Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1/20.2GABJA-D.E1
Relator: EDGAR VALENTE
Descritores: APREENSÃO DE VEÍCULO
TERCEIROS DE BOA-FÉ
DEFESA DE DIREITOS
Data do Acordão: 05/10/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Resultando que a proprietária do veículo apreendido padece de doença com quadro de deterioração cognitiva de evolução progressiva, iniciada por defeito de memória e aprendizagem com, pelo menos quatro anos de evolução, a mesma não teria condições cognitivas para se aperceber da utilização censurável que estaria a ser dada ao seu veículo.
Consequentemente, entende-se que, demonstrada a boa fé da proprietária do veículo, se justifica legalmente o levantamento da respetiva apreensão.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I - Relatório.

No Juízo de Competência Genérica de Odemira (J2) do Tribunal Judicial da Comarca de Beja corre termos o processo (incidente por apenso) 1/20.2GABJA-D, onde foi proferido despacho que indeferiu a restituição do veículo automóvel de marca e modelo “…”, com a matrícula …à requerente AA.

Inconformada com tal despacho, dele recorreu a requerente, terminando a motivação do recurso com as seguintes (transcritas) conclusões:

“A. No despacho recorrido ao ser admitido que o veículo automóvel “…, matrícula …, aprendido à ordem dos presentes, é suscetível de poder vir a ser perdido a favor do estado, nos termos do artigo 109.º, do CP, sem que tenha sido garantido o direito ao contraditório por parte da acompanhante (recorrente) da respetiva proprietária, viola o disposto no artigo 178.º/9, do CPP e o artigo 32.º/5, do CPP.

B. O despacho recorrido, ao manter a apreensão sabendo que o veículo não é propriedade do arguido, viola ainda o disposto no artigo 178.º/12, do CPP.

C. Ademais, sabendo-se que o veículo não é propriedade do arguido, viola ainda o artigo 111.º/2, do CP, porquanto é admitida a perda do referido veículo, com fundamento no artigo 109.º do CP.

D. A oposição do Ministério Público ao requerimento da recorrente não foi notificada à recorrente, além do mais, no despacho recorrido não são minimamente explicitados os fundamentos em que assentou essa oposição – violando-se o direito ao contraditório da recorrente (artigo 32.º/5, do CPP).

E. O despacho recorrido ao imputar ausência de boa-fé à recorrente, erra na apreciação da matéria de facto, dado que a recorrente só após o trânsito em julgado da decisão que a nomeou acompanhante da sua mãe, proprietária do veículo automóvel apreendido, é que tinha o dever jurídico de zelar pelo bom uso do mesmo; ademais, como reside e trabalha em …, não conhecia, nem tinha que conhecer, a forma como o seu irmão alegadamente estaria a usar o referido veículo.

F. Mas ainda que assim não fosse, por mera hipótese de raciocínio, a verdade é que o requisito de boa-fé, ínsito naquela norma, é exigível ao titular do direito de propriedade, que beneficia de uma medida de acompanhamento de maior, e não à respectiva acompanhante.

G. Por conseguinte, o despacho recorrido viola o disposto no artigo 36.º-A/1, do DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro, na atual redação.

H. O despacho recorrido fundamenta a decisão de manter a apreensão de referido veículo, de forma insuficiente, tanto a matéria de facto, como a matéria de direito, mostrando-se violado o artigo 205.º da CRP e o artigo 97.º/5, do CPP, sendo o ato irregular, nos termos do artigo 123.º do CPP.

I. Por fim, o despacho recorrido viola o direito de propriedade da mãe da recorrente, pois pelo facto de esta estar numa casa de repouso, esse seu direito não se circunscreve apenas ao uso e fruição do bem; neste sentido, o despacho recorrido subvaloriza esse direito de propriedade da mãe da recorrente, violando-se aqui o artigo 62.º/1, da CRP.”

Pugnando, em síntese:

“TERMOS EM QUE E NOS DEMAIS DE DIREITO DEVE SER DADO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, REVOGANDO-SE O DESPACHO RECORRIDO E, EM CONSEQUÊNCIA, SER DETERMINADO O LEVANTAMENTO DA APREENSÃO DO VEÍCULO APREENDIDO, A ENTREGAR À RECORRENTE, ENQUANTO ACOMPANHANTE DA TITULAR DO DIREITO DE PROIPRIEDADE.”

O recurso foi admitido.

Em resposta, o MP em 1.ª instância concluiu que (transcrição):

“1- Nos presentes autos foi apreendido ao arguido BB o veículo automóvel de marca e modelo “…”, com a matrícula ….

2- Tal veículo não foi apreendido como meio de prova, e essencialmente por se considerar aquele como “instrumento de facto ilícito típico” que serviu e poderá continuar a servir para a prática de factos ilícitos (cfr. artigo 109º, nº 1, in fine, do Código Penal).

3- A recorrente e irmã do arguido, AA, alega, entre outras coisas, que aquele veículo é propriedade (nos termos do artigo 7º do Código do Registo Predial) de sua mãe, CC, a quem foi diagnosticada a doença de ….

4- A recorrente AA, mais alegou que correu termos uma ação de acompanhamento de maior em que AA foi nomeada acompanhante de sua mãe, CC.

5- Ao arguido BB, seu irmão, foi aplicada a medida de coação mais gravosa – prisão preventiva, precisamente porque dos elementos de prova já carreados para os autos, este está fortemente indiciado de se dedicar ao tráfico de estupefacientes, na modalidade de venda direta ao consumidor, e de ser detentor de arma proibida.

6- A forte indiciação encontra-se sustentada, além do mais, pelas interceções telefónicas efetuadas (cujos autos de transcrição de escutas telefónicas estão apensos ao processo), corroboradas pelos vários relatos de diligências externas constantes dos autos, nos quais se descreve a constante utilização do veículo em causa pelo arguido BB nas suas deslocações para ir ao encontro dos consumidores.

7- Por outro lado, não se afigura minimamente plausível que a mãe da ora requerente, CC e alegada proprietária do veículo em causa, encontrando-se, como a própria ora requerente refere, numa casa de repouso e tendo os problemas de saúde que alega ter, necessidade, neste momento, do veículo em questão.

8- Da prova recolhida no decurso do inquérito, torna-se evidente que a viatura apreendida, se encontrava afeta à atividade delituosa do arguido BB, o qual foi observado pelo O.P.C. que o investigou no decurso de todos estes meses, a fazer uso frequente da mesma, designadamente para se encontrar com os clientes/consumidores de produtos estupefacientes que o contactavam para o efeito.

9- A ora recorrente sabia, que o arguido, antes de o mesmo ter sido preso preventivamente à ordem dos presentes autos, usava frequentemente o veículo automóvel ora em apreço.

10- Tal implica que a ora recorrente não descurava, ou pelo menos não deveria descurar, a utilização que era dada ao veículo acima identificado, mesmo vivendo em ….

11 - À recorrente não basta invocar a alegada propriedade do veículo por parte de sua mãe nos termos do artigo 7º do Código do Registo Predial, uma vez que, sendo o arguido se irmão, cabia-lhe, segundo critério de razoabilidade, cuidar de saber de que modo o mesmo vinha sendo utilizado.

12 - A sua condição de ora acompanhante da alegada proprietária impunha-lhe que não descurasse o uso que era dado ao veículo ora em causa.

13 - Era-lhe também exigível que se tivesse apercebido de que, afinal, estava a ser usado pelo seu irmão na prática dos atos indiciados neste processo.

14 - Não se trata, aqui, de negar o legítimo direito de propriedade da mãe da ora recorrente, mas trata-se, sim, de haver razão para esse direito ser limitado.

15 - Em concreto, a manutenção da apreensão do veículo e, consequentemente, a não devolução à recorrente, afigura-se-nos plenamente consentânea com a necessária restrição do direito de propriedade, pautada por adequada proporcionalidade ao seu provável perdimento a favor do Estado.

16 - Pelo exposto, o despacho em crise não merece qualquer reparo, devendo o mesmo ser mantido nos seus precisos termos.”

Pugnando, em síntese:

“que deve negar-se PROVIMENTO ao recurso interposto pelo recorrente, mantendo-se, na íntegra, o despacho recorrido (…).”

O Exm.º PGA neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido de que o recurso interposto deve ser julgado improcedente.

Procedeu-se a exame preliminar.

Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (1).

Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

Reproduz-se a decisão recorrida, na parte que interessa:

“Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 36º-A, nº 4, do DL nº 15/1993, de 22 de Janeiro, no que concerne ao requerimento apresentado por AA (cfr. Refª …), constata-se o seguinte:

- Nos presentes autos foi apreendido ao arguido BB o veículo automóvel de marca e modelo “…”, com a matrícula ….

- Tal veículo não foi apreendido apenas como meio de prova, mas essencialmente por se considerar aquele como “instrumento de facto ilícito típico” que serviu e poderá continuar a servir para a prática de factos ilícitos (cfr. artigo 109º, nº 1, in fine, do Código Penal).

- A irmã do arguido, AA, veio requerer, nos presentes autos, o levantamento de tal apreensão com base no alegado facto de aquele veículo ser propriedade (nos termos do artigo 7º do Código do Registo Predial) de sua mãe, CC (com … anos de idade), a quem foi diagnosticada a doença de … e que teve de ser internada numa casa de repouso.

- A irmã do arguido, AA, mais alegou que correu termos uma ação de acompanhamento de maior em que AA foi nomeada acompanhante de sua mãe, CC.

- Ao arguido BB foi aplicada a medida de coação mais gravosa – prisão preventiva, precisamente porque dos elementos de prova já carreados para os autos, este está fortemente indiciado de se dedicar ao tráfico de estupefacientes, na modalidade de venda direta ao consumidor, e de ser detentor de arma proibida.

- A referida forte indiciação encontra-se sustentada, além do mais, pelas interceções telefónicas efetuadas (cujos autos de transcrição de escutas telefónicas estão apensos ao processo), corroboradas pelos vários relatos de diligências externas constantes dos autos, nos quais se descreve a constante utilização do veículo em causa pelo arguido BB nas suas deslocações para ir ao encontro dos consumidores.

- Por outro lado, não se afigura minimamente plausível que a mãe da ora requerente, CC e alegada proprietária do veículo em causa, encontrando-se, como a própria ora requerente refere, numa casa de repouso e tendo os problemas de saúde que alega ter, necessite, neste momento, do veículo em questão.

- Da prova coligida no decurso do inquérito torna-se evidente que a viatura apreendida, ora em apreço, se encontrava afeta à atividade delituosa do arguido BB, o qual foi observado pelo O.P.C. que o investigou no decurso de todos estes meses, a fazer uso frequente da mesma, designadamente para se encontrar com os clientes/consumidores de produtos estupefacientes que o contactavam para o efeito.

- A ora requerente, irmã do arguido, sabia, de modo plausível, que o arguido, antes de o mesmo ter sido preso preventivamente à ordem dos presentes autos, usava frequentemente o veículo automóvel ora em apreço.

- Tal implica que a ora requerente não descurava, ou pelo menos não deveria descurar, a utilização que era dada ao veículo acima identificado.

- À ora requerente não basta invocar a alegada propriedade do veículo por parte de sua mãe, nos termos do artigo 7º do Código do Registo Predial, uma vez que, sendo o arguido seu irmão, cabia-lhe, segundo critério de razoabilidade, cuidar de saber de que modo o mesmo vinha sendo utilizado.

- A sua condição de ora acompanhante da alegada proprietária impunha-lhe que não descurasse o uso que era dado ao veículo ora em causa.

- Era-lhe também exigível que se tivesse apercebido de que, afinal, estava a ser usado pelo seu irmão na prática dos atos indiciados neste processo.

- Não se trata, aqui, de negar o legítimo direito de propriedade da mãe da ora requerente, mas trata-se, sim, de haver razão para esse direito ser limitado.

- Conforme Acórdão do Tribunal Constitucional nº 294/2008, de 29.05.2008, in www.dgsi.pt, “o direito de propriedade, tal como previsto no artigo 62º, nº 1, da Constituição, não é garantido em termos absolutos, mas sim dentro dos limites e com as restrições definidas noutros lugares do texto constitucional ou na lei, quando a Constituição para ela remeter, ainda que possa tratar-se de limitações constitucionalmente implícitas” e, mais adiante, “o Acórdão nº 340/1987 (publicado no Diário da República nº 220, II Série, de 24 de Setembro de 1987) entendeu que o artigo 108º do Código Penal de 1982 (também na sua redação originária), quando prevê a perda a favor do Estado de objetos de terceiro, não é inconstitucional, por violação do direito de propriedade, por ser de considerar que esse direito constitucional pode ser sacrificado em homenagem aos valores da segurança das pessoas, da moral ou da ordem pública enquanto elementos constitutivos do Estado de Direito democrático”.

- Em concreto, a manutenção da apreensão do veículo e, consequentemente, a não devolução à ora requerente, afigura-se-nos plenamente consentânea com a necessária restrição do direito de propriedade, pautada por adequada proporcionalidade ao seu provável perdimento a favor do Estado.

- Por último, não ficou minimamente demonstrada a boa fé da ora requerente.”

2 - Fundamentação.

A. Delimitação do objecto do recurso.

A motivação do recurso enuncia especificamente os fundamentos do mesmo e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do seu pedido (art.º 412.º), de forma a permitir que o tribunal superior conheça das razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida e que delimitam o âmbito do recurso.

A questão a decidir no presente recurso é a seguinte:

Questão (única) – Há ou não razões (de facto e de direito) para manter a apreensão do veículo em causa?

B. Decidindo.

Questão (única) – Há ou não razões (de facto e de direito) para manter a apreensão do veículo em causa?

Como decorre da decisão recorrida, está em causa nos presentes autos a apreensão de determinado veículo automóvel, não apenas como meio de prova mas também por se considerar aquele como “instrumento de facto ilícito típico” que serviu e poderá continuar a servir para a prática de factos ilícitos. Temos, assim, de considerar (também) uma finalidade processual substancial, ou seja, garantir a perda de tal objecto a favor do Estado, prevista no art.º 35.º, n.º 1 do DL 15/93, de 22.01.

Como é sabido, “não é condição do decretamento da perda de bens que o agente do facto ilícito típico seja o titular do respectivo direito de propriedade, podendo a mesma ocorrer ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser por ele punida (cf. n.º 3 do referido art. 35.º) e, portanto, mesmo que eles pertençam a terceiros. No entanto, neste último caso, a lei criou um mecanismo destinado a dar alguma protecção a direitos legítimos de terceiros, conferindo a estes a faculdade de os virem defender através do incidente regulado no art. 36.º-A, aditado ao DL n.º 15/93 pela Lei nº 45/96.” (2)

Atento o disposto no n.º 1 do mencionado art.º 36.º, “o terceiro que invoque a titularidade de coisas, direitos ou objectos sujeitos a apreensão ou outras medidas legalmente previstas aplicadas a arguidos por infracções previstas no presente diploma pode deduzir no processo a defesa dos seus direitos, através de requerimento em que alegue a sua boa fé, indicando logo todos os elementos de prova”, mais esclarecendo o respectivo n.º 2 que “entende-se por boa fé a ignorância desculpável de que os objectos estivessem nas situações previstas no n.º 1 do artigo 35.º” (3).

“Assim, o terceiro que se pretenda prevalecer de um direito sobre determinado bem que haja sido sujeito a uma daquelas medidas terá, em primeiro lugar, de fazer a prova da titularidade do direito que se arroga, e, em segundo, a de que desconhecia, sem culpa (aferida por um critério de razoabilidade, no sentido de, nas concretas circunstâncias verificadas, não lhe ser razoavelmente exigível que do facto tivesse conhecimento), que o dito bem havia sido, ou estivesse destinado a ser, utilizado na prática de factos ilícitos tipificados na vulgarmente designada “Lei da Droga”, ou havia sido por ela produzido.”(4)

Nestes termos, por quatro ordens de razões, não faz qualquer sentido alegar (como faz a recorrente) que a afirmação da susceptibilidade de perdimento a favor do Estado sem que tenha sido garantido o direito ao contraditório por parte da acompanhante (recorrente) da respectiva proprietária, “viola o disposto no artigo 178.º/9, do CPP e o artigo 32.º/5, do CPP (5)”:

Em primeiro lugar, uma vez que a declaração de perdimento ainda não aconteceu, sendo apenas uma possibilidade.

Em segundo lugar, a referência a tal possibilidade tem respaldo legal, nos termos do acima citado art.º 35.º, n.º 1 do DL 15/93.

Em terceiro lugar, porque a lei (DL 15/93), precisamente para acautelar estas situações, prevê, no mencionado art.º 36.º-A (6), um mecanismo que tem como escopo a tutela dos direitos legítimos dos terceiros de boa fé.

Em quarto lugar, considerando o mecanismo acima referido, que a recorrente efectivamente utilizou, apresentando o requerimento de 24.11, não se percebe a alusão ao contraditório – que contraditório teria de ser assegurado quando a pretensão é apresentada pela própria recorrente? Como é evidente, a “audição” prevista no art.º 178.º, n.º 9 apenas se justifica quando o terceiro não deduz o incidente previsto no citado art.º 36.º-A. O mesmo se aplica ao disposto no n.º 12 do art.º 178.º, que prevê uma notificação prévia ao registo da apreensão.

Por seu turno, a referência aos requisitos do art.º 111.º, n.º 2 do CP também não se justifica, uma vez que está previsto na lei um regime especial, precisamente traduzido na previsão do art.º 35.º, n.º 1 do DL 15/93.

Quanto à alegada não notificação da oposição do MP à recorrente, a mesma não se encontra prevista (7) na tramitação do incidente do mencionado art.º 36.º-A do DL 15/93, uma vez que, realizadas as diligências consideradas necessárias, “o juiz decide” o incidente, nos termos do n.º 4 de tal normativo, não se vislumbrando a necessidade de qualquer notificação da resposta, dada a simplicidade e rapidez de decisão que o legislador pretendeu imprimir a tal incidente e, como tal, inexistindo qualquer violação do contraditório, uma vez que, quando aos fundamentos do incidente, os mesmos já foram expostos no requerimento de dedução do incidente.

Quanto ao requisito da boa fé, analisemos, antes de mais, o respectivo quadro legal:

Artigo 36.º-A (8)

Defesa de direitos de terceiros de boa fé

1 - O terceiro que invoque a titularidade de coisas, direitos ou objectos sujeitos a apreensão ou outras medidas legalmente previstas aplicadas a arguidos por infracções previstas no presente diploma pode deduzir no processo a defesa dos seus direitos, através de requerimento em que alegue a sua boa fé, indicando logo todos os elementos de prova.

2 - Entende-se por boa fé a ignorância desculpável de que os objectos estivessem nas situações previstas no n.º 1 do artigo 35.º (9).

3 - O requerimento a que se refere o n.º 1 é autuado por apenso, notificando-se o Ministério Público para, em 10 dias, deduzir oposição.

4 - Realizadas as diligências que considerar necessárias, o juiz decide.

5 - Se, quanto à titularidade dos objectos, coisas ou direitos, a questão se revelar complexa ou susceptível de causar perturbação ao normal andamento do processo, pode o juiz remeter o terceiro para os meios cíveis.

Desde logo, quanto à pretensa violação do direito de propriedade da mãe da recorrente e do disposto no art.º 62.º, n.º 1 da CRP, não lhe assiste qualquer razão. Com efeito, o direito de propriedade, nos exactos termos daquela disposição constitucional, não tem uma tutela absoluta, encontrando-se limitado por outras disposições constitucionais e legais (quando aquela para estas remeter), ainda que de forma implícita.(10)

Deste modo e não estando (ainda) em causa a declaração de perdimento do bem em causa, mas tão só a sua apreensão, apenas o mencionado “uso e fruição” do mesmo estão abrangidos pela apreensão, não fazendo qualquer sentido a alusão a outras valências do direito de propriedade.

Por outro lado, está de facto indiciado que a viatura estava numa das “situações previstas no n.º 1 do artigo 35.º”, como consta dos pontos 10 e 11 do despacho do JIC constante do auto de 1.º interrogatório de 15.07.2021, que se reproduzem:

“10. Do mesmo modo, desde data não concretamente apurada, mas pelo menos desde maio de 2020 (cfr. auto de inquirição de testemunha JJ), que o arguido BB se dedica à atividade de compra e venda de produto estupefaciente, nomeadamente cocaína e cannabis, na modalidade de venda direta ao consumidor, o que faz com intenção lucrativa.

11. Para tanto, o arguido BB é previamente contatado, por telefone, pelos comprovadores, indo ao encontro destes, no veiculo de matrícula …, para entregar o produto estupefaciente e recebendo em troca dinheiro.”

Será que a proprietária do veículo em causa, ou seja, a mãe do arguido estaria de boa fé, ou seja, estaria em situação de “ignorância desculpável” quanto à respectiva utilização pelo arguido?

Considerando que, na sentença de acompanhamento de maior relativa à mãe do arguido (e só a mesma interessa, uma vez que a requerente - filha - só adquiriu a qualidade de acompanhante a partir da data do respectivo trânsito em julgado) proferida em 20.06.2021 se deu como provado (facto 2) que a mesma “padece de doença de …, com quadro de deterioração cognitiva de evolução progressiva, iniciada por defeito de memória e aprendizagem com, pelo menos 4 anos de evolução”, entendemos que está demonstrada a referida ignorância desculpável, uma vez que não teria condições cognitivas para se aperceber da utilização censurável que o filho estaria a dar ao seu veículo.

Consequentemente, entendemos que, demonstrada a boa fé da proprietária do veículo, se justifica legalmente o levantamento da respectiva apreensão.

A decisão recorrida deve, assim, ser revogada, o que significa a procedência do recurso.

3 - Dispositivo.

Por tudo o exposto e pelos fundamentos indicados, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida e, consequentemente, ordenado o levantamento da apreensão e restituição do veículo automóvel de marca e modelo “…”, com a matrícula …, à requerente AA, na qualidade de acompanhante da proprietária do mesmo.

Sem custas.

(Processado em computador e revisto pelo relator)

Évora, 10 de Maio de 2022

Edgar Valente

Laura Goulart Maurício

Gilberto da Cunha

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1 Diploma a que pertencerão as referências normativas ulteriores, sem indicação diversa.

2 Acórdão deste TR de 17.09.2009 proferido no processo 1/07.8GAPTM-C.E1 (Relator Ribeiro Cardoso) e disponível em www.dgsi.pt.

3 Sublinhados e negritos da nossa autoria.

4 Cit. acórdão de 17.09.2009.

5 Quereria a recorrente seguramente referir-se à Constituição da República Portuguesa, onde se menciona a submissão do processo criminal ao princípio do contraditório. Cfr. também a conclusão D.

6 Aditado pela Lei n.º 45/96, de 03.09.

7 Ao contrário do que acontece, por exemplo, com a resposta à motivação do recurso, que tem de ser notificada “aos sujeitos processuais por ela afectados”, nos termos do art.º 413.º, n.º 3 do CPP.

8 Do citado DL 15/93.

9 Ou seja, “que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de uma infracção” prevista no mencionado DL 15/93.

10 Neste sentido, vide o Acórdão do TC n.º 294/2008, de 29.05, disponível no respectivo site institucional, onde pode ler-se o seguinte: “Referindo-se especialmente às apreensões em processo penal (…), o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 7/87 (…), afirmou que as apreensões, quando autorizadas ou ordenadas pela autoridade judiciária (…), não podem deixar de considerar-se um limite imanente ao direito de propriedade, daí se extraindo a sua completa conformidade com a garantia constitucional.”