Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
572/16.8T9TMR.E2
Relator: GILBERTO CUNHA
Descritores: INSOLVÊNCIA DOLOSA
Data do Acordão: 12/19/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
I – Incorrem na prática de um crime de insolvência dolosa, p. e p. nos termos do n.º2 do artigo 227.º do Código Penal, terceiros que, pelos seu atos, através de negócios simulados e em conluio com o devedor e em benefício deste, contribuíram para fazer desaparecer o seu património, com intenção de causar prejuízo aos credores, obstando a que estes pudessem ser ressarcidos pelo homicídio de um seu familiar, cometido pelo arguido-devedor.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

RELATÓRIO.

Decisão recorrida.

No processo comum nº572/16.8T9TMR procedente do Juízo de Competência Genérica de Almeirim do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, os arguidos MR, AA, AB, FG e PG, todos melhor identificados nos autos, foram pronunciados pela prática em co-autoria de um crime de insolvência dolosa, pp. pelo art. 227º, nº2, com referência às líneas a) e b) do nº1 do mesmo artigo do Código Penal.

Submetidos a julgamento perante tribunal singular por sentença proferida em 29-05-2019 foi julgada parcialmente provada e procedente a pronúncia e consequentemente decidido o seguinte:

a) condenar a arguida MR, pela prática em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de insolvência dolosa, p. e p. pelo artigo 227.º, n.º 2, por referência às alíneas a) e b), do n.º 1, na pena de 350 dias de multa, à taxa diária de 6,00€, no valor total de 2.100,00€;

b) condenar a arguida AA, pela prática em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de insolvência dolosa, p. e p. pelo artigo 227.º, n.º 2, por referência às alíneas a) e b), do n.º 1, na pena de 365 dias de multa, à taxa diária de 6,00€, no valor total de 2.190,00€;

c) condenar o arguido AB, pela prática em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de insolvência dolosa, p. e p. pelo artigo 227.º, n.º 2, por referência às alíneas a) e b), do n.º 1, na pena de 365 dias de multa, à taxa diária de 6,00€, no valor total de 2.190,00€;

d) condenar o arguido FG, pela prática em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de insolvência dolosa, p. e p. pelo artigo 227.º, n.º 2, por referência às alíneas a) e b), do n.º 1, na pena de 340 dias de multa, à taxa diária de 6,00€, no valor total de 2.040,00€;

e) absolver a arguida PG, da prática do crime de insolvência dolosa, p. e p. pelo artigo 227.º, n.º 2, pelo qual se encontrava pronunciada.

Recurso.

Inconformados com esta decisão dela recorreram os arguidos AA, MR e AB, pugnando pela sua absolvição, rematando a motivação com as seguintes (transcritas) conclusões:

I. A decisão sob recurso deu como provada a seguinte factualidade:

1. Por acórdão proferido no processo comum coletivo n.º ---/13.9GFALR, no Tribunal Judicial de Almeirim, (pelo então Tribunal do Círculo de Santarém) – para o qual se remete e se dá aqui por integralmente reproduzido – o arguido JI foi condenado pela prática de um crime de homicídio simples, praticado em 02.01.2013;

2. O arguido JI foi ainda condenado, pelo mesmo acórdão, no pagamento da indemnização civil peticionada pelos herdeiros da vítima, concretamente no pagamento dos seguintes valores:

a. À demandante ML (ora assistente), a quantia de 12.000,00€ - doze mil euros – (a título de danos morais por ela sofridos com a morte da vítima), acrescida dos juros de mora legais, calculados sobre essa quantia, desde a data da prolação do acórdão até integral e efectivo cumprimento;

b. Aos demandantes MG, JF e DF, a quantia de 10.000,00€ - dez mil euros – (a título de danos morais por eles sofridos com a morte da vítima), por cada um, acrescida dos juros de mora legais, calculados sobre essa quantia, desde a data da prolação do acórdão até integral e efectivo cumprimento;

c. A todos os demandantes, ML, MG, JF e DF, em conjunto, a quantia de 47.500,00€ (quarenta e sete mil e quinhentos euros), acrescida dos juros de mora legais, calculados sobre essa quantia, desde a data da prolação do acórdão até integral e efectivo cumprimento.

3. À data da prática do crime de homicídio referido – 02.01.2013 – JI e a sua cônjuge, MR eram donos e legítimos proprietários do prédio misto sito na Rua …, Frade de Baixo, freguesia e concelho de Alpiarça, com uma área total de 4.800m2, descrito na C.R.P. de Alpiarça sob o artigo --- e com as inscrições matriciais urbanas xx e xx e rústica xx – secção xxx (doravante apenas designado por “imóvel”), sendo legítimos possuidores e utilizadores daquele bem.

4. No dia 07.02.2013, os arguidos JI – àquela data preso preventivamente – e MR celebraram e registaram “negócio”, denominado por “Doação”, que tinha por objecto o aludido imóvel, e fizeram-no a favor da filha AA e do seu cônjuge AB, atribuindo a este “negócio” o valor global de 65.383,80€ e para tal declarando que aquela doação era feira “por conta das quotas disponíveis dos doadores”.

5. O direito de propriedade sobre o referido imóvel passou, então, a estar inscrito a favor da arguida AA e do seu cônjuge AB.

6. No dia 17.07.2013, os arguidos AA e AB celebraram novo “negócio”, intitulado por “contrato de compra e venda”, sobre o mesmo imóvel, com o arguido FG.

7. Atribuíram, os supra referidos arguidos, a este último negócio, o valor global de 120.000,00€ a liquidar pelo adquirente, FG, em 300 (trezentas) prestações mensais de 400,00€ (quatrocentos euros) cada e passando o direito de propriedade sobre esse imóvel a estar inscrito a favor dos arguidos FG e PG.

8. O comprador, FG, por sua vez, cedeu gratuitamente, o imóvel aos vendedores, AA e AB, “negócio” que intitularam de “comodato”, para habitação.

9. Não obstante ter sido proferida sentença no dia 07.01.2014, no procedimento cautelar que correu por apenso ao aludido processo comum colectivo n.º --/13.9GFALR-A, decretando o arresto preventivo dos valores depositados em contas tituladas pelo arguido JI, já não se encontravam nas mesmas quaisquer quantias monetárias.

10. O arguido JI veio apresentar-se à insolvência o dia 17.09.2015, tendo sido proferida sentença de declaração de insolvência no dia 21.09.2015, transitada em julgado no dia 28.10.2015.

11. O arguido JI nunca procedeu ao pagamento de quaisquer valores em dívida aos queixosos, designadamente aqueles a que foi condenado no processo comum colectivo n.º --/13.9GFALR.

12. Quando outorgaram os respectivos “negócios”, acima referidos, todos os arguidos, MR, AA, AB e FG, sabiam perfeitamente que, actuando assim em conluio, impediram os credores, ora queixosos, de satisfazer o seu crédito, tendo não só consciência do prejuízo que criavam a estes últimos, como também intenção de, conscientemente, prejudicar os queixosos, impedindo-os de alcançar o seu propósito de cobrança coerciva do referido crédito.

13. Os arguidos JI, MR, AA, AB e FG agiram com o intuito de subtrair o aludido imóvel ao património do arguido JI e assim, em benefício deste, evitaram que o mesmo viesse a ser utilizado para pagamento do crédito dos queixosos.

14. A arguida MR, mulher de JI, assim como os seus familiares próximos, os arguidos AA e AB, continuam a viver, como sempre fizeram, no mesmo imóvel, o que era do conhecimento de JI.

15. Os referidos “negócios” foram celebrados, respectivamente por JI, MR, AA, AB e FG apenas com o propósito de prejudicar o crédito dos queixosos, dissipando e extraviando bens do património líquido (activo), de JI e da sua respectiva herança.

16. JI e a arguida MR sabiam perfeitamente que, no momento em que doaram o imóvel à filha e ao genro – AA e AB não tinha outros bens suficientes no património daquele para que os queixosos lograssem obter o pagamento do seu crédito.

17. Os arguidos AA e AB sabiam que a intenção de JI, com tal “negócio” denominado por “Doação”, era apenas esvaziar o património daquele e, assim, obstar a que os queixosos conseguissem obter o pagamento da indemnização que lhes era devida.

18. O arguido FG, por seu turno, celebrando “negócio” de “compra e venda” sabia que, desse modo, obstava a que os queixosos conseguissem obter o pagamento da indemnização que lhes era devida.

19. Não foram, de facto, encontrados bens susceptíveis de penhora, para pagamento de indemnização civil aos queixosos.

20. Todos os arguidos, JI, MR, AA, AB e FG actuaram em comunhão de esforços e agiram de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que as suas respectivas condutas eram proibidas e punidas por lei.

21. Causando com a sua respectiva conduta, de forma livre, voluntária e consciente, prejuízos aos queixosos, pois não fossem os factos praticados pelos arguidos, celebrando os respectivos negócios de “Doação” e de “Compra e Venda”, e os queixosos teriam recebido a indemnização que lhes era devida, por via de penhora e liquidação do património do condenado JI, actuando em benefício deste.

22. JI faleceu no dia 15.01.2017.

23. Desconhecem-se anteriores condenações penais aos arguidos, constando do seu certificado de registo criminal que os não têm.

24. A arguida AA é reformada, auferindo 400,00€ mensais, a título de pensão reforma.

25. Vive em casa do arguido FG, segundo declara a título de favor.

26. Tem dois filhos maiores.

27. Vive com a mãe, de quem trata.

28. Paga cerca de 200,00€ mensais de um crédito pessoal.

29. Tem o 7.º ano de escolaridade.

30. Declara receber o valor que o arguido lhe paga todos os meses.

II. Os factos carreados para os autos e dados como provados não permitiam, nem permitem ao tribunal recorrido, sem quaisquer reservas, condenar, como o fez, os arguidos.

III. O princípio do in dúbio pro reo constitui uma imposição dirigida ao julgador no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa; como tal, é um princípio que tem a ver com a questão de facto, não tendo aplicação no caso de alguma dúvida assaltar o espírito do juiz acerca da matéria de direito.

IV. Verifica-se ainda, na sentença recorrida, um erro notório na apreciação da prova.

V. O erro notório na apreciação da prova consiste num vício de apuramento da matéria de facto, que prescinde da análise da prova produzida para se ater somente ao texto da decisão recorrida, por si ou conjugado com as regras da experiência comum.

VI. Verifica-se o erro notório na apreciação da prova quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum.

VII. Na fundamentação da sentença, para além da enumeração dos factos provados e não provados, deve constar uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal (art.374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal).

Vejamos:
VIII. Em sede de instrução, considerou-se fortemente indiciada a matéria vertida na acusação pública, indiciação essa cuja prova teria de ser produzida em sede de julgamento.

IX. Veja-se a esse propósito o teor do próprio despacho que pronunciou os arguidos nos presentes autos: foi atendido ao teor dos documentos carreados para os autos e as declarações prestadas em juízo em sede de julgamento.

X. Comete o crime de insolvência dolosa o arguido que, in casu, após cometimento de crime de homicídio, mas antes da prolação do acórdão que o condena pelo homicídio e na indemnização deste decorrente, procede à dissipação dos bens com a intenção de prejudicar os credores, nas demais condições previstas no art. 227º do CP. XI. Dispõe o citado preceito legal (artigo 227º do Código Penal) que,

1 - O devedor que com intenção de prejudicar os credores:
a) Destruir, danificar, inutilizar ou fizer desaparecer parte do seu património;

b) diminuir ficticiamente o seu ativo, dissimulando coisas, invocando dívidas supostas, reconhecendo créditos fictícios, incitando terceiros a apresentá-los, ou simulando, por qualquer outra forma, uma situação patrimonial inferior à realidade, nomeadamente por meio de contabilidade inexata, falso balanço, destruição ou ocultação de documentos contabilísticos ou não organizando a contabilidade apesar de devida;

c) Criar ou agravar artificialmente prejuízos ou reduzir lucros; ou

d) Para retardar falência, comprar mercadorias a crédito, com o fim de as vender ou utilizar em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente,

é punido, se ocorrer a situação de insolvência e esta vier a ser reconhecida judicialmente, com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias.

2 - O terceiro que praticar algum dos factos descritos no n.º 1 deste artigo, com o conhecimento do devedor ou em benefício deste, é punido com a pena prevista nos números anteriores, conforme os casos, especialmente atenuada.

3 - Sem prejuízo do disposto no artigo 12.º, é punível nos termos dos n.ºs 1 e 2 deste artigo, no caso de o devedor ser pessoa coletiva, sociedade ou mera associação de facto, quem tiver exercido de facto a respetiva gestão ou direção efectiva e houver praticado algum dos factos previstos no n.º 1.”

E quanto aos elementos essenciais para que se vejam preenchidos os pressupostos de punibilidade quanto a este crime impõe-se desde logo dizer que exige-se que haja, com a conduta do agente, um prejuízo para o(s) credor(es).

XII. A valoração da prova que há-de conduzir ou não à condenação do arguido assentará sobre a que, de facto, for produzida em julgamento.

XIII. Quanto a esta temos a vertida na prova documental pois que nem assistente nem testemunhas prestaram depoimento em juízo.

XIV. Impunha-se assim, desde logo, que se provasse o prejuízo para os ofendidos/assistentes, prova essa que não resulta dos autos.

XV. Este elemento de prova revela-se essencial para a condenação dos arguidos.

XVI. Como é sabido, não obstante terem sido pronunciados os arguidos a verdade é que os assistentes e demandantes civis vieram em sede de julgamento a desistir do pedido de indemnização formulado nos autos, não tendo prestado sequer depoimento em juízo.

XVII. E porque assim foi a prova dos autos resumiu-se à documentação nele existente que de facto confirma que após a prática de um crime o então arguido transmitiu património a terceiros.

XVIII. Desta forma, ter-se-á que questionar:

a) Tal transmissão visou diminuir o seu património procurando assim furtar-se ao pagamento dos seus créditos?

b) Após a transmissão do património os créditos dos lesados foram ou não pagos?

c) Houve algum prejuízo para os ofendidos emergente das transmissões efetuadas?

d) E até mesmo se os consumos energéticos do prédio transmitido se encontravam faturados em nome dos transmitentes ou dos adquirentes, elementos essenciais à conformação de uma coerente convicção.

XIX. Todas estas questões não mereceram qualquer resposta em sede de julgamento face à ausência de depoimentos dos arguidos ou ofendidos.

XX. Porém, matéria que pudesse adensar mais esta dúvida foi carreada para os autos.

XXI. Em sede de julgamento, aquando das declarações prestadas pelos arguidos quanto à sua situação socioeconómica foi referido pela arguida AB que auferia mensalmente pensão de reforma e o valor correspondente ao pagamento do preço, de forma prestacional, pago pelo arguido FG.

XXII. A requerimento do Ministério Publico esta arguido juntou aos autos documentos que comprovaram tais pagamentos prestacionais. (a fls., em audiência de julgamento de 08/05/2019) e Ponto 30 dos Factos dados como Provados.

XXIII. Aos autos foi demonstrado também que não se tratou de negócio simulado a venda do prédio então detido por aquela arguida a FG.

XXIV. Cabia ao Ministério Público demonstrar em juízo que os negócios celebrados visaram causar prejuízo aos credores através da dissipação de património.

XXV. E tal, salvo melhor opinião e com o devido respeito não se demonstrou.

XXVI. É verdade que se verificaram várias transmissões de património nos precisos termos que as partes entenderam fazer.

XXVII. Reitera-se que essas movimentações patrimoniais não causaram quaisquer prejuízos para os ofendidos.

XXVIII. O crime de insolvência dolosa não é um crime que possa ser cometido por qualquer pessoa. Trata-se de um crime específico puro na medida em que só pode ser praticado por um agente com especiais qualidades: um devedor cuja insolvência possa ser objeto de reconhecimento judicial (mesmo ao punir um terceiro exige sempre que o faça com o conhecimento do devedor ou em benefício deste).

XXIX. Devedor é o sujeito passivo de uma relação de crédito, é todo aquele que se encontra adstrito a efetuar uma prestação a terceiro, seu credor, normalmente de natureza pecuniária (mas não necessariamente).

XXX. Pode tratar-se de um devedor comerciante ou não comerciante. Tem é de ser devedor à data da prática dos factos constitutivos do tipo de crime.

XXXI. E quanto a esse agente o procedimento criminal extinguiu-se com o seu decesso, ocorrido em 15.01.2017, como melhor identificado nos autos. (Ponto 22 dos Factos dados como Provados)

XXXII. Não resultou também comprovado em sede de julgamento que os arguidos tivessem (todos) agido com conhecimento do devedor, e em benefício deste, conhecendo o prejuízo que causariam aos credores, ora queixosos, ao atuarem conjuntamente, isto é, em comunhão de esforços e meios com estes (cfr. art. 26.º do Código Penal, relativamente à atuação em co-autoria).

XXXIII. Mas em todas as condutas dos arguidos exige-se a existência de um prejuízo para os ofendidos, prejuízo esse que não se mostra demonstrado.

XXXIV. Exigia-se assim que se demonstrasse em juízo que o crédito dos demandantes se não mostrou pago aquando da transmissão dos bens que eram detidos pelo arguido, prova essa que recaia sobre o Ministério Público e a Assistente que, diga-se, também se remeteu ao silêncio em sede de julgamento.

XXXV. Mais: ainda que se considerasse bastante a prova documental junta aos autos sempre se dirá que tendo o Tribunal formado a sua convicção com base, mesmo que não primordial ou essencialmente, pelo menos, nos documentos juntos aos autos em sede de inquérito não foram os mesmos examinados em audiência e ponderados em conjunto com outras provas, como ressalta da motivação da decisão sobre a matéria de facto o que é violador do princípio da imediação e do seu regime constante dos artigos 355º a 357º, do CPP, inutiliza a prova afetada pelo seu desrespeito que, por isso, não pode ser invocada nem pode valer para o efeito da formação da convicção.

XXXVI. Porque assim é não poderia, também, o tribunal recorrido ter valorado a mencionada prova documental.

XXXVII. A jurisprudência dominante considera que os documentos se destinam a fazer prova de factos e dado que para a formação da convicção probatória só relevam as provas que forem produzidas ou examinadas em audiência (cfr. art. 355.º, n.º 1, do CPP), os documentos apresentados depois deste limite temporal não podem estar a coberto daquele normativo processual expressivo do princípio fundamental da imediação (vide Acórdãos do STJ de 25-03-2004, Proc. n.º 463/04 - 5.ª, e de 20-02-2008, Proc. n.º 4838/08 - 3.ª).

XXXVIII. Ac. TRP de 18-06-2007: “Um documento não lido nem examinado na audiência de julgamento não pode valer como prova, se a sua junção ao processo não foi notificada aos sujeitos processuais interessados e se estes depois dessa junção não tiveram acesso aos autos.”

XXXIX. Ac. TRG de 4-03-2013 “A norma do art. 355 nº 1 do CPP nos termos da qual «não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência»“.

XL. Ainda assim importa referir que o prédio transaccionado cuja transmissão foi pela sentença recorrida posta em crise, tem os contratos de fornecimento de água, luz e razão porque, também aqui, se entende que pelo menos duvidas subsistem quanto à efetiva concretização do negocio, o que, forçosamente terá que conduzir à absolvição dos arguidos por subsistir duvida razoável quanto à prática do crime que aos arguidos é imputado, vigorando, por isso, o principio constitucional do in dúbio pro reo.

XLI. A decisão recorrida deveria ter absolvido os arguidos por não constituir crime a conduta dos arguidos, ou caso tal posse consubstanciar ilícito criminal, dúvidas subsistem quanto à prática das condutas descritas nos autos, pois que dos documentos juntos aos autos, desistência do pedido de indemnização e silencio da assistência não ficou demonstrado nos autos que, de facto, tivessem os arguidos causado prejuízo aos demandantes civis e/os valores indemnizatórios se mostrassem ou não pagos.

XLII. Ademais, a prova documental deveria ter sido apreciada e examinada em juízo, em sede de audiência de discussão e julgamento o que não se verificou nos presentes autos.

XLIII. A decisão recorrida violou o disposto nos artigos 26º e 227º do Código Penal e 355º, nº.1, 356º, 357º e 374º, nº.2 do Código de Processo Penal.

Termos em que, deve a sentença sob recurso ser revogada e em consequência, ser lavrado acórdão que absolva os arguidos da prática de um crime de insolvência dolosa, previsto e punido pelo artigo 227º do Código Penal.

Contra motivou o Ministério Público na 1ª Instância defendendo o acerto da decisão recorrida e a sua manutenção, concluindo pela improcedência do recurso, formulando as seguintes conclusões:

1. Os arguidos pretendem impugnar a apreciação da prova realizada pelo Tribunal impugnado a matéria de facto dada como provada;

2. Segundo o princípio consagrado no art. 127.º do CPP, a apreciação da prova é deixada à livre convicção do Juiz, sendo apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador.

3. Apesar do recorrente ter o direito de pôr em causa a matéria de facto dada como provada pelo Tribunal, não pode limitar-se a contrapor a sua própria convicção à do Tribunal, desde que a decisão deste se mostre suficientemente fundamentada, através de regras da ciência, da lógica e da experiência, o que acontece no caso em apreço, para assim chegar a conclusões diferentes daquelas que foram tiradas na Sentença ora recorrida;

4. A norma do art. 355.º, n.º 1 do CPP visa evitar que concorram para a formação da convicção do Tribunal provas que não tenham sido apresentadas e feitas juntar ao processo com respeito pelo princípio do contraditório.

5. O referido artigo não exige que todas as provas tenham de ser reproduzidas na audiência de julgamento.

6. Os documentos que serviram para o Tribunal a quo fundar a sua convicção já eram todos conhecidos dos arguidos, pelo que, em nada foi afectado o aludido princípio do contraditório.

7. A decisão proferida pelo Tribunal a quo não merece qualquer censura.

Pelo exposto, deverá ser negado provimento ao recurso, confirmando-se na íntegra a decisão recorrida.

Nesta Relação o Exmº Senhor Procurador-Geral Adjunto acompanha a argumentação expendida pelo Ministério Público na 1ª Instância, pelo que também é de parecer que deve ser negado provimento ao recurso e confirmada a sentença recorrida.

Cumprido o disposto no art.417º, nº2 do CPP, responderam os arguidos/recorrentes reeditando, no essencial, a argumentação expendida anteriormente na motivação do recurso por eles interposto.

Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos teve lugar a conferência.

Cumpre apreciar e decidir.

FUNDAMENTAÇÃO.

Poderes de cognição deste tribunal. Objecto do recurso. Questões a examinar.

Tendo sido documentadas na acta, através registo áudio as declarações e depoimentos prestados oralmente na audiência de julgamento, este Tribunal, em princípio, conhece de facto e de direito (arts.363º, 364º e 428º do CPP.

Como é sabido, o nosso ordenamento jurídico contempla duas formas de impugnação da matéria de facto.

Uma designada por impugnação ampla, que consiste na reapreciação da prova gravada e que tem de ser invocada pelo recorrente, pois não é de conhecimento oficioso, recaindo sobre o recorrente o duplo ónus de especificação previsto no art.412º, nº3 e 4 do CPP, devendo quando pretenda o reexame amplo da matéria de facto o ónus de especificar:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida,

c) As provas que devem ser renovadas.

Acrescenta o nº4 desse preceito que, quando as provas tenham sido gravadas, as especificações nas previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no nº3 do art.364º (indicação do início e termo de cada declaração), devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação. (sublinhado e negrito nosso).

Outra, designada por impugnação restrita, que consiste na invocação dos vícios previstos nas alíneas a), b) e c) do nº2 do art.410º, do CPP que, aliás, são de conhecimento oficioso.

Trata-se de duas formas distintas de “atacar” a matéria de facto, estando por isso sujeitas a regimes processuais diferentes.

Ora, examinada a peça recursiva é patente que os recorrentes optaram apenas por esta última forma, invocando expressamente o erro notório na apreciação da prova, previsto na al.c) do nº2 do art.410º do CPP.

O erro de julgamento (em sentido amplo) e o erro notório na apreciação da prova são institutos distintos e como tal não devem ser confundidas.

Assim, enquanto o erro notório na apreciação da prova, constitui um vício intrínseco da sentença, e por isso, tem de resultar por si só ou conjugadamente com as regras da experiência comum do respectivo texto (art.410º, nº2, do CPP), o erro de julgamento não se confina a esse domínio, tratando-se de uma forma ampla de impugnação da matéria de facto, que todavia, deve ser exercida com observância do disposto no art.412º, nºs 3 e 4 do CPP, o que aqui não acontece.

Como é mencionado com toda a propriedade no douto acórdão do STJ de uniformização de jurisprudência nº3/2012, de 8 de Março de 2012, publicado no D.R 1ª série, nº77, de 18 de Abril de 2012, a sindicância da matéria de facto com base «na reapreciação da prova documentada em audiência de julgamento não é global, antes sendo um reexame parcelar, restrito aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, necessário sendo que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam, não bastando remeter na íntegra para as declarações e depoimentos de algumas testemunhas.

«A reapreciação da matéria de facto não é, não pode ser, um segundo, um novo, um outro integral, julgamento da matéria de facto. Pede-se ao tribunal de recurso uma intromissão no julgamento da matéria de facto, um juízo substitutivo do proclamado na 1.ª instância, mas há que ter em atenção que o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em segunda instância, não impõe uma avaliação global, não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida e muito menos um novo julgamento da causa, em toda a sua extensão, tal como ocorreu na 1.ª instância, tratando-se de um reexame necessariamente segmentado, não da totalidade da matéria de facto, envolvendo tal reponderação um julgamento/reexame meramente parcelar, de via reduzida, substitutivo. (…).

O Supremo Tribunal de Justiça tem reafirmado que o recurso da matéria de facto perante a Relação não é um novo julgamento em que a 2.ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1.ª instância, como se o julgamento não existisse, tratando-se antes de um remédio jurídico, destinado a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros e não indiscriminadamente, de forma genérica, quaisquer eventuais erros».

Acrescenta a este propósito o aludido acórdão que «trata-se de um julgamento de via reduzida, de remédio para deficiências factuais circunscritas (…).

A intromissão da Relação no domínio factual cingir-se-á a uma intervenção «cirúrgica», no sentido de delimitada, restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção, se for caso disso, e apenas na medida do que resultar do filtro da documentação.

O julgamento efectuado pela Relação é de via reduzida, de remédio para deficiências factuais circunscritas, confinadamente a pontos específicos, concretamente indicados, não valendo uma impugnação genérica, repousando em considerações mais ou menos alargadas ou simplesmente abrangentes da leitura pessoal, unilateralista e interessada que os sujeitos processuais fazem das provas e do resultado a que devam chegar».

Para que possa ser alcançado esse desiderato a lei processual impõe ao recorrente «a necessidade de observância de requisitos formais da motivação de recurso face à imposta especificação dos concretos pontos da matéria de facto, que considera incorrectamente julgados, das concretas provas e referência ao conteúdo concreto dos depoimentos que o levam a concluir que o tribunal julgou incorrectamente e que impõem decisão diversa da recorrida, tudo com referência ao consignado na acta, com o que se opera a delimitação do âmbito do recurso».

Da conjugação da al.b) do nº3 e do nº4 do art.412º do CPP, resulta para o recorrente um duplo ónus de especificação das provas concretas que impõem decisão diversa da recorrida, fazendo-o por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no nº3 do art.364º, com indicação do inicio e o termo da gravação de cada declaração e de indicação concreta das passagens em que se funda a impugnação, o que aqui não se mostra minimamente observado.

Em todo o caso, acresce ainda dizer, que se porventura os recorrentes, pretendiam impugnar amplamente a matéria de facto, o certo é que também não observaram satisfatoriamente o disposto nestes dispositivos legais, porquanto quer da fundamentação, quer das conclusões do recurso não constam aquelas especificações, pois é incontornável que não individualizam quais os factos concretos dados como provados na sentença recorrida que na sua óptica foram incorrectamente julgados, bem como não especificam por referência a cada um desses factos quais as provas concretas que em seu entender imporiam decisão diversa.

Não satisfaz essa exigência a cómoda alegação feita em termos vagos e genéricos sem individualização por referência à sentença recorrida os pontos concretos da matéria de facto dada como provada que consideram incorrectamente julgados.

Do mesmo modo também não satisfaz aquele ónus a remissão feita em termos genéricos para determinados meios de prova, como por exemplo, depoimentos ou declarações sem precisar nos termos atrás mencionados as passagens concretas dos mesmos em que se funda a impugnação.

É que o recurso da matéria de facto não visa a reapreciação de toda a prova produzida, não constitui um segundo julgamento mas, apenas, a detecção e correcção de erros de julgamento, incidindo sobre concretos pontos da matéria de facto, que os recorrentes devem identificar, bem como especificar as concretas provas que demonstram a existência do erro.

Aliás, não se deve confundir, como parece ser o caso dos recorrentes, o erro notório na apreciação da prova, com o erro de julgamento, enquanto forma de impugnação ampla da matéria de facto.

Com efeito, como atrás dissemos, constituem duas formas distintas de “atacar” a matéria de facto, estando por isso sujeitas a regimes processuais diferentes.

Enquanto aqueles constituem vícios intrínsecos da sentença, e por isso, tem de resultar do respectivo texto (art.410º, nº2, do CPP), este não se confina a esse domínio, tratando-se de uma forma ampla de impugnação da matéria de facto, que todavia, deve ser exercida com observância do disposto no art.412º, nºs 3 e 4 do CPP.

No caso concreto, resulta à evidência da peça recursiva, que os recorrentes, não impugnam de forma válida, amplamente a matéria de facto.

Com efeito, como se disse, os recorrentes em momento algum individualizam quaisquer pontos concretos da matéria de facto descrita na sentença recorrida que consideram incorrectamente julgados, nem especificam por referência a esses factos, nos moldes legalmente exigíveis, quais as provas concretas que em seu entender imporiam decisão diversa, sendo certo que não compete a este tribunal perscrutar na minuta de recurso quais os pontos concretos da matéria de facto que supostamente os recorrentes reputam incorrectamente julgados e eventualmente quais as provas concretas por referência a esses factos que imporiam decisão diversa.

Nestas circunstâncias, na esteira do douto acórdão da Relação do Porto, de 28/05/2003, acessível em www.dgsi.pt entendemos que este Tribunal só pode sindicar a decisão em matéria de facto no âmbito do art. 410º, nº2 do CPP, e não amplamente, não havendo sequer lugar a convite ao recorrente para apresentar as especificações em falta.

Na verdade, como lapidarmente se afirma nesse aresto e no acórdão do Tribunal Constitucional nº259/2002, de 18/6/2002, publicado no D.R. II Série, de 13/12/2002, que aí se cita, quando a deficiência de não se ter concretizado as especificações previstas nas alíneas a), b) e c), do nº3 do art.412º, do CPP, reside tanto na fundamentação como nas conclusões, não assiste ao recorrente o direito de apresentar uma segunda motivação, quando na primeira não indicou os fundamentos do recurso ou a completar a primeira, caso nesta não tivesse indicado todos os seus possíveis fundamentos.

Como aí se afirma com toda a propriedade, a existência de um despacho de aperfeiçoamento quando o vício seja da própria motivação equivaleria, no fundo, à concessão de novo prazo para recorrer, que não pode considerar-se compreendido no próprio direito ao recurso.

Seguindo esta orientação, que também perfilhamos, o Tribunal Constitucional posteriormente no acórdão nº140/2004, de 10/3/2004, publicado no D. R. II Série, nº91 de 17/4/2004, veio uma vez mais proclamar que não é inconstitucional a norma do art.412º, nºs 3, al.b), e nº4, do CPP quando interpretada no sentido de que a falta, na motivação e nas conclusões de recurso em que se impugne matéria de facto, da especificação nele exigida tem como efeito o não conhecimento desta matéria e a improcedência do recurso, sem que ao recorrente tenha sido dada oportunidade de suprir tais deficiências.

Não invalida este entendimento as alterações introduzidas pela Lei nº48/2007, de 29/8.

Neste sentido decidiu o STJ no douto aresto proferido no proc.nº08P1884, de 05-06-2008, relatado pelo Exmº Conselheiro Simas Santos, disponível em www.dgsi.pt onde se afirma que se as mencionadas especificações não constam do texto da motivação, não deve o recorrente ser convidado a corrigir as conclusões da motivação, acrescentando que a recente Lei nº48/2007 de 29 de Agosto, veio, aliás, consagrar esta posição na nova redacção dada ao art.417º do CPP, pois estabelece no seu nº3 que, se a motivação do recurso não contiver conclusões ou destas não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos nºs 2 a 5 do art.412º, o relator convida o recorrente a apresentar, completar ou esclarecer as conclusões formuladas, no prazo de 10 dias, sob pena de o recurso ser rejeitado ou não ser conhecido na parte afectada. Mas logo esclarece, no nº4, que tal aperfeiçoamento não permite modificar o âmbito do recurso que tiver sido fixado na motivação. Ou seja, que o texto da motivação constitui o limite da correcção possível das conclusões. Com o mesmo sentido e alcance pode ainda ver-se o acórdão do STJ de 19-05-2010, proc. nº696/05.7TAVCD.S1, também disponível em www.dgsi.pt .

Não tendo os recorrentes cumprido com aquele ónus, este tribunal não pode reexaminar amplamente a matéria de facto fixada pelo Tribunal recorrido e deste modo não pode sindicar a existência ou não de supostos erros de julgamento.

Não constando da peça recursiva, quer da sua fundamentação, quer das respectivas conclusões, a individualização dos pontos concretos da matéria de facto constante da sentença sob censura que os recorrentes consideram incorrectamente julgados, nem vindo especificadas nos moldes prescritos na lei, quais as provas concretas que em relação a esses factos imporiam decisão diversa, os poderes de cognição deste tribunal ficam restringidos à matéria de direito, sem prejuízo, claro está, de conhecer da impugnação da matéria de facto mas restrita aos vícios elencados no nº2 do art.410º do CPP, que são até de conhecimento oficioso.

Aliás, tanto quanto nos é possível descortinar da peça recursiva, o que delas emerge, como mais à frente se verá de forma mais detalhada, é uma discordância dos recorrentes relativamente à convicção alcançada pelo julgador, pretendendo que esse tribunal julgasse de acordo com a própria convicção dos recorrentes, sendo que esse acto pertence em exclusivo ao tribunal que apreciou a prova segundo as regras da experiência e a sua livre convicção.

Em bom rigor, os recorrentes não indicam prova que sustente decisão diversa da recorrida, nos termos e para os efeitos do disposto no art.412º, nº3, al.b) do CPP, pois não indicam prova consistente que tornasse inverosímil a versão dos factos tal como se encontra descrita na sentença recorrida.

Impor decisão diversa da recorrida não significa admitir uma decisão diversa da recorrida. Tem um alcance muito mais exigente, muito mais impositivo. No sentido de que não basta contrapor à convicção do julgador uma outra convicção diferente, ainda que também possível, para provocar uma modificação na decisão de facto. É necessário que o recorrente desenvolva um quadro argumentativo que demonstre, através da análise das provas por si especificadas, que a convicção formada pelo julgador, relativamente aos pontos de facto impugnados, é impossível ou desprovida de razoabilidade. É sem dúvida, este o sentido da expressão "provas que impõem decisão diversa da recorrida'', constante da al. b) do n°3 do art.412 do Código de Processo Penal. Que consubstancia um ónus imposto ao recorrente, no sentido de ter de demonstrar que as provas produzidas impõem uma decisão diferente da que foi proferida. "'Impor" decisão diferente não significa "admitir" uma outra decisão diferente. É mais do que isso e quer dizer que a decisão proferida, face às provas, não é possível ou não é plausível.

Ora, os recorrentes, como já dissemos, limitam-se a confrontar a convicção formada pelo tribunal recorrido com a sua própria convicção, sendo evidente que os recorrentes ao expressarem a sua discordância com a sentença recorrida, fazem-no em termos de criticar a valoração de alguma prova feita pelo tribunal, sob a alegação do vício previsto na alínea c) do nº2 do art.410º do CPP - erro notório na apreciação da prova - que expressamente invocam.

Balizados nos termos expostos, os poderes de cognição deste tribunal e tendo em consideração que o objecto dos recursos, conforme jurisprudência unânime, é delimitado pelas conclusões que os recorrentes extraem da correspondente motivação (art.412º, nº1 do CPP), as questões que delas emergem e, por isso, cumpre examinar e reclamam solução, sem prejuízo de outras de conhecimento oficioso, alinhadas por ordem preclusiva, consistem em saber:

1.º Se a sentença recorrida é nula, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 374º, nº2 e 379º, nº1, al. a) do CPP por alegada falta/insuficiência de fundamentação da matéria de facto, nomeadamente no tocante ao exame crítico da prova;

2.º Se ocorre algum dos vícios enunciados nas alíneas a), b) e c) do nº2 do art.410º, do CPP, designadamente o erro notório na apreciação da prova, invocado pelos recorrentes;

3.º Se a avaliação da prova feita pelo tribunal “ a quo” foi feita com violação da presunção de inocência consagrada constitucionalmente e consequentemente do princípio” in dubio pro reo”;

4.º Se na formação da a sua convicção o tribunal recorrido valorou prova proibida nos termos do art.355º do CPP.

5.º Se a factualidade sedimentada tem ou não aptidão para preencher os elementos objectivos e subjectivos do crime pelos quais os arguidos/recorrentes foram condenados.

Vejamos.
Na sentença recorrida foi dada com provada e como não provada a seguinte factualidade:

A) De facto
1 – Factos provados

Produzida a prova e discutida a causa, resultaram assentes os seguintes factos:

1. Por acórdão proferido no processo comum colectivo n.º --/13.9GFALR, no Tribunal Judicial de Almeirim, (pelo então Tribunal do Círculo de Santarém) – para o qual se remete e se dá aqui por integralmente reproduzido – o arguido JI foi condenado pela prática de um crime de homicídio simples, praticado em 02.01.2013;

2. O arguido JI foi ainda condenado, pelo mesmo acórdão, no pagamento da indemnização civil peticionada pelos herdeiros da vítima, concretamente no pagamento dos seguintes valores:

a.À demandante ML (ora assistente), a quantia de 12.000,00€ - doze mil euros – (a título de danos morais por ela sofridos com a morte da vítima), acrescida dos juros de mora legais, calculados sobre essa quantia, desde a data da prolação do acórdão até integral e efectivo cumprimento;

b. Aos demandantes MG, JF e DF, a quantia de 10.000,00€ - dez mil euros – (a título de danos morais por eles sofridos com a morte da vítima), por cada um, acrescida dos juros de mora legais, calculados sobre essa quantia, desde a data da prolação do acórdão até integral e efectivo cumprimento;

c. A todos os demandantes, ML, MG, JF e DF, em conjunto, a quantia de 47.500,00€ (quarenta e sete mil e quinhentos euros), acrescida dos juros de mora legais, calculados sobre essa quantia, desde a data da prolação do acórdão até integral e efectivo cumprimento.

3. À data da prática do crime de homicídio referido – 02.01.2013 – JI e a sua cônjuge, MR eram donos e legítimos proprietários do prédio misto sito na Rua…, Frade de Baixo, freguesia e concelho de Alpiarça, com uma área total de 4.800m2, descrito na C.R.P. de Alpiarça sob o artigo xxx e com as inscrições matriciais urbanas xxx e xxxx e rústica xx – secção xxxx (doravante apenas designado por “imóvel”), sendo legítimos possuidores e utilizadores daquele bem.

4. No dia 07.02.2013, os arguidos JI – àquela data preso preventivamente – e MR celebraram e registaram “negócio”, denominado por “Doação”, que tinha por objecto o aludido imóvel, e fizeram-no a favor da filha AA e do seu cônjuge AB, atribuindo a este “negócio” o valor global de 65.383,80€ e para tal declarando que aquela doação era feira “por conta das quotas disponíveis dos doadores”.

5. O direito de propriedade sobre o referido imóvel passou, então, a estar inscrito a favor da arguida AA e do seu cônjuge AB.

6. No dia 17.07.2013, os arguidos AA e AB celebraram novo “negócio”, intitulado por “contrato de compra e venda”, sobre o mesmo imóvel, com o arguido FG.

7. Atribuíram, os supra referidos arguidos, a este último negócio, o valor global de 120.000,00€ a liquidar pelo adquirente, FG, em 300 (trezentas) prestações mensais de 400,00€ (quatrocentos euros) cada e passando o direito de propriedade sobre esse imóvel a estar inscrito a favor dos arguidos FG e PG.

8. O comprador, FG, por sua vez, cedeu gratuitamente, o imóvel aos vendedores, AA e AB, “negócio” que intitularam de “comodato”, para habitação.

9. Não obstante ter sido proferida sentença no dia 07.01.2014, no procedimento cautelar que correu por apenso ao aludido processo comum colectivo n.º --/13.9GFALR-A, decretando o arresto preventivo dos valores depositados em contas tituladas pelo arguido JI, já não se encontravam nas mesmas quaisquer quantias monetárias.

10. O arguido JI veio apresentar-se à insolvência o dia 17.09.2015, tendo sido proferida sentença de declaração de insolvência no dia 21.09.2015, transitada em julgado no dia 28.10.2015.

11. O arguido JI nunca procedeu ao pagamento de quaisquer valores em dívida aos queixosos, designadamente aqueles a que foi condenado no processo comum colectivo n.º --/13.9GFALR.

12. Quando outorgaram os respectivos “negócios”, acima referidos, todos os arguidos, MR, AA, AB e FG, sabiam perfeitamente que, actuando assim em conluio, impediram os credores, ora queixosos, de satisfazer o seu crédito, tendo não só consciência do prejuízo que criavam a estes últimos, como também intenção de, conscientemente, prejudicar os queixosos, impedindo-os de alcançar o seu propósito de cobrança coerciva do referido crédito.

13. Os arguidos JI, MR, AA, AB e FG agiram com o intuito de subtrair o aludido imóvel ao património do arguido JI e assim, em benefício deste, evitaram que o mesmo viesse a ser utilizado para pagamento do crédito dos queixosos.

14. A arguida MR, mulher de JI, assim como os seus familiares próximos, os arguidos AA e AB, continuam a viver, como sempre fizeram, no mesmo imóvel, o que era do conhecimento de JI.

15. Os referidos “negócios” foram celebrados, respectivamente por JI, MR, AA, AB e FG apenas com o propósito de prejudicar o crédito dos queixosos, dissipando e extraviando bens do património líquido (activo), de JI e da sua respectiva herança.

16. JI e a arguida MR sabiam perfeitamente que, no momento em que doaram o imóvel à filha e ao genro – AA e AB – não tinha outros bens suficientes no património daquele para que os queixosos lograssem obter o pagamento do seu crédito.

17. Os arguidos AA e AB sabiam que a intenção de JI, com tal “negócio” denominado por “Doação”, era apenas esvaziar o património daquele e, assim, obstar a que os queixosos conseguissem obter o pagamento da indemnização que lhes era devida.

18. O arguido FG, por seu turno, celebrando “negócio” de “compra e venda” sabia que, desse modo, obstava a que os queixosos conseguissem obter o pagamento da indemnização que lhes era devida.

19. Não foram, de facto, encontrados bens susceptíveis de penhora, para pagamento de indemnização civil aos queixosos.

20. Todos os arguidos, JI, MR, AA, AB e FG actuaram em comunhão de esforços e agiram de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que as suas respectivas condutas eram proibidas e punidas por lei.

21. Causando com a sua respectiva conduta, de forma livre, voluntária e consciente, prejuízos aos queixosos, pois não fossem os factos praticados pelos arguidos, celebrando os respectivos negócios de “Doação” e de “Compra e Venda”, e os queixosos teriam recebido a indemnização que lhes era devida, por via de penhora e liquidação do património do condenado JI, actuando em benefício deste.

22. JI faleceu no dia 15.01.2017.

23. Desconhecem-se anteriores condenações penais aos arguidos, constando do seu certificado de registo criminal que os não têm.

24. A arguida AA é reformada, auferindo 400,00€ mensais, a título de pensão reforma.

25. Vive em casa do arguido FG, segundo declara a título de favor.

26. Tem dois filhos maiores.

27. Vive com a mãe, de quem trata.

28. Paga cerca de 200,00€ mensais de um crédito pessoal.

29. Tem o 7.º ano de escolaridade.

30. Declara receber o valor que o arguido lhe paga todos os meses.

2 - Factos não provados:

Não se provaram os seguintes factos constantes da acusação pública e com interesse para a boa decisão da causa:

A. O negócio referido em 6 foi celebrado com PG.

B. A liquidação do valor foi feita também por PG.

C. PG participou no negócio referido em 8.

D. PG, sabia perfeitamente que, actuando assim em conluio, impedia os credores, ora queixosos, de satisfazer o seu crédito, tendo não só consciência do prejuízo que criava a estes últimos, como também intenção de, conscientemente, prejudicar os queixosos, impedindo-os de alcançar o seu propósito de cobrança coerciva do referido crédito.

E. PG agiu com o intuito de subtrair o aludido imóvel ao património do arguido JI e assim, em benefício deste, evitou que o mesmo viesse a ser utilizado para pagamento do crédito dos queixosos.

F. Os referidos “negócios” foram celebrados por PG apenas com o propósito de prejudicar o crédito dos queixosos, dissipando e extraviando bens do património líquido (activo), de JI e da sua respectiva herança.

G. A arguida PG, por seu turno, celebrando “negócio” de “compra e venda” sabia que, desse modo, obstava a que os queixosos conseguissem obter o pagamento da indemnização que lhes era devida.

H. A arguida PG actuou em comunhão de esforços com os demais e agiu de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que as suas respectivas condutas eram proibidas e punidas por lei.

O Tribunal recorrido fundamentou a formação da sua convicção da seguinte forma:

O tribunal formou a sua convicção relativamente à matéria de facto provada com base na prova produzida em julgamento, apreciada de acordo com regras de razoabilidade, experiência e bom senso.

Foi tida em conta, essencialmente, a prova documental que se mostra junta aos autos, a qual, por ser essencialmente, proveniente de entidades públicas – nomeadamente sentenças e acórdãos judiciais e escrituras públicas – tem força probatória plena, nem sequer tendo sido impugnada pelos arguidos e que no essencial permitiu ao Tribunal formar a sua convicção no sentido de dar como provados os factos objectivos que constam da acusação.Com efeito, a condenação sofrida pelo devedor inicial JI, quer pelo crime quer no pagamento da indemnização – nomeadamente os dois primeiros factos -, encontra-se provada por apelo à cópia do Acórdão proferido no Processo Comum Colectivo n.º --/13.9GFALR, constante de fls. 134 a 182 dos autos.

Relativamente à sucessão de transmissões sofridas pelo imóvel em causa nos autos, ou seja, os factos 3 a 8, o Tribunal baseou-se na análise da certidão da Conservatória do Registo Predial de Almeirim, que se mostra junta a fls. 119 a 122, conjugada com o assento de nascimento de JI, que se mostra junto a fls. 385v. e 386, e o qual contém o assento de casamento com a arguida MR, e da certidão da escritura de doação ocorrida em 07.02.2013 na Conservatória de Registo Predial de Alpiarça, a fls. 481 a 489, que contém procuração de fls. 485, outorgada por JI a MR, certidão da escritura de compra e venda outorgada na Conservatória de Registo Predial de Almeirim no dia 17.07.2013, de fls. 490 a 493, bem como o documento de fls. 117 e 118, nomeadamente contrato de comodato.

Da análise dos documentos referidos no parágrafo que antecede, retirou-se claramente que o imóvel onde viviam e vivem os arguidos MR, AA e AB, à data da prática dos factos pelos quais JI foi condenado era propriedade deste e MR e que foi apenas quando o referido JI já se encontrava em prisão preventiva que celebrou a escritura de doação do referido imóvel, por apelo a uma procuração outorgada à mulher.

Cerca de cinco meses depois, o mesmo imóvel é vendido ao arguido FG, por escritura de compra e venda onde este outorga sozinho, sendo que na mesma data outorga o contrato de comodato pelo qual deixa os arguidos AA e AB ocuparem o imóvel, a título gratuito, enquanto durar o pagamento das prestações, ou seja, durante 25 anos, o que também se mostra plasmado nos referidos documentos.

Da análise conjunta dos documentos de fls. 21 a 30, nomeadamente sentença proferida no Processo n.--/13.9GFALR-A, e da informação bancária de fls. 32 retirou-se convicção suficiente para dar como provado o ponto 9, nomeadamente que apesar de proferida sentença decretando o arresto cautelar das contas do arguido José Francisco Invernada, as referidas contas se encontravam já sem saldo.

Que o referido JI se apresentou à insolvência – artigo 10 – foi dado como provado por apelo aos documentos juntos a fls. 279 e ss e 199 e ss., que são peças processuais extraídas do referido processo de insolvência, com o n.º ---/15.9T8STR, sendo respectivamente a sentença de declaração de insolvência e o relatório do Administrador de Insolvência. Em conjugação com estes documentos foi também tomado em conta o depoimento prestado pela testemunha RS, a qual, por ter sido o administrador da insolvência, corroborou o que deles constava.

Deve dizer-se que, atento o tempo já decorrido desde a data do processo de insolvência, a referida testemunha demonstrou algumas falhas de memória quanto ao referido processo, remetendo o Tribunal para os documentos do mesmo, declarando, no entanto, com interesse para os autos que, apesar de nada se ter recuperado para a massa insolvente, recordava que tinham sido alienados bens para terceiros particularmente próximos do insolvente, não tendo no entanto sido passíveis de ser recuperados por a alienação ter decorrido antes dos dois anos anteriores à apresentação à insolvência.

Que o arguido não chegou a proceder ao pagamento da indemnização a que se mostrava obrigado decorre da própria queixa que deu início ao presente processo e do pedido de indemnização civil nele deduzido pela assistente – facto 11.

Os factos dados como provados sob os números 12 a 21 referem-se às condições psicológicas dos arguidos à data em que celebraram os negócios em causa nos autos, bem como ao conluio entre eles.

Tratando-se de elementos psicológicos, o Tribunal nunca poderia dar os mesmos como provados senão pela conjugação da sucessão dos acontecimentos com as regras da experiência comum e do bom senso, tanto que os arguidos não falaram sobre os mesmos. Não obstante, tendo em conta o momento em que os negócios foram realizados, ou seja, um mês depois da prática do homicídio pelo arguido JI– a escritura de doação – tendo este outorgado à sua esposa uma procuração, quando já se encontrava em prisão preventiva, e passando assim a propriedade do imóvel à filha, resulta claro que o que pretendia com este acto era deixar de ter em seu nome qualquer bem.

Este facto conjugado com a escritura de compra e venda outorgada cerca de 5 meses depois pela filha e genro do referido JIa uma pessoa terceira, na qual esta se obriga a pagar o bem em prestações de 400,00€ mensais, e com o facto de no mesmo dia, a mesma pessoa outorgar o contrato de comodato, deixando a esposa, filha e genro do arguido aí residir nos próximos 25 anos, demonstra claramente que se tratou de negócios simulados, em que apenas se pretendeu mudar a titularidade do imóvel no registo, sendo que na prática, tudo ficou igual.

Acresce, de resto, que do contrato de comodato se retira que o arguido FG não pode, sequer, revogá-lo – conforme consta da cláusula 5.ª – o que mostra claramente que se trata de uma cláusula de salvaguarda dos supostos vendedores, para nunca poderem ser despejados da sua habitação.

Ora, tudo isto demonstra claramente a existência de conluio entre todos os arguidos, e igualmente que todos tinham conhecimento do que se estava a passar, incluindo o primitivo devedor JI, que apesar de se encontrar em prisão preventiva tinha necessariamente uma relação de particular proximidade com a mulher e a filha, o que se demonstra pela outorga da procuração e pela doação efectuada.

Por outro lado, tudo o que se fez no seu interesse, e com o seu conhecimento, tanto é que é ele que assina a procuração à esposa, demonstrando pretender que a doação seja outorgada.

Acresce, de resto, que a morada das arguidas MR, AA, bem como do arguido AB, continua a ser hoje, conforme declarado, quer no termo de identidade e residência quer na identificação em audiência, o imóvel em causa nos autos, o que mais indica tratar-se o negócio de compra e venda realizado de negócio simulado.

Já o próprio contrato de compra e venda se mostra estranho, na medida em que é acordado o pagamento em prestações de 400,00€, em vez de como é habitual, ser pago o preço na totalidade, ou com recurso ao crédito bancário. Por outro lado, uma coisa que salta à vista é que os comprovativos das transferências bancárias juntas aos autos pela arguida AA têm o seu início logo após a prolação da decisão instrutória que pronunciou os arguidos – iniciam em Novembro, quando a decisão foi proferida em Outubro – o que também indicia terem sido propositadamente obtidos.

Note-se que, apesar de a doação ter sido realizada à arguida AA, o arguido AB assina a escritura de compra e venda do imóvel, bem como o contrato de comodato, indicando assim, na convicção do Tribunal, que se encontrava inserido no conluio, e que tinha consciência dos actos que praticava.

Por todo o exposto, não teve o Tribunal qualquer dúvida em dar como provados os factos constantes da pronúncia, considerando o conluio e a simulação dos negócios para sonegar aos ofendidos a indemnização no processo de homicídio, por demais evidentes, decorrendo da própria sucessão de eventos.

Por outro lado, não foi dado como provado que a arguida PG tenha feito parte de qualquer dos negócios na medida em que a mesma não assinou qualquer dos títulos, quer a escritura de compra e venda, quer o contrato de comodato, pelo que, apesar de por ser esposa do arguido FG ter necessariamente que ter conhecimento dos mesmos e o Tribunal suspeitar que estaria dentro do negócio, não se logrou alcançar convicção suficiente para o dar como provado.

Quanto à ausência de anteriores condenações dos arguidos, o Tribunal teve em conta o certificado de registo criminal dos mesmos, que se mostra junto aos autos.

As condições de vida da arguida AA foram apuradas pelo cotejo das suas declarações e das regras da experiência comum».

Examinemos as questões acima enunciadas pela ordem indicada.

1.ºDa nulidade da sentença recorrida por alegada falta e/ou insuficiência de fundamentação.

Resulta das disposições conjugadas dos arts.374º nº2 e 379, nº1 al. a), do CPP, que é nula a sentença que não contiver a enumeração dos factos provados e não provados e que não contiver a indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, e no caso de ser condenatória, deverá ainda especificar os fundamentos que presidiram à escolha e à medida da sanção aplicada indicando, nomeadamente, se for caso disso, o início e o regime do seu cumprimento, outros deveres que ao condenado sejam impostos e a sua duração, bem como o plano individual de readaptação social.

Ora, a sentença recorrida está, como resulta à evidência da sua leitura, no plano da fundamentação, nomeadamente no que concerne à matéria de facto suficientemente abonada.

Com efeito, enumera os factos provados e não provados, bem como contem uma exposição concisa dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção alcançada pelo julgador, procedendo ao enquadramento jurídico da factualidade dada como provada, especificando também os fundamentos que presidiram à escolha e medida das penas aplicadas.

Porém, tanto quanto nos é dado perceber, o recorrente não alega este vício estribando-se numa hipotética falta ou insuficiência de fundamentação relativamente à convicção alcançada pelo julgador relativamente a determinado facto dado como provado na sentença recorrida, mas antes a uma divergência e discordância suas quanto à valoração da prova feita pelo tribunal relativamente à materialidade dada como provada ou a parte dela um determinado facto, como mais à frente veremos de forma mais detalhada.

Ainda assim, a esse respeito convirá ainda dizer que da conjugação dos citados arts.374º, nº2 e 379º, nº1, al. a) do CPP resulta que a sentença é nula se faltar total ou parcialmente a fundamentação de facto e/ou de direito e se não contiver ou for manifestamente insuficiente o exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.

Ainda a este propósito, como temos dito noutras ocasiões sobre esta temática, o exame crítico das provas tem como escopo impor que o julgador esclareça “quais foram os elementos probatórios que, em maior ou menor grau, o elucidaram e porque o elucidaram, de forma a que se possibilite a compreensão de ter sido proferida uma dada decisão e não outra” (cfr.Ac.STJ de 1/3/2000, in BMJ nº495, pag.290).

Com esta ponderação crítica da prova pretende-se que se demonstre que se seguiu um processo lógico e racional na apreciação da prova, não sendo, pois, uma decisão ilógica, contraditória, arbitrária ou violadora das regras de experiência comum na apreciação da prova (cfr.art.127º, do CPP).

E como se afirma com toda a propriedade no acórdão da Relação do Porto de 13/3/2002, publicado sob o nºRP200203130111447, acessível em www.dgsi.pt, “ a fundamentação da sentença há-de tornar possível perceber como é que, de acordo com a experiência comum e a lógica, se formou a convicção do tribunal, num sentido e não noutro, e bem assim porque é que o tribunal teve por fiável determinado meio de prova e não outro”.

Apesar do texto da lei não definir como se deve operar e descrever o exame crítico das provas, deixando ao julgador uma larga margem de critério, deve considerar-se cumprida essa exigência, nos casos em que ainda que de forma simplificada, conste da sentença de forma suficientemente explícita a motivação porque se aceitou como revelador da verdade histórica determinado elemento probatório e/ou se rejeitou outro porque afastado dessa verdade.

A este propósito é elucidativa a doutrina plasmada pelo Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão de 7/2/2001, proferido no proc.nº3998/00-3ª Secção, que reza assim: «I- A fundamentação da sentença, na parte que respeita à indicação e exame crítico das provas, não tem de ser uma espécie de “assentada”em que o tribunal reproduza os depoimentos das testemunhas ouvidas, ainda que de forma sintética, sob pena de se violar o princípio da oralidade que rege o julgamento feito pelo colectivo de juízes. II- Não dizendo a lei em que consiste o exame crítico das provas, esse exame tem de ser aferido com critérios de razoabilidade sendo fundamental que permita avaliar cabalmente o porquê da decisão e o processo lógico-mental que serviu de suporte ao respectivo conteúdo. Basta a fundamentação e motivação necessárias à decisão».

Em idêntico sentido se pronunciou o STJ no acórdão de 4/4/2001, proferido no proc. nº 691/01-3ªSecção, onde de forma lapidar se afirma: «II- O art.374º, nº2, do CPP, tem de ser interpretado dentro de uma visão sistémica legal do processo penal, em conjugação com os demais preceitos adjectivos que garantem aos sujeitos processuais um reexame da matéria de facto, o que serve não só o princípio do direito de defesa, incluído o recurso, como também o desenvolvimento do princípio do contraditório, na fase processual do julgamento e dos recursos. III.- Não define o texto legal (art.374º, nº2, do CPP), de modo estrito, como se deve operar e descrever o exame crítico das provas, deixando ao julgador uma larga margem de critério. Todavia, não se pode deixar de entender, até numa visão teleológica da exigência legal, que devem presidir a este exame crítico critérios de normalidade e razoabilidade, segundo o padrão do homem médio. IV- A descrição do processo lógico que conduziu à convicção do julgador, sem prejuízo da livre convicção probatória deste, princípio basilar do processo penal, terá de ser minimamente expressivo para dar a conhecer a razão que formou o decidido de facto, não exigindo o texto legal que seja exaustiva ou, até, que se deva proceder a extracto de cada depoimento ou declaração. V- de qualquer forma, terá sempre a descrição crítica de explicar porque se aceitou, como revelador da verdade histórica, determinado elemento probatório e se rejeitou outro, porque afastado desta verdade».

Postas estas breves considerações e ensinamentos e revertendo ao caso que aqui nos ocupa e examinada a sentença recorrido constata-se que neste âmbito está suficientemente fundamentada, resultando à evidência da sua leitura, apesar de eventualmente poder não ser considerada modelar, ainda assim, no plano da fundamentação, nomeadamente no que concerne ao exame crítico da prova está suficientemente abonada.

Com efeito, dela não só consta a indicação das provas que serviram para formar a convicção alcançada pelo tribunal, bem como se apresenta suficientemente abonada com a apreciação crítica das provas que foram produzidas e examinadas na audiência.

Citando Marques Ferreira, “Jornadas de Direito Criminal”, pag.229 e 230 «…o problema da motivação está intimamente conexionado com a concepção democrática ou antidemocrática que insufle no espírito de um determinado sistema processual (…) em consequência com os princípios informadores da Estado de Direito Democrático e no respeito pelo efectivo direito de defesa consagrado no art.32º nº1e no art.205º da CRP, exige-se não só a indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal mas, fundamentalmente, a expressão tanto quanto possível completa ainda que concisa, dos motivos de facto que fundamentaram a decisão».

E, continua, «estes motivos de facto que fundamentaram a decisão não são nem os factos provados (thema decidendum) nem os meios de prova (thema probandum) mas os elementos que em razão das regras da experiência ou critérios lógicos constituem o substracto racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência».

É que como refere o mesmo autor, a fundamentação ou motivação de facto das decisões, cumpre dois desígnios. Um intraprocessual e outro extraprocessual.

Com o primeiro, visa-se permitir aos sujeitos processuais e ao tribunal superior o exame do processo lógico ou racional que lhe subjaz, pela via do recurso, conforme impõe inequivocamente o art.410º, nº2, do CPP.

Com o segundo, extraprocessualmente, a fundamentação deve assegurar, pelo seu conteúdo, um respeito efectivo pelo princípio da legalidade na sentença e a própria independência e imparcialidade dos juízes, uma vez que os destinatários da decisão não são apenas os sujeitos processuais mas a própria sociedade.

Assim, e não obstante no nosso sistema vigorar o princípio da livre apreciação da prova, art.127º, do CPP, esta liberdade do juiz, neste particular, mais não é do que a liberdade para a objectividade, aquela que se concebe e se assume em ordem a fazer triunfar a verdade objectiva, isto é, a verdade que transcende a pura subjectividade e que se comunique e imponha aos outros (cfr. acórdão da Rel. Coimbra, CJ. Ano XXIII, tomo 2º, pag.60).

Citando por fim, o prof. Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, vol. II, pag. 126 e 127 «a convicção do julgado há-de ser sempre uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de se impor aos outros».

O juízo sobre a valoração da prova tem diferentes níveis. Num primeiro aspecto trata-se da credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova e depende substancialmente da imediação e aqui intervêm elementos não racionalmente explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a determinado meio de prova). Um segundo nível referente à valoração da prova intervêm as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios e agora já as inferências não dependem substancialmente da imediação, mas hão-de basear-se na correcção do raciocínio, que há-de basear-se nas regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência».

De acordo ainda com o mesmo autor «a livre apreciação da prova não deve ser entendida como uma operação puramente subjectiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de conjecturas de difícil ou impossível objectivação, mas a valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão».

Diga-se ainda e para terminar estas breves considerações, que ao fim e ao cabo a fundamentação da convicção se traduz na concretização dos elementos que em razão das regras da experiência e de critérios lógicos que constituem o substrato racional que conduz a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido, sendo fundamental que permita avaliar cabalmente o porquê da decisão e o processo lógico - mental que serviu de suporte ao respectivo conteúdo.

Ora, examinando a parte da sentença recorrida que se reporta à convicção probatória, que acima transcrevemos, constata-se que nela se procedeu à indicação da prova e a uma análise ainda que sucinta mas crítica da mesma, resultando dela o processo lógico e racional que levou o julgador a valorar positiva e negativamente as provas, explicitando a fiabilidade ou não e a razão de ciência dos meio de prova em que se estribou para alcançar a sua convicção no sentido positivo ou negativo e consequentemente a dar como provados e como não provados os factos assim considerados na sentença recorrida.

De sublinhar que uma coisa é a falta ou insuficiência de fundamentação da convicção alcançada pelo julgador, outra bem diferente, é se essa fundamentação está ou não sintonia com a prova produzida e/ou examinada na audiência de julgamento.

Se bem interpretamos o texto da peça recursiva, parece-nos que o recorrente atribui este vício à sentença recorrida estribando-se num alegado erro na apreciação e avaliação da prova, confundindo as duas patologias que constituem institutos jurídicos diferenciados. Na verdade, uma coisa é falta ou insuficiência de fundamentação, nomeadamente do exame crítico da prova que apenas determina a nulidade da sentença implicando a sua repetição com a elaboração de uma nova em que seja suprida esse deficiência [arts374º, nº2, 379º, nº1 al.a) e 122º do CPP)], outra é o erro de julgamento na apreciação e avaliação da prova.

Aliás, o que sobressai do alegado pelo recorrente é, em bom rigor, uma divergência e discordância quanto à valoração da prova feita pelo tribunal relativamente a factos dados como provados.

Assim, salvo o merecido respeito e ao contrário do que afirmam os recorrentes, a sentença recorrida mostra-se elaborada e fundamentada em conformidade com o que dispõe o nº2 do art.374º, do CPP, pelo que não padece de insuficiência ou falta de fundamentação, nomeadamente no que tange ao exame crítico da prova e por conseguinte não é nula.

2.º Do alegado erro notório na apreciação da prova.
Conforme resulta do estatuído no nº2 do art.410º, do CPP, os vícios previstos nas alíneas a), b) e c), têm de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência, sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos.

Trata-se de vícios intrínsecos da decisão, não sendo lícito afirmar-se a sua existência recorrendo a elementos que lhe sejam exteriores, designadamente de depoimentos e declarações prestados, quer durante o inquérito, instrução, quer até na audiência de julgamento.

O erro notório na apreciação da prova, como vício relevante em processo penal, é segundo a doutrina e jurisprudência mais generalizadas, o que é evidente para qualquer indivíduo de médio discernimento e deve resultar do texto da sentença conjugado com as regras da experiência comum.

Para além disso, a sua essência, consiste em que para existir como tal, terá de se retirar de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável.

O vício de erro notório na apreciação da prova, só pode verificar-se relativamente aos factos tidos como provados e não provados e não às interpretações ou conclusões de direito com base nesses factos.

O erro tem assim de aferir-se do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugadamente com as regras da experiência comum (sem recurso, por exemplo, a declarações ou depoimentos prestados durante o inquérito, instrução ou julgamento), tendo ainda que resultar desse texto de forma tão patente que não escape à observação do homem de formação média.

«Erro notório na apreciação da prova é aquele de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem médio facilmente dele se dá conta.» (Ac. STJ, de 9.12.98, BMJ 482 - 68).

É que o erro na apreciação da prova só pode resultar de se ter dado como provado algo que notoriamente está errado «que não pode ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras de experiência comum, sendo o erro de interpretação detectável por qualquer pessoa» (Ac. de 12.11.98, no BMJ 481-325), o que no caso concreto não se verifica.

Mas se bem interpretamos a peça recursiva, a invocação deste vício radica numa divergência na valoração da prova feita pelo tribunal recorrido e na valoração oposta que dela fazem os recorrentes, relativamente a determinados factos, alegação essa que nada tem a ver com este vício.

Como já atrás deixámos consignado, o erro de julgamento e o erro notório na apreciação da matéria de facto são institutos distintos e como tal não devem ser confundidas, como parece acontecer com os recorrentes.

Trata-se de duas formas distintas de “atacar” a matéria de facto, estando por isso sujeitas a regimes processuais diferentes.

Assim, enquanto o erro notório na apreciação da prova, constitui um vício intrínseco da sentença, e por isso, tem de resultar por si só ou conjugadamente com as regras da experiência comum do respectivo texto (art.410º, nº2, do CPP), o erro de julgamento não se confina a esse domínio, tratando-se de uma forma ampla de impugnação da matéria de facto, que todavia, deve ser exercida com observância do disposto no art.412º, nºs 3 e 4 do CPP.

O erro notório na apreciação da prova não reside na desconformidade entre a decisão de facto do julgador e aquela que teria sido a dos recorrentes.

A este respeito, como é salientado pelo STJ «Se existe mera discordância do recorrente entre aquilo que o colectivo teve como provado e aquilo que o recorrente entende não ter resultado da prova produzida, ou o contrário, não se verifica qualquer dos vícios indicados no art. 410º- 2 a) e c), do CPP.» (Ac. de 19.3.98, no BMJ 475-261).

Em bom rigor, o que os recorrentes com esta alegação pretendem por em causa é a apreciação que o Tribunal “a quo” fez de alguns meios de prova, que na sua perspectiva não avaliou devidamente.

Em última análise o que os recorrentes pretendem é substituir a convicção do tribunal pela que é supostamente a sua. O que está subjacente a alegação deste vício é valoração da prova feita pelos recorrentes em oposição à forma como foi avaliada pelo julgador, divergência essa que, como atrás deixámos consignado, não constitui erro notório na apreciação da prova.

Não se verifica, pois, qualquer erro e muito menos ostensivo, grosseiro ou notório na apreciação da prova, sendo que a decisão, examinada na sua globalidade, assenta em premissas que se harmonizam entre si segundo um raciocínio lógico e coerente e de acordo com as regras da experiência comum, pelo que não padece de tal vício.

Em bom rigor, repete-se uma vez mais, os recorrentes não aduzem mais do que uma divergência quanto à convicção alcançada pelo Tribunal recorrido, nos termos do disposto no art.127º, do CPP, divergência que não tem qualquer relevo nesta sede.

É, pois, manifesto que não ocorre este vício.

Com efeito, como atrás dissemos, erro notório na apreciação da prova é aquele de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem médio facilmente dele se dá conta (Ac. STJ, de 9.12.98, BMJ 482 - 68).

Ora, a decisão recorrida, examinada na sua globalidade, assenta em premissas que se harmonizam entre si segundo um raciocínio lógico e coerente não se descortinando qualquer violação das regras da experiência comum, pelo que não padece de tal vício.

Com efeito, vista a parte da sentença recorrida que se reporta à convicção probatória, que acima transcrevemos, constata-se que nela se procedeu à indicação da prova e a uma análise ainda que sucinta mas crítica da mesma, resultando dela o processo lógico e racional que levou o julgador a valorar positiva e negativamente as provas, explicitando a fiabilidade ou não e a razão de ciência dos meio de prova em que se estribou para alcançar a sua convicção no sentido positivo ou negativo e consequentemente a dar como provados e como não provados os factos assim considerados na sentença recorrida, não configurando essa decisão, uma decisão ilógica, contraditória, arbitrária ou violadora das regras da experiência comum.

Na verdade, sob invocação do erro notório na apreciação da prova, os recorrentes o que verdadeiramente fazem é interpretar a mesma prova de forma diferente da efectuada pelo tribunal, extraindo depois com base na sua valoração, uma conclusão de direito contrária à extraída na sentença recorrida, pois que na sua óptica essa sua valoração devia levar à absolvição dos arguidos/recorrente.

Porém, como já dissemos, tal não consubstancia o erro notório na apreciação da prova.

Como dissemos, o erro notório na apreciação da prova não reside na desconformidade entre a decisão de facto do julgador e aquela que teria sido a do recorrente.

Em bom rigor, o que os recorrentes com esta invocação pretendem por em causa foi a apreciação que o Tribunal “a quo” fez de alguns meios de prova, que na sua perspectiva não avaliou devidamente.

Não se verifica, pois, qualquer erro e muito menos ostensivo, grosseiro ou notório na apreciação da prova, sendo que a decisão, examinada na sua globalidade, assenta em premissas que se harmonizam entre si segundo um raciocínio lógico e coerente e de acordo com as regras da experiência comum, pelo que não padece de tal vício.

Em bom rigor, repete-se uma vez mais, o recorrente não aduz mais do que uma divergência quanto à avaliação feita pelo Tribunal recorrido de alguns meios de prova, divergência que não tem qualquer relevo nesta sede.

É, pois, indubitável que a sentença recorrida não padece deste vício.

Ainda assim e para dissipar alguma dúvida que possa eventualmente subsistir sobre a validade de em sede de julgamento ter sido dado como provado que os arguidos tivessem (todos) agido com conhecimento do devedor primitivo, e em benefício deste, com intenção de causarem prejuízo aos credores, ao atuarem conjuntamente, isto é, em comunhão de esforços e meios com estes, ou seja, relativamente à atuação em co-autoria (cfr. art. 26.º do Código Penal) e à intenção dolosa com que agiram, de causar prejuízo aos credores, apesar de sobre tais factos não ter incidido prova pessoal, sendo que os arguidos se remeteram ao silêncio, não nos merece reparo a convicção alcançada pelo tribunal, que está suficientemente justificada.

A este respeito foi consignado na sentença que:

«Os factos dados como provados sob os números 12 a 21 referem-se às condições psicológicas dos arguidos à data em que celebraram os negócios em causa nos autos, bem como ao conluio entre eles.

Tratando-se de elementos psicológicos, o Tribunal nunca poderia dar os mesmos como provados senão pela conjugação da sucessão dos acontecimentos com as regras da experiência comum e do bom senso, tanto que os arguidos não falaram sobre os mesmos. Não obstante, tendo em conta o momento em que os negócios foram realizados, ou seja, um mês depois da prática do homicídio pelo arguido JI– a escritura de doação – tendo este outorgado à sua esposa uma procuração, quando já se encontrava em prisão preventiva, e passando assim a propriedade do imóvel à filha, resulta claro que o que pretendia com este acto era deixar de ter em seu nome qualquer bem.

Este facto conjugado com a escritura de compra e venda outorgada cerca de 5 meses depois pela filha e genro do referido JI a uma pessoa terceira, na qual esta se obriga a pagar o bem em prestações de 400,00€ mensais, e com o facto de no mesmo dia, a mesma pessoa outorgar o contrato de comodato, deixando a esposa, filha e genro do arguido aí residir nos próximos 25 anos, demonstra claramente que se tratou de negócios simulados, em que apenas se pretendeu mudar a titularidade do imóvel no registo, sendo que na prática, tudo ficou igual.

Acresce, de resto, que do contrato de comodato se retira que o arguido FG não pode, sequer, revogá-lo – conforme consta da cláusula 5.ª – o que mostra claramente que se trata de uma cláusula de salvaguarda dos supostos vendedores, para nunca poderem ser despejados da sua habitação.

Ora, tudo isto demonstra claramente a existência de conluio entre todos os arguidos, e igualmente que todos tinham conhecimento do que se estava a passar, incluindo o primitivo devedor JI, que apesar de se encontrar em prisão preventiva tinha necessariamente uma relação de particular proximidade com a mulher e a filha, o que se demonstra pela outorga da procuração e pela doação efectuada.

Por outro lado, tudo o que se fez no seu interesse, e com o seu conhecimento, tanto é que é ele que assina a procuração à esposa, demonstrando pretender que a doação seja outorgada.

Acresce, de resto, que a morada das arguidas MR, AB, bem como do arguido AA, continua a ser hoje, conforme declarado, quer no termo de identidade e residência quer na identificação em audiência, o imóvel em causa nos autos, o que mais indica tratar-se o negócio de compra e venda realizado de negócio simulado.

Já o próprio contrato de compra e venda se mostra estranho, na medida em que é acordado o pagamento em prestações de 400,00€, em vez de como é habitual, ser pago o preço na totalidade, ou com recurso ao crédito bancário. Por outro lado, uma coisa que salta à vista é que os comprovativos das transferências bancárias juntas aos autos pela arguida AB têm o seu início logo após a prolação da decisão instrutória que pronunciou os arguidos – iniciam em Novembro, quando a decisão foi proferida em Outubro – o que também indicia terem sido propositadamente obtidos.

Note-se que, apesar de a doação ter sido realizada à arguida AB, o arguido AA assina a escritura de compra e venda do imóvel, bem como o contrato de comodato, indicando assim, na convicção do Tribunal, que se encontrava inserido no conluio, e que tinha consciência dos actos que praticava.

Por todo o exposto, não teve o Tribunal qualquer dúvida em dar como provados os factos constantes da pronúncia, considerando o conluio e a simulação dos negócios para sonegar aos ofendidos a indemnização no processo de homicídio, por demais evidentes, decorrendo da própria sucessão de eventos».

Esta matéria, é daquelas em que não havendo confissão dos respectivos agentes só pode provar-se por meio de presunções e de factos indícios, estes demonstrados através de prova directa, que conjugados e concatenados com as regras da normalidade e da experiência comum e da lógica, permitem atingir o grau de certeza exigível na fase de julgamento sobre aquela materialidade.

Como bastas vezes temos dito noutras situações idênticas, os factos que interessam ao julgamento da causa são de ordinário ocorrências concretas do mundo exterior ou situações do foro psíquico que pertencem ao passado e não podem ser reconstituídas nos seus atributos essenciais. A demonstração da realidade de factos desta natureza, com a finalidade do seu tratamento jurídico, não pode visar um estado de certeza lógica, absoluta, sob pena de o Direito falhar clamorosamente na sua função social de instrumento de paz social e de realização de justiça.

A prova visa apenas, de acordo com os critérios de razoabilidade essenciais à aplicação prática do Direito, criar no espírito do julgador (judici fit probatio) um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto [cf. Antunes Varela, Manual de Processo Civil, pág 434].

Dificilmente o julgador poderá ter a certeza absoluta de que os factos aconteceram tal como eles são por si interiorizados, como são dados como provados.

Mas isto não obsta a que o tribunal se convença da realidade dos mesmos, posto que consiga atingir o umbral da certeza relativa. A certeza relativa é afinal um estado psicológico (a tal convicção de que se costuma falar) que, conquanto necessariamente se tenha de basear em razões objectivas e possa ser fundamentável, não demanda que estas sejam inequivocamente conclusivas.

Daqui decorre que não é decisivo para se concluir pela realidade da acusação movida a um qualquer arguido, que haja provas directas e cabais do seu envolvimento nos factos, maxime que alguém tenha vindo relatar em audiência que o viu a praticar os factos, ou que o arguido os assuma expressamente. Condição necessária, mas também suficiente é que os factos demonstrados pelas provas produzidas, na sua globalidade, inculquem a certeza relativa dentro do que é lógico e normal, de que as coisas sucederam como a acusação as define.

Como se afirma no Ac. STJ de 6/10/2010 (Relator Conselheiro Henriques Gaspar), disponível em www.dgsi.pt. “a verdade processual, na reconstituição possível, não é nem pode ser uma verdade ontológica. (…) na análise e interpretação – interpretação para retirar conclusões – dos comportamentos humanos há feixes de apreciação que se formaram e sedimentaram ao longo dos tempos: são as regras da experiência da vida e das coisas que permitem e dão sentido constitutivo à regra que é verdadeiramente normativa e tipológica como meio de prova – as presunções naturais. A observação e verificação do homem médio constituem o modelo referencial. (…) A noção de presunção (noção geral, prestável como definição do meio ou processo lógico de aquisição de factos, e por isso válida também, no processo penal) consta do art. 349.º do CC. Importam, neste âmbito, as chamadas presunções naturais ou hominis, que permitem ao juiz retirar de um facto conhecido ilações para adquirir um facto desconhecido. As presunções naturais são, afinal, o produto das regras de experiência: o juiz, valendo-se de um certo facto e das regras da experiência, conclui que esse facto denuncia a existência de outro facto. (…) A presunção permite, deste modo, que perante os factos (ou um facto preciso) conhecidos, se adquira ou se admita a realidade de um facto não demonstrado, na convicção, determinada pelas regras da experiência, de que normal e tipicamente (id quod plerumque accidit) certos factos são a consequência de outros”, foi este in casu o caminho trilhado pelo julgador, que não nos merece censura.

Acresce dizer, que relativamente à intenção dos arguidos, como é sabido, trata-se também de um elemento subjectivo do foro íntimo de cada um e por isso insusceptível de apreensão directa, pelo que, salvo confissão, não pode ser objecto de prova directa, pelo que como aqui sucede, ficou demonstrada a partir de dados objectivos (maxime, a partir da conduta dos arguidos) que a revelam de forma clara.

De tudo o exposto, entendemos que não assiste razão aos recorrentes, não merecendo reparo a convicção alcançada pelo tribunal recorrido, relativamente à matéria aqui em causa, que salvo o devido respeito, foi formada segundo os ditames legais, respeitando os limites impostos pelas regras da experiência comum, da normalidade e da lógica, logrando através da conjugação e concatenação dos elementos probatórios disponíveis, obter a certeza exigida nos termos atrás expostos, para que essa materialidade fosse dada como provada nos termos que constam da sentença recorrida.

Não vem invocado nem nós vislumbramos que a sentença enferme dos outros vício enunciados nas alíneas a) e b) do nº2 do art.410º, do CPP – insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão.

3.º Da alegada violação na apreciação da prova do princípio” in dubio pro reo.

Alegam ainda os recorrentes que na apreciação da prova feita pelo julgador a quo sempre devia ter suscitado dúvidas sobre a prática pelos arguidos do crime que lhes é imputado, devendo socorrer-se da aplicação do princípio ”in dubio pro reo”, e não o tendo feito violou tal princípio.

Trata-se de um princípio com aplicação na avaliação da prova e não na subsunção dos factos ao direito.

Como é sabido, o princípio do “in dubio pro reo” é um corolário da presunção de inocência, consagrada constitucionalmente no art.32º nº2 da CRP. Integra uma norma directamente vinculante e constitui um dos direitos fundamentais dos cidadãos. (cfr.arts.18º nº1, da CRP; 11º, da Declaração Universal dos Direitos do Homem; 6º nº2, da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos e Liberdades Fundamentais e 14º nº2, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos).

Tem o seu campo de aplicação no domínio natural e lógico da valoração e apreciação da prova, ou seja, no âmbito do apuramento da matéria de facto.

Ora, examinada a fundamentação da sentença recorrida, relativamente ao acervo factual dado como provado, não vislumbramos que o Tribunal “a quo” tenha subsistido em dúvida sobre os factos que deu como provados e que tenha optado por solucioná-la em desfavor dos arguidos/recorrentes.

Dúvida que este Tribunal de recurso, relativamente à matéria que aqui importa considerar que, como já dissemos, não tem acesso à oralidade e a imediação com as provas, em toda a sua plenitude, também não nos assalta, pois que só se a fundamentação revelasse que aquele Tribunal, face a algum ou alguns factos, tivesse ficado em dúvida “patentemente insuprível”, como se referiu no Ac. do STJ de 15/06/2000, publicado na Col. Jur. Ano VII, Tomo 2º, pag.228, e a tivesse decidido em desfavor do arguido, é que se podia afirmar que havia sido postergado o princípio “ in dubio pro reo” que, como dissemos, é um corolário da presunção de inocência consagrado constitucionalmente.

Como bem se salienta no Ac. STJ de 14/4/2011 (rel. Cons. Souto de Moura), www.dgsi.pt., “a situação de dúvida tem que se revelar de algum modo, e designadamente através da sentença. A dúvida é a dúvida que o tribunal teve, não a dúvida que o recorrente acha que, se o tribunal não teve, deveria ter tido”.

Não emergindo da fundamentação da sentença recorrida que o julgador se tenha deparado com uma qualquer dúvida insanável sobre a verificação dos factos que deu como provados, não se evidenciando essa dúvida nada há para resolver, pro ou contra quem quer que seja.

Também neste conspecto falece razão aos recorrentes.

4.ºDa alegada proibição de valoração de prova documental.
Alegam os recorrentes que tendo o Tribunal formado a sua convicção com base, mesmo que não primordial ou essencialmente, pelo menos, nos documentos juntos aos autos em sede de inquérito não foram os mesmos examinados em audiência e ponderados em conjunto com outras provas, como ressalta da motivação da decisão sobre a matéria de facto o que é violador do princípio da imediação e do seu regime constante dos artigos 355º a 357º, do CPP, inutiliza a prova afetada pelo seu desrespeito que, por isso, não pode ser invocada nem pode valer para o efeito da formação da convicção, pelo que não poderia, também, o tribunal recorrido ter valorado a mencionada prova documental.

Vejamos se como alegam os recorrentes se o tribunal a quo ao ter-se socorrido da prova documental junta aos autos nas fases processuais anteriores ao julgamento, nomeadamente na fase de inquérito para formar a sua convicção relativamente a determinados factos que foram dados como provados na sentença recorrida, fê-lo com violação do disposto nos arts.355º a 357º do CPP e se, por isso, se trata de prova proibida, que o julgador não podia ter feito uso dela.

Vejamos.
Reza o nº1 do art.355º do CPP que «não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência».

Acrescenta o nº2 do citado preceito que «ressalvam-se do disposto no número anterior as provas contidas em actos processuais cujas leituras em audiência seja permitida, nos termos dos artigos seguintes».

Esta disposição legal constitui um afloramento do princípio do contraditório e da imediação da prova, pelo que ressalvada as situações a que se reporta o nº2, o julgador só pode socorrer-se na formação da sua convicção de provas que tenham sido produzidas ou examinadas em audiência.

Como resulta da fundamentação de facto da sentença recorrida para prova dos factos dados como provados, nomeadamente os pontos 1 a 10, o julgador alicerçou a formação da sua convicção do seguinte modo:

«O tribunal formou a sua convicção relativamente à matéria de facto provada com base na prova produzida em julgamento, apreciada de acordo com regras de razoabilidade, experiência e bom senso.

Foi tida em conta, essencialmente, a prova documental que se mostra junta aos autos, a qual, por ser essencialmente, proveniente de entidades públicas – nomeadamente sentenças e acórdãos judiciais e escrituras públicas – tem força probatória plena, nem sequer tendo sido impugnada pelos arguidos e que no essencial permitiu ao Tribunal formar a sua convicção no sentido de dar como provados os factos objectivos que constam da acusação.Com efeito, a condenação sofrida pelo devedor inicial JI, quer pelo crime quer no pagamento da indemnização – nomeadamente os dois primeiros factos -, encontra-se provada por apelo à cópia do Acórdão proferido no Processo Comum Colectivo n.º --/13.9GFALR, constante de fls. 134 a 182 dos autos.

Relativamente à sucessão de transmissões sofridas pelo imóvel em causa nos autos, ou seja, os factos 3 a 8, o Tribunal baseou-se na análise da certidão da Conservatória do Registo Predial de Almeirim, que se mostra junta a fls. 119 a 122, conjugada com o assento de nascimento de JI, que se mostra junto a fls. 385v. e 386, e o qual contém o assento de casamento com a arguida MR, e da certidão da escritura de doação ocorrida em 07.02.2013 na Conservatória de Registo Predial de Alpiarça, a fls. 481 a 489, que contém procuração de fls. 485, outorgada por JI a MR, certidão da escritura de compra e venda outorgada na Conservatória de Registo Predial de Almeirim no dia 17.07.2013, de fls. 490 a 493, bem como o documento de fls. 117 e 118, nomeadamente contrato de comodato.

Da análise dos documentos referidos no parágrafo que antecede, retirou-se claramente que o imóvel onde viviam e vivem os arguidos MR, AA e AB, à data da prática dos factos pelos quais JI foi condenado era propriedade deste e MR e que foi apenas quando o referido JI já se encontrava em prisão preventiva que celebrou a escritura de doação do referido imóvel, por apelo a uma procuração outorgada à mulher.

Cerca de cinco meses depois, o mesmo imóvel é vendido ao arguido FG, por escritura de compra e venda onde este outorga sozinho, sendo que na mesma data outorga o contrato de comodato pelo qual deixa os arguidos AA e AB ocuparem o imóvel, a título gratuito, enquanto durar o pagamento das prestações, ou seja, durante 25 anos, o que também se mostra plasmado nos referidos documentos.

Da análise conjunta dos documentos de fls. 21 a 30, nomeadamente sentença proferida no Processo n.--/13.9GFALR-A, e da informação bancária de fls. 32 retirou-se convicção suficiente para dar como provado o ponto 9, nomeadamente que apesar de proferida sentença decretando o arresto cautelar das contas do arguido JI, as referidas contas se encontravam já sem saldo.

Que o referido JI se apresentou à insolvência – artigo 10 – foi dado como provado por apelo aos documentos juntos a fls. 279 e ss e 199 e ss., que são peças processuais extraídas do referido processo de insolvência, com o n.º ---/15.9T8STR, sendo respectivamente a sentença de declaração de insolvência e o relatório do Administrador de Insolvência. Em conjugação com estes documentos foi também tomado em conta o depoimento prestado pela testemunha RS, a qual, por ter sido o administrador da insolvência, corroborou o que deles constava.

Deve dizer-se que, atento o tempo já decorrido desde a data do processo de insolvência, a referida testemunha demonstrou algumas falhas de memória quanto ao referido processo, remetendo o Tribunal para os documentos do mesmo, declarando, no entanto, com interesse para os autos que, apesar de nada se ter recuperado para a massa insolvente, recordava que tinham sido alienados bens para terceiros particularmente próximos do insolvente, não tendo no entanto sido passíveis de ser recuperados por a alienação ter decorrido antes dos dois anos anteriores à apresentação à insolvência».

Como decorre do excerto da fundamentação da fundamentação da sentença recorrida acabado de transcrever, o Tribunal alicerçou a formação da sua convicção relativamente a esses factos em prova documental junta aos autos nas fases anteriores à audiência de julgamento, sendo que nela tais documentos não foram objecto de leitura.

Todavia, isso não invalida que essa prova não pudesse ter sido valorada pelo tribunal e servido para formar a sua convicção.

Com efeito, como refere Maia Gonçalves no Código de Processo Penal Anotado, 15.ª edição, pág. 684, consagram-se no art.355º do CPP, expressamente, afloramentos dos princípios do contraditório e da imediação da prova.

Acrescenta o Acórdão da Relação do Porto de 18-06-2007, cujo sumário é citado pelos recorrentes, disponível em www.dgsi.pt que aqui acompanhamos, (…) não se trata aqui de um meio de prova proibido, já que o documento em causa não constitui um meio de prova proibido, mas da proibição da sua valoração como meio de prova, chamando (…) a especial atenção para o facto de, nos termos daquela disposição legal, os documentos juntos ao processo não terem, em regra de ser lidos em audiência, esclarecendo que (…) às decisões de que a prova documental não tem de ser lida na audiência de julgamento está subjacente o pressuposto de que as partes tiveram conhecimento do seu conteúdo e, consequentemente, que puderam exercer o contraditório.

Ora, no caso vertente, aquele acervo documental no essencial, foi junto ao processo ainda na fase de inquérito e fazem parte da prova indicada na pronúncia, que foi notificada aos arguidos, incluindo os ora recorrentes, pelo que tiveram a oportunidade de conhecer o seu conteúdo e de sobre eles atempadamente exercerem o contraditório, contrariando a sua admissão e valor probatório, se fosse caso disso.

Como vem sendo entendido pela maioria da jurisprudência, nomeadamente do STJ, que secundamos, as provas constituídas por documentos juntos aos autos são provas que, forçosamente estão presentes na audiência e submetidas ao contraditório, sem necessidade de obrigatoriamente serem lidas, podendo sê-lo, na mesma audiência, por serem do conhecimento dos sujeitos processuais e poderem ser objecto de contraditório.

Neste sentido veja-se, entre outros, os acórdãos do STJ de 23-03-1994, proc. 46218/3ª e de 09-11-1994, proc. 46600/3ª e de 10-7- 1996, in CJ Acs STJ, IV, tomo 2, pag. 229, citados por Maia Gonçalves em anotação ao art.355º do CPP, 15.ª edição-2005, dizendo-se no aresto desse mesmo tribunal de 27-01-2009, proc. 350/98-3ª, citado na referida obra e local que “a observância do disposto no art.355º, nº1 do CPP, não exige a leitura em audiência dos documentos constantes dos autos, bastando a existência dos mesmos e a possibilidade de relativamente a eles poder exercer-se o contraditório”.

Também OLIVEIRA MENDES considera que «[para além dos autos processuais enumerados nos arts. 356.º e 357.º (observado o formalismo legal previsto), também é permitida a valoração da prova documental constante do processo (aqui se incluindo o certificado de registo criminal, o relatório social, os autos de exames, revistas, buscas, apreensões e interceções telefónicas), independentemente de leitura, visualização ou audição em audiência, quando indicada como meio de prova na acusação deduzida, quando referenciada no requerimento acusatório, quando contraditada pelo arguido em fase anterior do processo ou quando se conclua que o arguido conhece ou tem obrigação de conhecer» (Código de Processo Penal Comentado, p. 1071).

Assim, salvo o devido respeito por opinião diferente, carece, pois, de fundamento a alegada violação do referido comando normativo.

5.ª Da aptidão ou inaptidão da factualidade provada para preencher os elementos objectivos e subjectivos do crime pelos quais os arguidos/recorrentes foram condenados.

Não padecendo a sentença recorrida de algum dos vícios enunciados nas alíneas a), b, e c) no nº2 do art.410º do CPP, nem assentando em prova proibida, tem-se por definitivamente sedimentada a decisão sobre a matéria de facto proferida na 1ª Instância.

Consolidada a factualidade apurada nos termos atrás expostos, vejamos se em face dela se encontram preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do crime de insolvência dolosa, pp. pelo art. 227.º, n.º 2, por referência às alíneas a) e b), do n.º 1, do Código Penal, pelo qual os arguidos/recorrentes foram condenados.

Prescreve o citado preceito que:
«1. O devedor que com intenção de prejudicar os credores:
a) Destruir, danificar ou fizer desaparecer parte do seu património;
b) Diminuir ficticiamente o seu activo, dissimulando coisas ou animais, invocando dívidas supostas, reconhecendo créditos fictícios, incitando terceiros a apresenta-los, ou simulando, por qualquer forma, uma situação patrimonial inferior à realidade, nomeadamente por meio de contabilidade inexacta, falso balanço, destruição ou ocultação de documentos contabilísticos ou não organizando a contabilidade apesar de devida (…)

É punido, se ocorrer a situação de insolvência e esta vier a ser reconhecida judicialmente, com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias.

2 – O terceiro que praticar algum dos factos descritos no n.º 1 deste artigo, com o conhecimento do devedor ou em benefício deste, é punido com a pena prevista nos números anteriores, conforme os casos, especialmente atenuada.”

Como muito bem é referido na sentença recorrida, “…são elementos do tipo: o elemento material concretizado na acção típica descrita nas várias alíneas do nº, 1, do preceito em análise – reconduzidas por Pedro Caeiro (Comentário Conimbricense, parte especial, tomo II, pág. 412 e 413), a cinco grupos: a) as condutas que provocam diminuição real do património; b) condutas que provocam uma diminuição fictícia do património liquido; c) condutas que visam ocultar uma situação de crise conhecida do devedor; d) a não justificação da aplicação regular dos valores pelo devedor concordatário; e e) a prática de uma das condutas referidas por parte de um terceiro, como o conhecimento do devedor ou em seu beneficio – e o elemento subjectivo mediatizado na intenção, por parte do sujeito activo, de prejudicar os credores.

E condição objectiva de punibilidade, a situação de insolvência com o respectivo reconhecimento judicial.” (Cfr. Acórdão de 20.03.2019, do Tribunal da Relação de Coimbra, no Proc. 135/12.7TACNF.C1, relatado pela Desembargadora Alcina Costa Ribeiro, in www.dgsi.pt).

Trata-se de um crime específico puro ou próprio, na medida em que a ilicitude depende da condição de devedor do agente, (Cfr. Albuquerque, Paulo Pinto, Comentário Conimbricense do Código Penal à Luz da CRP e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, UCE, fls. 62), condição essa que já se mostra por demais tratada na Douta Decisão Instrutória, com a qual se concorda integralmente e para a qual se remete por motivos de economia processual.

Como nela é mencionado, a condição de devedor se mostra perfeita em JI, tendo este efectivamente a obrigação de indemnizar reconduzida à data da prática dos factos – 02.01.2013 -, nomeadamente do homicídio. Assim nenhuma dúvida subsiste de que o arguido JI tinha a referida condição aquando dos actos de disposição dos seus bens, que levaram a que lhe fosse reconhecida por sentença posterior a insolvência.

Tendo o referido arguido falecido no decurso do processo, extinguindo-se quanto a ele o respectivo procedimento criminal, não resta qualquer dúvida que quanto aos arguidos/recorrentes a sua apurada conduta fá-los incorrer na prática, em co-autoria do crime previsto e punível pelo n.º 2 do referido artigo.

Na verdade, em face dos factos dados como provados, verifica-se que todos assumem a qualidade de terceiros que, pelos seu actos, nomeadamente outorgando a doação, a compra e venda e o comodato, contribuíram para fazer desaparecer o património do referido devedor JI, nomeadamente através de negócios simulados, e realizados em conluio entre todos.

Sendo que também está provado que agiram na realização de um plano comum e que os factos eram com o conhecimento do inicial devedor e em seu benefício, com intenção de causar prejuízo aos credores, pelo que dúvidas não restam que se encontram preenchidos os elementos objectivo e subjectivo do tipo legal de crime.

Como é referido, por Pedro Caeiro, pp.423 do Tomo II do Código Penal, “ as condutas previstas no nº1 encontram-se subordinadas, todas elas, à intenção de prejudicar os credores. Embora a verificação do prejuízo não seja um elemento do tipo (…) (sublinhado nosso), pelo que é de todo irrelevante e inócuo para a perfectibilização do crime, o alegado pelos recorrentes de que exige-se a existência de um prejuízo para os ofendidos ou de que exigia-se que se demonstrasse em juízo que o crédito dos demandantes se não mostrou pago aquando da transmissão dos bens que eram detidos pelo arguido.

Assim, não há dúvida que os arguidos/recorrentes cometeram como co-autores materiais um crime de insolvência dolosa, nos termos do artigo 227.º, n.º 2, do C.P., sendo a sua conduta punida com pena especialmente atenuada, como aconteceu no caso vertente.

Aliás, como os factos dados como provados na sentença recorrida não se baseiam em provas proibidas e não enfermando de algum dos vícios previstos no nº2 do art.410º, do CPP, tem-se por definitiva a decisão sobre a matéria de facto proferida na 1ª Instância pelo que necessariamente improcede a absolvição dos recorrentes, nos termos por si preconizados que, aliás, vem ancorada na modificação da matéria de facto dada como provada na 1ª Instância e que pelos motivos anteriormente explanados não logrou obter vencimento e, por conseguinte, se mantém inalterada.

Consequentemente improcede o pedido de absolvição dos arguidos/recorrentes pela prática do crime de insolvência dolosa de que foram acusados, subsequentemente pronunciados e posteriormente submetidos a julgamento, que essencialmente vinha ancorada na modificação da matéria de facto dada como provada, pelo que não obtendo êxito quanto a esta, aquela pretensão tem também necessariamente de improceder.

Assim, em face da matéria de facto consolidada não nos merece qualquer censura, o enquadramento jurídico da materialidade dada como provada feito na sentença recorrida em sede de subsunção legal dessa materialidade e preenchimento dos elementos objectivo e subjectivo do mencionado tipo legal de crime por que os arguidos/recorrentes foram condenados na 1ª Instância.

Nesta conformidade e sem mais desenvolvidas considerações por supérfluas, o recurso deve improceder, mantendo-se na íntegra a sentença recorrida, que não afronta nem posterga nenhum dos princípios e preceitos legais invocados pelos recorrentes.

DECISÃO.

Nestes termos e com tais fundamentos negamos provimento ao recurso, mantendo integralmente a sentença recorrida.

Custas pelos arguidos/recorrentes, fixando-se a taxa de justiça devida individualmente por cada um em 4 UC’s [arts.513º, nºs 1 e 3 e 514º, nºs 1 e 2 do CPP e art. 8º nº9 e tabela III anexa, do Código das Custas Processuais].

Évora, 19 de Dezembro de 2019.

(Elaborado e integralmente revisto pelo relator).

Gilberto da Cunha

João Martinho de Sousa Cardoso