Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2871/17.2T8STR.E1
Relator: FRANCISCO MATOS
Descritores: PRISÃO PREVENTIVA
ERRO DE JULGAMENTO
Data do Acordão: 02/14/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente é condição de formulação do pedido de indemnização, por erro judiciário, contra o Estado e, assim, a ausência de revogação da decisão danosa tida como manifestamente ilegal ou injustificada por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto determina, só por si, a improcedência da acção.
Decisão Texto Integral: Proc. nº 2871/17.2T8STR.E1



Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora:

I – Relatório.
1. (…), nascido em 16/4/1968, à data da petição, preso no Estabelecimento Prisional de Vale de Judeus, Alcoentre, instaurou contra o Estado Português, ação declarativa com processo comum[1].
Alegou, em síntese, que no inquérito 72/11.2PATNV (Santarém – Central Criminal – Juiz 1) que lhe foi instaurado pelo Ministério Público, o juiz de instrução, por despacho de 9/3/2011, ordenou buscas e a interceção das suas comunicações com exclusivo fundamento numa “informação de serviço” da PSP que, por sua vez, teve origem numa “chamada telefónica anónima”.
Não é lícito colocar sob vigilância, perseguir ou invadir o domicílio de alguém apenas porque um agente da PSP ouviu uma chamada telefónica anónima a dizer que o suspeito praticou um crime, sem mais diligências que a interceção e violação do foro privado.
Tal despacho, por imponderação dos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade, como se exige num Estado de direito, comporta uma nulidade processual insanável, com a consequente anulação de todo o processado posterior e viola o artº 8º da Convenção Europeia, ratificada pelo Estado Português.
Sentiu choque e angústia com a invasão da sua privacidade e o réu Estado Português deverá ressarcir estes danos.
Concluiu pedindo a condenação do R. no pagamento da quantia de € 8.000,00, acrescida de juros.
Contestou o Ministério Publico, em representação do Estado Português, argumentando, em síntese, que as buscas e interseção de comunicações do A., ordenadas no âmbito do inquérito 72/11.2PATNV, se fundaram em fonte identificável e tida por credível e não numa “chamada anónima” e noutros meios de prova recolhidos nos inquéritos 80/10.0TATNV e 463/08.6PATNV, incorporados no referido inquérito e vieram, aliás, a mostrar-se relevantes para efeitos probatórios e de aplicação de medidas de coação.
A indemnização peticionada tem como pressuposto a revogação da decisão danosa por um tribunal superior e nenhum tribunal se pronunciou sobre a validade do despacho que ordenou as buscas e interseção das comunicações.
O A. conhecia bem a falsidade da imputação que serve de suporte à ação, documentada nos autos a que teve acesso, deduzindo pretensão cuja falta de fundamento não ignora.
Concluiu pela improcedência da ação e pela condenação do A. como litigante de má-fé.

2. Foi proferido despacho que afirmou a validade e regularidade da instância e enunciou os temas da prova.
Teve lugar a audiência de discussão e julgamento e depois foi proferida sentença em cujo dispositivo designadamente se consignou:
Na improcedência da ação decido:

- Absolver o Estado Português representado pela Digna Magistrada do Ministério Publico do pedido formulado pelo autor (…);

- Absolver o autor do pedido de condenação como litigante de má fé.”

3. Recurso.
O A. recorre da sentença e conclui assim a motivação do recurso:
“l - o Tribunal a quo deu como provado que foi instaurado em 24-2-201 procedimento por crime de furto que teve por base uma Informação de Serviço Policial – fls. 106-108 – por fonte não identificada e, logo a seguir, foi proferido Despacho a invadir as comunicações telefónicas e habitação do autor;

2 - o autor instaurou a ação à luz do art.º 8° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem porquanto:

4- sem mais diligências – além da informação a fls. 106/108 – o MMº JIC a fls. 302-303 ordenou meios intrusivos da intimidade do A. (…) como a interceção telefónica, a invasão do domicilio pessoal e de um estabelecimento comercial;

5- entre fls. 106-108 de 23-2-2011 e o Despacho do MMº JIC de 9-3-2011 a fls. 312-333 de 4-3-2011 nada mais existe que a “informação de serviço”: aliás, o Mº Publico teve a perceção de que nada mais existia, pois refere a fls. 301 que: “resulta dos elementos probatórios recolhidos nos autos e sucintamente mencionados no relatório de fls. 106-108 ....” (sublinhado da defesa) 6- a informação foi prestada à PSP tão “sucintamente” que logo a fls. 106-108 a PSP identifica o suspeito (…) pelo: - nome completo – número do Bilhete de Identidade- -numero de telefone -moradas- - número de passaporte de um tal "…" (…), etc. ... 7- omitindo in totum quaisquer outras diligências além da alegada "fonte anónima" materializada sob "Informação de Serviço", a PSP solicitou e obteve o agreement do Ministério Publico e a Autorização Judicial de fls. 312-323 para ab initio invadir a privacidade do A.: 8- a informação anónima de fls. 23-2-2011 da PSP passou a: - "elementos mencionados sucintamente" em 4-3-2011 dixit Mº Público a fls. 302-302 – "factos ilícitos denunciados, existência e grau de organização" – dixit J.I.C. fls. 314 ... 9- a decisão judicial que ordena a intervenção das comunicações privadas de um cidadão deve visar uma finalidade especifica ou um fim constitucionalmente legítimo; note- se que: O MMº J.I.C a fls. 314 decidiu, repete-se, que: "... verifica-se, que, efetivamente, para um cabal esclarecimento do envolvimento do arguido nos factos ilícitos denunciados, a existência e o grau de organização e papel desempenhado por cada um dos intervenientes, é indispensável à investigação, por nenhum outro meio de prova se revelar eficaz para elementos que se pretende apurar, a interceção e gravação das chamadas telefónicas …";

3- a investigação deveria ter produzido diligências no terreno diversificadas e, só após as mesmas, se se revelassem de todo infrutíferas, poderia e deveria solicitar interceções telefónicas ..., conforme impõe o mandamento do artigo 8º da Convenção Europeia, os arts l°, 32°, 34°, 205º da CRP e 187º e ss. do C.P.P.; a Jurisprudência Portuguesa é unanime na censura deste modus faciendi investigatório:

Tribunal da Relação Lisboa - proc. 65/11. O JAFUN-A.L1-S - Margarida Blasco: Não constando dos autos mais do que uma denúncia anonima contra determinada pessoa, o facto desta ter antecedentes criminais da mesma natureza do ilícito denunciado, não é suficiente para a mesma ser considerada suspeita por novo crime, razão por que não ocorrem os requisitos mínimos legalmente exigíveis para ser autorizada uma escuta telefónica. Ora, o que existe nos autos é que o órgão de polícia criminal adquiriu a notícia da atividade criminosa através de informações transmitidas por um individuo que quis manter-se anónimo, subscrevendo o auto de notícia e afirmando que as informações transmitidas tinham fundamento. Só que aquilo que se diz ser a atividade do suspeito é objeto de exposição e síntese pelo órgão de polícia criminal no que se designa como "auto de noticia" elaborado, como se diz de acordo com o art. 243º. O nº 1 desse artigo determina que sempre que uma autoridade judiciária ou um órgão de polícia criminal presenciarem qualquer crime de denúncia obrigatória levantam ou mandam levantar auto de notícia. Na realidade, porém, o órgão de polícia criminal não presenciou qualquer crime. Apenas supõe que haja crime.

4- é manifesto que logo após a Informação foi determinada a invasão do domicilio do autor contra os arts 34° da CRP e 8º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem; veja-se o que a Veneranda Decisão da Relação do Porto decidiu em 2001:

O conhecimento, através de uma simples fonte, que quer manter o anonimato, da existência de uma rede de tráfico de droga, sem qualquer outra diligência, não constitui fundamento suficiente para deferir pedido de escutas telefónicas e apreensão de fatura detalhada, na medida em que não permite concluir pela existência de «razões para crer que a diligência se revelará de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova» (artigo 187.º, n.º 1, do Código de Processa Penal).



6- também Carlos Adérito Teixeira in "Escutas Telefónicas: A Mudança de Paradigma e os Velhos e os Novos Problemas" (Revista do CEJ, Número 9, págs. 244-245 referiu exemplarmente o seguinte: «Leio a atual formulação do n.º 1 do art. 187º do CPP como representando: i) uma mais exigente ponderação, no plano concreto, sobre a necessidade, a proporcionalidade, a adequação ou a idoneidade do meio (escuta);

ii) a exigência de uma suspeita fundada – não uma mera suspeita – da prática de certo crime do catálogo; julgo que fundada suspeita pressupõe que já haja um certo nível de indícios; logo, não basta a mera 'notícia do crime' e muito menos a denúncia anónima, mesmo que muito verosímeis e suficientemente concretizadas:

iii) uma utilização prática subsidiária da interceção telefónica, o que vale por dizer que só se mostra admissível o recurso a este meio intrusivo se não for possível alcançar “a mesma eficácia probatória à custa de meios menos gravosos”.

7- por sua vez, os Srs. Juízes de Estrasburgo têm exigido uma "prévia e fundada delimitação da matéria factual criminosa" impondo uma concreta determinação do facto objeto da investigação criminal com vista a permitir a ponderação entre o sacrifício – ingerência no segredo das comunicações exigido ao suspeito – arguido e o fim legitimo de investigação criminal conforme os affaires (acórdãos)

- "KLASS" de 6-9-1978. - "MALONE" de 27-10-1983, - "SHENK" de 12-7-1988,

-"KRUSLIN e HUVIG"de 24-4-1990, - "LUDWIG" de 15-6-1992, -"HALFORD" de 25-6-1997,

-"KOOP"de 25-3-1998, -"VALENZUELA CONTRERAS"de 30-7-1998,

"LAMBERT" de 24-8-1998, entre outros;

8- a lei deve ser compatível com a ideia do "primado do direito", isto é, terá de ser suficientemente acessível, publicada, previsível e precisa: casos Malone contra Reino Unido de 2-81984 - § 67-68, Kruslin c. França de 24-4-1990-§ 27 e Khan c. Reino Unido, de 12-S-2000-§ 26;

9- em momento algum a Lei Portuguesa impõe ou permite que, apresentada "Informação Anonima", se ordene de imediato A a interceção telefónica e buscas ao visado pela "denúncia"; pelo contrario, a Lei impõe a EXCEPÇÃO, o ULTIMO REDUTO, sob os requisitos da ponderação, da necessidade e da proporcionalidade!!! in casu resulta que o Despacho de fls. 312 e ss acolheu a informação anónima e, sem mais ponderação dos Princípios da necessidade, adequação, proporcionalidade e respeito pelo artº 8° da Convenção Europeia, invadiu ab initio a privacidade do arguido (…), o que traduz nulidade processual insanável e de todo o processado após 2-3-2011 – fls. 108 dos autos 72/11 .....

10- o artº 8° da Convenção Europeia impõe o Principio da Legalidade a que Portugal se obrigou face ao artº 8° da Constituição da Republica Portuguesa; é anómalo colocar ab initio telefones sob interceção policial em Março 2011, deduzir Acusação decorridos QUATRO ANOS, em Março 2015, e ostracizar um pedido de Aceleração Processual.

11- in casu resulta que o JIC acolheu "informação de serviço" do OPC sob capa anónima e, sem ponderação dos Princípios da necessidade, adequação, proporcionalidade e respeito pelo art° 8° da Convenção Europeia, invadiu ab initio a privacidade do autor (…), o que traduz nulidade processual insanável e de todo o processado por violação básica das regras do Estado de Direito democrático;

12- o réu Estado Português ao optar por invadir a privacidade do A. atentou contra o art. 8° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que é direito positivo português; trata-se de meio ilícito e censurado pela Cour pois inexiste base ab initio para violar uma disposição supra constitucional a que Portugal deve obediência: a Convenção foi acolhida em Portugal: o artº 8º da C.R.P.; na verdade,

13- não se pode colocar sob vigilância, perseguir e invadir-se o domicilio de alguém suspeito apenas porque um agente da PSP ouviu uma fonte anónima a dizer que o suspeito praticou um crime, sem mais diligencias que a interceção e violação do foro privado – Affaire Valenzuela Contreras c. Espanha, proc. 5811997/842/1048 do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.

14- o A. sentiu choque e angústia com a invasão da sua privacidade face à conduta do réu;

15- incorreu assim o Réu em responsabilidade extracontratual devendo, ao abrigo do art 8° da CEDH e Jurisprudência dos Senhores Juízes de Estrasburgo, ser condenado a pagar € 8.000,00 ao Autor.

16- o Tribunal a quo acolheu os argumentos do Ministério Público contra a Jurisprudência da COUR e os Princípios da privacidade e do respeito pela correspondência

17- o réu Estado Português deve ser condenado a pagar quantia não inferior a € 8.000,00 e juros vincendos ao A. face à invasão da sua privacidade e modo precipitado como se socorreu ab initio da medida lesiva da privacidade do A., ao arrepio da Jurisprudência Europeia e Portuguesa;

18- a interceção da privacidade do A. é uma situação continua, consta dos autos supra id e serve de prova ao julgamento designado para 3-7-2017;

Pelo exposto, o Tribunal a quo violou os arts 8º da CEDH e 34° da CRP: privilegiou a invasão e violação da intimidade e da correspondência como o primeiro meio da investigação quando deveria ser a exceção...

A Decisão sob recurso deve ser revogada e substituída por outra que condene o réu Estado Português assim se fazendo a Lídima Justiça!”
Respondeu o Ministério Público por forma a defender a confirmação da sentença recorrida.
Admitido o recurso e observados os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. Objeto do recurso.
O objeto dos recursos é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo de alguma ou algumas da questões, nestas suscitadas ficar prejudicada pela solução dada a outras – cfr. artºs. 635º, nº 4, 639º, nº 1, 608º, nº 2 e 663º, nº 2, todos do Código de Processo Civil.
Vistas as conclusões do recurso, importa decidir se o R. deverá ser condenado a indemnizar o A., por erro judiciário.

III. Fundamentação.
1. Factos:
A decisão recorrida julgou assim os factos:
Factos provados:
a) Foi instaurado no dia 24.02.2011, tendo em vista a investigação de um crime de furto qualificado, praticado por desconhecidos no estabelecimento comercial denominado "NEW SPORT";
b) Foi elaborada informação de serviço (policial) que consta de fls. 106 a 108 do processo n.º 72/ 11. 2PATNV que faz menção a uma chamada anónima efetuada por um individuo que pedia anonimato por temer pela sua integridade física e da sua família, ao qual foi dado credibilidade por ter referido "algumas dicas relativamente a acontecimentos recentes e pormenorizados", o que deu origem a que fosse estabelecido um contacto pessoal entre a fonte e o agente de autoridade que atendeu o telefonema;
c) Esse encontro realizou-se "durante a tarde de sexta feira (25.02.2011)", conforme previamente combinado com (…), Chefe da PSP da esquadra de Torres Novas, tendo sido presenciado pelo agente (…);
d) Neste encontro, mantido com fonte identificável e não anónima, chegou ao conhecimento das autoridades que na residência de (…) existia uma grande quantidade de peças de artigos de desporto de marcas conhecidas e de armas para venda, em que foram relatados dois episódios de furto e viciação de veículos que permitiram às autoridades a identificação de factos ocorridos com (…) e outros relacionado com os factos em investigação no NUIPC80/10.0TATNV,mais referindo a fonte que o denunciado se encontrava envolvido no furto e desmantelamento de veículos para venda em peças e recetação de artigos furtados, exploração de estabelecimentos de diversão onde existe prática de prostituição por mulheres estrangeiras e algumas ilegais, para além de que guardaria na sua residência, sita na localidade de (…), grande quantidade de peças de artigos de desporto de marcas conhecidas, recetadas de um furto, o que correspondia ao teor do auto de noticia 72/11.PATNV, bem como algumas armas que venderia:
e) No âmbito deste inquérito 72/11.2 PATNV foi proferido despacho determinativo das interceções telefónicas e buscas, designadamente a fls. 301, onde se pode ler: "é patente que existe por parte das pessoas que contactam o suspeito (…) o receio de se manifestarem ou prestarem declarações, que de algum modo o possam comprometer nas atividades ilícitas sobre investigação – veja-se o depoimento de fls. 255 a 257 e a informação de serviço de fls. 106 a 108);
f) O despacho determinou interceção e gravação das conversações telefónicas com origem e destino no nº (…) assim como dos IMEI associados, bem como a realização de buscas domiciliárias, a estabelecimento e stand de venda de automóveis usados "(…)" conforme documento de fls. 312 a 323 do aludido inquérito n.º 72/11( ... );
g) No inquérito n.º 72/11.2PATNV, antes do despacho determinativo das buscas e interceções, foram incorporados os inquéritos 80/10.0TATNVe 463/08.6PATNV (e o n. 1490/09.1PBLRA, mas em data posterior), sendo que a fls. 111 foi solicitada e a fls. 296 daquele inquérito foi determinada a incorporação do inquérito 80/10.0TATV, por se reportar ao mesmo suspeito, o aqui Autor (…), conforme fls. 204 do mesmo;
h) Neste inquérito 80/10.0TATNV foi determinada a realização de buscas à residência de (…) – fls. 223/4 – com fundamento em suspeitas de furto de veículos e, com as buscas, foram iniciadas vigilâncias junto ao Stand (…), sito na Av. do (…) e do qual era proprietário (…), local onde foi localizado o veículo do suspeito nesse inquérito, (…), conforme documento de fls. 238 do aludido inquérito n.º 72/11 (...);
i) A fls. 113 foi ordenada a incorporação do inquérito 463/08.6PATNV, arquivado com data de 27.02.2009 e posteriormente reaberto por terem surgido novos elementos de prova, conhecidos por certidão remetida pelo inquérito 330/08.3PATNV, investigado pela Policia Judiciária – Departamento de Leiria, e em cujo âmbito "o cidadão (…)" surgia como autor de vários ilícitos criminais, entre os quais o investigado neste inquérito 330/08.3, que recebeu, por sua vez, a incorporação do inquérito 495/08.4PATNV – fls. 145 e segs., referenciando-se neste processo a ocorrência de um furto cometido "por um tal (…)", conforme consta a fls. 157;
j) No dia 24 de Janeiro de 2011, logo, antes do despacho determinativo das buscas, o Autor (…) foi constituído como arguido e interrogado no âmbito do inquérito 463/08.6 PATNV – conforme fls. 174 e segs – e foi confrontado com os factos em investigação nesses autos e, designadamente, com as suspeitas de que seria o autor do furto do veículo automóvel de matrícula 16-(…)-14;
k) O depoimento de fls. 255 a 257 citado na promoção que fundamenta as buscas reporta-se a declarações prestadas por (…), enquanto arguido no inquérito 80/10.0 TATNV, que recusa revelar o nome do outro envolvido nos factos ilícitos que praticou por receio de represálias, sendo que ainda que a promoção supra aludida refere a "coincidência" de "O suspeito (…) – cfr. fls. 186 – na véspera de ser interrogado pela P.S.P. terá sido agredido no Estabelecimento Prisional onde se encontra detido, de tal modo que ficou incapacitado de prestar declarações (...) – cfr. ainda fls. 301, onde se conclui que o receio revelado "por outros indivíduos em prestar declarações em que seja implicado o suspeito (…), seja um receio real";
1) Das interceções realizadas e das transcrições efetuadas nos autos para efeitos probatórios e de aplicação de medida de coação, devidamente validadas, resultou evidenciado que o então arguido, aqui Autor (…), mantinha conversas indiciadoras da atividade que determinou a dedução da acusação, como seja: "o … diz-lhe para passar por lá, que tem muita roupa para os miúdos... para ir lá ... escolher uns ténis para ele ... que precisa de esvaziar o armazém pois leva com algumas bombas ... a fls. 546 e "o … deve estar a ser apertado e está a do … por causa dos ... ", cfr. fls. 457,
m) Conforme relatórios de busca e apreensão subsequentes ao despacho que ordena as interceções telefónicas e buscas, na residência de (…) sita no Bairro de (…), nº 10, (…), Torres Novas, no seu estabelecimento (…) e ainda no Stand (…), foram apreendidos, na sequência das buscas ordenadas no inquérito 72/11.2PATNV, realizadas no dia 30 de Março de 2011 diversos artigos provenientes do furto denunciado no inquérito 72/11.2PATNV e ainda noutros furtos denunciados nos NUIPC conforme consta dos relatórios de fls. 586, 589 (residência), 601 a 603 (…) e 828 a 842 (Stand …) do processo 72/l1.2PATNV e factos provados, constantes da sentença proferida nesses autos;
n) Foram recuperados na residência do arguido, aqui autor, na sequência das buscas referidas, os seguintes bens subtraídos do estabelecimento comercial "Casa …", objeto de furto cometido na madrugada de 14 de Setembro de 2010 e que deu origem ao NUIPC 390/10.7PBLRA, sendo que alguns ainda continham etiquetas do referido estabelecimento comercial: - 15 calções de desporto de várias marcas, tamanhos e cores; - 7 calças de fato de treino de vários tamanhos, marcas e cores; - l fato de treino da marca Nike; - 23 calções de desporto de vários tamanhos, marcas e cores; - 17 t-shirts de vários tamanhos, marcas e cores; - 6 camisolas de vários tamanhos, marcas e cores; - um polo de marca Adidas; - 4 calças de fato de treino de vários tamanhos, marcas e cores; - 2 casacos de fato de treino; - 2 polos; - l calção de banho; - l par de sapatos de ballet; - 6 fatos de banho; -28 bolsas da marca Eastpak; - 46 pares de chinelos tipo havaianas;
o) Ainda na sequência das mesmas buscas foram apreendidos ao autor, na mesma residência, os seguintes bens, alguns dos quais contendo etiquetas do estabelecimento comercial "New … ", sendo que o assalto a este estabelecimento, entre os dias 12 e14 de Fevereiro de 2011, deu origem ao NUIPC72/11.2PATNV: - 18 pares de calçado desportivo de vários tamanhos e cores, de marca Adidas; - 3 pares de calçado desportivo de vários tamanhos e cores, de marca Nike; - l par de calçado desportivo de marca Puma; - l par de calçado desportivo de marca Acics; - l par de calçado desportivo de marca Reebok; - 47 ténis de várias marcas, cores e tamanho, sem par; - 3 pares de luvas de guarda-redes; - 15 gorros; - 3 fatos de treino; - 20 calções desportivos; - l casaco de fato de treino; - 8 t-shirts de várias cores e marcas; - l par de peúgos;
p) Na sequência das mesmas buscas, foram apreendidos na mesma residência do aqui autor (…) os seguintes objetos que, entre as 08.00 horas do dia 01 de Março de 2011 e as 08.00 horas do dia 15 de Março de 2011, foram retirados da moradia em construção pertencente a (…), que deu origem ao NUIPC206/11.7PATNV: - 3 torneiras misturadoras de lavatório de marca Roca, modelo Vitória-N, cromadas, com a ref. (…); - 1 torneira misturadora de banheira da marca Roca, modelo Vitoria-N cromada, com a ref. (…); - 1 torneira misturadora de duche da marca Roca, modelo Vitoria-N, cromada, com a ref. (…);
q) Na residência do autor, na sequência das mesmas buscas, foi ainda apreendida a arma de ar comprimido, de classe C, marca Webley Patriot, nº (…), calibre 6,35mm/.25, com patilha de segurança, bem como a Caixa com 105 chumbos, classe C, marca Webley 1 mosquito, calibre 25/6.35mm com indicações Performance Maxim High;
r) Nas buscas que desta forma foram ordenadas à residência do arguido, aqui autor (…), foram ainda recuperados artigos respeitantes aos inquéritos com o NUIPC 7/11.2 GAENT, 23/11.4 PAENT e 1351 10.lGANZR motivo pelo qual foi ordenada extração de certidões, destinadas a instruir esses inquéritos;
s) Em 31 de Março de 2015, o aqui autor foi acusado da prática em co-autoria de um crime de furto qualificado e como autor material de um crime de detenção de arma proibida e três crimes de recetação;
t) Por sentença datada de 7 de Agosto de 2017, o aqui autor foi absolvido de todos os crimes que vinha acusado.
Não se provou que:
- em 22.02.2011 o Ministério Publico iniciou perseguição penal contra o autor: é processo n.º 72/11.2PATNV – Santarém – Central Criminal – Juiz 1;
- No final da informação junta ao processo a fls. 106/108 sem mais diligencias além da informação o Mmº Juiz de instrução a fls. 302 e 303 ordenou a interceção telefónica, a invasão do domicílio pessoal e um estabelecimento comercial;
- O autor sentiu choque e angústia com a invasão da sua privacidade.

2. Direito.
2.1. Se o R. deve ser condenado a indemnizar o A., por erro judiciário.
A ação tem fundamento na responsabilidade civil do Estado por danos decorrentes do exercício da função jurisdicional.

O A. considera manifestamente ilegal, por violação do artº 34º da Constituição da República Portuguesa, do artº 8º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e inobservância dos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade, o despacho do Juiz de Instrução Criminal de Santarém que, no âmbito do inquérito 72/11PATN, determinou interceção e gravação das conversações telefónicas com origem e destino no nº (…) assim como dos IMEI associados, bem como a realização de buscas domiciliárias, a estabelecimento e stand de venda de automóveis usados “(…)” [cclªs 2ª, 4ª, 11ª e al. e) dos factos provados].

Embora o A. enuncie nas conclusões a demora na dedução da acusação – “acusação decorridos QUATRO ANOS, em Março 2015, e ostracizar um pedido de Aceleração Processual” [cclª 10ª] – a ação não teve objeto a apreciação da responsabilidade da administração judiciária estranha à função de julgar que, aliás, incumbe aos tribunais administrativos e fiscais (artº 4º, nº 1, al. f), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19/2), nem ela constitui objeto do recurso circunscritos os danos, como se mostram, ao “choque e angústia com a invasão da sua privacidade” [cclª 14ª], decorrente da execução de despacho judicial e não de qualquer injustificada delonga processual.

A decisão recorrida sindicou o despacho alegadamente danoso e não encontrando nele qualquer ilegalidade declinou a pretensão do A., anotando designadamente: “Não sendo a lei taxativa na efetivação das buscas domiciliárias, o momento e oportunidade da sua realização têm de ser cautelosamente analisados pelo Juiz, única entidade que as pode ordenar, (cfr. artº 177º, nº 1, do CPP), devendo aqui funcionar os princípios da adequação e proporcionalidade, com respeito pelos direitos constitucionalmente consagrados. Princípios esses que, em nossa opinião, o despacho objeto deste litígio observou razão pela qual bem andou o(a) Mmo(a) Juiz de Instrução criminal ao ordenar buscas domiciliárias e interceções telefónicas. Falecem, por isso, os argumentos aduzidos pelo Autor.”
O A. reitera no recurso a essência da argumentação explanada na petição inicial parecendo olvidar, salvo melhor opinião, que os recursos se destinam a impugnar as decisões judiciais (artº 627º do CPC) e a “impugnação não se identifica com uma originária petição de Justiça como a demanda, sendo diversamente uma contestação concreta contra um ato de vontade jurisdicional que se considera errado”[2]; a argumentação recursiva como, aliás adequadamente, o R. anota na resposta ao recurso, não indica os fundamentos que justificam a alteração da decisão (artº 639º, nº 1, do CPC) centrando-se no inconformismo com a decisão, sem rebate de nenhum dos seus fundamentos, por forma a visar o ressarcimento de danos – choque e angústia com a invasão da sua privacidade – julgados não provados pela decisão recorrida (cfr. dos factos não provados), sem prévia impugnação da decisão de facto.
A ausência de contestação concreta dos fundamentos da decisão recorrida e o recurso a factos não provados justificativos da pretensão revogatória sempre constituiriam motivos da improcedência do recurso e o conhecimento deste podia quedar-se por esta simples constatação.
Prosseguindo, a Constituição da República Portuguesa reconhece os princípios da reserva da intimidade da vida privada e familiar e da inviolabilidade do domicílio e da correspondência nos preceitos respeitantes aos direitos, liberdades e garantias, com aplicação direta e vinculativa para as entidades públicas e privadas (artºs 26º, nº 1, 34º e 18º) e estabelece o princípio da responsabilidade das entidades públicas, por ações ou omissões praticadas pelos titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, no exercício das suas funções ou por causa delas, de que resulte violação dos direitos, liberdades ou garantias ou prejuízo para outrem (artº 22º).
O Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, aprovado pela Lei n.º 67/2007, de 31/12, concretiza no plano infraconstitucional o disposto no referido artigo 22.º da Constituição, estabelecendo, entre outros, o regime da responsabilidade por danos resultantes da função jurisdicional, prevendo designadamente o seguinte:
1- (…) o Estado é civilmente responsável pelos danos decorrentes de decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respetivos pressupostos de facto.
2 - O pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente” (artº 13º).
Independentemente da exegese que a previsão do nº 1 viesse a justificar, por forma a nele logramos incluir o concreto caso dos autos, o nº 2 comporta uma condição de formulação do pedido de indemnização contra o Estado, que se traduz na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente.
“ (…) há lugar a indemnização por erro judiciário que tenha sido praticado em decisão proferida por um tribunal de primeira instância, por um tribunal de segunda instância ou por um tribunal supremo, desde que a existência do erro judiciário tenha sido reconhecida em recurso por um tribunal hierárquica ou funcionalmente superior, em termos de ter determinado a revogação dessa decisão" (assim, v., uma vez mais, Carlos Fernandes Cadilha, Regime da Responsabilidade Civil..., cit., anot. 8 ao artigo 13.º, p. 274 e pp. 272-273”[3]
“Não se fundando o pedido indemnizatório na anterior revogação da decisão a que se imputa erro judiciário em geral, faltará (mais do que de um pressuposto processual específico) uma condição da ação de indemnização, pois que sem a prova da prévia revogação da decisão danosa não pode ter-se por verificada a ilicitude, o que determinará a improcedência da ação”.
“A necessidade de prévia revogação da decisão danosa – prevista agora no art. 13.º da Lei n.º 67/2007 – só se compadece com a via processual adequada para o efeito: o recurso”.[4]
E isto porque «[d]iferentemente de um órgão ou agente administrativo que faz aplicação de uma norma legal, um órgão judicial «diz o direito» – o «direito do caso» –, e a sua declaração é plenamente válida (…) se e enquanto não for revogada, em sede de recurso, por um tribunal superior. Por isso mesmo, se se compreende que um ato «definitivo» da Administração possa ser posto em causa por uma instância judiciária só para efeitos indemnizatórios, não obstante para a generalidade dos efeitos haver entretanto constituído «caso resolvido», compreende-se do mesmo modo que coisa idêntica não possa suceder com um ato judicial «consolidado». Quer dizer: compreende-se que este último – não havendo sido impugnado, ou, como quer que seja, apreciado pela competente instância de recurso – não possa vir a ser ulteriormente «desautorizado» por outro tribunal (porventura até de diferente espécie, ou pertencente a uma diversa ordem de jurisdição, ou inclusivamente da mesma espécie, mas de grau inferior) mesmo só para aqueles limitados efeitos.»[5]
Em conclusão, a prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente é condição de formulação do pedido de indemnização, por erro judiciário, contra o Estado e, assim, a ausência de revogação da decisão danosa tida como manifestamente ilegal ou injustificada por erro grosseiro na apreciação dos respetivos pressupostos de facto determina, só por si, a improcedência da ação.
No caso dos autos, a decisão tida por danosa admitia recurso (artºs 399º e 400º do Código de Processo Penal) e não tendo o A. obtido, por via deste, a prévia revogação da decisão alegadamente ilegal ou errada, a sua pretensão, por ausência da apontada condição, não merece proceder.
Havendo sido este o sentido da sentença recorrida resta confirmá-la, com a consequente improcedência do recurso.

2.2. Custas
Vencido no recurso, incumbe ao A. pagar as custas (artº 527º, nºs 1 e 2, do CPC).

IV. Dispositivo:
Delibera-se, pelo exposto, na improcedência do recurso, em confirmar a sentença recorrida.
Custas pelo Apelante.
Évora, 14/2/2019
Francisco Matos
José Tomé de Carvalho
Mário Branco Coelho (tem voto de conformidade; não assina por não estar presente – artº 153º, nº 1, do CPC).

__________________________________________________
[1] A ação foi remetida aos tribunais comuns, a requerimento do A., após o Tribunal Administrativo Fiscal de Leiria se haver declarado incompetente, em razão da matéria, para conhecer da causa.
[2] Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, pág. 71
[3] Ac. T. Constitucional nº 363/2015, de 9/7/2015, DR n.º 186/2015, Série II de 2015-09-23.
[4] Ac STJ de 23-10-2014, in www.dgsi.pt
[5] Ac. T. Constitucional nº 363/2015, de 9/7/2015, já citado.