Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
19/19.8GCCUB.E1
Relator: MARTINHO CARDOSO
Descritores: PROVA INDIRECTA
Data do Acordão: 11/09/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1 - A verdade em direito é uma convicção prática firmada em dados objectivos que, directamente ou indirectamente, permitem a formulação de um juízo de facto.

2 - Quando a base do juízo de facto é indirecta, impõe-se um particular rigor na análise dos elementos que sustentam tal juízo, a fim de evitar erros.
Importa constatar, em primeiro lugar, uma pluralidade de elementos; em segundo lugar, importa que tais elementos sejam concordantes; em terceiro lugar, importa que, tendo em conta uma observação de acordo com as regras da experiência, tais indícios afastem, para além de toda a dúvida razoável, a possibilidade dos factos se terem passado de modo diverso daquele para que apontam aqueles indícios probatórios.
Decisão Texto Integral:
I
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
Nos presentes autos de Processo Comum com intervenção de tribunal singular acima identificados, do Juízo de Competência Genérica de Cuba, do Tribunal Judicial da Comarca de Beja, a arguida (...) foi, na parte que agora interessa ao recurso, condenada pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de incêndio, p. e p. pelos art.º 272.º, n.º 1 al.ª a) e 202.º al.ª a), do Código Penal, na pena de 3 anos e 9 meses de prisão, cuja execução foi suspensa por idêntico período, mediante regime de prova.
#
Inconformada com o assim decidido, a arguida interpôs o presente recurso, apresentando as seguintes conclusões:
1. A arguida , pela prática de um crime de incêndio , p. e p. pelo art. 272º , nº 1 , al. a) , por referência ao art. 202º , al. a) do C.P. , foi condenada na pena de 3 anos e 9 meses de prisão , suspensa por igual período de tempo , sujeita a regime de prova .
2. A impugnação da matéria de facto reporta-se aos factos provados sob os nºs 5 a 7 , os quais consideramos incorrectamente provados .
3. Com efeito , o facto nº 5 deve ser parcialmente alterado e provado nos termos constantes do presente recurso , que aqui se dá por integralmente reproduzido .
4. Por sua vez , os factos sob os nºs 6 e 7 devem ser dados como não provados , de acordo com os fundamentos descritos no presente recurso , e que aqui se dão por integralmente reproduzidos .
5. Os concretos meios de prova em que se baseia a referida impugnação da matéria de facto são os constantes das declarações das testemunhas (…), cujos excertos foram transcritos .
6. Pelo que , no que concerne às alterações formuladas , devem as mesmas ser consideradas como factualidade assente .
7. Uma vez que vão de encontro às declarações prestadas pelas testemunhas inquiridas , sendo que nenhuma delas afirmou ter visto a arguida no local onde ocorreram os factos à 1h45 .
8. No que respeita aos restantes factos impugnados , por terem sido incorrecta e erroneamente apreciados , devem ser dados como não provados.
9. Visto não terem suporte probatório .
10. A testemunha que fez os telefonemas para a GNR refere ter ouvido um estrondo que associou a vidros partidos , mas tal facto terá ocorrido quando fez o primeiro telefonema , cerca das 23h30/00h00 , sendo que nessa altura , avistou , tão-somente , um vulto .
11. Pela 1h45 , aquela testemunha , quando faz o segundo telefonema , apenas viu fumaça a sair de um veículo .
12. No que concerne ao facto 7 , atento o supra referido , deve , igualmente , ser dado como não provado , tanto mais que nenhuma testemunha terá presenciado tal situação .
13. Os factos ora impugnados , são aqueles que sustentam a presente decisão .
14. Porém , na motivação , o tribunal a quo também sustenta essa decisão no motivo que a arguida tinha em virtude de ter terminado a relação com o ofendido .
15. Não existe nenhum elemento objectivo que corrobore essa afirmação .
16. Pelo que , o tribunal para chegar àquela conclusão , baseou-se em regras de experiência comum , todavia , em processo penal , não se afigura admissível dar como provado um facto em função daquela regra .
17. No final de um julgamento o julgador tem que proferir uma decisão e , atenta a prova , pode tomar várias decisões .
18. In casu , e atenta a justificação apresentada pelo Mmo Juiz , parece-nos que o mesmo se baseia em factos que não têm qualquer suporte probatório , conforme é referido na impugnação da matéria de facto .
19. Donde , em nosso modesto entendimento , a decisão proferida assenta numa probabilidade .
20. Como tal , presume-se que a arguida tinha motivo , porquanto tinha terminado a relação com o ofendido e , bem assim , presume-se que foi a mesma que ateou o fogo , porque tinha sido interceptada pelos militares da GNR , no local a rondar os carros , 1h45m antes do incêndio .
21. Segundo os militares da GNR , a arguida foi vista cerca das 00h00 no local a passear e com uma postura normal .
22. Atenta as regras da experiência comum , qualquer pessoa que tivesse em mente praticar algum ilícito , não iria voltar ao local onde , momentos antes , tinha sido interceptada pela GNR .
23. Face à prova produzida em audiência de julgamento , deve , o presente recurso merecer provimento e ser procedente a impugnação da matéria de facto sobredita e , consequentemente , ser a arguida absolvida do crime de que vinha acusada .
24. Caso esse tribunal mantenha a matéria de facto dada como provada constante da sentença ora recorrida , à cautela , sempre se dirá que a pena aplicada à arguida , em nossa modesta opinião , se considera elevada .
25. Na determinação da medida da pena deve atender-se ao previsto no art. 71º do C.P .
26. In casu , importa considerar as especiais necessidades de prevenção geral associadas ao crime cometido , a ilicitude dos factos que é elevada e o dolo directo .
27. Sendo certo que as consequências do crime foram diminutas .
28. Não podemos , no entanto , olvidar as condições pessoais do agente e o facto de não ter antecedentes criminais da mesma natureza .
29. Posto isto , parece-nos que as exigências de prevenção geral e especial são moderadas .
30. As finalidades da pena , conforme disposto no art. 40º , nº 1 do C.P. , comportam a protecção dos bens jurídicos e a integração do agente na sociedade .
31. Razão pela qual , consideramos que a pena a aplicar à arguida deverá fixar-se no limite mínimo da moldura penal aplicável , ou seja , em três anos de prisão , suspensa na sua execução , conforme determinado na douta sentença , ora recorrida .

Termos em que deverá o presente recurso merecer provimento e ser a douta sentença recorrida substituída por outra que :
- Altere os factos dados como provados nos termos pretendidos pela recorrente , sendo que alguns deles devem ser considerados não provados e , consequentemente , absolva a arguida da prática do crime de que vem acusada ; ou ,
- Reduza a pena de prisão aplicada à arguida , fixando-a no seu limite mínimo , mantendo-se a suspensão da sua execução conforme decidido na douta sentença , ora recorrida .
#
O Exmo. Procurador do tribunal recorrido respondeu, concluindo da seguinte forma:
1. Por sentença judicial proferida nos presentes autos, foi a Recorrente condenada, pela prática, como autora material, na forma consumada, de um crime de incêndio, p. e p. pelo artigo 272.º, n.º 1, alínea a), por referência ao artigo 202.º, alínea a), ambos do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 9 (nove) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sujeito a regime de prova;
2. Vem agora a condenada, relativamente à matéria de facto, recorrer da douta sentença, alegando que os factos n.os 5 a 7 foram incorrectamente dados como provados, incorrendo o Tribunal a quo em erro de julgamento por violação do princípio da livre apreciação da prova, presente no artigo 127.º, do Código de Processo Penal;
3. Mais alegou o Recorrente que o Tribunal a quo apenas fundamentou a sua decisão nas regras da experiência comum, sem conexão a qualquer outro elemento probatório relevante;
4. Entende o Ministério Público que o Tribunal a quo efectuou uma apreciação correcta das declarações prestadas pelas testemunhas inquiridas, bem como da prova documental junto aos autos;
5. Não foi, no caso em apreço, produzida em sede de audiência de julgamento, qualquer prova cabalmente capaz de retirar credibilidade às declarações das testemunhas (…), que prestaram as suas declarações de uma forma segura, isenta e credível, não deixando dúvidas quanto à sua veracidade;
6. Dando-se aqui como integralmente reproduzidas o teor das declarações mais pertinentes para a fundamentação da decisão cuja transcrição se realizou supra;
7. Mais se relevando o facto de a ora Recorrente se ter inicialmente remetido ao silêncio e, após a produção de prova nas duas sessões de audiência de julgamento realizadas, bem como findas as alegações por parte do Ministério Público e sua defensora, resolveu tomar a palavra para procurar moldar e construir uma sua versão dos factos que encaixasse nas declarações prestadas pelas testemunhas;
8. Sendo quase sempre incoerente e inverosímil no seu discurso, caindo em contradições na sequência das questões que lhe iam sendo formuladas pelo Mm.º Juiz a quo, Ministério Público e sua defensora;
9. Pelo que, primeiramente afirmou a Recorrente que não havia estado naquele local no dia/hora dos factos;
10. Posteriormente assumiu que afinal tinha saído de casa à tarde;
11. Seguidamente, referiu que terá sido por volta das dez horas da noite;
12. E, finalmente, já admitia ter sido abordada pelos militares da GNR “o mais tardar à meia noite” (conforme resulta dos depoimentos dos militares da GNR e do auto de notícia junto aos autos);
13. A Recorrente referiu ainda que que nunca saía de casa sem o seu aparelho de vigilância electrónica e que, no dia em causa, o mesmo esteve sempre consigo.
14. Pelo que, confrontada com a falta de correspondência do seu discurso com a prova documental junta aos autos – nomeadamente cfr. relatório de vigilância electónica de fls. 64- 65 –, do qual se retira que entre as 23h30 do dia 2 de Fevereiro e as 02h00 do dia 3 de Fevereiro de 2019, o equipamento não se movimentou, a arguida tomou um longo e penoso troço de fundamentos, os quais, na óptica do Ministério Público, não fizeram qualquer sentido;
15. Deste modo, julga-se que, da prova carreada para os autos, se confirmou que na noite dos factos findou um relacionamento amoroso conturbada entre a Recorrente e a testemunha (...);
16. Pelas 23h30/0h00 foi visualizada (apenas) uma pessoa de baixa estatura junto aos veículos automóveis, poucos, que se encontravam no local, mais se ouvindo sons de vidros a partir, conforme declarações da testemunha (...);
17. A brigada da GNR que se deslocou ao local apenas encontrou uma pessoa, a arguida, que foi devidamente identificada e, face ao adiantar da hora e ao facto de não residir ali, não apresentou justificação plausível para se encontrar no local;
18. Uma hora e pouco depois, a arguida agiu com o propósito de incendiar o veículo automóvel de matrícula (...), propriedade de (...), o que conseguiu;
19. Tal conclusão retira-se não só das regras da experiência comum, conforme parece querer indicar a Recorrente, mas em conexão das mesmas com a demais prova carreada para os autos;
20. Termos em que a sentença recorrida não enferma de qualquer erro de julgamento no que diz respeito aos factos dados como provados n.os 5 a 7;
21. Procedendo-se a uma análise global da motivação de recurso apresentada, resulta que a mesma se funda numa mera discordância com o a valoração da prova levada a cabo pelo Tribunal a quo, valoração essa livremente formada e devidamente fundamentada consoante sua convicção, realizada de um modo lógico face à prova produzida, beneficiando dos princípios da oralidade e imediação;
22. O Tribunal a quo procedeu a uma correcta análise, ponderação e posterior identificação dos critérios e elementos processuais de prova tidos em conta para a sua decisão, obedecendo, na íntegra, às regras processuais atinentes à fundamentação das sentenças;
23. Termos em que, a decisão ora recorrida mostra-se como a única solução juridicamente válida e adequada ao caso sub judice, devendo ser mantida;
24. Em sede de escolha e determinação do quantum da pena a aplicar à Recorrente, o Tribunal a quo, correctamente, considerou: a inserção profissional e familiar da arguida; o facto de a mesma ter agido com dolo directo; os seus antecedentes criminais (ainda que relativos a crimes de diferente natureza); o grau de ilicitude elevado, atendendo aos bens jurídicos protegidos e ao modo de execução dos factos (de forma dissimulada e de noite); e à falta de sentido crítico Recorrente relativamente às suas condutas, não tendo assumido a prática dos factos, antes apresentando uma versão que não se mostrou credível;
25. Fazendo-o através de uma correcta aplicação dos preceitos normativos constantes dos artigos 40.º, 70.º e 71.º, todos do Código Penal;
26. Termos em que a decisão recorrida perfila-se como correcta e ajustada no que concerne à matéria de facto dada como provada e circunstancialismos do caso concreto, sendo o quantum da pena de prisão aplicada, além de legal e correcto, ajustado e proporcional, tendo sido devidamente ponderados os fins e limites das penas referentes ao binómio culpa/ilicitude dos factos e princípios de prevenção geral e especial ressocializadora.

Termos em que, a decisão ora recorrida mostra-se como a única solução juridicamente válida e adequada ao caso sub judice, devendo ser mantida.
Nestes termos, e nos demais de direito, não deverá o recurso interposto merecer provimento, confirmando-se a douta decisão recorrida.
#
Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
Cumpriu-se o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
Procedeu-se a exame preliminar.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
#
Na sentença recorrida e em termos de matéria de facto, consta o seguinte:
-- Factos provados:
Da acusação:
1. A arguida (…) e (…) mantiveram uma relação amorosa, com coabitação na Rua do (...), na (...), durante cerca de 6 meses.
2. No dia 2 de Fevereiro de 2019, em hora não concretamente apurada, mas anterior às 22h30, a relação amorosa entre a arguida e (...) terminou.
3. Acto contínuo, (...) abandonou o domicílio comum para pernoitar na casa dos seus pais, localizada junto ao Loteamento do (…), na (...).
4. Entre as 22h30m e as 23h00mm, (...) estacionou o seu veículo de matrícula (...), marca “Toyota”, modelo “Corolla”, no parque de estacionamento ali localizado.
5. Em data e horas não concretamente apuradas, mas compreendidas entre as 22h30 do dia 2 de Fevereiro e a 1h45 do dia 3 de Fevereiro de 2019, a arguida deslocou-se ao Loteamento do (...), na (...).
6. Cerca da 1h45 do dia 3 de Fevereiro de 2019, de forma não concretamente apurada, a arguida (...) quebrou o vidro da porta traseira do lado do condutor do veículo automóvel de matrícula (...).
7. Acto contínuo, a arguida atirou para o interior do veículo automóvel de matrícula (...), nomeadamente para o lado esquerdo do banco traseiro, material inflamável não concretamente apurado que previamente havia inflamado, assim ateando fogo ao referido veículo.
8. Nas referidas circunstâncias de tempo e lugar, o veículo matrícula (...) permanecia ali parqueado, sendo que junto ao mesmo estavam também parqueados os veículos:
- de marca “OPEL”, modelo “Mokka”, matrícula (…), com o valor de, pelo menos, 15.500,00 (quinze mil e quinhentos) euros, com propriedade registada a favor de (…);
- de marca “RENAULT”, modelo “Trafic”, matrícula (…), com o valor de, pelo menos. 7.999,00 (sete mil novecentos e noventa e nove) euros, dom propriedade registada a favor de (…).
9. O fogo provocado no veículo de matrícula (...) só não o consumiu na sua totalidade nem propagou para os veículos de matrícula (…) devido à rápida e pronta intervenção de militares da GNR e Bombeiros Voluntários chamados ao local.
10. Ao agir conforme descrito, a arguida actuou com o propósito concretizado de atear fogo ao veículo matrícula (...), por saber que o mesmo era propriedade de (...).
11. Sabia a arguida e não podia deixar de saber que tal fogo podia propagar-se aos veículos de matrícula (…), que não lhe pertenciam, tendo os mesmos um valor conjunto de, pelo menos, € 5.100,00 (cinco mil e cem) euros, e se encontravam estacionados junto ao mesmo, bem sabendo que dessa forma criava perigo para ambos os veículos, que só não arderam totalmente por motivos alheios à vontade da arguida.
12. Em todos os factos descritos a arguida agiu sempre de forma livre, consciente e voluntária, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, tendo capacidade para se determinar de acordo com esse conhecimento.

Mais se provou que:
13. A arguida encontra-se desempregada, mas vai iniciar actividade profissional num lar na área da geriatria e auferir a retribuição mínima mensal garantida.
14. Vive sozinha, em casa arrendada, pela qual despende a quantia de € 150,00 mensais.
15. Tem 3 filhos com 27, 24 e 17 anos de idade, não liquidando nenhuma quantia monetário para o sustento dos mesmos.
16. Tem o 4.º ano de escolaridade.
17. A arguida tem os seguintes antecedentes criminais:
a) Por decisão proferida em 21.11.2014, no processo 28/14.3GCRDD, transitada em julgado a 11.12.2014, a arguida (...) foi condenada pela prática de um crime de ameaça e um crime de ofensa à integridade física simples, praticado no dia 22.06.2014, na pena única de 60 dias de multa, à taxa de € 5,00, o que perfaz o total de € 300,00;
b) Por decisão proferida em 26.11.2018, no processo 12/17.5GCRDD, transitada em julgado a 12.06.2019 a arguida (...) foi condenada pela prática de um crime de maus tratos, praticado no dia 19.08.2017, na pena de 1 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período.
#
-- Factos não provados:
Inexistem factos não provados com relevância para a boa decisão da causa.
#
Fundamentação da decisão de facto:
O tribunal formou a sua convicção no apuramento da factualidade provada com base nas declarações da arguida e das testemunhas (...).
O tribunal baseou-se ainda no auto de notícia de fls. 4 e 5, aditamento de fls. 130 e 131, fotogramas de fls. 40 a 47, ficha de fls. 16, relatório de posicionamento geográfico de fls. 64 a 68, relatório táctico de inspecção ocular de fls. 79 a 85, nos prints de pesquisa na Conservatória do Registo Automóvel de fls. 155 a 157, certidão permanente de fls. 158 a 159, pesquisas de fls. 160 a 168, nas declarações do ofendido (...) prestadas em inquérito de fls. 31 a 33 (validamente lidas em audiência) e CRC junto aos autos a 23.10.2020.
Relativamente aos factos considerados como provados nos pontos 1 a 4, o tribunal formou a sua convicção com base nas declarações do ofendido que referiu a circunstância de ter coabitado com a arguida durante cerca de 6 meses, referindo que apenas conhecia a rua onde se situava a referida habitação como Rua do (...).
No restante, o ofendido confirmou a factualidade que vinha descrita na acusação, sendo que se mostrou necessário proceder à leitura das declarações por si prestadas em inquérito uma vez que o mesmo, nas suas declarações, estava não só a demonstrar algumas falhas de memória quanto aos factos em apreço, mas também pouco à vontade em revelar factualidade que pudesse incriminar a arguida, sua ex-companheira, não obstante ter sido advertido de que poderia ter-se recusado a depor em tribunal.
Não obstante o ora mencionado, o tribunal atribui credibilidade às declarações do ofendido em virtude de, apesar do constrangimento, acabar por confirmar a factualidade que já tinha referido em sede inquérito, momento no qual tinha uma melhor memória dos factos, considerando-se assim a factualidade acima indicada como provada.
O ofendido afirmou que desconhece se a arguida praticou os factos relativos ao incêndio uma vez que só no dia seguinte é que teve conhecimento do mesmo.
No que diz respeito aos factos 5 a 9, o tribunal formou a sua convicção não só com base na prova documental junta aos autos e já acima descrita, mas também nos depoimentos das restantes testemunhas e da arguida, que apenas prestou declarações no final da audiência de julgamento.
Vejamos, as testemunhas (...) e (...), militares da GNR, que cujo depoimento se considerou credível por ter sido prestado de forma escorreita e sem hesitações, referiram ter recebido uma primeira chamada, tendo-se deslocado ao local dos factos cerca das 00h00m do dia 3 de Fevereiro de 2019 em virtude de se encontrar alguém a rondar as viaturas que se encontravam estacionadas.
Nessa circunstância, avistaram e abordaram a arguida a qual foi identificada pelos militares em virtude de a mesma ter sido interveniente em acidente de viação nessa tarde onde esteve presente o militar (...).
Foi ainda referido pelos militares que, cerca das 1h50m foram novamente chamados por se encontrar uma viatura a arder. Chegados ao local o referido incêndio foi confirmado pelos militares o qual foi extinto graças à intervenção de (...) sendo que depois chegaram os Bombeiros Voluntários da (...).
Nesta circunstância, mencionaram os militares da GNR que não viram a arguida no local dos factos.
Por ambos os militares foi referido que existiu perigo para as outras viaturas que se encontravam estacionadas no local e ao pé da viatura do ofendido, sendo que pelo militar (...) foi salientada a circunstância de o incêndio estar a ocorrer na parte traseira da referida viatura, ou seja, junto ao tanque de combustível.
Esta informação é ainda confirmada pelos fotogramas de fls. 40 a 47, nos quais se pode visualizar o local onde deflagrou o incêndio e o vidro lateral traseiro partido.
Retira-se igualmente o perigo concreto para as outras viaturas pela circunstância de os militares da GNR terem avisado prontamente os proprietários das viaturas que se encontravam junto à viatura do ofendido para as retirarem do local com urgência.
Esta circunstância foi confirmada igualmente pelas testemunhas (...) e (...), condutores habituais das viaturas que se encontravam estacionadas junto à viatura do ofendido, que retiraram as mesmas do local e confirmaram que se encontravam estacionadas junto à viatura do ofendido.
O tribunal considerou estes depoimentos como credíveis por força da forma escorreita e sem hesitações como os mesmos decorreram.
Estas testemunhas não conseguiram referir, em concreto, os valores das suas viaturas, mas atestaram que as mesmas tinham, à data dos factos, certamente um valor superior a € 5.100,00. De salientar que os valores mínimos atribuídos aos veículos retiram-se da documentação junta aos autos a fls. 160 a 168.
As testemunhas (...) e (...) declararam que não viram a arguida na data e local dos factos.
No que diz respeito ao depoimento da testemunha (...), a mesma referiu que foi quem fez as duas chamadas para a GNR por ter visto através da janela da sua habitação, aquando da primeira chamada perto da meia-noite, um vulto que lhe pareceu ser de baixa estatura, possivelmente uma criança, não sendo capaz de identificar em concreto quem viu uma vez que era de noite e o vulto que avistou ainda se encontrava longe da sua janela.
Referiu ainda que a sua janela tem vista para o parque de estacionamento em causa no presente caso e que o vulto que avistou encontrava-se junto aos carros que se encontravam estacionados.
Posteriormente, referiu que efectuou uma nova chamada para a GNR uma vez que ouviu vidros a partir e pouco depois reparou na viatura do ofendido a arder. Nessa ocasião não avistou ninguém.
O tribunal considerou este depoimento como credível por força da forma escorreita e sem hesitações como o mesmo decorreu.
Finalmente, no que diz respeito às declarações da arguida, o tribunal não lhes atribuiu credibilidade pela circunstância de as mesmas se mostrarem contrárias com outros depoimentos já aqui prestados, ser igualmente contraditórias com a documentação junta aos autos e pelo facto de apenas terem sido prestadas no final da audiência o que permite à arguida ter conhecimento da versão trazida aos autos pelas testemunhas e concentrar-se apenas em contradizer essa mesma versão.
Vejamos, a arguida negou a pratica dos factos referindo que saiu de casa pelas 23h30/00h00m e que os militares da GNR a abordaram numa rua que já não teria nada a ver com o parque de estacionamento. Menciona ainda que não saia de casa sem o aparelho da vigilância electrónica relativa ao processo de violência doméstica no qual era vítima.
Ora, não só tal versão é contrariada pelos militares da GNR que declararam que abordaram a arguida na zona do parque de estacionamento como é ainda a sua versão desmentida pelo relatório de posicionamento geográfico de fls. 64 e 65, que atesta que o aparelho não registou qualquer movimento entre as 23h30 do dia 02.02.2019 e as 02h00 do dia 03.02.2019.
Uma vez que a arguida foi interceptada pelos militares da GNR por volta das 00h00m é fácil concluir que a versão da arguida não se mostra credível e que a mesma não trouxe o aparelho consigo quando saiu de casa.
Assim, conjugando toda a prova existente nos autos, entende o tribunal que se mostra provada a autoria dos factos acima elencados por parte da arguida, uma vez que a mesma foi interceptada pelos militares da GNR cerca de 1h45 minutos antes do momento da prática dos factos a rondar os automóveis que se encontravam estacionados, no local onde estava estacionada a viatura do ofendido e, apesar de não ter sido reconhecida pela testemunha (...), a descrição efectuada pela mesma corresponde à descrição da arguida no que diz respeito à estatura.
Acresce que a arguida tinha o conhecimento do local para onde se dirigiu o ofendido, sabia qual era o seu carro e tinha motivo para querer causar algum tipo de prejuízo ao ofendido por força do fim da relação entre ambos.
Os factos atinentes à imputação subjectiva (factos 10 a 12), foram considerados como provados por força das regras da experiência comum e da normalidade da vida. Com efeito, entende o tribunal que se mostra consentâneo com as regras da experiência comum que as condutas praticadas pela arguida são aptas a atear fogo na viatura do ofendido, sendo igualmente consentâneo com as regras da experiência que a mesma soubesse que o fogo podia propagar-se aos veículos que se encontravam junto à viatura do ofendido, sendo tais circunstâncias do conhecimento da arguida e sabendo esta que as suas condutas são proibidas e punidas por lei penal.
Os factos relativos às condições económicas e sociais (factos 13 a 16) resultam das declarações do próprio arguido.
Os antecedentes criminais relativamente à arguida (...) (facto 17) resultam do CRC junto aos autos.
III
De acordo com o disposto no art.º 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o objecto do recurso é definido pelas conclusões formuladas pelo recorrente na motivação e é por elas delimitado, sem prejuízo da apreciação dos assuntos de conhecimento oficioso de que ainda se possa conhecer.
De modo que as questões postas ao desembargo desta Relação são as seguintes:
1.ª – Que foi por ter avaliado mal a prova produzida em julgamento que o tribunal "a quo" deu como provado o teor dos pontos 5, 6 e 7 dos factos provados; e
2.ª – Que é exagerada a pena aplicada à arguida, devendo a mesma fixar-se no limite mínimo da moldura penal aplicável, mantendo-se, contudo, a suspensão com regime de prova, conforme o decidido pelo tribunal "a quo".
#
Vejamos:
No tocante à 1.ª das questões postas:
Os pontos 5, 6 e 7 dos factos provados têm o seguinte teor:
5. Em data e horas não concretamente apuradas, mas compreendidas entre as 22h30 do dia 2 de Fevereiro e a 1h45 do dia 3 de Fevereiro de 2019, a arguida deslocou-se ao Loteamento do (...), na (...).
6. Cerca da 1h45 do dia 3 de Fevereiro de 2019, de forma não concretamente apurada, a arguida (...) quebrou os vidros traseiros do veículo automóvel de matrícula (...).
7. Acto contínuo, a arguida atirou para o interior do veículo automóvel de matrícula (...), nomeadamente para o lado esquerdo do banco traseiro, material inflamável não concretamente apurado que previamente havia inflamado, assim ateando fogo ao referido veículo.
E pretende a arguida que o ponto 5 passe a ter o seguinte teor:
A arguida, no dia 2 de Fevereiro de 2019 entre as 23h30 e as 00h00, quando a GNR se deslocou ao Loteamento do (...), na (...), foi abordada por aqueles militares enquanto passeava naquele local.
E que o teor dos pontos 6 e 7 seja dado como não provado.
Convém, antes de mais, reproduzir as declarações sobre o assunto prestadas em julgamento (e aliás reproduzidas na resposta que o Digno Magistrado do M.º P.º deu ao recurso na 1.º Instância e também em parte citadas pela própria recorrente):
O ofendido, (…):
Questionado sobre a distância da Rua do (...), aonde reside a arguida e o ofendido com ela coabitou durante cerca de 6 meses, para o local onde estava o seu veículo automóvel, a testemunha referiu que: a pé, se calhar aí dois minutos…três minutos… .
Perguntado sobre o final do relacionamento amoroso com a arguida, a testemunha declarou o seguinte: “Nós tínhamo-nos separado, pronto, e epá… a pessoa não aceitou bem e pronto… são situações…
Foi confrontado com as declarações por si prestadas em sede de inquérito de fls. 31 e seguintes (nos termos do art.º 356.º, n.º º 2 al.ª b) e 5, do Código de Processo Penal), e nas quais, em síntese, afirmou que no dia dos factos saiu de casa para pernoitar na habitação dos seus pais, com a finalidade de se afastar da arguida (...), que até então era sua companheira e que com o mesmo coabitava.
E mais à frente, no seu depoimento prestado em julgamento:
M.º P.º – “Lidas aqui estas declarações que prestou à polícia judiciária, nomeadamente aqui o que o senhor disse que a relação se foi desgastando, tendo no dia dos factos o senhor saído de casa e deslocando-se para casa dos seus pais para passar a noite e afastar-se definitivamente de (…)…
(...) – “Isso é correcto, está correto
M.º P.º – “Diz aqui que foi naquele dia que saiu e que acabou a coabitação com a senhora (…). Que foi naquele dia, o primeiro dia do final da relação, que foi neste dia que o senhor foi morar para a casa dos seus pais ou da sua irmã
(...) – “Sim, sim.”
Posteriormente, questionado sobre se recordava de ter existido uma discussão entre si e arguida nesse dia, a testemunha referiu:
(...) – “Foi uma discussão de casal, pronto. Não passou disso, eu carreguei as minhas coisas para o carro, levei para casa e pronto”.
Questionado se a arguida sabia para onde ele iria naquela noite, respondeu:
(...) – “A senhora sabia que eu morava na (...), ao sair dali ia para casa da minha mãe”.
Finalmente, questionado se à data dos factos tinha inimigos ou algumas inimizades e/ou se conhecia alguém que tivesse interesse em fazer-lhe isso, respondeu negativamente.

A testemunha (…) declarou:
Que reside na Rua (…), junto ao loteamento, cujo parque de estacionamento (onde ocorreram os factos) é em frente à sua habitação, com uma janela com vista para o mesmo.
A instâncias do M.º P.º, disse:
(...) “O que eu vi (…) o dia já não me recordo, sei que foi em Fevereiro, acho eu (…) não sei se foi do ano 18 ou 19 não sei, sinceramente não sei, e eu ia-me deitar, como sempre fecho a janela; E quando fui para fechar a janela vi fumaça da rua saindo de um carro. Como estavam mais carros no parque de estacionamento, a minha preocupação foi chamar a GNR para o incêndio. Porque eu vi que aquilo era um carro a deitar fumo, que seria um incêndio. Não vi chamas mas vi muita fumaça. A GNR veio, tomou conta da ocorrência, e a partir daí não sei mais nada”
M.º P.º“Quantas chamadas é que fez para a GNR?”
(...)“Duas”
M.º P.º“E essa que está a dizer agora do fumo foi a primeira ou a segunda?
(...)“A segunda! A segunda!”
M.º P.º – “Então e diga-me lá, a primeira.. qual foi o motivo e diga-me uma coisa.. disse que foi antes.. quanto tempo antes? E qual foi o motivo?”
(...)“(…) Foi tudo nessa noite, eu ouvi um estrondo, isto era, não sei precisar as horas mas praí onze e tal, meia-noite, não sei, pronto (…) depois eu ouvi um estrondo, e os cães a ladrarem muito e depois eu vi, eu não sei o que vi, pareceu-me uns miúdos.. os miúdos andam a estragar os carros, telefonei para a GNR.. a GNR veio, não sei se viu miúdos ou não, não sei o que era, e a partir daí aquilo acabou… quando me fui deitar passado uma hora uma hora e pouco foi quando vi fumaça a sair do carro. “
M.º P.º“E esses barulhos que a senhora ouviu, o que é que lhe parecia que fosse?”
(...)“Vidros, parecia-me vidros a partir, foi o que me pareceu.”
M.º P.º“Presumo que foi à janela quando ouviu barulho”
(...)“Sim, sim”
M.º P.º“ Era de noite, a zona é iluminada?”
(...)“Sim é iluminada.”
M.º P.º – “A senhora viu alguma pessoa?”
(...) – “O que me pareceu foi um miúdo, a pessoa que eu vi pareceu-me ser um miúdo, a estatura…”
M.º P.º – “Uma pessoa pequena?”
(...) – “Sim, isso.”
M.º P.º – “Conseguiu ter a noção de quem era a pessoa?”
(...) – “Não, eu como disse nunca vi a pessoa”
M.º P.º – “Poderia ser uma pessoa de baixa estatura?”
(...) – “De baixa estatura era, quem era não sei”
M.º P.º – “Era de baixa estatura?”
(...) – “Sim, daí a dizer que me pareciam miúdos”
M.º P.º – “Mas podia ser um adulto de baixa estatura? A senhora conseguiu ver que era uma criança?”
(...) – “Não, não vi não.”
M.º P.º“Vi um vulto de uma pessoa, agora se era uma criança, se era um adulto… era uma pessoa de baixa estatura, não sei quem era…”
(…)
M.º P.º“A senhora mora ali à muito tempo?”
(...)“Sim.”
M.º P.º“(…) como diz que quando se vai deitar vai sempre fechar a janela, costuma ver pessoas ali na zona que não sejam moradores ou estejam a sair de carro… é uma zona onde passam pessoas?”
(...) – “A zona agora neste momento está a ser concorrida..”
M.º P.º“Vamos pensar à um ano atrás.. um ano e meio atrás..”
(...) – “Um ano atrás não tinha a concorrência que tem hoje porque é um loteamento está a ser construído prédios, ora não havia grandes movimentos”
M.º P.º – “Costumava ver ali pessoas?”
(...)“A única coisa que há é passagem para um lar e isso é uma coisa que é…”
M.º P.º“Mas as pessoas vão ali.. por algum motivo.. pronto.. o Tribunal já percebeu que aquilo é um parque de estacionamento.. As pessoas que não vão buscar carros.. costuma ver ali pessoas?”
(...)“Não.. não.. à noite não há grande movimento ou praticamente nada.“
M.º P.º“Naquela noite em que viu o vulto, viu mais algumas pessoas ali? Ou só aquela?”
(...) – “Não, nada nada nada…”
M.º P.º“Só viu aquele vulto?”
(...)“Só”
(…)
A instâncias do Mm.º Juiz "a quo", a testemunha referiu o seguinte:
JuizEsse vulto que viu, pode ter sido esta senhora, ou a senhora tem a certeza absoluta que não era?”
(...) – “Não posso afirmar nada que eu não conhecia não sei quem era.
Juiz – “Da mesma forma que não consegue afirmar que era a senhora, também não consegue afirmar que não era…”
(...) – “Não consigo afirmar nada porque eu não conheci a pessoa. Foi só o que me pareceu, mais nada.”
Juiz “A questão da baixa estatura “
(...) – “Sim, só isso, mais nada”

A testemunha (…), militar da GNR, que inteveio na ocorrência, acompanhado do militar (...), disse em julgamento:
(...) – “Não, passámos lá cerca da meia-noite passámos lá no local”
(…)
Houve uma informação para o posto que no local andava lá uma pessoa, portanto, lá nas imediações das viaturas, não é.”
M.º P.º – “Neste sítio exacto onde depois ocorreu o acidente
(...) – “Exactamente. Sim, sim sim sim”.
(…)
(...) – “Disseram-nos para nos deslocarmos ao local em virtude de existir lá uma pessoa à volta das viaturas.”
Confrontado com o teor do auto de notícia de fls. 4-5, confirmou ter sido o autor do auto, documento esse que procede à identificação da arguida como estando no parque de estacionamento em causa, à hora referida, mais referindo sim, era a pessoa que andava ali na altura”.

E a testemunha (…), militar da GNR que acompanhou a testemunha anterior na ocorrência, declarou em julgamento:
M.º P.ºFoi esta senhora que identificou?”
(...) – “Sim”
M.º P.º – “Foi? Não teve dúvidas nenhumas?”
(...) – “Sim. Não.
(…)
A senhora foi identificada por nós e pelos outros militares que estavam na patrulha porque ela tinha sido interveniente num acidente de viação nessa tarde
M.º P.º – “Naquele momento, meia-noite e qualquer coisa, junto àquela urbanização, não houve qualquer dúvida que aquela senhora era aqui a arguida e como fizeram constar do vosso auto, a identificação completa da mesma
(...) – “Sim.”
M.º P.º“Não houve alguma dúvida?”
(...) – “Não.”
(…)
M.º P.º – “Sabe onde é a habitação da arguida? É ali naquela zona?”
(...) – “Na altura a senhora morava na Rua do (...), salvo erro, junto ao Hotel (…).”
M.º P.º – “É ali?”
(...) – “Não, não é propriamente ali perto, é assim… pronto, é uma vila pequena, mas se calhar duzentos, trezentos metros.”
M.º P.º – “Aquilo é um estacionamento de automóveis. Do seu conhecimento a arguida tem algum veículo automóvel ou tinha lá o seu automóvel estacionado?”
(...) – “Não, não tinha
M.º P.º – “Referiu alguma coisa em relação a isso?”
(...) – “Não, não. Não referiu
M.º P.º – “Qual foi a justificação que ela disse…
(...) – “Andava a passear, andava por ali…”

Por fim, a arguida (...), fazendo uso da respectiva prorrogativa legal, inicialmente manifestou a sua vontade em não prestar declarações relativamente aos factos. Sucede que, após o final da produção de prova, bem como das alegações finais, a ora recorrente manifestou a sua vontade em prestar declarações e disse:
A instâncias do Mm.º Juiz a quo:
(...) – “Eu não fiz, não, eu não fiz, pronto, o que supostamente disseram que eu fiz, pronto… não tenho nada mais a dizer, ouvi aqui muita coisa, por exemplo esta senhora que esteve agora ultimamente aqui, é assim, eu trabalho no lar onde a senhora mora, ao pé de onde a senhora mora. Já tive lá há um ano atrás e tenho sido renovados os contratos e agora entrei no dia 2 com o mesmo lar. É um sítio onde eu agora passo normalmente, agora. Noutras alturas, pronto, às vezes ia dar uma volta a pé, era normal eu ir dar uma volta a pé à noite, porque ali aquilo é assim, agora (…)”
(…)
Juiz – “Agora está a trabalhar nesse lar?”
(...) – “Nesse lar onde tenho estado a trabalhar, pronto, já tive dois contratos, agora estou no terceiro contrato nesse lar, que é perto
Juiz – “Mas está a trabalhar lá desde quanto?”
(...) – “Desde o dia 2.. Saí no dia 2 do mês passado, e agora entrei no dia 2 deste mês, Novembro
Juiz – “Desde o início quando é que começou?”
(...) – “À cerca de um ano atrás
Juiz - “Portanto por volta de Novembro do ano passado, foi isso?”
(...) – “Sim

(…)
Juiz – “Em Fevereiro do ano passado a senhora trabalhava lá nesse lar?
(...) – “Não, nessa altura ainda não.”
Juiz – “Nessa altura, a senhora esteve lá nesse sítio, não esteve?”
(...) – “Não, nesse dia não estive. Mas era sítio onde eu ia à noite porque, pronto, agora já muitas pessoas que vão para ali passear os cães, às vezes assim à noite… mas é um sítio sossegado porque é um sítio que não era muito longe de casa, aquilo tem pronto.. iluminação e isso tudo, e eu às vezes à noite gostava de ir dar um passeio por ali, ou ia por uma rua ou voltava pela outra abaixo e essas coisas todas.”
(…)
Juiz – “Nesta noite em concreto, a senhora diz que não esteve lá?
(...) – “Não
Juiz – “Então como é que justifica aquilo que os senhores militares disseram, que a identificaram
(...) “Identificaram, mas foi o que o senhor disse, identificaram mas não foi lá, foi o moço…”
Juiz – “Foi na zona do parque de estacionamento?”
(...) – “Ali perto…”
Juiz – “Não, aquilo que os senhores militares disseram é que a identificaram na zona do parque de estacionamento, precisamente. Porque foi aquilo que agora esta última testemunha referiu, que ligou para … disse que foi um vulto, não disse que foi a senhora, disse que foi um vulto, que parecia uma criança, e na sequência disso os militares deslocaram-se àquela zona e que a viram lá.. nessa altura. Por volta das onze e tal meia-noite.”
(...) – “Mas não foi ali ao pé do parque de estacionamento, foi na rua, na rua sim… porque aquilo faz.. fazia a minha rua assim, para cima, e depois fazia outra rua para baixo, e era o parque de estacionamento na outra zona, foi onde o senhores me encontraram e depois, eu tinha tido um acidente à tarde, foi o que o senhor disse, mas não foi, foi porque simplesmente um pneu furou, do carro e eu não fui capaz de segurar o carro e saí fora e bati num marco que está fora da estrada (…).
À tarde eu saí à tarde… Aí já para o lado da noite, para aí dez e pouco, coisa assim, mas fui, dei a volta ali por aquela rua, nem cheguei sequer perto do parque de estacionamento, porque é assim, o senhor com quem estava, o Senhor (…), tinha ido para a casa da irmã, mas na rua, os parques de estacionamento, não é na rua onde ele deixa agora recentemente o outro carro que ele tem, é numa rua diferente, eu nem sabia do carro lá estar, eu nem sabia que o carro estava estacionado naquele sítio porque não é sítio de estar.”
Juiz –Mas sabia qual era o carro dele?”
(...) – “Sabia. Sabia porque eu ajudei a comprar aquele carro. “
(…)
(...) – “A seguir fui para dentro de casa, e eu quando saía de casa trazia sempre a máquina comigo, porque foi assim, foi relatado quando foi posto aquela medida de coacção por causa do meu ex-marido, para ele não se aproximar a mim (…)”
Seguidamente, a instâncias do M.º P.º:
M.º P.º – “A senhora disse que levava sempre a máquina, o aparelho consigo…”
(...) – “Sim, sim…”
M.º P.º – “A senhora disse aqui que nesta noite que foi abordada numa rua não neste sítio, mas… Essa rua onde foi abordada é ao pé da sua casa?”
(...) – “Era.
M.º P.º – “Não é ao pé deste loteamento?”
(...) – “Não.
M.º P.º – “Não tem nada a ver?
(...) – “Não.
M.º P.º – “E esse passeio que a senhora deu, foi até onde, a senhora?
(...) – “Fui até quase ao fim da rua… a rua fazia assim e depois pegava assim… começava ali o loteamento do… onde o carro estava estacionado.”
M.º P.º – “Então foi até perto dessa zona?
(...) – “Sim
M.º P.º – “Quanto tempo é que a senhora demora a pé desde a sua casa até à zona onde a senhora foi? O mais longe onde foi.”
(...) – “A pé… sei lá… três, quatro minutos.”
M.º P.º – “E a senhora reconhece ter sido abordada aqui pelos dois guardas.”
(...) – “Sim, porque os GNR’s vieram pela rua acima
M.º P.º – “Terá sido à hora que eles dizem, aqui à meia noite?”
(...) – “Sim, ou onze e meia, meia-noite, o mais tardar meia-noite
M.º P.º – “A senhora antes estava em casa?
(...) – “Sim
M.º P.º – “E depois voltou para casa?”
(...) – “Sim, voltei para casa.”
M.º P.º“Então como é que a senhora explica que entre as dez e a uma da manhã, não sei.. sensivelmente.. no registo do seu aparelho, não tenha existido qualquer movimento.. Se a senhora saiu de casa, e andou três minutos pé, para longe, em direcção oposta à sua casa, como é que explica que o aparelho tenha fixado das dez da noite até à uma da manhã, já não tenho a certeza, está aí nos autos, como é que explica que o aparelho não tenha tido qualquer movimento? Se a senhora anda sempre com ele…. E se reconhece ter sido abordada pelos militares da GNR…”
(...) “Sim… Não sei… Isso não lhe sei dizer, pronto.. especificamente não sei.. porque coiso… porque aquilo tinha um certo radar… coiso… tinha um certo radar para eu poder estar. Quando saísse daquela coisa, daquele radar, sim porque as máquinas, aquelas máquinas têm um certo x de como.. como.. se a pessoa tem a pulseira electrónica se aproximar tem um x de metros e um x de coiso para nós sabermos que a pessoa está perto ou está longe. Por isso a máquina aquela, muitas das vezes.. eh… quando nós só nos mexemos mas que não estamos em perigo e isso tudo, talvez não identificaria que.. pronto… se a outra pessoa tivesse perto talvez identificaria, não sei…

Do acervo de depoimentos ouvidos em julgamento ressalta que, na verdade, afinal ninguém viu que foi a arguida quem ateou o fogo na viatura do ofendido.
Ora bem.
Os factos que interessam ao julgamento da causa são de ordinário ocorrências concretas do mundo exterior ou situações do foro psíquico que pertencem ao passado e não podem ser reconstituídas nos seus atributos essenciais. A demonstração da realidade de factos desta natureza, com a finalidade do seu tratamento jurídico, não pode visar um estado de certeza lógica, absoluta, sob pena de o Direito falhar clamorosamente na sua função social de instrumento de paz social e de realização de justiça.
A prova visa apenas, de acordo com os critérios de razoabilidade essenciais à aplicação prática do Direito, criar no espírito do julgador (judici fit probatio) um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto [cf. Antunes Varela, Manual de Processo Civil, pág. 434].
A verdade em direito é uma convicção prática firmada em dados objectivos que, directamente ou indirectamente, permitem a formulação de um juízo de facto.
Quando a base do juízo de facto é indirecta, impõe-se um particular rigor na análise dos elementos que sustentam tal juízo, a fim de evitar erros.
Importa constatar, em primeiro lugar, uma pluralidade de elementos; em segundo lugar, importa que tais elementos sejam concordantes; em terceiro lugar, importa que, tendo em conta uma observação de acordo com as regras da experiência, tais indícios afastem, para além de toda a dúvida razoável, a possibilidade dos factos se terem passado de modo diverso daquele para que apontam aqueles indícios probatórios (sobre a prova indiciária em processo penal veja-se M. Miranda Estrampes, “La Mínima Actividad Probatória en el Proceso Penal”, J. M. Bosch Editor, 1997, pág. 231 a 249).
Ou, como expende Euclides Dâmaso Simões[1], o uso de prova indirecta implica dois momentos de análise: um primeiro requisito de ordem material exigirá que os indícios estejam completamente provados por prova directa, os quais devem ser de natureza inequivocamente acusatória, plurais, contemporâneos do facto a provar e sendo vários devem estar interrelacionados de modo a que reforcem o juízo de inferência; posteriormente, um juízo de inferência que seja razoável, não arbitrário, absurdo ou infundado, respeitando a lógica da experiência e da vida (dos factos-base há-de derivar o elemento que se pretende provar, existindo entre ambos um nexo preciso, directo, segundo as regras da experiência) [2].
Dificilmente o julgador poderá ter a certeza absoluta de que os factos aconteceram tal como eles são por si interiorizados, como são dados como provados.
Mas isto não obsta a que o tribunal se convença da realidade dos mesmos, posto que consiga atingir o umbral da certeza relativa. A certeza relativa é afinal um estado psicológico (a tal convicção de que se costuma falar) que, conquanto necessariamente se tenha de basear em razões objectivas e possa ser fundamentável, não demanda que estas sejam inequivocamente conclusivas.
Daqui decorre que não é decisivo para se concluir pela realidade da acusação movida a um qualquer arguido, que haja provas directas e cabais do seu envolvimento nos factos, máxime que alguém tenha vindo relatar em audiência que o viu a praticar os factos, ou que o arguido os assuma expressamente. Condição necessária, mas também suficiente é que os factos demonstrados pelas provas produzidas, na sua globalidade, inculquem a certeza relativa dentro do que é lógico e normal, de que as coisas sucederam como a acusação as define.
Ora compulsada a gravação da prova testemunhal produzida em julgamento e a que acima se fez referência e constata-se que a conclusão tirada pelo tribunal "a quo" de que foi a arguida quem primeiro partiu os vidros e depois pegou fogo à viatura do ofendido é o único resultado plausível a retirar daqueles elementos de prova.
Estes elementos, apesar de não fazerem prova directa daquela autoria, têm porém o valor de indícios, isto é, de circunstâncias a partir das quais se pode, em determinadas condições, fundar a consistência de um facto desconhecido. Esta prova indiciária conjuga a prova directa (sobre os factos indiciários) e as presunções na reconstrução do facto histórico em discussão e constrói-se a partir de dois elementos:
- O indício, facto instrumental provado, o qual deve ter a capacidade de revelar outro facto com o qual está relacionado; tem que estar demonstrado a partir da prova directa e exige-se uma pluralidade de indícios (independentes), para diminuir a possibilidade do acaso; devem também ser concordantes, convergindo para a mesma conclusão, e esta deve ser imediata (sem deduções intermédias);
- A presunção (ou silogismo), uma inferência efectuada a partir do indício, apoiada na experiência ou em regras da ciência, permitindo suportar um facto distinto. Importa ainda que esta inferência ou conclusão seja manifesta ou segura, excluindo a possibilidade de os factos se terem passado de modo diverso daquele para que apontam os indícios probatórios colhidos. Neste sentido, os indícios devem ser ainda inequívocos pois só assim suportam com segurança a presunção[3].
Conforme se escreveu no Acórdão do S.T.J., de 12.09.2007, disponível em www.dgsi.pt, citando Prieto Castro y Fernandiz e Gutierrez de Cabiedes, “Derecho Penal”, vol. II, pág. 252, “nem sempre se tem à disposição provas directas que autorizem a considerar existente a conduta perseguida e então, ante a realidade do facto criminoso, é necessário fazer uso dos indícios, como o esforço lógico-jurídico intelectual necessário antes que se gere impunidade”.
A prova directa distingue-se da prova indirecta e a sua vinculação com o raciocínio indutivo. Logicamente que o pronunciamento sobre a valoração do indício e do raciocínio indutivo é uma mistura de controle sobre a valoração da prova (o indício) e de controle sobre o raciocínio contido na decisão (indução) pois aquilo que se trata é de se determinar se o indício é suficientemente forte e também se o mesmo permite concluir, por indução, pela existência de um facto. Aqui não está em causa a aplicação da imediação mas uma mistura da aplicação de critérios de verosimilhança e critérios lógicos.
É, assim, clássica a distinção entre prova directa e prova indirecta ou indiciária. Aquela incide directamente sobre o facto provando, enquanto esta incide sobre factos diversos do tema de prova, mas que permitem, a partir de deduções e induções objectiváveis e com o auxílio de regras da experiência, uma ilação da qual se infere o facto a provar[4].
Embora a nossa lei processual não faça qualquer referência a requisitos especiais em sede de demonstração dos requisitos da prova indirecta, a aceitação da sua credibilidade está dependente da convicção do julgador que, embora sendo uma convicção pessoal, terá que ser expressa objectivamente e motivada, por forma a permitir o controlo interno e externo de tal racionalidade, como acontece no caso de que aqui nos ocupamos.
Ora, retornando ao caso dos autos, os elementos probatórios aludidos na fundamentação da convicção elaborada pelo tribunal recorrido, autónoma e directamente comprovados, constituem justamente indícios plurais, todos concorrendo articuladamente para uma solução única, a qual se mostra suportada pelas regras da normalidade e surge como a única que os factos-indícios, de forma segura, autorizam (inequívoca, portanto). Solução que corresponde aos factos descritos.
A partir daqueles indícios e através da mediação lógica das regras da experiência, resulta confirmada a actividade da arguida dada como provada e subsequente imputação desses factos à mesma. Qualquer outra explicação para os factos indícios, padecia, face a estes elementos, de um duplo problema: seria necessariamente inverosímil ou improvável e não encontrava, ao contrário da versão aceite na sentença recorrida, apoio em qualquer elemento objectivo, directamente discernível.

E isto é assim, independentemente de a concreta ocasião em que a arguida partiu os vidros do carro possa ter siso por volta da meia noite e a ignição cerca de uma hora e meia a uma hora e três quartos depois (como parece resultar linearmente do depoimento da testemunha (...)) ou ter antes acontecido de forma seguida como ficou na sentença recorrida.
Na verdade, se a ignição do material inflamável utilizado pela arguida para atirar para dentro do carro e pegar fogo ao mesmo não fosse de natureza instantânea e demorasse algum tempo a conseguir consolidar, é da experiência deste género de operações encobertas que, após arrebentar com os vidros da viatura e com o estrondo numa noite silenciosa de uma localidade pacata por os cães a ladrar e alguém a vir à janela espreitar, o agente não ia ficar tempos infinitos a tentar uma menos fácil ignição do material para incendiar o carro, expondo-se assim à visualização de quem viesse, como veio, à janela; seguiria em frente, até porque já tinha provocado um dano assinalável, com se nada fosse e estivesse só a passear por ali, voltando mais tarde, quando tudo já estivesse sossegado, a passar pelo carro e atear então o fogo.
Assim, das duas possibilidades, o tribunal "a quo" acabou por escolher a que mais benigna se mostra para a arguida, porque uma coisa é partir o vidro e logo de seguida pegar fogo ao carro e outra, bem mais elaborada e com um dolo bem mais intenso, frio e pensado – e por isso merecedor de uma pena mais severa –, arrebentar primeiro com os vidros e mais tarde, quando tudo na noite serenar e de novo voltar a adormecer, passar de novo pelo carro para enfim lhe pegar fogo.
Termos em que se mantem a matéria de facto assente como provada fixada pela 1.ª Instância.
#
No tocante à 2.ª das questões postas, a de que é exagerada a pena aplicada à arguida, devendo a mesma fixar-se no limite mínimo da moldura penal aplicável, mantendo-se, contudo, a suspensão com regime de prova, conforme o decidido pelo tribunal "a quo":
O tribunal "a quo" fundamentou do seguinte modo a graduação da pena que aplicou à arguida:
Motivação da medida da pena:

O crime de incêndio é punido com pena de prisão de 3 a 10 anos, nos termos do artigo 272.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal.
Porém, por força da aplicação do artigo 16.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, em concreto, não poderá ser aplicada uma pena de prisão superior a 5 anos.
Preceitua o artigo 40.º do Código Penal “A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. (n.º 1) Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa. (n.º 2)”.
Atinente à medida da pena, dispõe o artigo 71.º, n.º 1, do Código Penal, que “A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
As circunstâncias a que o tribunal deve atender para determinar a culpa e as necessidades de prevenção vêm exemplificativamente elencadas no n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal, consistindo as mesmas em circunstâncias que não fazem parte do tipo de crime. Encontra-se aqui consagrado o princípio da proibição da dupla valoração.
Uma vez que o crime de incêndio apenas admite a aplicação de uma pena de prisão, não há lugar à aplicação da regra do artigo 70.º do Código Penal relativa ao critério de escolha do tipo de pena a aplicar.
*
Cumpre então proceder à determinação da medida concreta da pena de prisão, tendo em atenção os dispositivos legais acima citados.
Assim, a fixação da pena a aplicar terá de ser efectuada tendo em consideração os critérios estabelecidos para a determinação concreta da pena (artigo 71.º, n.º 1, por força do artigo 47.º, n.º 1, ambos do Código Penal), atendendo igualmente o tribunal a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, nos termos do artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal.
Deverão assim ser considerados e devidamente sopesados os seguintes factores:
O grau de ilicitude é elevado, atendendo aos bens jurídicos protegidos pela incriminação e à forma de execução do crime (de forma dissimulada, durante a noite).
O grau de culpa é elevado, uma vez que a arguida agiu com dolo directo.
As necessidades de prevenção geral quer para o tipo de crime em causa são elevadas, atendendo à necessidade de uma eficaz protecção e tutela dos bens jurídicos violados e, finalmente;
As necessidades de prevenção especial são elevadas, uma vez que a arguida tem duas condenações averbadas no seu CRC, uma das quais anterior à prática dos factos em apreço nos presentes autos, ainda que por crimes de natureza diversa. De salientar que a arguida não confessou a prática dos factos, apresentando uma versão que não se mostrou credível, não interiorizando o desvalor da sua conduta.
A arguida mostra-se inserida profissional e socialmente atendendo ao facto de estar prestes a iniciar actividade profissional.
Assim sendo, entende-se adequado condenar a arguida (...) na pena de 3 anos e 9 meses de prisão.

Que o tribunal "a quo" suspendeu por idêntico período de tempo, mediante regime de prova.
A moldura penal abstracta do crime de incêndio, p. e p. pelos art.º 272.º, n.º 1 al.ª a) e 202.º al.ª a), do Código Penal, é de três a dez anos.
Sendo certo que, aquando da acusação, o M.º P.º fez uso da prerrogativa constante do art.º 16.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, pelo que, a final, e apenas do que diz respeito à moldura penal concreta, à arguida não poderia ser aplicada uma pena de prisão superior a cinco anos.
Ora bem.
No dizer da Prof. Fernanda Palma, em “As Alterações Reformadoras da Parte Geral do Código Penal na Revisão de 1995: Desmantelamento, Reforço e Paralisia da Sociedade Punitiva”, in Jornadas Sobre a Revisão do Código Penal, 1998, AAFDL, págs. 25-51, e in “Casos e Materiais de Direito Penal”, 2 000, Almedina, pág. 32-33, «A protecção de bens jurídicos implica a utilização da pena para dissuadir a prática de crimes pelos cidadãos (prevenção geral negativa), incentivar a convicção de que as normas penais são válidas e eficazes e aprofundar a consciência dos valores jurídicos por parte dos cidadãos (prevenção geral positiva). A protecção de bens jurídicos significa ainda a prevenção especial como dissuasão do próprio delinquente potencial. Por outro lado, a reintegração do agente significa a prevenção especial na escolha da pena ou na execução da pena. E, finalmente, a retribuição não é exigida necessariamente pela protecção de bens jurídicos. A pena como censura da vontade ou da decisão contrária ao direito pode ser desnecessária, segundo critérios preventivos especiais, ou ineficaz para a realização da prevenção geral.»
Ora tendo em conta a inserção profissional e familiar da arguida, ter agido com dolo directo, os seus antecedentes criminais (ainda que de diferente natureza), o grau de ilicitude elevado, atendendo aos bens jurídicos protegidos e ao modo de execução dos factos (de forma dissimulada e de noite), a à falta de sentido crítico da arguida relativamente às suas condutas – e tem-se por justa e adequada a pena concreta que foi aplicada pela 1.º Instância.
IV
Termos em que se decide negar provimento ao recurso e manter na íntegra a decisão recorrida.
Custas pela arguida, fixando-se a taxa de justiça, atendendo ao trabalho e complexidade de tratamento das questões suscitadas, em quatro UC’s (art.º 513.º e 514.º do Código de Processo Penal e 8.º, n.º 9, do RCP e tabela III anexa).
#
Évora, 9-11-2021
(elaborado e revisto pelo relator)
Martinho Cardoso, relator
Maria Leonor Esteves, adjunta
(assinaturas digitais)

__________________________________________________
[1] Vide Prova Indiciária, Revista Julgar, n.º 2, 2007, pág. 205.
[2] Vide, além dos demais autores já mencionados, J.M ASENCIO MELADO, “Presunción de inocência y prueba indiciária”, 1992,; e os Acs. do Supremo Tribunal de Justiça de 24.03.2004, 12.09.2007, 19.12.2007 e 12.03.2009; da Relação de Coimbra de 28.04.2009; e da Relação do Porto de 07.11.2007, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
[3] Sobre esta prova indiciária, ver ainda J. Gaspar, “Titularidade da Investigação Criminal e Posição Jurídica do Arguido”, in RMP 88, Out./Dez. 2001, especialmente págs. 102 e ss., e A. Martinez Arrieta, “La Prueba Indiciaria, in La Prueba En El Proceso Penal”, Centro de Estudos Judiciales, vol. 12, Madrid 1993, pág. 53 e ss.
[4] Cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 3.ª ed., vol. II, pág. 99.