisão de direito, necessitando de ser completada.

Antes de mais, é necessário que a insuficiência exista internamente, dentro da própria sentença ou acórdão. Para se verificar este fundamento, é necessário que a matéria de facto se apresente como insuficiente para a decisão que deveria ter sido proferida por se verificar lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para uma decisão de direito. A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada não tem nada a ver com a eventual insuficiência da prova para a decisão de facto proferida.» [2]

Daí que aquela alínea se refira à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova (art. 127), que é insindicável em reexame da matéria de direito.

Assim, um tal vício só pode ter-se como evidente quando os factos provados forem insuficientes para justificar a decisão assumida [3] .

Ocorre este vício quando, da factualidade vertida na decisão em recurso, se colhe que faltam elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para se poder formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição.

«Há insuficiência para a decisão sobre a matéria de facto provada quando os factos dados como provados não permitem a conclusão de que o arguido praticou ou não um crime, ou não contém, nomeadamente, os elementos necessários ou à graduação da pena ou à elucidação de causa exclusiva da ilicitude ou da culpa ou da imputabilidade do arguido» [Ac. da Rel. de Lisboa de 19/7/2002, proferido no Proc. nº 128169, cujo sumário pode ser consultado no site htpp//www.dgsi.pt)].

Decorre daqui que a “decisão” a que se reporta a citada al. a) do referido n.º 2, se refere à decisão justa que devia ter sido proferida, não à decisão recorrida perante diferente matéria de facto.

O Juiz tem de estender a sua actividade cognitiva até onde pode e deve.

O arguido não concretiza em parte alguma da motivação ou nas conclusões tal vício.

O tribunal recorrido apurou todos os factos que constituíam o objecto do processo, ou seja, os constantes da douta acusação pública, pois o arguido não apresentou contestação, pelo que tal vício não se verifica.

Quanto à "contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão" para relevar como vício, previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), a "contradição - que significa incoerência, oposição ou incompatibilidade manifesta - tem de ser insanável, isto é, tem de se apresentar como inultrapassável pelo tribunal de recurso. Ocorrerá, por exemplo, quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir - em sentido idêntico se vem pronunciando, de forma unânime o S.T.J., destacando-se, a título de exemplo, os Ac. de 22.05.1996, Proc. n.º 306/96 e de 02.12.1999, Proc. n.º 1046/1998, 5.ª Secção, "Sumários de Acórdãos do S.T.J., n.º 36".

O mesmo vício pode ter lugar quando se dá como provado um facto mas da respectiva motivação resulta que assim não pode ser considerado, o que igualmente integra o erro notório na apreciação da prova.

Diz o recorrente que a sentença recorrida considera provados e não provados factos que são contraditórios entre si, pelo que padece do vício de contradição insanável da fundamentação.

E lendo a motivação esse vício ocorreria pelo facto do tribunal ter dado como provado que no dia 30 de Agosto de 2002, o arguido havia ingerido bebidas alcoólicas e ter dado como não provado que nesse mesmo dia, mês e ano, cerca das 23,00 horas, o arguido estivesse alcoolizado.

É patente que também aqui não lhe assiste razão. Uma coisa é afirmar-se que o arguido ingeriu bebidas alcoólicas no dia, mês e ano em questão e outra dizer-se que não se provou que nesse mesmo dia, mês e ano, cerca das 23,00 horas, o arguido estivesse alcoolizado (ébrio, embriagado [4] ), pois é perfeitamente admissível que nesse dia tenha ingerido bebidas alcoólicas e não ter atingido um grau de embriaguez, ou não se encontrar em tal estado às 23,00 horas.

Alegou ainda o recorrente – apenas em sede de conclusões - que a sentença enferma do vício de erro notório na apreciação da prova.

Quanto ao "erro notório", vem sendo entendimento unânime da doutrina e jurisprudência que ele apenas se terá como verificado em apertadas circunstâncias.

Prescreve o artigo 127 do Código de Processo Penal o seguinte:

"Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente".

Este o princípio fundamental sobre a regra da livre apreciação da prova.

No entanto não é um princípio absoluto, já que a própria lei lhe estabelece excepções, designadamente as respeitantes ao valor probatório dos documentos autênticos e autenticados (art. 169), à confissão integral e sem reservas no julgamento (art. 344 n.º2) e à prova pericial (art. 163).

Tais excepções enquadram-se no princípio da prova legal ou tarifada, que se acha radicado na certeza e segurança e certeza das decisões, consagração da experiência comum e facilidade e celeridade das decisões.

E tem grande importância a distinção a nível processual, pois que o desrespeito pelas regras próprias da valoração legal ou tarifada implica a violação de normas de direito, com as consequências e implicações, "maxime" em matéria de recursos (cf. Maia Gonçalves in Código de Processo Penal – 7.ª edição a páginas 262.

Confunde-se frequentemente a questão do erro notório na apreciação da prova como julgamento de facto, no sentido de que a prova e produzida não podia conduzir a haver-se como provada matéria que se provou. Mas com evidente violação da lei, atento o princípio da liberdade de apreciação da prova ou da livre convicção do julgador, plasmado no artigo 127 do Código de Processo Penal.

Quanto ao erro notório na apreciação da prova, em princípio as regras da experiência comum só podem ser invocadas quando da sua aplicação resulte, sem equívocos, a existência de tal erro, posto que a lei exige que este, para ser válido, tenha veste de "notório", isto é quando, contra o que resulta de elementos que constem dos autos e cuja força probatória não haja sido informada ou de dados do conhecimento público generalizado, se emite um juízo sobre a verificação ou não de certa matéria de facto e se torne incontestável a existência de tal erro de julgamento sobre a prova produzida.

O erro notório na apreciação da prova (art.410 nº2 c) CPP) existe sempre que o juízo formulado revele uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários, de todo insustentáveis.

A incongruência há-de ser de tal modo evidente que não passe despercebida a comum dos observadores, ao homem médio (cf., por ex., Ac STJ de 27/5/98, BMJ 477, pág.338, de 9/2/2000, BMJ 494, pág.207, de 14/10/2001, C.J. ano IX, tomo II, pág.182).

Ocorrerá também erro notório quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as "legis artis", como quando o Tribunal se afasta infundadamente dos juízos dos peritos.

Na definição de GERMANO MARQUES DA SILVA, erro notório "é o erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem de formação média facilmente dele se dá conta" (Curso de Processo Penal, III, pág.341).

Isto é, sempre que para a generalidade das pessoas seja evidente uma conclusão contrária à exposta pelo tribunal, concretizando-se, assim, a limitação ao princípio da livre apreciação da prova, positivado no art.127 n.º1 do Código Penal, segundo o qual "a prova é apreciada segundo as regras da experiência" (MARIA JOÃO ANTUNES, RPCC ano 4 – 1, pág.118 e ss.).

Um facto é notório quando o juiz o conhece como tal, colocado na posição de cidadão comum, regularmente informado, sem necessitar de recorrer a operações lógicas e cognitivas, nem a juízos presuntivos (cf. ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, III, pág.259; CASTRO MENDES, Do Conceito de Prova, pág.711; VAZ SERRA, Provas, BMJ 110, pág.61 e ss.).

É o que acontece, nomeadamente, quando, por forma manifesta, e sem adequada justificação, se dá como não provada matéria constante de documento com força probatória plena sem que o mesmo tenha sido arguido de falso ou quando se afirme como existente ou inexistente um facto que seja do conhecimento público não se ter ou se ter produzido.

Fora destas hipóteses, de todo o ponto excepcionais, erro notório na apreciação da prova só pode resultar do texto da própria decisão recorrida, em virtude de o conhecimento da prova oralmente produzida em audiência se encontrar, pela sua intrínseca natureza, subtraído a qualquer reapreciação pelo tribunal de recurso.

Ora, analisada a sentença recorrida, não se detecta tal vício, que o arguido nem sequer concretizou, pelo que se têm por assente a matéria de facto provada que o tribunal recorrido assim considerou.

11. Integrarão os factos provados a prática pelo arguido dos crimes de maus-tratos e de ameaça, prevenidos nos art. 152 n.º1 e 2 e 153 n.º1 do Código Penal?

Vejamos como o tribunal recorrido encarou a questão:

“O arguido vem acusado da prática de um crime de maus-tratos, previsto e punido pelo artigo 152 do Código Penal, o qual estabelece que:
    «1. Quem, tendo ao seu cuidado, à sua guarda, sob a responsabilidade da sua direcção ou educação, ou a trabalhar ao seu serviço, pessoa menor ou particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez, e:

    a) Lhe infligir maus-tratos físicos ou psíquicos ou a tratar cruelmente;

    b) A empregar em actividades perigosas, desumanas ou proibidas; ou

    c) A sobrecarregar com trabalhos excessivos; é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos, se o facto não for punível pelo artigo 144.

    2. A mesma pena é aplicável a quem infligir ao cônjuge, ou a quem com ele conviver em condições análogas às dos cônjuges, maus-tratos físicos ou psíquicos.
Este preceito veio responder à necessidade de punir os casos mais chocantes de maus-tratos em crianças, incapazes, cônjuge e equiparado e trabalhadores.

Como afirma Américo Taipa de Carvalho (Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, p. 329): «A necessidade prática da criminalização das espécies de comportamentos descritos neste artigo 152 resultou de um duplo factor; por um lado, o facto de muitos destes comportamentos não configurarem em si o crime de ofensas corporais simples (art.143), como é o caso das condutas descritas nas als. b) e c) do n.º 1 deste art. 152, por outro lado, a criminalização destas condutas, com a consequente responsabilização penal dos seus agentes, resultou da consciencialização ético-social dos tempos recentes sobre a gravidade individual e social destes comportamentos. A neocriminalização destes comportamentos não significa novidade ou maior frequência deles, nos tempos actuais, mas sim uma saudável consciencialização da inadequação (ao fim educativo) e da gravidade e perniciosidade desses comportamentos.»

Relativamente aos elementos objectivos do crime de maus-tratos, pressupõe esta norma a existência de uma determinada relação entre o agente e o sujeito passivo dos seus comportamentos, caracterizando-se, assim, como um crime específico.

No caso dos autos, o arguido é marido de I.M., visada com as suas condutas, pelo que, as mesmas se encontram abrangidas pelo n.º2, do artigo 152 do Código Penal.

O âmbito punitivo do tipo de crime do artigo 152 n.º 1 e 2 do Código Penal, inclui os comportamentos que, de forma reiterada, lesam a dignidade humana, compreendendo a "ratio " deste normativo, para além dos maus tratos físicos, os maus tratos psíquicos (por exemplo humilhações, provocações, ameaças, curtas privações de liberdade de movimentos, etc), perfilando-se a saúde como o bem jurídico nele protegido bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental.

A respectiva incriminação de condutas agressivas, mesmo que praticadas por uma só vez, sempre ocorrerá quando a gravidade intrínseca das mesmas se assumir como suficiente para poder ser enquadrada na figura dos maus tratos físicos ou psicológicos, enquanto violação da pessoa individual e da sua dignidade humana, com afectação da sua saúde.

Assim sendo, analisados e ponderados os factos provados, concretamente, os constantes de II, III, IV, V, VI, VII e XV, dúvidas não restam que "in casu" se encontram preenchidos os elementos objectivos deste tipo de ilícito.

De facto, tais factos revelam a existência de maus tratos psíquicos, infligidos pela arguido à sua mulher durante o tempo de vida em comum, que se traduzem nas ameaças verbalizadas, consubstanciam uma conduta reiterada para efeitos de preenchimento do ilícito em causa, dado que se prolongaram no tempo, cessando apenas com o abandono do lar por parte de I.M.

Além disso, é manifesta a gravidade intrínseca dos factos constantes de VI e VII, uma vez que, se concretizados, se traduziriam na prática de um crime homicídio.

Não restam dúvidas, pois, que todos os elementos objectivos do tipo legal de crime em causa se encontram preenchidos.

Quanto ao elemento subjectivo, estamos perante um tipo doloso, ou seja, que não é punível a título de negligência.

Basta que a conduta seja dolosa, independentemente da modalidade em que se apresente, que pode ser qualquer uma das previstas no artigo 14 do Código Penal.

Essencial é que o arguido conheça os elementos e circunstâncias deste tipo legal de crime, bem como, o seu sentido e alcance, por forma a que represente o facto ilícito com todos os seus elementos integrantes e a ter consciência de que tal facto é censurável, sendo irrelevante a direcção de vontade traduzida na realização desse mesmo facto ilícito

Atenta a matéria de facto dada como provada nos autos, verificamos que o arguido, com as descritas condutas, quis causar medo e sofrimento a I. M., o que conseguiu, bem sabendo que a mesma é sua mulher e que a lei não lho permite.

Perante estes factos e atento o conteúdo do n.º 1, do artigo 14 do Código Penal, conclui, o Tribunal, que arguido agiu com dolo directo.

Desta forma, mostram-se preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo de ilícito em análise.

O arguido vem, ainda, acusado pela prática de um crime de ameaça, previsto e punido pelo artigo 153 n.º 1 e 2, do Código Penal.

Dispõe o n.º1 do referido artigo que: "Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias

Dispõe o n.º 2, do mesmo, "Se a ameaça for com a prática de um crime punível com pena de prisão superior a 3 anos, o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias".

O bem jurídico protegido com esta incriminação é a liberdade de decisão e de acção. As ameaças, ao provocarem um sentimento de insegurança, intranquilidade ou medo na pessoa do ameaçado, afectam a paz individual que é condição de uma verdadeira liberdade.

No que tange aos elementos objectivos do tipo, torna-se desde logo necessária a existência de uma ameaça. Esta terá de consistir num mal futuro, cuja ocorrência dependa da vontade do agente (v.g. Comentário Conimbricense do Cód. Penal, T.1, p.343).

Por outro lado, é necessário que a ameaça seja adequada a provocar no ameaçado, isto é, no sujeito passivo do crime de ameaça, medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação.

Trata-se de um crime de perigo concreto, pois, embora não se exija a verificação de um dano para a sua consumação, não deixa de se exigir que a ameaça seja, na situação concreta, adequada a provocar medo ou inquietação.
Assim, importa apurar se face ao contexto em que foram praticados os factos constantes de XI, XII e XIII ao conteúdo intrínseco de tais actos e atitude assumida pelo arguido, os mesmos são susceptíveis de causar perturbação no visado, sendo adequados a provocar-lhe medo e inquietação.

No caso dos autos, provou-se que o arguido disse para N. C. que resolveria o que quer que fosse necessário “à pancada", que não tinha medo de ninguém e que enfrentaria quem quer que fosse para que ninguém se intrometesse na sua vida, incluindo N.C., tendo, de seguida, se dirigido a uma arca, donde retirou uma pistola que apontou à cabeça de N. C., puxou a culatra para trás e faz sair uma munição pela janela de ejecção, dizendo a este que "se não for com as mãos é com isto, arrumo qualquer um", mantendo sempre um diálogo intimidatório durante a presença de N. e A.C. na sua residência, dando a entender que mataria quem tentasse interferir na sua vida e na da queixosa.

Tais actos são notoriamente agressivos e intimidatórios, pretendendo o arguido, com a sua prática, provocar medo e inquietação em N. C., temendo este pela sua integridade física e vida.

Tendo em consideração todas as circunstâncias referidas, torna-se evidente que as ameaças proferidas - que, se concretizadas, implicariam a prática de um crime de homicídio - são adequadas a provocar medo e inquietação no visado, pelo que se mostram verificados os elementos objectivos deste tipo-de-ilícito.

No que concerne ao tipo subjectivo deste ilícito, exige-se o dolo. Exige-se, assim, a consciência da adequação da ameaça a provocar medo e intranquilidade no ameaçado, sendo, contudo, irrelevante que o agente tenha, ou não, a intenção de concretizar a ameaça.

No caso dos autos, o arguido sabia da adequação das ameaças proferidas e tinha a intenção de provocar medo e inquietação no visado, N. C., pelo que, agiu, o mesmo, com dolo directo.

Pelo exposto, cometeu o arguido um crime de ameaça, previsto e punido pelo artigo 153 n.º1 e 2, do Código Penal”.
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Em face do provado é manifesto que também aqui o recorrente não tem razão, pois estão verificados todos os elementos objectivos e subjectivos dos crimes em questão.

Diz o recorrente que não ficou provado que o N.C. temesse pela sua integridade física (ou pela vida) e que atendendo ao facto de se ter dado como provado que o recorrente tinha ingerido bebidas alcoólicas, não existe dolo por parte do recorrente, uma vez que o estado em que se encontrava não lhe permitia ter consciência da adequação da ameaça a provocar medo e intranquilidade ao N. C.

Porém, basta ler com atenção o que foi vertido nos pontos XVI e XVII dos factos provados para afastar as objecções do recorrente, sendo certo que não se provou que o recorrente estivesse em estado de inimputabilidade derivado da ingestão ou consumo de bebidas alcoólicas, quando praticou os factos, e que esse estado não lhe permitisse ter consciência dos actos por si praticados.

Assim, o recorrente não poderia deixar de ser condenado pelos crimes que praticou.

12. O recorrente não questionou a pena em que foi condenado, mas tão-somente a condição de suspensão da execução da pena, dizendo que é impossível e viola o disposto no art. 51 n.º2 do Código Penal.

Diz o recorrente que foi deliberado suspender a execução da pena em que o recorrente foi condenado pelo período de 4 anos, subordinada ao dever de proceder, no final de cada período anual de suspensão, ao depósito da quantia de € 300,00 na Caixa Geral de Depósitos à ordem do Tribunal, o qual posteriormente remeterá tais quantias à APAV.

Tendo sido dado como provado que o ora recorrente aufere mensalmente € 480,00, paga a quantia mensal de €150,00 a seus filhos, a título de alimentos e que paga de empréstimo bancário € 125,00, resta-lhe € 205,00 por mês para viver, o que é manifestamente pouco.

Assim, ao suspender a pena de prisão condicionada ao cumprimento dessa obrigação, que bem sabe o recorrente não tem condições para cumprir, faz depender a suspensão da execução da pena de condição inexequível, por falta de meios do arguido, por este não ter condições para tal, violando o disposto no art. 51 n.º2 do Código Penal.

Afigura-se-nos que também aqui não assiste razão ao recorrente.

O art. 51 n.º2 do Código Penal consagra um princípio de razoabilidade em matéria de imposição de deveres condicionadores da suspensão da pena, ou seja, tal imposição deve ser norteada pela normal possibilidade de serem cumpridas, não devendo ser impostas obrigações cujo cumprimento se perspective praticamente impossível.

Não é manifestamente o caso.

A obrigação imposta ao recorrente pode ser cumprida até ao final de cada ano. Representa menos de 2/3 de um vencimento mensal deste e corresponde a menos do que um euro por dia. Além disso, não se pode olvidar que o recorrente também recebe subsídio de Natal e subsídio de férias.

A obrigação estabelecida está, por isso, bem ao alcance do condenado, das suas possibilidades económicas actuais, e justifica-se cabalmente face à gravidade dos ilícitos em presença, tendo em vista o fortalecimento das finalidades da pena.

O comportamento ilícito do recorrente (maus-tratos a cônjuge) é sentido pela comunidade como sinal de desprezo pela dignidade humana, fazendo perigar as expectativas dos restantes cidadãos na eficácia do ordenamento jurídico (prevenção geral).

As exigências de prevenção geral são por isso elevadas, atenta a natureza do ilícito em causa, que no nosso tempo não se pode tolerar.

A violência no seio familiar, quase sempre silenciada, é um dos grandes flagelos da nossa sociedade. Só uma cultura interiorizada de respeito pela dignidade poderá criar as condições de harmonia tão desejadas.

A imposição de dever a favor de instituição que presta apoio a vítimas de violência tem razoabilidade, pois, por um lado, não está demonstrado que o arguido não tenha meios económicos para pagar a quantia estabelecida e, por outro lado, se o recorrente, por qualquer razão válida, ficar impossibilitado de o fazer, a lei permite a modificação dos deveres que condicionam a suspensão da pena sempre que ocorrerem circunstâncias relevantes supervenientes (art. 51 n.º3 do CP).


Como assim, o recurso não pode deixar de improceder na sua totalidade.

Face à improcedência do recurso, incumbe ao arguido recorrente o pagamento das custas – art. 513 e 514 n.º 1, do CPP e art. 82 n.º 1 e 87 n.º 1 al. b), estes do Código das Custas Judiciais.
III
    13. Nestes termos e com tais fundamentos, decide-se:

    a) Negar provimento ao recurso e, em consequência, manter na íntegra a sentença recorrida;

    b) Condenar o arguido recorrente nas custas, com a taxa de justiça que se fixa em (cinco) UC’s.


    Lido e revisto pelo relator que assina e rubrica as demais folhas.


    Évora, 2005.05.24

    F. Ribeiro Cardoso (relator), Gilberto Cunha (1.º Adjunto) e Martinho Cardoso (2.º Adjunto)




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[1] Cf., neste sentido, a comunicação apresentada pelo Exmo. Juiz Desembargador desta Relação, Sérgio Gonçalves Poças, sob o tema “Da prova” na Associação Forense de Santarém no seminário subordinado ao tema “O arguido e a sua defesa “, editado por aquela Associação.
[2] «Curso de Processo Penal», III, 2.ª edição, pp. 339/340.
[3] Cf. por todos, o acórdão, do STJ, de 9-4-97 (BMJ 466-392).
[4] Vide Grande Dicionário da Língua Portuguesa, coordenação de José Pedro Machado, vol. I, pag.182.