Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
274/12.4TBRMR.E1
Relator: MARIA JOÃO SOUSA E FARO
Descritores: COVID
LEI TEMPORÁRIA
Data do Acordão: 03/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
i. O Decreto-Lei n.º 66-A/2022 de 30 de Setembro não serve para aferir se o artigo 6º-E aditado pela Lei n.º 13-B/2021, de 05 de Abril à Lei nº 1-A/2020, de 19.3 já caducou em consequência do “evoluir da pandemia”
ii. Tal regime destinou-se a ter vigência temporária, i.e. destinou-se a vigorar “no decurso da situação excepcional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19.”.
iii. Isto significa que decorrida tal “situação excepcional” a lei cessa a sua vigência não dependendo para tanto de ser revogada (cfr. art.º7º, nº1 do Cód. Civil).
iv. Não temos por certo que já tenha ocorrido o termo dessa “situação excepcional” só porque o estado de alerta não foi prorrogado, sendo de ponderar que está na forja a aprovação de uma proposta Lei n.º 45/XV que se destina a considerar” revogadas diversas leis aprovadas no âmbito da pandemia da doença COVID-19, determinando expressamente que as mesmas não se encontram em vigor, em razão de caducidade, revogação tácita anterior ou revogação pela presente lei.”.
v. No elenco das Leis que se consideram revogadas, consta precisamente a Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março (com excepção do seu artigo 5º), sendo propósito do legislador manter vigentes as alíneas b) a e) do n.º 7, bem como do n.º 8 do artigo 6.º-E da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março para além da entrada em vigor da Lei revogatória o que é, também, revelador de que tal norma se mantém ainda actualmente em vigor;
vi. A manutenção desta medida legislativa não viola os artigos 18º, nº2 e 62º da CRP.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:
1. RELATÓRIO

1. BANCO COMERCIAL PORTUGUÊS, S.A. sociedade aberta, credor adquirente nos autos à margem identificados, inconformado com o Despacho proferido em 7-12-2022 que manteve a suspensa a entrega do imóvel adjudicado ao ora Recorrente, por entender continuar em vigor o regime processual excepcional e transitório decorrente da Lei nº1-A/2020, de 19 de Março, dele veio recorrer formulando, na sua apelação, as seguintes conclusões:

I. A douta decisão recorrida não deve manter-se pois não consagra a justa e correta aplicação das normas legais e dos princípios jurídicos aplicáveis.
II. Afigura-se ao Recorrente que a aliás douta decisão recorrida, ao determinar ao manter suspensa a entrega do imóvel violou o disposto no artigo 333º do Código Civil, 828º do Código de Proc. Civil e ainda os artigos 18.º, n.º 2 e 62.º da Constituição da
República Portuguesa.
II. Os Executados ocupam o imóvel adjudicado ao Exequente, a título gratuito, há praticamente 13 anos, uma vez que o incumprimento remonta a 2010.
III. A situação de incumprimento verificada nos presentes autos, nada está relacionada com a pandemia Covid-19, tendo os Executados beneficiado com as medidas especiais criadas para esse efeito, nada fazendo para obter uma habitação alternativa.
IV. A atuação negligente da parte dos Executados está devidamente comprovada nos autos, porquanto os mesmos foram notificados para demonstrar documentalmente que diligências estavam a levar a cabo nesse sentido e estes nada disseram.
V. Analisando a atual situação da conjuntura nacional, vista a não renovação do estado de alerta, cotejada ainda com a revogação da medida de isolamento profilático por doença covid-19, é forçoso concluir-se pela caducidade da Lei 1-A/2020, de 19/03, por deixarem de se verificar os pressupostos fácticos e substantivos da sua aplicação
VI. A Lei 1-A/2020 teve como objeto a ratificação dos efeitos do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, e a aprovação de medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2, agente causador da doença COVID-19.
VII. A caducidade da referida Lei, resulta assim evidenciada da cessação das situações de vigência do estado de emergência, do estado de calamidade e, por fim, do estado de alerta.
VIII. A caducidade pode genericamente definir-se como a extinção ou perda de um direito ou de uma ação pelo decurso do tempo, ou ainda, pela verificação de uma natural circunstância que, naturalmente faz desencadear a extinção do direito.
IX. Ora, é precisamente o que sucede no caso em apreço, já que temos a cessação do estado de alerta e de todas as medidas de combate à Covid-19, resultando claro que naturalmente, deixando de existir os pressupostos fácticos da sua criação e aplicação, não poderá continuar a vigorar a Lei 1-A/2020, por caducidade, pelo que inexistem fundamentos para protelar a entrega do imóvel adjudicado ao Exequente/Recorrente nos presentes autos, pelo que mal andou o Tribunal “a quo” ao indeferir a pretensão do Exequente/Recorrente.
X. Caso se entenda não se operar a caducidade da Lei 1-A/2020, o que apenas se admite por mera hipótese de raciocínio, sempre se dirá que a mesma é inconstitucional por clara violação das disposições conjugadas dos artigos 18.º, n.º 2, e 62.º da Constituição da República Portuguesa.
XI. A Lei 1-A/2020 veio limitar os direitos constitucionais, contudo essa limitação estava justificada pela pandemia que o Mundo estava a atravessar, permitindo uma ingerência do poder político nos direitos e garantias dos cidadãos.
XII. Contudo e conforme analisamos, a pandemia já terminou e consequentemente foi determinada a cessação das medidas de combate à pandemia da doença COVID -19, mas como não foi revogada a Lei 1-A/2020, é forçoso concluir pela inconstitucionalidade da mesma.
XIII. No caso em apreço o Recorrente vê-se impedido de dispor de um bem imóvel que integra o seu acervo patrimonial, porquanto o mesmo está a ser ocupado pelos Executados/Recorridos que justificam tal ocupação à luz de uma lei especialmente criada para combater uma pandemia mundial que já não existe.
XIV. Esta situação claramente violadora dos direitos constitucionais do Banco Recorrente e de vários princípios constitucionais, nomeadamente: princípio da segurança, proporcionalidade e igualdade.
XV. O Banco Recorrente criou a convicção de que, tendo sido decretada a cessação das medidas de combate à Covid-19, voltaria a poder dispor livremente do seu património. O que não sucedeu.
XVI. O direito de propriedade do Recorrente está limitado sem qualquer fundamento ou justificação.
XVII. Os Executados são beneficiados à custa do Recorrente, porquanto estes continuam a ocupar um imóvel, a título gratuito, impedindo o Recorrente de dispor do seu património, criando-lhe prejuízos efetivos.
XVIII. O douto despacho de que ora se recorre, violou o disposto no artigo 333º do Código Civil, 828º do Código de Proc. Civil e ainda os artigos 18.º, n.º 2 e 62.º da Constituição da República Portuguesa.
Termos em que o presente recurso deve merecer provimento, revogando-se o douto despacho recorrido e, em conformidade substituído por outro que determine a entrega imediata do imóvel ao Recorrente, seu legitimo proprietário.
Assim, se fará, como sempre, inteira J U S T I Ç A!”.

2. Não houve contra-alegações.

3. O objecto do recurso, delimitado pelas enunciadas conclusões (cfr.artºs 608º/2, 609º, 635º/4, 639º e 663º/2 todos do CPC) reconduz-se apenas à questão de saber se está ainda em vigor o art.º6.º-E, n.º7, al .b), da Lei n.º1-A/2020, de 19-3 ( na sua actual redacção que é a da Lei n.º 91/2021, de 17/12) e, em caso afirmativo, se a mesma norma se revela inconstitucional porque violadora dos artigos 18º, nº2 e 62º da CRP.

II. FUNDAMENTAÇÃO

4. Os factos a considerar na decisão deste recurso são os que constam do antecedente relatório e, bem assim, os seguintes, de acordo com a documentação junta aos autos:

4.1. A presente execução para pagamento de quantia certa foi proposta em 9.4.2012 pelo BCP, S.A. contra AA e outro e nela foi penhorado o imóvel oportunamente hipotecado para garantia de um mútuo contraído pelos executados;

4.2. Foi determinada a venda de tal imóvel, vindo o mesmo a ser adjudicado ao exequente no âmbito do leilão electrónico ocorrido em 1.7.2021.

4.3. Os executados não procederam à entrega do imóvel não obstante notificados para o efeito pela A.E. em 21.7.2021, tendo a mesma requerido ao Tribunal, em 17.2.2022, que “nos termos e para os efeitos do disposto no nº 4 do art. 757.º e art. 767.º, ambos do Código do Processo Civil, se digne autorizar a intervenção da força pública de segurança”;

4.4. Em 22.2.2022 veio a ser proferido o seguinte despacho: “ Solicite informação registral actualizada do bem em causa. Averigue o Senhor Agente de Execução se está em causa a casa de morada de família dos executados”;

4.5. Em 18.3.2022, a A.E. deu satisfação ao despacho antecedente, juntando a certidão actualizada do imóvel (donde resulta a aquisição do imóvel pelo exequente) e informou “que o imóvel é casa de morada de família dos executados”.

4.6. Em 29.4.2022, o exequente formulou o seguinte requerimento nos autos: “BANCO COMERCIAL PORTUGUÊS, S.A. – Sociedade Aberta”, Exequente e Credor Reclamante nos autos à margem identificados, em que são Executados BB E OUTROS, vem expor e requerer a V. Exa. o seguinte:

1. O Exequente adquiriu o imóvel penhorado nos presentes autos.

2. Nesse seguimento e a requerimento do Exequente, o Tribunal ordenou a notificação dos Executados para que informassem e comprovassem documentalmente que diligências estão a levar a cabo para conseguirem obter uma habitação alternativa.

3. Apesar de notificados, os Executados nada disseram.

4. Nesta conformidade e perante tal silêncio, parece ser forçoso concluir que os Executados não se encontram numa situação de fragilidade social, motivo pelo qual não será de aplicar a exceção a que alude o art.º 6.º-E n.º 7, al. c) da Lei n.º 1 - A/2020, de 19 de Março (na redação da Lei n.º 13-B/2021 de 5 de Abril).

5. Perante o exposto, requer-se a V. Exa. se digne ordenar a entrega judicial do imóvel adjudicado ao Banco Exequente.

6. Mais se requer a V. Ex.ª que, encontrando-se a porta de entrada do imóvel fechada à chave seja, desde logo, requisitado o auxílio da força pública de forma a ser possível proceder ao arrombamento daquela porta.”.

4.7. Em 10.5.2022 foi proferido o seguinte despacho: Pese embora a posição do exequente, entende-se que está em causa a suspensão prevista no artigo 6.º E, n.º 7, alínea b), da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, a qual não pressupõe a existência de fragilidade por falta de habilitação própria, para ser aplicável.

Pelo que:

- improcede por ora a pretensão do exequente, devendo a entrega da casa aguardar suspensa até alteração ou revogação da alínea acima referida.

Notifique.

4.8. Em 18 .11.2022 o exequente formulou o seguinte requerimento:

“BANCO COMERCIAL PORTUGUÊS, S.A.- SOCIEDADE ABERTA”, Exequente nos autos à margem identificados, em que são Executados BB E OUTROS, vem expor e requerer a V. Exa. O seguinte:

1. Conforme resulta do comunicado emitido em 29.09.2022 pelo Conselho de Ministros do Governo Português em funções (disponível no endereço https://www.portugal.gov.pt/pt/gc23/governo/comunicado-de-conselho-de- ministros?i=512 ), foi determinado não prorrogar a situação de alerta no território nacional continental no âmbito da Covid-19, bem como determinar a cessação de vigência de diversas leis, decretos-leis e resoluções aprovadas no âmbito da pandemia da Covid-19.

2. Nesse sentido, foi então publicado o Dec. Lei nº 66-A/2022 de 30 de Setembro, que determina a cessação das medidas de combate à pandemia da doença COVID -19.

3. Com efeito, analisando a atual situação da conjuntura nacional, vista a não renovação do estado de alerta, concertada ainda com a revogação da medida de isolamento profilático por doença covid-19, é forçoso concluir-se pela caducidade da Lei 1-A/2020, de 19/03, por deixarem de se verificar os pressupostos fácticos e substantivos da sua aplicação.

4. Com efeito, a Lei 1-A/2020, de 19/03, onde se insere o artigo 6.º-E que estabelece o regime processual excecional e transitório aplicável no âmbito nomeadamente dos processos e procedimentos que correm termos nos tribunais judiciais, veio instituir medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, tendo sido decretada pela Assembleia da República nos termos da alínea c) do art.º 161.º, da Constituição da República Portuguesa.

5. Ora, salvo melhor opinião, deverá entender-se que a caducidade da Lei 1-A/2020 de 19/03 resulta da cessação das situações de vigência do estado de emergência, do estado de calamidade e, por fim, do estado de alerta.

6. E não havendo dúvidas de que ocorre a caducidade da Lei 1-A/2020, inexistem fundamentos para protelar a entrega do imóvel adjudicado ao Exequente nos presentes autos, pelo que se requer a V. Exa. se digne ordenar a sua entrega, nos termos e ao abrigo do disposto no art. 828º do Cód. Proc. Civil.

7. Mais se requer a V. Ex.ª que, encontrando-se a porta de entrada do imóvel fechada à chave seja, desde logo, requisitado o auxílio da força pública, por forma a ser possível proceder ao arrombamento daquela porta.”

4.9. No dia 7.12.2022 foi proferido o despacho recorrido com o seguinte teor: “Considera-se que se mantém a suspensão referida no despacho que antecede, pelo que improcede a pretensão do exequente”.

5. Do mérito do recurso

5.1. Inconformado por ter adquirido um imóvel nesta execução há quase dois anos sem que o mesmo lhe tenha sido entregue, entende o recorrente/exequente que deixou de haver fundamento para suspender tal diligência uma vez que já que cessou o estado de alerta e, bem assim, todas as medidas de combate à Covid-19 e que, por isso, a Lei 1-A/2020 deixou de vigorar , por caducidade.

Entendeu-se, em contrapartida, no despacho recorrido que tal diligência não se poderia concretizar mercê do disposto no art.º6.º-E, n.º7, al .b), da Lei n.º1-A/2020, de 19-3 ( na sua actual redacção que é a da Lei n.º 91/2021, de 17/12) que determina a suspensão dos “actos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família”.

Desde já se diga que não é posto em causa pelo próprio exequente que a diligência em causa se reporte à casa de morada de família dos executados, o que se tem, pois, como assente.

Tem-se argumentado que tal Lei se encontra ainda em vigor porque não foi incluída no extenso rol elencado no Decreto-Lei n.º 66-A/2022 de 30 de Setembro.

Este diploma, que determina a cessação de vigência de decretos-leis publicados, no âmbito da pandemia da doença COVID-19., esclarece no seu preâmbulo que : “ Desde o início da pandemia da doença COVID -19, o Governo tem vindo a adoptar uma série de medidas de combate à pandemia, seja numa perspetiva sanitária, seja nas vertentes de apoio social e económico às famílias e às empresas, com o intuito de mitigar os respectivos efeitos adversos.
Face ao desenvolvimento da situação epidemiológica num sentido positivo, observado nos últimos meses, assistiu -se à redução da necessidade de aprovação de novas medidas e de renovação das já aprovadas.
Concomitantemente, importa ter presente que a legislação relativa à pandemia da doença COVID -19 consubstanciou -se num número significativo de decretos -leis com medidas aprovadas com o objetivo de vigorar durante um período justificado.
Neste contexto, através do presente decreto -lei, procede -se à clarificação dos decretos -leis que ainda se encontram em vigor, bem como à eliminação das medidas que atualmente já não se revelam necessárias, através da determinação expressa de cessação de vigência de decretos -leis já caducos, anacrónicos ou ultrapassados pelo evoluir da pandemia. (realce nosso).

É, pois, o próprio governo, que num propósito de clarificação, que envereda por determinar expressamente quais os decretos-lei por si emanados que estão vigentes e os que não o estão, assumindo, aliás, que alguns deles já estavam “caducos, anacrónicos ou ultrapassados pelo evoluir da pandemia”.

Porém, tal diploma não contemplou as leis da A.R. como é o caso Lei nº 1-A/2020, de 19.3 e, por isso, o Decreto-Lei n.º 66-A/2022 de 30 de Setembro não serve, salvo melhor opinião, para aferir se o referido artigo 6º-E aditado pela Lei n.º 13-B/2021, de 05 de Abril já caducou em consequência do “evoluir da pandemia”.

Recupera-se a sua redacção:
“Artigo 6.º-E
Regime processual excecional e transitório
1 - No decurso da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, as diligências a realizar no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal regem-se pelo regime excecional e transitório previsto no presente artigo.
2 - As audiências de discussão e julgamento, bem como outras diligências que importem inquirição de testemunhas, realizam-se:
a) Presencialmente, nomeadamente nos termos do n.º 2 do artigo 82.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto, na sua redação atual; ou
b) Sem prejuízo do disposto no n.º 5, através de meios de comunicação à distância adequados, nomeadamente teleconferência, videochamada ou outro equivalente, quando não puderem ser feitas nos termos da alínea anterior e a sua realização por essa forma não colocar em causa a apreciação e valoração judiciais da prova a produzir nessas diligências, exceto, em processo penal, a prestação de declarações do arguido, do assistente e das partes civis e o depoimento das testemunhas.
3 - Em qualquer caso, compete ao tribunal assegurar a realização dos atos judiciais com a observância do limite máximo de pessoas e demais regras de segurança, de higiene e sanitárias definidas pela DGS.
4 - Nas demais diligências que requeiram a presença física das partes, dos seus mandatários ou de outros intervenientes processuais, a prática de quaisquer outros atos processuais e procedimentais realiza-se:
a) Preferencialmente através de meios de comunicação à distância adequados, nomeadamente teleconferência, videochamada ou outro equivalente; ou
b) Quando tal se revelar necessário, presencialmente.
5 - As partes, os seus mandatários ou outros intervenientes processuais que, comprovadamente, sejam maiores de 70 anos, imunodeprimidos ou portadores de doença crónica que, de acordo com as orientações da autoridade de saúde, devam ser considerados de risco, não têm obrigatoriedade de se deslocar a um tribunal, devendo, em caso de efetivação do direito de não deslocação, a respetiva inquirição ou acompanhamento da diligência realizar-se através de meios de comunicação à distância adequados, designadamente teleconferência, videochamada ou outro equivalente, a partir do seu domicílio legal ou profissional.
6 - Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, é garantida ao arguido a presença no debate instrutório e na sessão de julgamento quando tiver lugar a prestação de declarações do arguido ou coarguido e o depoimento de testemunhas.
7 - Ficam suspensos no decurso do período de vigência do regime excecional e transitório previsto no presente artigo:
a) O prazo de apresentação do devedor à insolvência, previsto no n.º 1 do artigo 18.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março;
b) Os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família;
c) Os atos de execução da entrega do local arrendado, no âmbito das ações de despejo, dos procedimentos especiais de despejo e dos processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa;
d) Os prazos de prescrição e de caducidade relativos aos processos e procedimentos referidos nas alíneas anteriores;
e) Os prazos de prescrição e de caducidade relativos aos processos cujas diligências não possam ser realizadas nos termos dos n.os 2, 4 ou 8.
8 - Nos casos em que os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência referentes a vendas e entregas judiciais de imóveis sejam suscetíveis de causar prejuízo à subsistência do executado ou do declarado insolvente, este pode requerer a suspensão da sua prática, desde que essa suspensão não cause prejuízo grave à subsistência do exequente ou dos credores do insolvente, ou um prejuízo irreparável, devendo o tribunal decidir o incidente no prazo de 10 dias, ouvida a parte contrária.
9 - O disposto nas alíneas d) e e) do n.º 7 prevalece sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, que são alargados pelo período correspondente à vigência da suspensão.
10 - Os serviços dos estabelecimentos prisionais devem assegurar, seguindo as orientações da DGS e da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais em matéria de normas de segurança, de higiene e sanitárias, as condições necessárias para que os defensores possam conferenciar presencialmente com os arguidos e condenados.
11 - Os tribunais e demais entidades referidas no n.º 1 devem estar dotados dos meios de proteção e de higienização determinados pelas recomendações da DGS.


Recordando-nos do ensinamento de Ferrara[1]: “Não infrequente é o caso de leis que no seu conteúdo determinam a duração da sua validade, pelo que transcorrido o prazo, elas deixam de ter valor, a menos que intervenha uma prorrogação da sua eficácia. (…).
Este termo pode resultar também mediatamente em relação a um certo evento. (…) Uma lei sanitária provocada por uma epidemia é aplicável até que um acto administrativo declare cessado no país o estado de infecção.
É preciso, todavia, que a lei subordine e delimite a sua eficácia aquele dado evento, pois nem toda a lei emanada por ocasião de um facto transitório (v.g. um desastre, uma sedição, uma crise) cai necessariamente quanto este cessa”.



Parece-nos que, no caso, a letra da lei é elucidativa: como se extrai do nº1, este regime destinou-se a ter vigência temporária, i.e. destinou-se a vigorar “no decurso da situação excepcional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19.”.

Isto significa que decorrida tal “situação excepcional” a lei cessa a sua vigência não dependendo para tanto de ser revogada (cfr. art.º7º, nº1 do Cód. Civil).

Não temos por certo que já tenha ocorrido o termo dessa “situação excepcional” só porque o estado de alerta não foi prorrogado.

Não foi referido categoricamente no comunicado emitido em 29.09.2022 pelo Conselho de Ministros[2] que “a situação excepcional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19 “já se mostra ultrapassada.

O que aí é dito é o seguinte : “Atenta a atual situação da pandemia pela Covid-19, o Governo decidiu não prorrogar a situação de alerta no território continental, bem como a cessação de vigência de diversos decretos-leis e resoluções aprovados no âmbito da pandemia.
A não prorrogação do estado de alerta visa adequar a legislação ao estado epidemiológico atual, equiparando, em termos legais e procedimentos daí decorrentes, a infeção Covid-19 às outras doenças.
Ao longo do tempo, para orientar e proteger a população portuguesa perante uma situação de excecional imprevisibilidade e gravidade, foi sendo criado um conjunto de diplomas legais e normas que acompanharam os estados de exceção que o país foi vivendo, nomeadamente o estado de alerta.
Agora, são eliminados do ordenamento jurídico os atos legislativos cuja vigência se mostrou desnecessária ou ultrapassada, mantendo-se em vigor disposições dirigidas à proteção das pessoas mais vulneráveis à Covid-19, bem como salvaguardando-se os efeitos futuros de factos ocorridos durante a vigência das respetivas disposições.”. ( realce nosso).

Nesse seguimento, foi então publicado o citado Dec. Lei nº 66-A/2022 de 30 de Setembro, que, como vimos, determinou a cessação da vigência de alguns decretos-leis publicados, no âmbito da pandemia da doença COVID-19.

Conquanto, tal diploma não sirva, como dissemos, para “clarificar” se o referido artigo 6º-E aditado pela Lei n.º 13-B/2021, de 05 de Abril já caducou, tal propósito de “clarificação” vem igualmente bem expresso na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 45/XV[3] que se destina a considerar” revogadas diversas leis aprovadas no âmbito da pandemia da doença COVID-19, determinando expressamente que as mesmas não se encontram em vigor, em razão de caducidade, revogação tácita anterior ou revogação pela presente lei.”.

Apesar do afirmado, a Proposta envereda por “considerar revogadas” uma série de Leis, sem distinguir quais já não estavam em vigor em razão de caducidade ou revogação tácita anterior.

No elenco das Leis que se consideram revogadas, consta precisamente a Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março (com excepção do seu artigo 5º).

Porém, lendo na íntegra o texto da Proposta chega-se à conclusão de que é propósito do legislador manter vigentes as alíneas b) a e) do n.º 7, bem como do n.º 8 do artigo 6.º-E da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março por mais algum tempo, o que é, também, revelador de que, apesar do fim do estado de alerta[4], não se pode considerar ainda ultrapassada a “situação excepcional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19” e, por consequência, se possa afirmar ter já ocorrido a caducidade do “regime processual excepcional e transitório” introduzido pelo referido artigo.

Em suma: Continua, pois, a haver fundamento legal para suspender a entrega do imóvel ao seu adquirente.

5.2. Da alegada inconstitucionalidade do artigo º6.º-E, n.º7, al .b), da Lei n.º1-A/2020, de 19-3 por violação dos artigos 18º, nº2 e 62º da CRP.

Entende o recorrente ser excessiva a restrição ao direito de propriedade sobre o imóvel adquirido já que o mesmo está a ser ocupado, a título gratuito, pelos Executados/Recorridos que justificam tal ocupação à luz de uma lei especialmente criada para combater uma pandemia mundial que já não existe.

Como já dissemos, a circunstância de ter cessado o estado de alerta não permite afirmar que a “pandemia já não existe”.

Para além disso, as consequências socioeconómicas da pandemia de Covid -19 estão bem patentes na sociedade portuguesa: reduziu o rendimento das famílias e aumentou significativamente a pobreza e a desigualdade; agravou a dificuldade em aceder a uma habitação que está, cada vez mais, transformada num “activo igualmente transacionável à escala global a preços inflacionados pela intensidade da procura[5]”.

Justifica-se, assim neste quadro de crise, a protecção que a casa de morada de família que, aliás, não é inédita : veja-se, por exemplo a Lei n.º 13/2016, de 23 de Maio ( que versa sobre a protecção da casa de morada de família no âmbito dos processos de execução fiscal).

É certo que uma das dimensões integrantes do conteúdo da garantia constitucional do direito de propriedade (art.º 62º da Constituição) é o direito de não ser privado da propriedade (nem do seu uso) de forma arbitrária e de ser indemnizado no caso de desapropriação.[6]

Ora, parece-nos inequívoco que a privação da propriedade a que assistimos - traduzida na suspensão[7] da sua entrega judicial ao adquirente - é meramente transitória e justificada, como vimos, pela crise pandémica que atravessamos.

Para além disso, nada impede que em sede própria o recorrente possa obter a justa compensação por tal ocupação: É que apesar de a entrega judicial não se poder concretizar, não significa que os executados possam usar e fruir o imóvel sem o pagamento de qualquer contrapartida, havendo institutos jurídicos susceptíveis de tutelar a situação do dominus.

Não vemos, pois, que a manutenção desta medida legislativa ultrapasse o limite imposto pelo princípio da proporcionalidade (artigo 18.º, n.º 2, da Constituição).

III. DECISÃO


Por todo o exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e em manter a decisão recorrida.
Custas pelo apelante.

Évora, 2 de Março de 2023

Maria João Sousa e Faro (relatora)
Florbela Moreira Lança
Elisabete Valente

__________________________________________________
[1] Interpretação e Aplicação das Leis, Colecção Studium, 3ªed.,, pag.190/191.
[2] Consultável em https://www.portugal.gov.pt/pt/gc23/comunicacao/noticia?i=fim-do-estado-de-alerta.
[3] https://app.parlamento.pt
[4] Que, por força da Resolução do Conselho de Ministros n.º 73-A/2022, de 26 de agosto, foi determinado que vigoraria até às 23h59m do dia 30 de Setembro de 2022.
[5] “As consequências socioeconómicas da COVID-19 e a sua desigual distribuição” de José Castro Caldas, Ana Alves da Silva, Frederico Cantante.pag. 5 , consultável em https://colabor.pt/wp-content/uploads/2020/07/As-consequencias-socioeconomicas-da-COVID-19-e-sua-desigual-distribuicao.pdf.
[6] Assim, Gomes Canotilho e Vital Moreira in Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4.ª Edição Revista, pág. 805).
[7] O próprio CPC prevê já, relativamente à casa de habitação efetiva do executado, a possibilidade de suspensão da venda no caso de execução de sentença pendente de recurso (cf. artigo 704.º, n.º 4 do CPC ) e nos casos de dedução de oposição à execução mediante embargos de executado e de oposição à penhora (cf. artigo 733.º n.º 5, 785.º, n.º 4, e 856.º, n.º 4 do mesmo código).