Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1966/09.TBFAR.I.E1
Relator: MÁRIO SILVA
Descritores: INSOLVÊNCIA FORTUITA
DEVERES DOS ADMINISTRADORES
Data do Acordão: 09/26/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1. Sempre que um ponto da matéria de facto integre uma afirmação ou uma valoração de facto que se insira na análise das questões jurídicas que definem o objeto da ação, comportando uma resposta ou componente de resposta àquelas questões, deve o mesmo ser eliminado.
2. Assim, a intervenção desta Relação não se dá ao nível da (re)apreciação da prova, mas antes “na despistagem (identificação/qualificação/expurgação), nos pontos da matéria de facto em causa, das afirmações genéricas, conclusivas ou que comportem matéria de direito”, ao abrigo da previsão constante do n.º 4 do art.º 607.º do CPC, que não no âmbito do disposto nos artigos 640.º (impugnação da decisão relativa à matéria de facto feita pela parte/recorrente) ou 662.º (modificabilidade da decisão de facto) do CPC.
3. Por força do disposto no artigo 186º, nº 3, al. a), do CIRE, o incumprimento do dever de apresentação à insolvência dá origem a uma presunção (relativa ou juris tantum) de insolvência culposa, que abrange a culpa grave bem como o nexo de causalidade.
4. Com a declaração judicial de insolvência, o dever em causa não deixa de ser avaliado de acordo com os interesses da empresa. São estes interesses e não os interesses dos credores que, no âmbito do dever legal geral de cuidado, devem estar presentes na avaliação a efetuar ao comportamento do administrador no período que antecedeu a declaração judicial de insolvência, designadamente, no período de três anos que a antecedeu.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Tribunal da Relação de Évora - 2ª Secção Cível

Proc. nº 1966/09.TBFAR.I.E1




Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora

I. RELATÓRIO:

(…) – Sociedade de Construções, S.A., foi declarada insolvente por sentença proferida em 04.12.2009, transitada em julgado, na qual foi declarado aberto o incidente de qualificação da insolvência com carácter pleno.

O incidente de qualificação culposa da insolvência teve origem no requerimento apresentado pela sociedade (…), S.A., que requereu a qualificação da insolvência como culposa propondo que sejam por esta afetados (…), (…) e (…).

O Administrador da Insolvência veio apresentar o seu parecer e requereu a qualificação da insolvência como culposa, propondo que seja por esta afetado (…).

O Ministério Público emitiu parecer e requereu a qualificação da insolvência como culposa, propondo que sejam por esta afetados (…) e (…).

Foi ordenada a notificação da Insolvente e a citação dos indicados como propostos afetados pela qualificação da insolvência como culposa, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 188º, n.º 6, do CIRE. Os propostos afetados pela qualificação da insolvência como culposa deduziram oposição. Procedeu-se à realização de audiência prévia na qual foi proferido despacho saneador que se fixou o objeto do litígio e enunciaram-se os temas de prova.

Foi realizada audiência de julgamento.

Por sentença de 13.02.2019 foi proferida sentença que qualificou como fortuita a insolvência de (…) – Sociedade de Construções, S.A., pessoa coletiva n.º (…), com sede na Rua Francisco Sá Carneiro, nº 40, R/C direito, (…).

Inconformada com esta sentença, veio o Ministério Público interpor recurso, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

1. A sentença proferida no incidente de qualificação da insolvência considerou não estarem verificados os pressupostos para a qualificação da insolvência como culposa, por incumprimento do dever de apresentação à insolvência, estabelecidos no art.º 186º, n.º 1 e 3, als. a) e b), do CIRE, e, em consequência, declarou-se ser a insolvência da sociedade (…) –Sociedade de Construções, S.A, de natureza fortuita.

2. A Mma. Juiz fundamentou a sua convicção nos factos dados como provados, dos quais, em seu entender, não resulta prova qualquer prova de que os administradores da insolvente tivessem conhecimento da situação de insolvência da sociedade ou que estivesse ultrapassado o prazo para requerer a insolvência, não resultando também provado o nexo de casualidade entre a conduta omissiva do administrador da insolvente e a criação ou agravamento da situação de insolvência.

3. Discordamos desta decisão porque entendemos que o tribunal a quo não fez uma análise crítica da prova e não interpretou e aplicou corretamente o art.º 186º, n.º 1 e 3, al. a), do CIRE.

4. Dispunha o art.º 18º, n.º 1, do CIRE, na redação anterior à entrada em vigor da Lei n.º 16/2012, de 20 de 04, que o devedor deve requerer a declaração da sua insolvência dentro dos 60 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência.

5. O n.º 3 deste dispositivo legal estatui que “Quando o devedor seja titular de uma empresa, presume-se de forma inilidível o conhecimento da situação de insolvência decorridos pelo menos três meses sobre o incumprimento generalizado de obrigações de algum dos tipos referidos na alínea g) do n.º 1 do art.º 20º».

6. As obrigações aqui referidas cujo incumprimento dá origem à referida presunção inilidível são, nomeadamente, as obrigações tributárias, contribuições e quotizações para a Segurança Social e dívidas emergentes de contrato de trabalho.

7. O prazo de apresentação à insolvência conta-se do conhecimento da situação ou, sendo anterior, do momento em que o devedor a devia conhecer. Este dever de conhecimento tem de ser apreciado nos termos gerais, por referência ao devedor médio colocado na situação concreta do agente.

8. Para facilitar a prova do conhecimento, o n.º 3 do art.º 18º estabelece uma presunção inilidível do conhecimento da insolvência quando ocorra, há pelo menos três meses, o incumprimento generalizado de qualquer das obrigações referida na alínea g) do n.º 1 do art.º 20º.

9. Resulta dos pontos 16, 17, 18 e 19, nos presentes autos foram reclamados pela Autoridade Tributária créditos resultantes de impostos, juros e coimas, no montante total de € 662.057,76, sendo que € 619.983,01, foram constituídos mais de doze meses antes do início do processo de insolvência e pelo Instituto de Segurança Social foram reclamados créditos no montante total de € 174.717,02, sendo que € 107.911,58 foram constituídos mais de doze meses antes da data do início do processo de insolvência.

10. Verifica-se, pois, um claro incumprimento generalizado das contribuições para a Segurança Social e dos impostos devidos à Fazenda Nacional, situação de incumprimento que, relativamente à Fazenda Nacional, se arrastava desde 2000, e que se manteve durante o ano que antecedeu o processo de insolvência, ou seja, entre Agosto de 2008 e Agosto de 2009, durante o qual a sociedade (…) acumulou novas dívidas resultantes de contribuições e de impostos e coimas, ao Instituto de Segurança Social e à Fazenda Nacional, que ascenderam ao valor de € 108.880,19. 11. Presumir-se-á, assim, de forma inilidível, o conhecimento da situação de insolvência, se não antes, pelo menos três meses após o início dos doze meses que antecederam o processo de insolvência, ou seja, pelo menos desde Novembro de 2008, presumir-se-á de forma inilidível o conhecimento da situação de insolvência por parte dos seus administradores.

12. Ainda que estivéssemos perante uma presunção ilidível, basta olhar para os demais elementos de prova para perceber que nunca essa presunção poderia ser ilidida antes pelo contrário. 13. Não é credível que, esgotado o financiamento bancário, não conseguindo a sociedade efetuar os pagamentos mais imediatos, tendo entrado em incumprimento generalizado das obrigações vencidas e com um passivo de mais de vinte quatro milhões de euros, o administrador da sociedade pudesse pensar, como foi convicção do Tribunal, que ainda no ano de 2009 a mesma fosse recuperável, ou que pudesse acreditar, que ao fim de quase seis meses de negociações com a banca um financiamento de seiscentos mil euros iria resolver a situação da empresa.

14. Por isso, não podia o Tribunal concluir, como o fez, que o administrador da insolvente só tomou consciência que era o fim, em Agosto/Setembro de 2009, pois tal conclusão não encontra qualquer respaldo nos elementos constantes dos autos e, muito menos nos factos provados.

15. Ao contrário do decidido, considerando os factos provados e a presunção estabelecida no n.º 3 do art.º 18º do CIRE, entendemos que se verificam no caso sub judice os pressupostos do incumprimento do dever de apresentação à insolvência por parte do administrador de facto e de direito da devedora (…).

16. Quanto à prova do nexo causal entre a falta de apresentação à insolvência e a criação ou agravamento da insolvência, que segundo a sentença seria ainda necessária para qualificar a insolvência como culposa, aquela sentença não é clara, porque se fundamenta em convicções e não em factos objetivos de onde resulte a contração de novas dívidas com o consequente aumento do passivo e diminuição da capacidade da devedora de cumprir as suas obrigações.

17. E esses factos constam dos autos.

18. Com efeito, resulta dos factos provados que, reportando-se as dívidas da AT e ISS ao ano de 2008 e 2009 que os administradores da devedora terão permitido que tal dívida se avolumasse, tendo aumentado o passivo sem o correspondente ativo que permitisse o pagamento das dívidas, contribuindo para o agravamento da situação de insolvência.

19. Também no que se refere a este pressuposto da qualificação da insolvência como culposa, foi feita prova efetiva do nexo de causalidade entre o incumprimento do dever de apresentação à insolvência pelo administrador (…) e o agravamento da insolvência da devedora.

20. Ainda que se considerasse não existir prova efetiva daquele nexo de causalidade, tal prova não se torna necessária porque, tal como vem sendo defendido pela doutrina e jurisprudência, dispensa-se o lesado da prova do nexo causal entre os factos aí previsto e a criação ou agravamento da situação de insolvência e onera-se o devedor com o ónus de provar que, apesar de terem ocorrido, aqueles factos não criaram nem agravaram a situação de insolvência.

21. Assim, invertido o ónus da prova, seria ao administrador da insolvente que incumbiria a prova de que a não apresentação à insolvência não terá contribuído para o agravar da situação de insolvência.

22. Essa prova não se mostra feita nos autos, resultando sim que, entre Novembro de 2008 (data em que se presume ser conhecida a situação de insolvência) e o início do processo de insolvência, a sociedade constituiu várias dívidas, com o consequente aumento do passivo e diminuição da capacidade de cumprir as respetivas obrigações para com os credores.

23. Verificados nos presentes autos todos os pressupostos de facto e de direito da previsão da al. a) do n.º 3 do art.º 186º do CIRE, deverá qualificar-se a insolvência como culposa, abrangendo-se com essa qualificação o seu administrador da insolvente, João Manuel Vieira Correia, com as consequências legais previstas na lei.

Nestes termos, e pelos fundamentos aduzidos, entendemos que deverá conceder-se provimento ao presente recurso interposto, revogando-se a decisão recorrida e decidindo-se no sentido qualificação da insolvência da sociedade (…) como culposa, nos termos do disposto no art.º 186º, n.º 1 e 3, al a), do CIRE, declarando-se afetado por essa qualificação o administrador da insolvente, (…).

O Apelado (…) apresentou contra-alegações, com as seguintes conclusões:

1. Foi proferida sentença que qualificou como fortuita a insolvência da sociedade (…) – Sociedade de Construções, SA. Dessa decisão o Ministério Público apresenta o seu recurso, pedindo ainda a qualificação da insolvência da (…) como culposa, sendo nesse caso afetado o gerente (…). É entendimento do recorrido que a sentença proferida pelo Tribunal a quo não merece censura nem qualquer reparo.

2. O Ministério Público transcreve para as suas alegações apenas os factos que julga servirem os seus propósitos, ainda que com isso propositadamente omita o contexto em que tais factos estão inseridos e a verdade que resulta da sua globalidade.

3. O recurso apresentado pelo Digm. Magistrado do Ministério Público manifestamente não pretende a reapreciação da matéria de facto provada e não provada, porquanto claramente não foi dado cumprimento ao disposto no artigo 640.º do Código de Processo Civil. A matéria provada relevante e assente será, pois, a que o Tribunal a quo julgou.

4. Quanto ao direito, alega o Ministério Público que se deveria ter qualificado como culposa a insolvência da (…) por violação do artigo 186.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas: o seu número 1 e o número 3 do mesmo artigo, na alínea a).

5. Quanto à violação do artigo 186.º/1, não poderá ela ter ocorrido por não terem ficado provados factos de que resulte um comportamento doloso ou com culpa grave do recorrido.

6. As dificuldades de tesouraria que a sociedade insolvente vivenciou em finais de 2008 foram o resultado da conjuntura económica e financeira que afetou Portugal (e o mundo), em particular no Algarve, em particular na atividade da construção e imobiliário.

7. Sabe-se também que em Janeiro de 2009 a sociedade estava confrontada com a possibilidade de negociar com a banca uma forma de financiamento que lhe permitisse manter a atividades, concluir obras em curso, concretizar vendas e tentar a sua recuperação por essa forma.

8. A sociedade insolvente foi constituída em 1985, por iniciativa do seu fundador e ora recorrente, fruto do seu engenho, esforço e trabalho durante toda uma vida, sendo por isso compreensível o seu esforço na sua recuperação e a sua opção pela via que lhe permitiria manter a sociedade em funcionamento.

9. Acresce, para que se afaste qualquer comportamento doloso ou gravemente culposo, que o administrador ora recorrido, teve graves problemas de saúde, entre julho e setembro de 2008 (factos provados com os números 41 a 45 da sentença recorrida) que condicionaram a sua presença no quotidiano da sociedade.

10. Sugere ainda o recorrente Ministério Público que a insolvência da (…) deveria ser julgada como culposa por ter o proposto – e ora recorrido – incumprido o dever de apresentação à insolvência.

11. O que está provado nos autos, no entanto, é que as negociações para a obtenção de um financiamento junto da banca terminaram sem êxito apenas em agosto ou setembro de 2009, tendo sido apenas nesse momento que a insolvência da empresa se tornou na única solução.

12. O pedido de insolvência apresentado pelo credor (…), SA, no entanto, foi apresentado no Tribunal competente em 26 de agosto de 2009, tornando impossível (e inútil) que a própria o fizesse.

13. O mero curso do prazo legal para a voluntária apresentação à insolvência de todo o modo, não é o suficiente para automaticamente ser decretada a qualificação: teria que ficar demonstrado de que forma tal incumprimento teria conduzido ou agravado a situação de insolvência.

14. O único facto nesse sentido que parece alegar o Ministério Público é a circunstância de a dívida à Autoridade Tributária e Segurança Social ter aumentado em cerca de € 100.000,00 nos 12 meses que antecederam a declaração de insolvência da (…): tal conclusão, quanto a valores e período de referência, não tem fundamento em nenhum dos factos julgados provados pelo Tribunal recorrido.

15. Por cautela deve ainda apontar-se que o agravamento da situação da sociedade insolvente, para que fosse relevante para a qualificação como culposa, teria que ser de molde a tornar impossível ou muito mais difícil a recuperação dos créditos dos credores.

16. Não é o caso: o aumento de € 100.000,00 de dívida corresponderia a 0,4% do passivo da sociedade que, após a declaração de insolvência e por causa das resoluções dos contratos que tal originou, veio a ser reconhecido.

17. O Recorrente Ministério Público ainda se refere à alínea b) do número 3 do artigo 186.º na primeira das conclusões que apresenta, mas a verdade é que nada é dito quanto a essa previsão ao longo das alegações, nem, em rigor, em qualquer outra conclusão. Terá sido essa menção feita por lapso, supõe-se.

18. Ficou provado em qualquer caso que as contas da sociedade insolvente não foram apresentadas, mas não foi possível determinar a causa (facto provado 25), não estando demonstrado sequer o facto ilícito, nem, muito menos, algum dolo ou culpa do recorrido.

19. Finalmente, não ficou também provado nos autos que houvesse, em agosto de 2008, um incumprimento generalizado de obrigações: há uma diferença significativa entre a existência de dívidas e de incumprimento generalizado, não havendo incumprimento generalizado se as dívidas estão a ser pagas de acordo com o que vai sendo possível à entidade obrigada, se há acordos de pagamento em execução ou negociações para que haja.

V – DO PEDIDO. NESTES TERMOS, E NOS DEMAIS DE DIREITO APLICÁVEIS, DEVEM JULGAR-SE TOTALMENTE IMPROCEDENTES AS ALEGAÇÕES DE RECURSO A QUE SE RESPONDE, MANTENDO-SE INTEGRALMENTE A DOUTA SENTENÇA PROFERIDA, QUALIFICANDO-SE A INSOLVÊNCIA DA SOCIEDADE (…) – SOCIEDADE DE CONSTRUÇÕES, SA COMO FORTUITA.

Este recurso foi admitido como sendo de apelação com subida nos autos e com efeito devolutivo. Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II. OBJETO DO RECURSO:

Nos termos dos artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC é pelas conclusões das alegações do recorrente que se define o objeto e se delimita o âmbito do recurso, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

Nestes termos, as questões a decidir são duas:

-Eliminação por este Tribunal de pontos da matéria de facto ao abrigo do disposto no nº 4 do artigo 607º do CPC;

-Qualificação da insolvência como culposa por força do preenchimento da alínea a) do nº 3 do artigo 186º CIRE, abrangendo-se com essa qualificação o apelado (…).

III- FUNDAMENTOS DE FACTO:

Na 1ª instância foi fixada a matéria de facto da seguinte forma:

A. Factos provados:

1. (…) – Sociedade de Construções, S.A., pessoa coletiva n.º (…), com sede na Rua Francisco Sá Carneiro, nº 40, R/C direito, (…), foi declarada insolvente por sentença proferida em 04.12.2009, transitada em julgado.

2. A declaração de insolvência foi requerida pela sociedade (…), S.A., em 26.08.2009, relativamente à qual a insolvente possuía dívida superior a € 140.000,00.

3. Mostra-se registada pela AP. 14/19850704 a nomeação de (…) como gerente da Insolvente (…) – Sociedade de Construções, Lda.

4. Mostra-se registada pela AP. … /19850704 a nomeação de (…) como gerente da Insolvente (…) – Sociedade de Construções, Lda.

5. Mostra-se registada pela AP. … /20060726 um aumento do capital social e alteração do contrato de sociedade, sendo o aumento do capital social no valor de € 1.000.000,00, passando a quota de (…) a ter o valor de € 1.250.000,00 e passando (…) e (…) a ser titulares, em partes iguais, de uma quota no valor de € 10.000,00.

6. Mostra-se registada pela AP. … /20070130 a transformação da Insolvente (…) – Sociedade de Construções, Lda. em sociedade anónima passando a adotar a firma “(…) – Sociedade de Construções, S.A.”

7. Mostra-se registada pela AP. … /20070213 a nomeação de (…) como membro do Conselho de Administração da Insolvente (…) – Sociedade de Construções, S.A.

8. Mostra-se registada pela AP. … /20070213 a nomeação de (…) como membro do Conselho de Administração da Insolvente (…) – Sociedade de Construções, S.A.

9. Mostra-se registada pela AP. … /20080728 a cessação de funções de (…) como membro do Conselho de Administração da Insolvente (…) – Sociedade de Construções, S.A., por destituição.

10. Mostra-se registada pela AP. … /20080820 a nomeação de (…) como membro do Conselho de Administração da Insolvente (…) – Sociedade de Construções, S.A.

11. Mostra-se registada pela AP. … /20080820 a cessação de funções de (…) como membro do Conselho de Administração da Insolvente (…) – Sociedade de Construções, S.A., por renúncia.

12. Mostra-se registada pela AP. … /20090120 a cessação de funções de (…) como membro do Conselho de Administração da Insolvente (…) – Sociedade de Construções, S.A., por renúncia.

13. Mostra-se registada pela AP. … /20080618 a nomeação de (…) como membro do Conselho de Administração da Insolvente (…) – Sociedade de Construções, S.A.

14. Mostra-se registada pela AP. … /20090120 a nomeação de (…) como membro do Conselho de Administração da Insolvente (…) – Sociedade de Construções, S.A.

15. A Insolvente tinha por objeto social a indústria de construção civil, atividades imobiliárias, compra de prédios para revenda, execução de empreitadas de obras públicas e particulares e comércio de materiais de construção.

16. Da lista de créditos – junta ao apenso de reclamação de créditos – consta que o Instituto da Segurança Social tinha créditos perante a Insolvente (…) – Sociedade de Construções, S.A. no montante global de € 197.717,02, sendo o valor de € 174.798,55 relativo a contribuições relativas ao período de Abril de 2008 a Novembro de 2009, e o remanescente relativo a juros.

17. Da lista de créditos – junta ao apenso de reclamação de créditos – consta que o Serviço de Finanças de Cascais – 2º tinha créditos perante a Insolvente (…) – Sociedade de Construções, S.A. no montante global de € 662.057,76, sendo o valor de € 60.344,37 relativo a coimas fiscais, o valor de € 99,84 relativo a juros de mora, o valor de 350.263,17 euros relativo a IRC dos anos de 2000, 2001, 2001 e 2007, o valor de € 23.467,10 relativo a juros de mora, o valor de € 111.884,66 relativo a IRS do ano de 2008 e 2009, o valor de € 17.779,42 relativo a juros de mora, o valor de € 32.461,33 relativo a IMI dos anos de 2006 a 2008, o valor de € 4.774,04 relativo a juros de mora, o valor de 38.803,72 euros relativo a IVA dos anos de 2001 a 2005 e 2008, o valor de € 7.806,47 relativo a juros de mora, sendo o remanescente do valor relativo a imposto de selo, juros e custas.

18. Em 2008 foram instaurados processos executivos contra a insolvente.

19. Em meados de 2008 a insolvente já tinha dívidas com as entidades bancárias, Autoridade Tributária e Aduaneira, Segurança Social, fornecedores, passando a haver alguns atrasos na entrega dos salários dos trabalhadores.

20. À data da declaração da insolvência, o total das dívidas da Insolvente (…) – Sociedade de Construções, S.A. era no montante de € 24.190.152,00.

21. Em 14 de Janeiro de 2009 foi realizada uma reunião entre a Administração da sociedade (…) – Sociedade de Construções, S.A. e o ROC a fim de ser convocada uma Assembleia Geral com vista a tomar uma decisão que poderia passar por requerer a insolvência ou tomar medidas para recuperar a sociedade, tal como obter financiamento junto de um banco.

22. Em 17 de Janeiro de 2009 foi realizada uma Assembleia Geral da sociedade (…) – Sociedade de Construções, S.A. (Ata nº 52) na qual se deliberou por unanimidade “(…) atendendo à atual situação económica da sociedade não se justifica a sua apresentação à insolvência.(…)”.

23. Consta ainda da Ata nº 52 “(…) foi igualmente dito por (…) que, por razões que se prendem com a manutenção e continuidade das negociações junto das entidades bancárias e referentes aos programas de cumprimento das obrigações assumidas perante estas entidades, seria de todo conveniente, que a sociedade emitisse uma procuração a favor de (…), na qual esta dispusesse dos poderes adequados a vincular a sociedade, conjuntamente com a Administração da sociedade, junto da banca. Perante esta sugestão, foi pelos presentes acordado em diligenciar, junto dos legais representantes da sociedade, no sentido de proceder à outorga da procuração supra referida (…)”.

24. A (…) possuía um TOC responsável pela certificação das contas e respetiva submissão à fiscalização que se demitiu em Dezembro de 2009 e um contabilista certificado responsável pela elaboração das contas.

25. As contas de 2008 não foram apresentadas por razões não concretamente apuradas.

26. Em 2008 a (…) estava a construir, havia obras a iniciar, outras a decorrer e outras a concluir.

27. O Administrador da insolvência refere no relatório elaborado nos termos do 155º do CIRE que a sociedade (…) “(…) está integrada no denominado Grupo (…) – SGPS, S.A., que detém 100% do capital”.

28. A conjuntura económica do País e a crise, que desde há alguns anos afeta o sector da construção civil, acabaram por influenciar, também, a situação de insolvência da (…).

29. A crise financeira mundial na sequência do crédito subprime, resultou numa desvalorização generalizada dos ativos patrimoniais imobiliários, que afetou a valorização do património imobiliário detido pelo FII.

30. Segundo relatório apresentado pela (…) – SGFII, S.A. o valor líquido que o FII apresentava em Abril de 2009 cifrava-se em € 13.617.095,18.

31. Em virtude da falta de pagamento das prestações bancárias pendentes, reservou-se a entidade bancária o direito de rescindir unilateralmente o acordo denominado “contrato de mútuo”, com a cominação de que se encontrariam vencidas todas as obrigações daí advenientes, e vencer-se-iam todas as prestações futuras.

32. Paralelamente, os valores recebidos no âmbito dos acordos denominados “contratos-promessa” entretanto celebrados (com os adquirentes das frações em construção) já se encontravam cativos e a reverter para as referidas entidades bancárias.

33. Verificando, esta situação de sufoco financeiro, encetaram os Administradores da … (e do GRUPO), novas negociações junto do Banco (…) a partir de Julho de 2008.

34. As negociações com o Banco (…) para obter o financiamento de € 600.000,00 decorreram durante o período de cerca de um ano.

35. Durante o período de negociação foram elaboradas as minutas do acordo denominado “contrato de mútuo com hipoteca” sobre bens imóveis detidos pelo FII que permitiriam ao GRUPO a liquidez necessária para solver as suas obrigações contraídas e, mormente, concluir as empreitadas em curso.

36. Os bens imóveis em questão são 3 lotes para construção sitos no concelho de (…), Freguesia da (…), cujo valor total atribuído se cifrava, à data das negociações, em € 3.000,000,00.

37. No âmbito dessas mesmas negociações, reuniram-se meados de Janeiro de 2009, no escritório dos Mandatários do credor Banco (…), sita na Rua (…), em Lisboa, os representantes dessa entidade, nomeadamente o Senhor Dr. (…), e da Administração do GRUPO, designadamente a Exma. Sra. Arq.ª (…) e o requerido (…).

38. Foi neste contexto que reuniu, também, extraordinariamente em 17 de Janeiro de 2009 a Assembleia-geral a (…).

39. Não tendo sido obtido financiamento junto do Banco (…) a administração da insolvente tentou obter financiamento junto do (…), sem êxito, tendo-se prolongado as negociações até Agosto/Setembro de 2009, e foi a partir desse momento que (…) tomou consciência que não havia solução para a (…) e para o Grupo.

40. Pelo menos desde o final de 2008, a insolvente já se encontrava em situação de insolvência.

41. No dia de 4 de Julho de 2008 o requerido (…) sofreu um acidente vascular cerebral.

42. No dia 23 de Julho de 2008 o requerido (…) foi sujeito a uma intervenção cirúrgica.

43. No dia 27 de Agosto de 2008 o requerido (…) foi sujeito a nova intervenção cirúrgica, que consistiu na aplicação de um By-Pass coronário, que visou controlar a cardiopatia isquémica através de angioplastia coronária.

44. Devido aos problemas de saúde do engenheiro (…), a Arq.ª (…) substituiu-o na administração da (…), com os poderes necessários para conduzir os destinos das negociações em curso com as entidades bancárias, sempre sob as instruções do pai (…).

45. Para além dos problemas de saúde supra referidos, o engenheiro (…) atenta a iminente decadência financeira do GRUPO que demorou uma vida inteira a erigir enquanto fruto direto do seu trabalho, entrou num estado geral de perturbações depressivas, que o impediam de prestar um efetivo, contínuo e competente acompanhamento à atividade e gestão das empresas que integravam o GRUPO, nomeadamente a Insolvente.

46. (...) nunca exerceu a gerência de facto da sociedade, que sempre foi exercida em exclusividade, pelo Engenheiro (…).

47. Era o Engenheiro (…) quem detinha o know how, o capital, a experiência, a credibilidade, o tempo e o entusiasmo necessários para se dedicar ao objeto da sociedade.

48. (…) é, e sempre foi, dona de casa, nada sabendo do que se passava na empresa, para além do que o marido entendia dizer-lhe.

49. Em 2007, o Engenheiro (…) decidiu transformar a (…), Lda., em sociedade anónima.

50. (…) é arquiteta e, à data, dirigia o atelier de arquitetura de sua propriedade denominado “ATELIER (…) – Arquitetura e Urbanismo, Lda.”.

51. Este atelier, que rapidamente cresceu, granjeou fama e passou a ombrear com conhecidos gabinetes de arquitetura em diversos concursos públicos para projetos urbanísticos, graças à competência desta.

52. Retirava a esta qualquer disponibilidade para se dedicar às empresas do pai.

53. Por esse facto, por razões familiares e pela divergência de opiniões com o pai, (…) renunciou ao cargo de administradora da insolvente volvidos menos de dois anos, em Janeiro de 2009.

54. Todas as decisões referentes à sociedade Insolvente foram sempre, e desde a sua constituição, tomadas pelo seu Administrador, (…).

55. Tanto a decisão de constituição da sociedade, como todas as alterações estatutárias a esta referentes: distribuição do capital pelos sócios, transformação em sociedade anónima, aumentos de capital, alteração de sede, alteração da composição da gerência e do conselho de administração, todas devidamente tituladas pela certidão de registo comercial respeitante à sociedade e já junta aos autos, foram tomadas apenas e exclusivamente pela sua pessoa.

56. Assim, como todas as decisões referentes à gestão diária e corrente da dita sociedade.

57. (…) tinha poderes estatutários para agir sozinho, e era isso mesmo que acontecia.

58. Os sócios – mulher e filhos – por sua vez confiavam neste, pelo que assinavam os documentos que o seu marido e pai lhes dava para assinar, entre os quais as atas da sociedade insolvente, e outros atos nos quais a sua assinatura fosse considerada necessária.

59. Porém, em Abril de 2008, tomaram as requeridas conhecimento que o Banco (…) – grande apoio comercial da empresa – cessou de financiar a sociedade Insolvente.

60. Informação essa que lhes foi facultada pelo próprio administrador (…).

61. Só nessa altura tomaram conhecimento de que a sociedade insolvente estava numa situação financeira muito difícil.

62. Fruto da crise que, nessa data, já assolava o sector da construção civil, com a consequente diminuição da procura, dificuldades de tesouraria, consequente dificuldade em cumprir os compromissos financeiros com a Banca e os fornecedores.

63. No Relatório da (…) consta que o administrador (…) fez movimentos na conta titulada pela sociedade (…) – Sociedade de Construções, S.A.

B- E foram considerados Factos não Provados:

1) Que no final do ano de 2008, a insolvente já entrara em descalabro económico e financeiro total, tendo sido ponderado pela administração a apresentação à insolvência, o que não veio a suceder por oposição do administrador (…).

2) Desde o início de 2008, até à data em que o credor requereu a insolvência, a situação da devedora agravou-se substancialmente.

3) A violação do dever de apresentação à insolvência veio agravar a situação de insolvência da devedora.

4) A falta de elaboração das contas a partir de 2008, a não fiscalização das mesmas e a omissão do respetivo depósito na conservatória, impediu que fosse clara a situação real da empresa, quer para os administradores quer para os credores, o que contribuiu para a diminuição da capacidade da sociedade para o cumprimento pontual das suas obrigações.

5) O engenheiro (…) esteve, impossibilitado, pelo menos até meados de 2010, de prestar um efetivo e devido acompanhamento à gestão e atividade da Insolvente.

IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO:

a) Eliminação por este Tribunal de pontos da matéria de facto ao abrigo do n.º 4 do artigo 607º do CPC.

Começa por dizer-se que na decisão sobre a matéria de facto apenas devem constar os factos provados e os factos não provados, com exclusão de afirmações genéricas, conclusivas e que comportem matéria de direito.

Na verdade, dispõe o art.º 607.º, n.º 4, do CPC, “Na fundamentação (da sentença) o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados (…)” – os factos, repete-se, que não conclusões, generalidades ou matéria de direito” .

Assim, a decisão sobre a matéria de facto deve estar expurgada de afirmações genéricas, conclusivas ou que comportem matéria de direito.

Assim sempre que um ponto da matéria de facto integre uma afirmação ou valoração de factos que se insira na análise das questões jurídicas que definem o objeto da ação, comportando uma resposta, ou componente de resposta àquelas questões, o mesmo deve ser eliminado.

Impõe-se, deste modo, uma apreciação da matéria de facto fixada sob esta perspetiva, não se podendo incluir na mesma a valoração jurídica de factos, mas apenas as circunstâncias de vida subjacentes a essas valorações que as possam vir a sustentar, na apreciação jurídica que sobre as mesmas venha a ser realizada, integrando, já estas, matéria de direito.

Partindo desta afirmação de princípio, afigura-se-nos ser manifesto que o consta do ponto 40 do quadro fáctico provado e dos pontos 1 “a insolvente já entrara em descalabro económico e financeiro total), 2 e 3 do quadro fáctico não provado tem um carácter manifestamente conclusivo.

Com efeito, o conteúdo de tais pontos encerra, mais do que afirmações factuais, factos ou juízos de facto, asserções conclusivas/valorativas incidentes sobre questões do litígio, estando em causa expressões que não configurando, em si mesmas, factos materiais, se reconduzem à formulação de juízos conclusivos que antes se deveriam extrair dos factos materiais que os suportam e que se integram no thema decidendum.

Assim, a intervenção desta Relação não se dá ao nível da (re)apreciação da prova, mas antes “na despistagem (identificação/qualificação/expurgação), nos pontos da matéria de facto em causa, das afirmações genéricas, conclusivas ou que comportem matéria de direito”, ao abrigo da previsão constante do n.º 4 do art.º 607.º do CPC, que não no âmbito do disposto nos artigos 640.º (impugnação da decisão relativa à matéria de facto feita pela parte/recorrente) ou 662.º (modificabilidade da decisão de facto) do CPC Ac. Do TRE de 28.06.2018,

Pelo exposto, eliminam-se os pontos 40 da matéria de facto provada e os pontos 1 “a insolvente já entrara em descalabro económico e financeiro total), 2 e 3 da matéria de facto não provada.

b) Qualificação da insolvência como culposa por força do preenchimento da alínea a) do nº 3 do artigo 186º CIRE, abrangendo com essa qualificação o apelado (…).

A juíza a quo concluiu pela qualificação da insolvência como fortuita, por considerar que não se encontra preenchida a previsão das alíneas a) e b) do nº 3 e nº 1 do artigo 186º do CIRE, argumentando que é verdade que desde 2008 a 2009 decorreram negociações com a banca a fim de obter um financiamento para obter liquidez a fim de conseguir pagar aos credores, incluindo à requerente da insolvência.

Segundo o Apelante, o tribunal não fez uma análise crítica da prova e não interpretou convenientemente o artigo 186º, nº 1 e 3, al. a) do CIRE, pois não podia concluir como o fez que o administrador da insolvente só tomou consciência que era o fim, em Agosto/Setembro de 2009, pois tal conclusão não encontra qualquer respaldo nos elementos constantes dos autos, e muito menos nos factos provados.

Vejamos:

Uma primeira nota que nos apraz dizer é que contrariamente ao sustentado pelo Apelante, não estamos perante uma conclusão do Tribunal a quo, mas sim perante factualidade que consta dos factos provados sob o nº 41, pelo que não concordando com a mesma, deveria a Apelante ter impugnado tal matéria. Não o tendo feito, a mesma considera-se definitivamente assente, pelo que será considerar na decisão a proferir.

Uma segunda nota tem a ver com o CIRE aplicável aos presentes autos que é o da redação anterior à entrada em vigor da Lei nº 16/2012, de 20.4 (o que não é objeto de discussão).

O objetivo do regime de qualificação da insolvência é o de apurar se a insolvência é fortuita ou culposa (cf. Artigo 185º do CIRE). Será culposa quando a situação de insolvência ter sido criada ou agravada em consequência da atuação dolosa ou com culpa grave do devedor ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência (cf. Artigo 186º, nº 1, do CIRE). Será fortuita nos restantes casos.

O regime da qualificação da insolvência compõe-se ainda de um conjunto de presunções (inilidíveis ou ilidíveis), que facilitam a qualificação como culposa da insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular sempre que os seus administradores, tanto de direito como de facto, tenham adotado um dos comportamentos aí descritos (cf. Artigo 186º, nºs 2 e 3, do CIRE).

Chegados aqui, importa reconhecer que o alcance da presunção consagrada na al. a) do nº 3 do artigo 186º do CIRE é uma questão controvertida que tem originado posições divergentes no seio tanto da doutrina como da jurisprudência e, portanto, importa tomar uma posição.

Dispõe o artigo 186º, nº 3, alínea a) que “presume-se a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido o dever de requerer a declaração de insolvência”.

E nos termos do artigo 18º do CIRE, “O devedor deve requerer a declaração da sua insolvência dentro dos 60 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência, tal como descrita no n.º 1 do artigo 3.º, ou à data em que devesse conhecê-la”.

Segundo o artigo 3º, nº 1 “É considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas”.

As teses em confronto são essencialmente duas: uma que reduz as presunções (iuris tantum) do artigo 186º, nº 3 do CIRE à culpa grave e outra que estende todos os requisitos da insolvência culposa, enunciados na cláusula geral do artigo 186º, nº 1 do CIRE, designadamente, a culpa grave o nexo de causalidade.

Na interposição de recurso, sustenta o Recorrente a segunda tese, enquanto a sentença recorrida aderiu à primeira tese.

Quanto ao disposto no nº 3 do artigo 186º do CIRE, em qualquer das suas alíneas, entendemos que estamos perante autênticas presunções (sempre relativas de culpa grave na criação do agravamento da insolvência (ou presunções de insolvência culposa), como vem defendendo parte da doutrina.

Segundo esta interpretação, que se nos afigura como a mais correta da norma do artigo 186º, nº 3, do CIRE, na hipótese (como a do caso) de incumprimento do dever de apresentação à insolvência, caberá aos interessados no afastamento da qualificação da insolvência como culposa (no caso, o recorrido) provar a ausência dos requisitos da insolvência culposa exigidos pela norma do artigo 186º, nº 1, do CIRE, sendo suficiente a prova da ausência de qualquer um deles (por exemplo, a culpa grave) para que a insolvência tenha de ser qualificada como fortuita.

Sobre a apreciação do conceito de culpa grave, concordamos com Rui Estrela de Oliveira que sustenta que o juiz do incidente de qualificação deve atender à doutrina do n.º 2 do artigo 72.º do Código das Sociedades Comerciais na apreciação do conceito de culpa grave pressuposto na noção de insolvência culposa do artigo 186.º, n.º 1, do CIRE. E isto por razões que se prendem com a unidade do sistema jurídico e com o princípio da uniformidade e coerência de julgados.

Estabelece o artigo 72º, nº 2, do CSC que “A responsabilidade é excluída se alguma das pessoas referidas no número anterior provar que atuou em termos informados, livre de qualquer interesse pessoal e segundo critérios de racionalidade empresarial”.

Com a declaração judicial de insolvência, o dever em causa não deixa de ser avaliado de acordo com os interesses da empresa. São estes interesses e não os interesses dos credores que, no âmbito do dever legal geral de cuidado, devem estar presentes na avaliação a efetuar ao comportamento do administrador no período que antecedeu a declaração judicial de insolvência, designadamente, no período de três anos que a antecedeu — cf. artigo 186.º, n.º 1, do CIRE. A conjugação do disposto no artigo 64.º, n.º 1, alínea a), do Código das Sociedades Comerciais, com o regime do CIRE, não nos permite distinta interpretação.

Com relevância para a decisão da questão em apreço, importa trazer à colação os seguintes factos dados como provados pela 1ª instância (e que não foram postos em causa neste recurso):

-Da lista de créditos – junta ao apenso de reclamação de créditos – consta que o Instituto da Segurança Social tinha créditos perante a Insolvente (…) – Sociedade de Construções, S.A. no montante global de € 197.717,02, sendo o valor de € 174.798,55 relativo a contribuições relativas ao período de Abril de 2008 a Novembro de 2009, e o remanescente relativo a juros (ponto 16);

-Da lista de créditos – junta ao apenso de reclamação de créditos – consta que o Serviço de Finanças de Cascais – 2º tinha créditos perante a Insolvente (…) – Sociedade de Construções, S.A. no montante global de € 662.057,76, sendo o valor de € 60.344,37 euros relativo a coimas fiscais, o valor de € 99,84 relativo a juros de mora, o valor de € 350.263,17 relativo a IRC dos anos de 2000, 2001, 2001 e 2007, o valor de € 23.467,10 relativo a juros de mora, o valor de € 111.884,66 relativo a IRS do ano de 2008 e 2009, o valor de € 17.779,42 relativo a juros de mora, o valor de € 32.461,33 relativo a IMI dos anos de 2006 a 2008, o valor de € 4.774,04 relativo a juros de mora, o valor de € 38.803,72 relativo a IVA dos anos de 2001 a 2005 e 2008, o valor de € 7.806, 47 relativo a juros de mora, sendo o remanescente do valor relativo a imposto de selo, juros e custas (ponto 17);

-Em 2008 foram instaurados processos executivos contra a insolvente (ponto 18);

-Em meados de 2008, a insolvente já tinha dívidas com as entidades bancárias, Autoridade Tributária e Aduaneira, Segurança Social, fornecedores, passando a haver alguns atrasos na entrega dos salários dos trabalhadores (ponto 19);

-A declaração de insolvência foi requerida pela sociedade (…), S.A. em 26.08.2009, relativamente à qual a insolvente possuía dívida superior a 140.000,00 euros (ponto 2);

-A (…) – Sociedade de Construções, S.A. foi declarada insolvente por sentença proferida em 4.12.2019, transitada em julgado (ponto 1);

-À data da declaração da insolvência, o total das dívidas da Insolvente (…) – Sociedade de Construções, S.A. era no montante de 24.190.152,00 euros (ponto 20);

-Em 14 de Janeiro de 2009 foi realizada uma reunião entre a Administração da sociedade (…) – Sociedade de Construções, S.A. e o ROC a fim de ser convocada uma Assembleia Geral com vista a tomar uma decisão que poderia passar por requerer a insolvência ou tomar medidas para recuperar a sociedade, tal como obter financiamento junto de um banco (ponto 21);

-Em 17 de Janeiro de 2009 foi realizada uma Assembleia Geral da sociedade (…) – Sociedade de Construções, S.A. (Ata nº 52) na qual se deliberou por unanimidade “(…) atendendo à atual situação económica da sociedade não se justifica a sua apresentação à insolvência (…)” (ponto 22);

-Consta ainda da Ata nº 52 “(…) foi igualmente dito por (…) que, por razões que se prendem com a manutenção e continuidade das negociações junto das entidades bancárias e referentes aos programas de cumprimento das obrigações assumidas perante estas entidades, seria de todo conveniente, que a sociedade emitisse uma procuração a favor de (…), na qual esta dispusesse dos poderes adequados a vincular a sociedade, conjuntamente com a Administração da sociedade, junto da banca. Perante esta sugestão, foi pelos presentes acordado em diligenciar, junto dos legais representantes da sociedade, no sentido de proceder à outorga da procuração supra referida (…)” (ponto 23);

- A (…) possuía um TOC responsável pela certificação das contas e respetiva submissão à fiscalização que se demitiu em Dezembro de 2009 e um contabilista certificado responsável pela elaboração das contas (ponto 24);

-As contas de 2008 não foram apresentadas por razões não concretamente apuradas (ponto 25);

-Em 2008 a (…) estava a construir, havia obras a iniciar, outras a decorrer e outras a concluir (ponto 26);

-A crise financeira mundial na sequência do crédito subprime, resultou numa desvalorização generalizada dos ativos patrimoniais imobiliários, que afetou a valorização do património imobiliário detido pelo FII (ponto 29);

-Segundo relatório apresentado pela (…) – SGFII, S.A. o valor líquido que o FII apresentava em Abril de 2009 cifrava-se em € 13.617.095,18 (ponto 30);

- Em virtude da falta de pagamento das prestações bancárias pendentes, reservou-se a entidade bancária o direito de rescindir unilateralmente o acordo denominado “contrato de mútuo”, com a cominação de que se encontrariam vencidas todas as obrigações daí advenientes, e vencer-se-iam todas as prestações futuras (ponto 31);

-Paralelamente, os valores recebidos no âmbito dos acordos denominados “contratos-promessa” entretanto celebrados (com os adquirentes das frações em construção) já se encontravam cativos e a reverter para as referidas entidades bancárias (ponto 32);

-Verificando, esta situação de sufoco financeiro, encetaram os Administradores da … (e do GRUPO), novas negociações junto do Banco (…) a partir de Julho de 2008 (ponto 33);

-As negociações com o Banco (…) para obter o financiamento de € 600.000,00 decorreram durante o período de cerca de um ano (ponto 34);

Durante o período de negociação foram elaboradas as minutas do acordo denominado “contrato de mútuo com hipoteca” sobre bens imóveis detidos pelo FII que permitiriam ao GRUPO a liquidez necessária para solver as suas obrigações contraídas e, mormente, concluir as empreitadas em curso (ponto 35);

-Os bens imóveis em questão são 3 lotes para construção sitos no concelho de (…), Freguesia da (…), cujo valor total atribuído se cifrava, à data das negociações, em € 3.000,000,00 (ponto 36);

-No âmbito dessas mesmas negociações, reuniram-se meados de Janeiro de 2009, no escritório dos Mandatários do credor Banco (…), sita na Rua (…), em Lisboa, os representantes dessa entidade, nomeadamente o Senhor Dr. (…), e da Administração do GRUPO, designadamente a Exma. Sra. Arq.ª (…) e o requerido … (ponto 37);

-Foi neste contexto que reuniu, também, extraordinariamente em 17 de Janeiro de 2009 a Assembleia-geral a … (ponto 38);

-Não tendo sido obtido financiamento junto do Banco (…) a administração da insolvente tentou obter financiamento junto do (…), sem êxito, tendo-se prolongado as negociações até Agosto/Setembro de 2009, e foi a partir desse momento que (...) tomou consciência que não havia solução para a (…) e para o Grupo (ponto 39);

-No dia de 4 de Julho de 2008, o requerido (…) sofreu um acidente vascular cerebral (ponto 41);

-No dia 23 de Julho de 2008 o requerido (…) foi sujeito a uma intervenção cirúrgica (ponto 42);

-No dia 27 de Agosto de 2008 o requerido (…) foi sujeito a nova intervenção cirúrgica, que consistiu na aplicação de um By-Pass coronário, que visou controlar a cardiopatia isquémica através de angioplastia coronária (ponto 43);

-Devido aos problemas de saúde do engenheiro (...), a Arq.ª (…) substituiu-o na administração da (…), com os poderes necessários para conduzir os destinos das negociações em curso com as entidades bancárias, sempre sob as instruções do pai … (ponto 44);

-Para além dos problemas de saúde supra referidos, o engenheiro (…) atenta a iminente decadência financeira do GRUPO que demorou uma vida inteira a erigir enquanto fruto direto do seu trabalho, entrou num estado geral de perturbações depressivas, que o impediam de prestar um efetivo, contínuo e competente acompanhamento à atividade e gestão das empresas que integravam o GRUPO, nomeadamente a Insolvente (ponto 45);

-(…) é arquiteta e, à data, dirigia o atelier de arquitetura de sua propriedade denominado “ATELIER (…) – Arquitetura e Urbanismo, Lda.” (ponto 50);

-Este atelier, que rapidamente cresceu, granjeou fama e passou a ombrear com conhecidos gabinetes de arquitetura em diversos concursos públicos para projetos urbanísticos, graças à competência desta (ponto 51);

-Retirava a esta qualquer disponibilidade para se dedicar às empresas do pai (ponto 52);

-Por esse facto, por razões familiares e pela divergência de opiniões com o pai, (…) renunciou ao cargo de administradora da insolvente volvidos menos de dois anos, em Janeiro de 2009 (ponto 53);

-Todas as decisões referentes à sociedade Insolvente foram sempre, e desde a sua constituição, tomadas pelo seu Administrador, … (ponto 54).

Em face desta factualidade, entendemos, tal como a sentença recorrida, que a insolvência da sociedade (…) – Sociedade de Construções, S.A deve ser qualificada como fortuita. Na verdade, tendo sido dado como provado que “não tendo sido obtido financiamento junto do Banco (…) a administração da insolvente tentou obter financiamento junto do (…), sem êxito, tendo-se prolongado as negociações até Agosto/Setembro de 2009 e foi a partir desse momento que (…) tomou consciência de que não havia solução para a (…) e para o Grupo (ponto 39)” e de que “a declaração de insolvência foi requerida pela sociedade (…), SA, em 26.08.2019” (ponto 2), não é possível concluir que houve violação do dever de apresentação à insolvência no prazo de 60 dias (cf. Artigos 186º, nº 3, al. a) e 18º do CIRE).

Acresce que analisando os factos 21, 22, 26, 28, 29, 30, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 39, 41, 42, 43, 44, 50, 51, 52 e 53, permite-nos concluir que o Recorrido logrou provar a ausência de culpa grave.

Em suma, improcede a apelação.

Sumário:

(…)

V. DECISÃO:

Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.

Sem custas.

Évora, 26 de Setembro de 2019

Mário Rodrigues da Silva

José Manuel Barata

Conceição Ferreira

***
Eliminado por decisão deste Tribunal.

Eliminado por decisão deste tribunal.

Eliminado por decisão deste Tribunal.

Eliminado por decisão deste Tribunal.

Ac. do TRC de 20.11.2014, Proc. nº 306/12.6TTCVL.C1, www.dgsi.pt.

Ac. do STJ de 29.04.2015, Proc. n.º 306/12.6TTCVL.C1.S1 , www.dgsi-pt.

Ac. Do TRE de 28.06.2018, Proc. nº 170/16.6T8MMN.E1, www.dgsi.pt.

Cfr. por exemplo, Catarina Serra, “'Decoctor ergo fraudator'? – A insolvência culposa (esclarecimentos sobre um conceito a propósito de umas presunções) – Anotação ao Ac. do TRP de 7.1.2008, Proc. 4886/07”, cit., pp. 66 e s., Manuel Carneiro da Frada, “A responsabilidade dos administradores na insolvência”, in: Revista da Ordem dos Advogados, 2006, vol. 66 p. 692, Nuno Manuel Pinto Oliveira, Responsabilidade civil dos administradores, pp. 204 e s., e Ana Prata / Jorge Morais Carvalho / Rui Simões, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Almedina, Coimbra, 2013, p. 512. Para uma exposição desenvolvida, cf. Nuno Manuel Pinto Oliveira, “Responsabilidade civil dos administradores por violação do dever de apresentação à insolvência”, pp. 533 e s.
Cfr., só para alguns exemplos, além deste Acórdão do TC, Acórdão do TRL de 14.12.2010 (Proc. 46/07.8TBSVC-O.L1-7), Acórdão do TRP de 17.11.2008 (Proc. 0855650), Acórdão do TRP de 5.02.2009 (Proc. 0837835), Acórdão do TRC 12.07.2017 (Proc. 60/16.2T8PNH-B.C1), e Acórdão do TRG de 11.05.2017 (Proc. 1775/15.8T8VNF-A.G1) (todos disponíveis em http://www.dgsi.pt).
Proc. nº 8074/16.6TBCRR-D.C1.S2, www.dgsi.pt.
Uma Breve Incursão pelos Incidentes de Qualificação da Insolvência, Revista Julgar nº 11, 2010, págs. 235-236.