Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
29/16.7GEALR.E1
Relator: MARIA FERNANDA PALMA
Descritores: CRIME DE RESISTÊNCIA E COAÇÃO SOBRE FUNCIONÁRIO
ELEMENTOS ESSENCIAIS DO CRIME
CRIME DE CONDUÇÃO DE VEÍCULO EM ESTADO DE EMBRIAGUEZ
NULIDADE DE SENTENÇA
PENA ACESSÓRIA DE PROIBIÇÃO DE CONDUZIR
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA DOS FACTOS DIFERENTE DA CONSTANTE DA ACUSAÇÃO
Data do Acordão: 05/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário: I – O crime de resistência e coação sobre funcionário, p. e p. pelo artigo 347.º do CP, pressupõe a verificação dos seguintes requisitos: (i) a oposição a que funcionários, membros das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança, pratiquem ou continuem a praticar acto legítimo compreendido nas suas funções, ou constrangimento a que pratiquem acto relacionado com as suas funções mas contrário aos seus deveres; (ii) que essa oposição ou constrangimento sejam operados através de violência (física ou moral) ou ameaça grave; (iii) que o agente saiba que está perante um funcionário, membro das forças armadas, militarizadas ou de segurança; (iv) que tenha conhecimento de que a oposição e ou o constrangimento, através da violência ou ameaça, o impeçam de praticar o acto relacionado com as suas funções ou de prossegui-lo.
II – Não comete o referido crime, por não verificação do elemento objectivo do crime, o arguido que encetou uma fuga, ziguezagueando o carro por si conduzido, com vista a evitar ser abordado pelos militares da GNR, uma vez que receava vir a ser detetado que conduzia sob o efeito do álcool e, tendo sido perseguido pelos militares da GNR, dessa fuga resultou o embate e o despiste do veículo conduzido pelo arguido.
III – Incorre em nulidade a sentença que condena o arguido na pena acessória de proibição de conduzir, pela prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, se não constava da acusação a indicação, entre as disposições aplicáveis, do n.º 1 do artigo 69.º do CP, nem tal lhe foi comunicado na audiência de julgamento.
Decisão Texto Integral: Processo nº 29/16.7GEALR.E1


Acordam, em conferência, os Juízes que constituem a secção criminal do Tribunal da Relação de Évora


Nos presentes autos de Processo Comum Singular nº 29/16.7GEALR, do Juízo de Competência Genérica de Almeirim, da Comarca de Santarém, por sentença de 07-03-2017, foi condenado o arguido BB, id. a fls. 87, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292º, nº 1, do Código Penal, na pena de cem dias de multa, à taxa diária de cinco euros, o que perfaz a quantia de quinhentos euros; mais foi condenado na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor por um período de oito meses, nos termos do artigo 69º, nº 1, al. a), do mesmo diploma legal, e absolvido da prática dos crimes p. e p. pelo artigo 347º, nº 1 do Código Penal.

Inconformado com o decidido, recorreu o Ministério Público, nos termos da sua motivação constante de fls. 111 a 124, pugnando pela condenação do arguido também pela prática de um crime de resistência e coação sobre funcionário, p. e p. pelo artigo 347º, nº 1, do Código Penal, e pela declaração de nulidade da sentença, nos termos da al. b) do nº 1, do artigo 379º, do Código Penal, na parte em que condenou o arguido na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, concluindo nos seguintes termos:
1 - Vem o presente recurso interposto como manifestação do inconformismo do Ministério Público quanto à sentença proferida nos autos, na parte em que decidiu absolver o arguido BB da prática, em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de resistência e coacção sob funcionário, previsto e punido pelo artigo 347.º n.º 1 do Código Penal e, bem assim, na parte em que condenou o arguido na pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor pelo período de oito meses, nos termos do artigo 69.º n.º 1 alínea a) do Código Penal.
2 - Os factos provados na sentença em crise permitiriam a condenação do arguido pela prática de um crime de resistência e coacção sob funcionário (e não de dois crimes, como vinha acusado).
3 - Imprimir a um veículo velocidade substancial (superior a 90km/h) e um movimento serpenteante, no momento em que os militares da GNR tentavam colocar o veículo policial em paralelo com o veículo que o arguido conduzia, é suficiente para integrar a conduta no conceito de violência exigido pela incriminação, tanto mais que o arguido assumiu em audiência de discussão e julgamento que o seu intuito foi obstar à actuação dos militares da GNR.
4 - Ainda que assim não se entendesse, impunha-se dar como provado “Que o arguido guinou o volante, sucessiva e reiteradamente, na direcção do veículo da GNR, com o propósito de atirar com o veículo da GNR para fora da estrada.” e “Que o arguido veio a embater com o seu veículo na parte lateral frontal direita do veículo conduzido pelos Militares da GNR.”, o que reforça a posição de que o comportamento do arguido é idóneo ao preenchimento do tipo legal de crime em questão.
5 - A sentença recorrida violou o artigo 347.º n.º 1 do Código Penal, bem como o artigo 127.º do Código de Processo Penal.
6 - A sentença recorrida condenou o arguido na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor por um período de 8 (oito) meses, sem que da acusação constasse qualquer menção ao disposto no artigo 69.º n.º 1 alínea a) do mesmo diploma legal e sem que tenha sido comunicada ao arguido qualquer alteração da qualificação jurídica
7 - Tal como decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 7/2008, publicado no Diário da República n.º 146, Série I de 30/07/2008, a sentença encontra-se ferida da nulidade prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 379.º do Código Processo Penal.
Termos em que:
1. Deverá ser julgado procedente o presente recurso e, em consequência, ser revogada a sentença proferida e, considerando a matéria de facto dada como provada, substituída por outra que condene o arguido BB da prática, em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de resistência e coacção sob funcionário, previsto e punido pelo artigo 347.º n.º 1 do Código Penal.
2. Subsidiariamente, e caso não se entenda ser a matéria provada suficiente para o preenchimento do crime, deverá alterar-se a sentença recorrida, considerando-se provado “Que o arguido guinou o volante, sucessiva e reiteradamente, na direcção do veículo da GNR, com o propósito de atirar com o veículo da GNR para fora da estrada.” e “Que o arguido veio a embater com o seu veículo na parte lateral frontal direita do veículo conduzido pelos Militares da GNR.” e, em consequência, condenar-se o arguido pela prática do aludido crime.
3. Deve ser declarada a nulidade da sentença, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 379.º do Código Processo Penal, na parte em que condenou o arguido na pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor pelo período de oito meses, determinando-se a devolução dos autos ao tribunal recorrido para que seja a mesma sanada e proferida nova sentença.

O arguido respondeu, conforme consta de fls. 129 a 131, entendendo que não deverá ser condenado pela prática dos crimes de resistência e coação sobre funcionário, e considerando também, que não deveria de ter sido condenado na pena acessória.
Conclui nos seguintes termos:
1 - Da matéria dada como provada, não resulta demonstrado que o arguido teve intenção de atingir o veículo da GNR.
2 - Não foi feita prova bastante para dar como provados os factos considerados não provados.
3 - A meritíssima juíza aplicou corretamente os critérios de experiência comum e decidiu segundo a sua convicção, conforme prescreve o artigo 127º do CPP.
4 - Pelo que, não pode o arguido ser condenado pelos crimes de resistência e coação sobre funcionário, previsto e punidos, pelo artigo 347º, nº 1 do CP.
5 - Nada consta da acusação relativamente à possibilidade de ser aplicada ao arguido, a pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor, nos termos do artigo 69.º n,º 1 alínea a) do CP, nem lhe foi comunicada qualquer alteração da qualificação jurídica.
6 - Assim, a aplicação ao arguido da pena acessória de proibição de condução de veículos a motor, pelo período de oito meses, viola o artigo 379º, nº 1 alínea d) do CPP.

Neste Tribunal da relação de Évora, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu o seu parecer, no qual entende que o recurso da matéria de facto não foi devidamente interposto, com violação do preceituado no artigo 412, nº 3, al. b) e nº 4 do Código de Processo Penal, considerando, também, que a sentença padece da nulidade prevista no artigo 379º, nº 1, al. b) do Código de Processo Penal, tendo em atenção o teor do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do STJ nº 7/2008.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

Como o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas pelos recorrentes nas respetivas motivações de recurso, nos termos preceituados nos artigos 403º, nº 1 e 412º, nº 1, ambos do Código de Processo Penal, podendo o Tribunal de recurso conhecer de quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida, cumprindo cingir-se, no entanto, ao objeto do recurso, e, ainda, dos vícios referidos no artigo 410º do referido Código de Processo Penal, - v. Ac. do Plenário das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça nº 7/95 de 19 de Outubro - vejamos, pois, se assiste razão ao Ministério Público, no que respeita às questões que suscitou nas conclusões do presente recurso, quais sejam:
- A sua discordância quanto aos factos apurados;
- A verificação de um crime de resistência e coação sobre funcionário;
- Nulidade da sentença.


Está em causa a seguinte matéria de facto apurada:

1. No dia 24 de Janeiro de 2016, cerca das 4h35m, o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros, de marca “Opel”, modelo “Corsa”, com a matrícula …, pela Rua Dionísio Saraiva, em Almeirim.
2. Ao ser submetido a exame de pesquisa de álcool no ar expirado, quando conduzia o referido veículo, o arguido apresentou uma taxa de álcool no sangue de 1,70 g/l, depois de deduzido o desconto do erro máximo admissível, in casu, de 5%, da taxa apresentada (1,79 g/l).
3. No momento em que circulava na aludida via (Rua Dionísio Saraiva, Almeirim), o arguido apercebeu-se da presença de uma patrulha da GNR de Almeirim, composta pelos Militares CC e DD, que circulava num veículo caracterizado na Rua Bernardo Gonçalves, também em Almeirim, e apercebeu-se, também, que a patrulha o viu.
4. Por estar ciente que conduzia tendo ingerido, previamente, bebidas alcoólicas, e que o veículo que conduzia não tinha seguro de responsabilidade civil, o arguido prosseguiu a sua marcha, mas imprimiu, de imediato, ao veículo por si conduzido, velocidade não concretamente apurada, mas superior a 90 Km/hora, conduzindo, dessa forma, pela Rua Dionísio Saraiva, pela Rua Bernardo Gonçalves, pela Rua do pela Rua do Pinhal, pela Rua de Coruche, pela Estrada Nacional 114, pela Estrada do Marquês e pela Estrada Municipal 1391, sempre com o intuito de não ser alcançado pela patrulha da GNR de Almeirim.
5. No momento em que o arguido conduzia pela Estrada Municipal 1391, em Fazendas de Almeirim, no sentido Fazendas de Almeirim/Foros de Benfica, local que configura uma recta, o Militar da GNR CC avançou pela faixa de rodagem oposta àquela onde circulava, e posicionou o veículo da GNR que conduzia em paralelo com o veículo conduzido pelo arguido, de forma a ordenar-lhe que imobilizasse o veículo.
6. Apercebendo-se desse facto, e ciente que o intuito dos Militares da GNR seria fiscalizá-lo, o arguido carregou no acelerador, de modo a imprimir velocidade cada vez mais elevada ao veículo, ao mesmo tempo que imprimia ao mesmo um movimento “serpenteante”.
7. Em consequência desse movimento que o arguido imprimiu ao seu veículo, veio a ocorrer um embate entre a parte lateral esquerda traseira do veículo conduzido pelo arguido e a parte lateral frontal direita do veículo conduzido pelos Militares da GNR,
8. Após esse embate o arguido perdeu o controlo do veículo, vindo a embater numas árvores que se encontravam à esquerda da via, atento o seu sentido de marcha.
9. O arguido agiu, bem sabendo que se apresentava sob a influência do álcool em limites superiores aos legais e que, nessas circunstâncias, lhe estava vedada a condução de veículos a motor na via pública ou equiparada, não se abstendo, ainda assim, de o fazer.
10. Agiu voluntária, livre e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei e tinha a liberdade necessária para se determinar de acordo com essa avaliação.
11. Mais sabia o arguido que essa sua conduta era proibida e punida por lei.
12. Do CRC junto aos autos consta ter sido o arguido condenado, por sentença de 07.04.2011, transitada em julgado em 12.05.2011, na pena de 60 dias de multa à taxa diária de €6,00, num total de €360,00, bem como na pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor pelo período de 4 meses, pela prática, em 06.03.2011, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, penas essas que se encontram extintas pelo cumprimento.
13. O arguido actualmente está desempregado, trabalha na agricultura de forma esporádica, quendo arranja trabalho aufere €30,00 por dia, reside com os seus pais e com o seu filho de 3 anos

Não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a boa decisão da causa, nomeadamente:
Que o arguido guinou o volante, sucessiva e reiteradamente, na direcção do veículo da GNR, com o propósito de atirar com o veículo da GNR para fora da estrada.
Que o arguido veio a embater com o seu veículo na parte lateral frontal direita do veículo conduzido pelos Militares da GNR.

O Tribunal a quo fundou a decisão da matéria de facto nos seguintes termos:
“O Tribunal formou a sua convicção quanto aos factos provados alicerçando-se na prova produzida na audiência de discussão e julgamento, analisada segundo as regras da lógica e da experiência comum, nos termos do artigo 127.º do Código de Processo Penal, mais precisamente nas declarações do arguido que quanto aos factos integradores da prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez admitiu os mesmos. Já quanto aos restantes factos, o arguido admitiu que efectivamente se colocou em fuga quando avistou o veículo da GNR pois entrou em pânico por saber que tinha ingerido bebidas alcoólicas e receou que os agentes o interceptassem e o submetessem ao exame de pesquisa de álcool, o que veio a suceder. No entanto, apesar de admitir que acelerou quando viu a patrulha e que conduziu pelas vias mencionadas na acusação a uma velocidade elevada, no entanto nega que, em algum momento, tenha circulado a uma velocidade superior a 90 km/h. Negou igualmente que tenha embatido propositadamente com o seu veículo no veículo da GNR, afirmando que foram os agentes que fizeram embater o veículo que conduziam na traseira do seu, fazendo assim com que perdesse o controlo do mesmo e viesse a despistar-se.
Quanto aos depoimentos prestados pelas testemunhas CC e DD, os militares da GNR que seguiam no carro patrulha, os mesmos mereceram a credibilidade do tribunal, motivando a que fosse dada como provada a factualidade supra, quer no que respeita ao percurso feito pelo arguido, quer quanto à velocidade que imprimiu ao seu veículo, já que ambos afirmaram que eles próprios seguiam a uma velocidade superior a 90 km/h quando seguiam no encalço do arguido.
Quanto ao facto de o arguido imprimir ao veículo um movimento “serpenteante”, enquanto seguia pela Estrada Municipal 1391, o tribunal atendeu igualmente às declarações dos militares da GNR. Por outro lado, os militares da GNR confirmaram também o que foi declarado pelo arguido quanto aos locais em que ambos os veículos foram embatidos (o veículo da GNR na parte lateral frontal direita e o veículo do arguido na parte lateral esquerda traseira).
Já quanto aos factos não provados – “Que o arguido guinou o volante, sucessiva e reiteradamente, na direcção do veículo da GNR, com o propósito de atirar com o veículo da GNR para fora da estrada.
Que o arguido viria a embater com o seu veículo na parte lateral frontal direita do veículo conduzido pelos Militares da GNR.” – os mesmos assim foram considerados pelo tribunal pois, por um lado o arguido nega veemente que tenha propositadamente embatido com o seu veículo no veículo da GNR e, por outro lado, as declarações prestadas pelos militares CC e DD não lograram convencer o tribunal nessa parte porquanto, recorrendo às regras da experiência e normalidade das coisas, não se mostra credível que, ao fazer serpentear o seu veículo, o arguido tenha conseguido embater intencionalmente com a traseira do seu veículo na parte da frente do veículo da GNR, sendo mais credível, sempre com base na lógica e normalidade das coisas, que tal embate tenha sido, causado, eventualmente, por esse movimento serpenteante que o arguida imprimia ao veículo, não sendo, no entanto, possível concluir que tenha sido um embate intencional.
Foram ainda considerados o auto de notícia de fls. 2, relatório fotográfico de fls. 3 e 4, participação de acidente de viação de fls. 5 e 6 e o talão de teste de fls. 11.
Relativamente às condições económicas, sociais e familiares, foram tidas em consideração as declarações do arguido, já que não se entreveem motivos para as afastar.
O tribunal atendeu, ainda, ao CRC junto aos autos.”

Vejamos, então:

O recorrente, Ministério Público, discorda da decisão da matéria de facto, já que considera que deveria de ter sido dado como apurado:
Que o arguido guinou o volante, sucessiva e reiteradamente, na direcção do veículo da GNR, com o propósito de atirar com o veículo da GNR para fora da estrada.” e “Que o arguido veio a embater com o seu veículo na parte lateral frontal direita do veículo conduzido pelos Militares da GNR.”
Porém, na sua motivação de recurso, e respetivas conclusões, limita-se a aludir aos depoimentos dos militares da GNR inquiridos em audiência de julgamento, sem contudo referir expressamente quais os factos que, em sua opinião, considera incorretamente julgados e quais as provas que impunham decisão diversa da recorrida.
Portanto, não dá cabal cumprimento ao disposto no artigo 412º, nº 3, als. a) e b) e nº 4, do Código de Processo Penal, como podia e devia, já que discorda do julgamento da matéria de facto em causa.
E como não respeitou o dito comando legal, a matéria de facto tem-se como apurada nos precisos termos em que o foi.
E assim sendo, apenas cumpre conhecer da existência de eventuais vícios resultantes do texto da decisão recorrida, por si só, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, como consta do artigo 410º, nº 2, do dito Código de Processo Penal.

Entende o Ministério Público que o arguido deveria de ter sido condenado, também, pela prática do crime de resistência e coação sobre funcionário.
A este respeito diz a sentença recorrida, o que se transcreve, por se concordar inteiramente com estas considerações:
“Ao arguido vem imputada a prática de dois crimes de resistência e coacção sobre funcionário, previstos e punidos no artigo 347º, nº 1, do Código Penal
Dispõe o artigo 347º, nº1, do Código Penal que, “Quem empregar violência ou ameaça grave contra funcionário ou membro das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança, para se opor a que ele pratique acto relativo ao exercício das suas funções, ou para o constranger a que pratique acto relativo ao exercício das suas funções mas contrário aos seus deveres é punido com pena de prisão até 5 anos”.
Estamos, pois, perante um crime de perigo dirigido contra o Estado (contra a autoridade pública), na medida em que se tutela o interesse do Estado em fazer respeitar a sua autoridade veiculada pelos funcionários a quem compete fazê-la cumprir, no desempenho livre das funções que sobre eles impendem, no sentido de que sejam respeitadas as suas atribuições e os seus actos legítimos.
Todavia, não é um crime contra as pessoas, pois, é indiferente o número de funcionários envolvidos ou visados pela conduta criminosa para efeitos de qualificação do crime, ou seja, a pluralidade de funcionários não provoca a pluralidade de crimes - (cfr. Ac STJ 28/04/1999, CJ-ASTJ, ano VII, Tomo II, 1999, pág. 193).
O bem jurídico que a lei especialmente quis proteger com a incriminação é o interesse do Estado em fazer respeitar a sua autoridade - autoridade pública numa aceção funcional que abstrai dos órgãos ou agentes que a exercem, isto é, o conceito de autoridade assume um sentido objectivo, ligado à ideia de poder legal (funcional) de impor um determinado comportamento - (cfr. José Luís Lopes da Mota, in Crimes contra a autoridade pública, Jornadas de Direito Criminal, Vol. II, Centro de Estudos Judiciários, 1998, pág. 413 a 426) - manifestada na liberdade funcional de actuação do seu funcionário ou membro das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança.
No dizer de Cristina Líbano Monteiro, in Comentário Conimbricense do Código Pnal, Parte Especial, Tomo III, pág. 339 e ss., o bem jurídico protegido é a autonomia intencional do Estado, protegida de ataques vindos do exterior da administração pública. Pretendendo-se evitar que não funcionários ponham entraves à livre execução das intenções estaduais, tornando-as ineficazes. Com este normativo acautela-se ainda a liberdade de acção pública do funcionário, mas não a sua liberdade de acção privada.
Entende-se existir crime de resistência e coacção sobre funcionário quando há o emprego da violência ou ameaça grave contra funcionário, membro das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança, para se opor a que pratique acto compreendido nas suas funções ou para o constranger a que pratique acto relacionado com as suas funções, mas contrário aos seus deveres.
Por violência entende-se todo o acto de força ou hostilidade que seja idóneo a coagir o funcionário ou membro das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança.
Porém, mais nenhum meio a não ser a violência ou ameaça grave leva ao preenchimento do tipo, pelo que estamos perante um crime de execução vinculada. Pois, diz Nelson Hungria que “a oposição deve ter, na espécie, um carácter militante. A simples desobediência ou resistência passiva (vis civilis) poderá constituir outra figura criminal … Se não há emprego de violência (vis physica, vis corporalis) ou de ameaça (vis compulsiva), capaz de incutir medo a um homem do tipo normal, limitando-se o indivíduo à inacção, à atitude ghândica, à fuga ou tentativa de fuga, à oposição branca, à atitude de um propósito de recalcitrância, à simples imprecação de males, (pragas), não se integra a resistência” – cfr. Simas Santos e Leal Henriques, in Código Penal de 1982, vol. IV, pág. 436.
A este propósito refere Cristina Líbano Monteiro, in ob. cit,, pág. 341 e ss., relativamente “aos meios utilizados - violência ou ameaça grave … há-de considerar-se que os destinatários possuem, nalgumas das hipóteses deste tipo legal, especiais qualidades no que diz respeito à capacidade de suportar pressões e estão munidos de instrumentos de defesa que vulgarmente não assistem ao cidadão comum. Membros das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança não são, para efeitos de atemorização, homens médios”. Daí conclui que “o grau de violência ou de ameaça necessários para que se possa considerar preenchido o tipo não há-de medir-se pela capacidade de afectar a liberdade física ou moral de acção de um homem comum. A utilização do critério objectivo-individual há-de assentar na idoneidade dessa violência ou ameaça para perturbar a liberdade de acção do funcionário. Assim será natural que uma mesma acção integre o conceito de violência relevante nos casos em que o sujeito passivo for mero funcionário e seja desvalorizada quando utilizada para defrontar, por exemplo, um militar. Ou seja: nalgumas hipóteses desta concreta coacção que se considera, hão-de ter-se em conta não apenas as eventuais sub capacidades do coagido ameaçado, mas talvez sobretudo as suas ‘sobre capacidades’” – cfr. Ac. da RL de 21/4/2004, proferido no processo nº 640/2004-3, disponível na Internet, no site da DGSI e AC da RP de 14/1/2004, proferido no proc nº 0210413, disponível também na Internet no site da DGSI, sob o nº RP200401140210413.
Há ameaça grave sempre que a acção afecte a segurança e tranquilidade da pessoa a quem se dirige e seja suficientemente séria para produzir o resultado pretendido.
A acção neste tipo de crime materializa-se na prática de actos de violência ou ameaça grave contra a autoridade, na pessoa de um seu agente, e desenvolve-se em vista de uma finalidade específica dirigida à sua liberdade funcional de acção.
Enquanto na desobediência se está perante o não cumprimento de uma ordem, na resistência incrimina-se uma actividade dirigida ao agente da autoridade, traduzida numa atitude de oposição à execução de um acto ou numa atitude de constrangimento para a prática de um acto do poder público, mediante actos de coacção física (uso da força física) ou psíquica (ameaça e acto material e violento com o fim de impedir o agente de autoridade de exercer as suas funções) perturbadoras da segurança e tranquilidade ou mediante a exteriorização de uma vontade de fazer nascer um mal sério, geralmente imediato, de natureza a influenciar a acção legal do agente da autoridade (cfr. José Luís Lopes da Mota, in ob. cit., pág. 421). Quanto ao tipo subjectivo, este é um crime doloso, (admitindo o dolo em qualquer uma das suas modalidades), consistindo o dolo neste crime na vontade livre e consciente de empregar violência ou ameaça grave para efeitos de obter do funcionário a acção ou omissão pretendida.
Em suma, a configuração deste tipo legal pressupõe a verificação dos seguintes requisitos:
a) a oposição a que funcionários, membros das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança, pratiquem ou continuem a praticar acto legítimo compreendido nas suas funções ou constrangimento a que pratiquem acto relacionado com as suas funções mas contrário aos seus deveres;
b) que essa oposição ou constrangimento sejam operados através de violência (física ou moral) ou ameaça grave;
c) que o agente saiba que está perante um funcionário, membro das forças armadas, militarizadas ou de segurança;
d) que tenha conhecimento de que a oposição e ou o constrangimento, através da violência ou ameaça, o impeçam de praticar o acto relacionado com as suas funções ou de prossegui-lo, neste sentido, - (cfr. Ac STJ 31/01/1990, in BMJ, nº 393, pág.340).
A G.N.R. é, nos termos da respectiva lei orgânica - (DL 231/93, de 26 de Junho), definida como força de segurança constituída por militares; assim, os seus membros em termos de sujeito passivo englobam-se nos protegidos pelo artigo 347º Código Penal.
Ora, como resulta da matéria de facto provada, o arguido encetou uma fuga com vista a evitar ser abordado pelos militares da GNR, uma vez que receava vir a ser detetado que conduzia sob o efeito do álcool, no entanto a sua conduta não integra o conceito de violência (física ou moral) ou ameaça grave, não integrando a sua conduta a tipicidade exigida para a verificação deste crime, sendo certo que a fuga encetada pelo arguido também não impedia que os senhores militares levassem a cabo o exercício das suas funções pois podiam simplesmente abandonar a perseguição e se limitarem-se a levantar o respectivo auto de notícia, fazendo assim o infractor responder igualmente perante a Justiça. Muito embora o crime imputado ao arguido seja o previsto no nº 1 do artigo 347º do Código Penal, cumpre no entanto aferir se a sua conduta integra a tipicidade prevista no nº 2 do mesmo normativo legal.
Preceitua o nº 2 do artigo 347º do Código Penal:
2 - A mesma pena é aplicável a quem desobedecer ao sinal de paragem e dirigir contra funcionário ou membro das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança, veículo, com ou sem motor, que conduza em via pública ou equiparada, ou embarcação, que pilote em águas interiores fluviais ou marítimas, para se opor a que ele pratique acto relativo ao exercício das suas funções, ou para o constranger a que pratique acto relativo ao exercício das suas funções, mas contrário aos seus deveres, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.”
A conduta do arguido igualmente não integra a tipicidade prevista neste normativo porquanto, pelas razões supra aduzidas, não se mostra provado que o arguido, de alguma forma, tenha “dirigido o seu veículo contra os militares ou sequer contra o veículo conduzido pelos militares.
Também não se pode deixar de levar em consideração as especiais qualidades dos agentes, no que diz respeito à capacidade de suportar pressões e de que os mesmos estão munidos de instrumentos de defesa o que normalmente não acontece com o cidadão comum, para que se possa concluir que do grau de violência ou de ameaça se mostram idóneos ao preenchimento do tipo. E, como acima se refere, para que se avalie se a conduta do arguido integra ou não o crime de que vem acusado, não poderá deixar de se utilizar um critério objectivo individual que há-de assentar na idoneidade dessa violência ou ameaça para perturbar a liberdade de acção dos funcionários ou agentes da autoridade, o que, em nosso entender, não se alcança no caso dos autos, pelo que não se deixará de concluir da inexistência do crime de resistência e coacção – cfr. Ac. da RL de 21/4/2004, proferido no processo nº 640/2004-3, disponível na Internet, no site da DGSI, e Ac. da RE de 18/5/2004, proferido no proc nº 15/04-1, disponível também na Internet no site da DGSI.
Logo não poderá o arguido ser responsabilizado pelos crimes de resistência e coacção sobre funcionário que lhe vêm imputados nos presentes autos.”
Como já se disse, concorda-se inteiramente com a posição assumida na sentença proferida na 1ª Instância.
Com efeito, a oposição do arguido à sua detenção não foi exercida através de qualquer violência (física ou moral) ou ameaça grave sob os militares da GNR envolvidos no caso.
O arguido ao sentir-se observado pelos ditos elementos da GNR encetou uma fuga; não desobedeceu a qualquer ordem dos mesmos, nem tão pouco os afrontou ou ameaçou com o uso de qualquer violência física ou moral.
Também não resultou apurado, contrariamente ao pretendido pelo recorrente, que o arguido tivesse guinado o carro por forma a embater no veículo da GNR, assim colocando em perigo a vida dos respetivos ocupantes, o que, dada a violência da atuação, poderia integrar os elementos constitutivos da infração em causa.
Como tal, apenas fugiu, fazendo parte dessa fuga o ziguezaguear com o carro, e foi perseguido pela GNR, resultando o embate e o despiste do arguido dessa mesma fuga.
Assim sendo, e por não ter resultado apurado o dito elemento objetivo do tipo de crime em causa, entende-se que bem andou o tribunal a quo ao não ter condenado o arguido pela prática do mesmo.

Quanto à última questão suscitada, entende-se assistir razão ao recorrente.
Assim, o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 7/2008, publicado no Diário da Republica nº 146, I, de 30-07-2008, estabeleceu que “Em processo por crime de condução perigosa de veículo ou por crime de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, não constando da acusação ou da pronúncia a indicação, entre as disposições legais aplicáveis, do nº 1 do artigo 69º do Código Penal, não pode ser aplicada a pena acessória de proibição de conduzir ali prevista, sem que ao arguido seja comunicada, nos termos dos nºs 1 e 3 do artigo 358º do Código de Processo Penal, a alteração da qualificação jurídica dos factos daí resultantes, sob pena de a sentença incorrer na nulidade prevista na alínea b) do nº 1 do artigo 379º do mesmo diploma legal”.
Ora, no caso em apreço, não constava da acusação a dita norma legal – v. fls. 37 dos autos, nem foi efetuada qualquer comunicação ao arguido, como se pode ver das atas da audiência de julgamento, a fls. 86 a 89 e 91.
E assim sendo, e por se concordar inteiramente com a Jurisprudência uniformizada, atento o princípio do contraditório, a sentença padece de nulidade, nesta parte, não estando invalidado o resto do decidido, pelo que não poderá ser aplicada ao arguido qualquer pena acessória.

Assim, e pelo exposto, acordam os juízes que constituem a secção criminal do Tribunal da Relação de Évora, em conceder parcial provimento ao recurso, declarando a nulidade da sentença na parte em que aplicou ao arguido a pena acessória de proibição de conduzir veículos automóveis pelo apontado período de tempo, e mantendo quanto ao mais a sentença recorrida.
Sem tributação.

Évora, 08 de Maio de 2017
Maria Fernanda Palma (relatora)
Maria Isabel Duarte