Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
110/22.3T9STB.E1
Relator: LAURA GOULART MAURÍCIO
Descritores: OFENSA A ORGANISMO
SERVIÇO OU PESSOA COLETIVA
Data do Acordão: 05/09/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. O bem jurídico tutelado pela norma incriminatória em apreço – crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva - é a imagem da pessoa coletiva visada, a valoração que terceiros fazem da pessoa jurídica em questão, o seu bom nome e reputação, no caso de corporações que especialmente prestem serviços.
II. Ponto é, para a perfeição do crime em causa, que o agente do mesmo afirme ou propale factos inverídicos e que, de todo o modo, estes tenham a potencialidade de atingir negativamente a imagem da pessoa coletiva ofendida.
III. Da simples leitura dos comentários alegadamente publicados pelo Arguido na rede social Facebook resulta que o mesmo está a aludir a determinadas pessoas que integram a Guarda Nacional Republicana, as quais não se mostram, no entanto, concretamente identificadas (com excepção da referida no comentário constante no ponto 5 da acusação. Ou seja, os comentários alegadamente publicados pelo Arguido não se mostram dirigidas ao organismo queixoso Guarda Nacional Republicana.
IV. Ora, os comentários tecidos alegadamente pelo Arguido relativamente a determinados militares da Guarda Nacional Republicana não podem ser entendidos como dirigidas à própria Guarda Nacional Republicana e assim de porem em causa o prestígio, credibilidade e confiança da corporação.
V. Entendimento contrário levaria a considerar que uma ofensa à honra – bem jurídico pessoalíssimo, atributo exclusivo da pessoa individual – é susceptível de preencher um tipo legal que tutela um bem jurídico (o bom nome, que agrega a credibilidade, prestígio e confiança) de que só podem ser titulares pessoas colectivas ou entidades equiparadas. – Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 2/10/2013, processo n.º 4213/12.4TDPRT.P1, disponível in www.dgsi.pt.
Decisão Texto Integral:
Acordam em conferência os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

Relatório

No Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo Local Criminal ..., Juiz ..., no âmbito dos autos com o NUIPC 110/22.3T9STB foi, em 9 de dezembro de 2022, proferida a seguinte decisão (transcrição):

“Autue como processo comum, com a intervenção de Tribunal Singular.

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O Tribunal é competente.

*

Concluso o processado para prolação do despacho a que faz referência o artigo 311º, n.º 1, do Código de Processo Penal, cumpre proceder ao seu saneamento, devendo o Tribunal pronunciar-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa e que, desde logo, se possam conhecer.

Nos termos do disposto no artigo 311.º, n.º 2, alínea a), do Cód. Proc. Penal, a acusação deve ser rejeitada se for considerada manifestamente infundada.

A acusação considera-se manifestamente infundada se os factos não constituírem crime (cfr. artigo 311.º, n.º 3, alínea d)).

*

O Ministério Público deduziu acusação contra AA, imputando-lhe a prática de um crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva, com publicidade e calúnia, p. e p. pelo artigo 187.º, nºs 1 e 2, alínea a), 183.º, n.º 1, alíneas a) e b), todos do Cód. Penal.

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Para o que aqui interessa, constam da acusação pública deduzida os seguintes factos:

1. A Guarda Nacional Republicana – GNR é uma força de segurança de natureza militar, constituída por militares organizados num corpo especial de tropas e dotada de autonomia administrativa, sendo que tem por missão, no âmbito dos sistemas nacionais de segurança e protecção, assegurar a legalidade democrática, garantir a segurança interna e os direitos dos cidadãos, bem como colaborar na execução da política de defesa nacional, nos termos da Constituição e da lei.

2. Sucede que, o arguido, por se encontrar a ser investigado pela GNR, designadamente no âmbito do processo crime n.º 585/21.... decidiu efectuar diversas publicações na sua página de Facebook,

visando a dita instituição, de forma a descredibilizá-la perante si próprio e terceiros, afirmando factos que não correspondem à verdade.

3. Assim, na prossecução de tal plano, no dia 13 de Janeiro de 2021, o arguido efectuou uma publicação pública na sua página da Internet do Facebook (...) na qual escreveu: “eu quando trabalhava nao dormia como gnr em plena rua já os vi a dormir dentro do carro …. Palhaços incompetentes ladrões traficantes abusadores sexuais e ficamos por aqui”.

4. No dia 27 de Abril de 2021, o arguido efectuou uma publicação pública na sua página da Internet do Facebook (...) na qual escreveu: “vivenda da ... uma das maiores casas de prostituição do pais frequentada por todo o tipo de pessoas desde o jardineiro ao ser do ferrari passando por gnr psp oficiais de justiça”

5. No dia 28 de Abril de 2021, o arguido efectuou uma publicação pública na sua página da Internet do Facebook (...) na qual escreveu: “podemos falar do ex gnr BB com outros dos nic que era um dos cabecilhas de uma rede de trafico de armas dentro da gnr que durou mais de 20 anos”.

6. Com as ditas publicações quis o arguido dizer que a GNR é uma instituição em que não se trabalha, que é composta e integrada por elementos que se dedicam à actividade de prostituição, proxenetismo, trafico e abuso sexual, que é uma instituição incompetente como todos os seus integrantes, bem como que se desenvolve no seio e como actividade principal de tal força policial o tráfico ilegal de armas.

7. As afirmações e factos que o arguido proferiu na sua página pública do Facebook são falsas e não correspondem à verdade, tendo sido por ele inventadas e correspondem, assim, a uma completa distorção da realidade.

8. O arguido sabia que todas as afirmações que proferiu e supra se descreveram eram totalmente falsas e não correspondiam à verdade, até porque nunca as vivenciou ou presenciou, mas decidiu proferi-las na mesma como retaliação e apenas porque assim lhe apeteceu, sabendo que o Facebook e a Internet têm um grande número de utilizadores, cujas publicações foram e podiam, posteriormente, ser visualizadas por um número indeterminado, mas muito alargado, de pessoas, assim facilitando a sua divulgação e conhecimento pelo público em geral, através da referida rede social e da Internet.

9. Ao agir conforme descrito, o arguido actuou com o propósito, concretizado, de ofender a credibilidade, a prestígio, a bom nome, a confiança, a imagem e a reputação da ‘Guarda Nacional Republicana – GNR’ junto da comunidade local, em especial, e do país em geral, bem sabendo que as expressões por si utilizadas eram aptas a alcançar tal resultado, como pretendia e conseguiu.

10. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por Lei.

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Comete um crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva quem, sem ter fundamento para, em boa fé, os reputar verdadeiros, afirmar ou propalar factos inverídicos, capazes de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança que sejam devidos a organismo ou serviço que exerçam autoridade pública, pessoa colectiva, instituição ou corporação.

O bem jurídico protegido pela incriminação é a credibilidade, o prestígio e a confiança do organismo, serviço, pessoa colectiva, instituição ou corporação, seja ele dotado de autoridade pública ou não. – Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código Penal (…), Universidade Católica Editora, 2008, página 508.

O tipo objectivo do ilícito previsto no artigo 187.º do CP consiste na difusão de factos inverídicos sobre organismo, serviço, ou pessoa colectiva que sejam susceptíveis de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança destas entidades, não tendo o agente fundamento para, em boa-fé, reputar tais factos como verdadeiros. – Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 20/02/2019, processo n.º 316/17.7T9SEI.C1, disponível in www.dgsi.pt.

Factos inverídicos são, factos não verdadeiros. Além do mais, tais factos têm de ser capazes - no sentido de idóneos - de ofender a credibilidade, prestígio ou confiança da pessoa colectiva. Tal idoneidade para causar a ofensa tem de ser aferida de forma objectiva segundo o padrão de um homem médio, ou seja, o facto tem de se apresentar como objectivamente adequado – cláusula de adequação - para colocar em causa a reputação social - credibilidade, prestígio e confiança - da pessoa colectiva (…). – idem. O crime de ofensa a organismo, serviço e pessoa colectiva é um crime doloso, admitindo qualquer uma das formas de dolo previstas no art. 14.º do Código Penal. *

Regressando ao caso concreto, entendemos que as expressões constantes do ponto 3 da acusação deduzida pelo Ministério Público (“Palhaços incompetentes ladrões traficantes abusadores sexuais e ficamos por aqui”) não correspondem a factos mas sim a juízos de valor.

O facto desonroso ou ofensivo da honra é o acontecimento da vida real cuja revelação atinge a honra do seu protagonista. (…) O juízo de valor desonroso ou ofensivo da honra é um raciocínio, uma valoração cuja revelação atinge a honra da pessoa objecto do juízo. – Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal (…), 3.ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, página 274.

As referidas expressões correspondem ao que o Arguido pensa, o que nos coloca imediatamente no campo dos juízos de valor.

No referido comentário é revelada uma valoração e não um acontecimento real.

Ora, o elemento objectivo do tipo-de-ilícito agora em causa apenas contempla a afirmação ou propalação de factos inverídicos. Ou seja, o art. 187.º, n.º 1, do Código Penal não incrimina a manifestação de juízos de valor.

As afirmações produzidas consubstanciam essencialmente a emissão de juízos de valor e não de factos que devam ser considerados inverídicos: O arguido não “propala factos”, limita-se a emitir opiniões, o que se reconduz a juízos valorativos atípicos perante o preceito incriminador, não constituindo, por isso, conduta típica tutelada pela norma. – Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 17/05/2017, processo n.º 95/15.2PEPDL.L1-3, disponível in www.dgsi.pt.

Mais, todos os comentários alegadamente publicados pelo Arguido na rede social Facebook mostram-se dirigidos a determinados militares que integram a referida força de segurança, conforme resulta claramente da expressão constante do ponto 5 da acusação deduzida pelo Ministério Público (podemos falar do ex gnr BB com outros dos nic que era um dos cabecilhas de uma rede de trafico de armas dentro da gnr que durou mais de 20 anos), onde se alude ao primeiro nome do militar em causa.

De igual modo, na expressão constante do ponto 4 da acusação deduzida (vivenda da ... uma das maiores casas de prostituição do pais frequentada por todo o tipo de pessoas desde o jardineiro ao ser do ferrari passando por gnr psp oficiais de justiça), alude-se a clientes de uma casa de prostituição, identificando-os por referência à sua profissão. Assim, dúvidas não restam que também neste comentário se alude especificamente a um número delimitado de pessoas, uns dos quais integrarão a Guarda Nacional Republicana.

Em suma, da simples leitura dos comentários alegadamente publicados pelo Arguido na rede social Facebook resulta que o mesmo está a aludir a determinadas pessoas que integram a Guarda Nacional Republicana, as quais não se mostram, no entanto, concretamente identificadas (com excepção da referida no comentário constante no ponto 5 da acusação, conforme já referido).

Ou seja, os comentários alegadamente publicados pelo Arguido não se mostram dirigidas ao organismo queixoso Guarda Nacional Republicana.

Ora, os comentários tecidos alegadamente pelo Arguido relativamente a determinados militares da Guarda Nacional Republicana não podem ser entendidos como dirigidas à própria Guarda Nacional Republicana e assim de porem em causa o prestígio, credibilidade e confiança da corporação.

Entendimento contrário levaria a considerar que uma ofensa à honra – bem jurídico pessoalíssimo, atributo exclusivo da pessoa individual – é susceptível de preencher um tipo legal que tutela um bem jurídico (o bom nome, que agrega a credibilidade, prestígio e confiança) de que só podem ser titulares pessoas colectivas ou entidades equiparadas. – Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 2/10/2013, processo n.º 4213/12.4TDPRT.P1, disponível in www.dgsi.pt.

Com efeito, a lei exige que se esteja perante factos idóneos – factos que tenham capacidade para – a ofenderem a credibilidade, o prestígio ou a confiança. O que impõe, de maneira necessária, que se tenha de fazer um juízo de idoneidade quanto àquela capacidade. (…) A idoneidade ou capacidade de violação à credibilidade, prestígio ou confiança mede-se por um parâmetro que se apoie na compreensão que um normal e diligente homem comum tenha da problemática. Daí que as afirmações «a polícia é uma choldra» ou «é uma corporação de deficiente e incapazes» não sejam expressões factuais mas antes valorações. O que implica que, a preencherem tais proposições uma factualidade, em caso algum pudesse ser a da norma que se estuda. No entanto, se se afirmar que na esquadra Y as pessoas detidas são espancadas e que lá dentro se passam coisas pouco edificantes com prostitutas, é evidente que tais factos, se inverídicos, afectam a credibilidade, o prestígio e a confiança na Polícia. – José Faria da Costa in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 2.ª edição, Coimbra Editora, páginas 985 e 986.

Ora, para além das expressões constantes em 3. consubstanciarem valorações e não preencherem, como tal, o elemento objectivo do presente tipo de ilícito, conforme já referido supra, os restantes factos imputados pelo Arguido nos comentários constantes da acusação deduzida pelo Ministério Público não se reportam directamente à actuação da Guarda Nacional Republicana como um todo (organismo) mas sim a determinados militares da Guarda Nacional Republicana (pese embora não cabalmente identificados, sendo contudo claro que o Arguido se referia a um militar da Guarda Nacional Republicana de nome BB e a militares de um núcleo de investigação criminal dessa força de segurança de natureza militar), cujo comportamento apenas afectará o organismo (força de segurança de natureza militar) de forma reflexa, o que já não se mostra idóneo para ofender o prestígio, a credibilidade e a confiança do organismo, e, como tal, tutelado pelo presente tipo de ilícito, tendo em conta a ultima ratio do direito penal, que tutela apenas os valores essenciais e fundamentais da vida em sociedade, obedecendo a um princípio de intervenção mínima, bem como de proporcionalidade imanente ao Estado de Direito. – Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 16/03/2021, processo n.º 2464/19.0T9LSB.L2-5, disponível in www.dgsi.pt.

Em face de tudo o que se deixou exposto, os comentários alegadamente publicitados pelo Arguido na sua rede social Facebook não preenchem o elemento objectivo do tipo de ilícito imputado ao mesmo, devendo a acusação deduzida ser considerada manifestamente infundada nos termos do disposto no artigo 311.º, n.º 3, alínea d), do Cód. Proc. Penal, o que determina a sua rejeição nos termos da alínea a) do n.º 2 do citado preceito por manifestamente infundada.

Pelo exposto, por manifestamente infundada, rejeito a acusação deduzida pelo Ministério Público.

Notifique.”

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Inconformado com a decisão, o Ministério Público interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões:

1.º O Tribunal a quo entendeu que os comentários alegadamente publicitados pelo Arguido na sua rede social Facebook não preenchem o elemento objectivo do tipo de ilícito imputado ao mesmo, devendo a acusação deduzida ser considerada manifestamente infundada nos termos do disposto no artigo 311.º, n.º 3, alínea d), do Cód. Proc. Penal, o que determina a sua rejeição nos termos da alínea a) do n.º 2 do citado preceito por manifestamente infundada.

2.º O Tribunal a quo entendeu que as expressões constantes da acusação no artigo 5 que refere - No dia 28 de Abril de 2021, o arguido efectuou uma publicação pública na sua página da Internet do Facebook (...) na qual escreveu: “podemos falar do ex gnr BB com outros dos nic que era um dos cabecilhas de uma rede de trafico de armas dentro da gnr que durou mais de 20 anos” - não corresponde a factos mas sim a juízos de valor.

3.º Com a publicação o Arguido difundiu que durante 20 anos o Núcleo de Investigação Criminal da Guarda Nacional Republicana se dedica ao tráfico de armas dentro da Guarda Nacional Republicana.

4.º Tal afirmação significa que a Guarda Nacional Republicana durante 20 anos se dedicou ao comércio ilegal de armas. Ora, a afirmação encerra a difusão de factos inverídicos sobre a Guarda Nacional Republicana susceptível de ofender a credibilidade o prestígio ou a confiança destas entidades, não tendo o agente fundamento para, em boa-fé, reputar tais factos como verdadeiros.

5.º Esta afirmação não é atípica do ponto de vista da lei penal, pelo contrário, preenche o elemento do tipo objectivo do ilícito ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva, com publicidade e calúnia, p. e p. pelo artigo 187.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), 183.º, n.ºs 1, alíneas a) e b), todos do Código Penal.

6.º A decisão recorrida, violou, assim, os artigos 187.º, nºs 1 e 2, alínea a), 183.º, n.º 1, alíneas a) e b), todos do Cód. Penal e artigos 120.º, a 122.º, 283.º, n.º 3 e 311.º, n.º 1, n.º 2, a) e n.º 3, alínea d), do Cód. Código de Processo Penal.

7.º Nesta medida, deve ser revogada o douto despacho na parte em que julgou nula a acusação e, em consequência, ser revogado o despacho que rejeitou a acusação prosseguindo a tramitação dos autos, profira despacho nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 311.º do Código de Processo Penal.

Contudo, Vªs. Exªs. decidirão conforme for de LEI e JUSTIÇA.

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O recurso foi admitido e fixado o respetivo regime de subida e efeito.

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Não se mostra junta resposta ao recurso.

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No Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu Parecer no sentido do provimento do recurso.

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Cumprido o disposto no art.417º, nº2, do C.P.P., não se mostra junta resposta.

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Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência.

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Fundamentação

Delimitação do objeto do recurso

Nos termos do disposto no art.412º, nº1, do C.P.P., e conforme jurisprudência uniforme do Supremo Tribunal de Justiça, o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes das motivações apresentadas, só sendo lícito ao Tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no art.410º, nº2, do C.P.P., mesmo que o recurso se encontre limitado a matéria de direito – cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 2ª ed., III, págs.74; Ac.STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, págs.96, e Ac. do STJ para fixação de jurisprudência de 19.10.1995, publicado no DR I-A Série de 28.12.1995.

São, pois, as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respetiva motivação que o Tribunal ad quem tem de apreciar.

No caso sub judice, a questão suscitada pelo recorrente é saber se deve o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que receba a acusação e designe dia para a realização de audiência de julgamento.

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Apreciando e decidindo

Dispõe o artigo 311º nº 2 do CPP que «se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:

a) de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;

b) de não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do n.º 1 do artigo 284º e do n.º 4 do artigo 285º, respetivamente».

A acusação considera-se manifestamente infundada, segundo a norma do nº 3 do referido artigo:

a) quando não contenha a identificação do arguido;

b) quando não contenha a narração dos factos;

c) se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam;

d) se os factos não constituírem crime.

Nos termos do artigo 32.º da Constituição Política da República Portuguesa:

1 - O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso.

(...)

5 - O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os atos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório.

Isto significa que a acusação e o julgamento têm que estar sedeados em órgãos diferentes: em ordem a conciliar o interesse público da perseguição criminal e as exigências da imparcialidade, isenção e objetividade do julgamento, a investigação e acusação, por um lado, e o julgamento, por outro, terão que caber a entidades diferentes. Quem acusa não julga e quem julga não pode acusar.

Deste mesmo princípio decorre outra consequência: a de o poder de cognoscibilidade do juiz estar delimitado pelo conteúdo da acusação, sendo esta que determina o objeto do processo. É o chamado princípio da vinculação temática.

"O princípio acusatório (n.º 5, 1.ª parte) é um dos princípios estruturantes da constituição processual penal. Essencialmente, ele significa que só se pode ser julgado por um crime precedendo acusação por esse crime por parte de um órgão distinto do julgador, sendo a acusação condição e limite do julgamento. Trata-se de uma garantia essencial do julgamento independente e imparcial. Cabe ao tribunal julgar os factos constantes da acusação e não conduzir oficiosamente a investigação da responsabilidade penal do arguido (princípio do inquisitório).

A «densificação» semântica da estrutura acusatória faz-se através da articulação de uma dimensão material (fases do processo) com uma dimensão orgânico-subjetiva (entidades competentes).

Estrutura acusatória significa, no plano material, a distinção entre instrução, acusação e julgamento; no plano subjetivo, significa a diferenciação entre juiz de instrução (órgão de instrução) e juiz julgador (órgão julgador) e entre ambos e órgão acusador.

O princípio da acusação não dispensa, antes exige, o controlo judicial da acusação de modo a evitar acusações gratuitas, manifestamente inconsistentes, visto que a sujeição a julgamento penal é, já de si, um incómodo muitas vezes oneroso e não raras vezes um vexame. Logicamente, o princípio acusatório impõe a separação entre o juiz que controla a acusação e o juiz de julgamento (cf. Acs TC n.ºs 219/89 e 124/90)." () J. J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª edição revista, p. 522).

O art. 283°, n.° 3 do CPP consagra os elementos que devem constar de uma acusação, cominando a sua omissão com nulidade. De acordo com o disposto na alínea b), deverá a acusação conter "a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada ".

Ou seja, nos termos da alínea b), do nº3 do artigo 283º do CPP a acusação contem, sob pena de nulidade, os factos relevantes para a imputação do crime.

Desta forma, são lógicas as exigências de conteúdo constantes dos preceitos acima referidos, na medida em que são impostas pela evidente premência, naquele contexto, de demarcar os factos concretos suscetíveis de integrar o ilícito de cuja prática está o arguido acusado.

“… regendo-se o processo penal pelos princípios do acusatório e do contraditório, a necessidade de uma tal demarcação tem subjacentes duas ordens de fundamentos: - um, inerente ao objetivo imediato (….): a comprovação judicial da pretensa indiciação (que, para que se possa demarcar o âmbito do objeto específico desta fase do processo e para que o arguido se possa defender, tem que reportar-se a imputação de factos concretos delimitados); - e, outro, implícito a uma finalidade mediata, mas essencial no caso de se vir a decidir pelo prosseguimento do processo para julgamento: a demarcação do próprio objeto do processo, reflexo da sua estrutura acusatória com a correspondente vinculação temática do Tribunal, que, por sua vez, na medida em que impede qualquer eventual alargamento arbitrário daquele objeto, constituindo uma garantia de defesa do arguido, possibilita a esta a preparação da defesa, assim salvaguardando o contraditório.” (Ac. RL de 19/10/2006, Rec. 7143.06, 9ª Secção).

Vejamos

Percorrendo os autos verifica-se que o Ministério Público deduziu acusação contra AA, imputando-lhe a prática de um crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva, com publicidade e calúnia, p. e p. pelo artigo 187.º, nºs 1 e 2, alínea a), 183.º, n.º 1, alíneas a) e b), todos do Código Penal

O crime que é imputado ao arguido acha-se previsto no art.º 187.º, n.º 1 do Código Penal, que dispõe que, quem, sem ter fundamento para, em boa-fé, os reputar verdadeiros, afirmar ou propalar factos inverídicos, capazes de ofenderem a credibilidade, o prestígio ou a confiança que sejam devidos a pessoa colectiva, instituição, corporação, organismo ou serviço que exerça autoridade pública, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias.

Vem, na ordem sistemática, entre os crimes contra a honra.

“A redacção actual do art.º 187º, nº 1, não se limita, assim, a referir a pessoa colectiva; por outro lado, fala-se agora em credibilidade, prestígio e confiança.

A introdução deste artigo, levada a efeito pelo DL 48/95, de 15.MAR, teve a precedê-la os esclarecimentos do Prof. Figueiredo Dias, que sublinhava não ter ele por base a ideia errada de que os artigos anteriores não cobrem as pessoas colectivas, não possíveis de titular o bem jurídico protegido pela difamação ou injúria.

O objectivo deste artigo é diferente: "…é criminalizar acções (os rumores), não atentatórias da honra, mas sim do crédito, do prestígio ou da confiança de uma determinada pessoa colectiva, valores que não se incluem, em rigor, no bem jurídico protegido pela difamação ou pela injúria".

Também o Prof. Figueiredo Dias teve ocasião de salientar que neste artigo se protege algo mais (ou algo de diferente) do que a honra, cobre-se também a informação falsa, por exemplo, de interesse patrimonial: determinado bem, produzido pela fábrica A, tem defeito e não funciona passado um ano.“ (Código Penal, Parte Geral e Especial, com notas e comentários, M. Miguez Garcia e J.M. Castela Rio, Almedina, 2015, pg. 815, em comentário ao art.º 187.º do C. Penal).

Como bem refere José de Faria e Costa no Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo I, pág. 677, o bem jurídico protegido como a previsão do artº 187º do Cód. Penal “é um pedaço fragmentado da realidade social com ressonância axiológica. É um bem jurídico mais do poliédrico, um bem jurídico heterogénico. Heterogeneidade que ressalta da sua diferenciada composição: credibilidade, prestígio e confiança”.

E mais adiante: “… pensamos que o núcleo do bem jurídico que aqui se quer defender se prende, de modo incontornável, com a ideia de bom nome.”

Ou seja, mais que a honra, o bem jurídico tutelado pela norma incriminatória em apreço é a imagem da pessoa coletiva visada, a valoração que terceiros fazem da pessoa jurídica em questão, o seu bom nome e reputação no mercado, no caso de corporações que especialmente prestem serviços.

Ponto é, para a perfeição do crime em causa, que o agente do mesmo afirme ou propale factos inverídicos e que, de todo o modo, estes tenham a potencialidade de atingir negativamente a imagem da pessoa coletiva ofendida; finalmente, necessário se torna que o agente dessa conduta não tenha fundamento para, de boa-fé, entender tais factos como verdadeiros.

Este último segmento do tipo legal é de crucial relevância, pois que, mesmo que ocorra atentado à credibilidade, prestígio e confiança da corporação visada e os factos afirmados não tenham correspondência com a verdade, se o agente, sem malícia, estiver convencido da veracidade desses factos, não se acha cometido este crime.

Como se refere no ac. da rel. do Porto de 30/3/2022:

“I - No crime previsto no art.187º do CP estão excluídos os juízos de valor depreciativos do bom nome da pessoa coletiva, e muito embora o seu potencial lesivo, apenas são susceptíveis de tutela cível. Somente a propalação de factos inverídicos associados a pretensas condutas da pessoa coletiva, com um potencial muito mais lesivo sobre a sua credibilidade e confiança, determinam a tutela penal.

II - Essa restrição da tutela no art.187º nº1 do CP, associada à exigência probatória que recai sobre a acusação, devendo, para além do mais, provar a falta de fundamento do agente para, em boa fé, reputar verdadeiros os factos propalados, cumprem o princípio da intervenção mínima do direito penal e torna a tutela aí prevista mais limitada; por contra-ponto aos crimes de injúrias e difamação, cuja tutela se mantem mais ampla, onde à acusação basta a imputação dos juízos de valor depreciativos, cabendo à defesa a prova da boa fé para os reputar verdadeiros cfr.art.180 nº2 al.b) do CP.”

Revertendo para o caso em apreciação, como como bem assinalado no despacho recorrido, “ (…) entendemos que as expressões constantes do ponto 3 da acusação deduzida pelo Ministério Público (“Palhaços incompetentes ladrões traficantes abusadores sexuais e ficamos por aqui”) não correspondem a factos mas sim a juízos de valor.

O facto desonroso ou ofensivo da honra é o acontecimento da vida real cuja revelação atinge a honra do seu protagonista. (…) O juízo de valor desonroso ou ofensivo da honra é um raciocínio, uma valoração cuja revelação atinge a honra da pessoa objecto do juízo. – Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal (…), 3.ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, página 274.

As referidas expressões correspondem ao que o Arguido pensa, o que nos coloca imediatamente no campo dos juízos de valor.

No referido comentário é revelada uma valoração e não um acontecimento real.

Ora, o elemento objectivo do tipo-de-ilícito agora em causa apenas contempla a afirmação ou propalação de factos inverídicos. Ou seja, o art. 187.º, n.º 1, do Código Penal não incrimina a manifestação de juízos de valor.

As afirmações produzidas consubstanciam essencialmente a emissão de juízos de valor e não de factos que devam ser considerados inverídicos: O arguido não “propala factos”, limita-se a emitir opiniões, o que se reconduz a juízos valorativos atípicos perante o preceito incriminador, não constituindo, por isso, conduta típica tutelada pela norma. – Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 17/05/2017, processo n.º 95/15.2PEPDL.L1-3, disponível in www.dgsi.pt.

Mais, todos os comentários alegadamente publicados pelo Arguido na rede social Facebook mostram-se dirigidos a determinados militares que integram a referida força de segurança, conforme resulta claramente da expressão constante do ponto 5 da acusação deduzida pelo Ministério Público (podemos falar do ex gnr BB com outros dos nic que era um dos cabecilhas de uma rede de trafico de armas dentro da gnr que durou mais de 20 anos), onde se alude ao primeiro nome do militar em causa.

De igual modo, na expressão constante do ponto 4 da acusação deduzida (vivenda da ... uma das maiores casas de prostituição do pais frequentada por todo o tipo de pessoas desde o jardineiro ao ser do ferrari passando por gnr psp oficiais de justiça), alude-se a clientes de uma casa de prostituição, identificando-os por referência à sua profissão. Assim, dúvidas não restam que também neste comentário se alude especificamente a um número delimitado de pessoas, uns dos quais integrarão a Guarda Nacional Republicana.

Em suma, da simples leitura dos comentários alegadamente publicados pelo Arguido na rede social Facebook resulta que o mesmo está a aludir a determinadas pessoas que integram a Guarda Nacional Republicana, as quais não se mostram, no entanto, concretamente identificadas (com excepção da referida no comentário constante no ponto 5 da acusação, conforme já referido).

Ou seja, os comentários alegadamente publicados pelo Arguido não se mostram dirigidas ao organismo queixoso Guarda Nacional Republicana.

Ora, os comentários tecidos alegadamente pelo Arguido relativamente a determinados militares da Guarda Nacional Republicana não podem ser entendidos como dirigidas à própria Guarda Nacional Republicana e assim de porem em causa o prestígio, credibilidade e confiança da corporação.

Entendimento contrário levaria a considerar que uma ofensa à honra – bem jurídico pessoalíssimo, atributo exclusivo da pessoa individual – é susceptível de preencher um tipo legal que tutela um bem jurídico (o bom nome, que agrega a credibilidade, prestígio e confiança) de que só podem ser titulares

pessoas colectivas ou entidades equiparadas. – Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 2/10/2013, processo n.º 4213/12.4TDPRT.P1, disponível in www.dgsi.pt.

Com efeito, a lei exige que se esteja perante factos idóneos – factos que tenham capacidade para – a ofenderem a credibilidade, o prestígio ou a confiança. O que impõe, de maneira necessária, que se tenha de fazer um juízo de idoneidade quanto àquela capacidade. (…) A idoneidade ou capacidade de violação à credibilidade, prestígio ou confiança mede-se por um parâmetro que se apoie na compreensão que um normal e diligente homem comum tenha da problemática. Daí que as afirmações «a polícia é uma choldra» ou «é uma corporação de deficiente e incapazes» não sejam expressões factuais mas antes valorações. O que implica que, a preencherem tais proposições uma factualidade, em caso algum pudesse ser a da norma que se estuda. No entanto, se se afirmar que na esquadra Y as pessoas detidas são espancadas e que lá dentro se passam coisas pouco edificantes com prostitutas, é evidente que tais factos, se inverídicos, afectam a credibilidade, o prestígio e a confiança na Polícia. – José Faria da Costa in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 2.ª edição, Coimbra Editora, páginas 985 e 986.

Ora, para além das expressões constantes em 3. consubstanciarem valorações e não preencherem, como tal, o elemento objectivo do presente tipo de ilícito, conforme já referido supra, os restantes factos imputados pelo Arguido nos comentários constantes da acusação deduzida pelo Ministério Público não se reportam directamente à actuação da Guarda Nacional Republicana como um todo (organismo) mas sim a determinados militares da Guarda Nacional Republicana (pese embora não cabalmente identificados, sendo contudo claro que o Arguido se referia a um militar da Guarda Nacional Republicana de nome BB e a militares de um núcleo de investigação criminal dessa força de segurança de natureza militar), cujo comportamento apenas afectará o organismo (força de segurança de natureza militar) de forma reflexa, o que já não se mostra idóneo para ofender o prestígio, a credibilidade e a confiança do organismo, e, como tal, tutelado pelo presente tipo de ilícito, tendo em conta a ultima ratio do direito penal, que tutela apenas os valores essenciais e fundamentais da vida em sociedade, obedecendo a um princípio de intervenção mínima, bem como de proporcionalidade imanente ao Estado de Direito. – Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 16/03/2021, processo n.º 2464/19.0T9LSB.L2-5, disponível in www.dgsi.pt.”

Em face de tudo o que se deixou exposto, os comentários alegadamente publicitados pelo Arguido na sua rede social Facebook não preenchem o elemento objectivo do tipo de ilícito, porquanto a imputação não é dirigia ao ente colectivo em si, mas sim a algum ou alguns dos seus elementos, não se pretendendo pôr em causa a actuação da GNR em si, enquanto corporação, mas sim a atuação de algum ou alguns dos seus elementos, independentemente do seu número.

E não contendo a acusação narração de factos que se traduzam na prática de crime punível, tal é mais do que suficiente para rejeitar a acusação, sendo esta a única possibilidade que se impõe.

Termos em que, com tais fundamentos, se julga improcedente o recurso.

*

Decisão

Face ao exposto, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em julgar improcedente o recurso, mantendo a decisão recorrida.

- Sem custas.

*

Elaborado e revisto pela primeira signatária

Évora, 9 de maio de 2023


Laura Goulart Maurício

Maria Filomena Soares

J. F. Moreira das Neves