Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
400/21.2T8OLH-A.E1
Relator: MÁRIO COELHO
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
HOMOLOGAÇÃO
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
Data do Acordão: 03/10/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1. No processo especial de revitalização (PER), a não menção na relação de credores da data de vencimento dos créditos, não constitui vício apto ao indeferimento liminar da petição inicial.
2. Ao proferir o despacho a que se refere o n.º 4 do artigo 17.º-C do CIRE, não cabe ao juiz indagar dos requisitos materiais do procedimento, nomeadamente se é viável a recuperação do devedor.
3. O princípio da igualdade dos credores não proíbe o estabelecimento de distinções entre eles, apenas proíbe diferenças de tratamento sem fundamento material bastante, sem uma justificação razoável, segundo critérios objectivos relevantes.
4. O plano de recuperação pode admitir o diverso tratamento dos credores, fundada na distinta classificação dos seus créditos.
5. Não viola o princípio da igualdade o plano que prevê o pagamento integral dos créditos garantidos e privilegiados, e apenas 30% dos créditos comuns, se for possível concluir que os credores comuns ficariam em pior situação em caso de não aprovação do plano.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Sumário: (…)

Acordam os Juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

No Juízo de Comércio de Lagoa, (…) – Sociedade de Pesca do (…) S.A., intentou processo especial de revitalização.
Considerando que o requerimento inicial não era acompanhado dos documentos legalmente exigidos, foi a Requerente notificada para juntar:
- Declaração assinada por um credor representando mais de 10% dos créditos não subordinados, identificando as pessoas singulares que vinculam o credor pessoa colectiva;
- Relatórios de gestão, balanço e demonstração de resultados dos exercícios de 2020, 2019 e 2018;
- Relatórios de contas relativos aos mesmos anos;
- Documento identificando os titulares do seu capital social.
Respondendo, a Requerente juntou requerimento juntando os documentos solicitados, excepto quanto ao ano de 2020, por ainda não terem sido aprovadas.
Subsequentemente, foi proferido despacho nomeando administrador judicial provisório e fixando prazo para os credores reclamarem os seus créditos.
Apresentada lista provisória de créditos, foram deduzidas reclamações por dois credores e pela Requerente.
Foi proferido despacho decidindo as reclamações apresentadas.
A Requerente apresentou plano de recuperação, o qual foi apresentado a votação e, contados os votos, considerado aprovado.
Apresentado a juízo, o plano foi homologado.

Desta sentença recorre a credora (…) Naval, S.L., pessoa colectiva de direito espanhol, concluindo nos seguintes termos:
1. A devedora juntou com o requerimento inicial uma relação alfabética de credores que não contém as datas de vencimento dos créditos e não apresentou qualquer justificação para a falta, o que deveria ter implicado, em obediência ao artigo 27.º, n.º 1, alínea b), do CIRE notificação para, em 5 dias, sanar a irregularidade, sob pena de indeferimento.

2. Tal despacho não foi proferido nem a falta foi suprida pelo Administrador Provisório na lista provisória de créditos, pois este escamoteia as datas de vencimento dos créditos e a própria existência de mora, dividindo os créditos em “créditos em incumprimento” e “créditos indicados na petição inicial”, sem esclarecer se os desta última categoria estavam ou não em mora à data da apresentação da petição inicial.

3. A indicação das datas de vencimento dos créditos reveste-se de especial importância não só por ser indispensável ao cálculo dos juros de mora que a empresa deve a cada um dos seus credores e, reflexamente, à determinação do verdadeiro montante do seu passivo, como também porque permite determinar se e em que medida está a devedora a cumprir ou a incumprir as suas obrigações...

4. E, assim, para determinar se a devedora se encontra ou não em situação de insolvência – como pode resultar de um incumprimento generalizado das suas obrigações –, e se apresenta efectiva potencialidade de revitalização, ou se, pelo contrário, já não apresenta o sopro mínimo de vida que faça acreditar na sua viabilidade.

5. Sem a indicação das datas de vencimento dos créditos, ficam os credores privados de informação necessária para tomarem posição esclarecida quando ao objecto do processo e o Tribunal privado de um elemento essencial para aferir se a devedora se encontra já em situação de insolvência, o que a impediria de recorrer ao PER.

6. Em cumprimento (formal) do disposto no artigo 17.º-A, n.º 2, a devedora juntou, com o requerimento inicial, uma declaração, subscrita por revisor oficial de contas, supostamente atestando não se encontrar em situação de insolvência actual “à luz dos critérios previstos no artigo 3.º do CIRE”, declaração gravemente irregular a vários títulos.

7. A declaração não se pronuncia sobre a impossibilidade de cumprir as obrigações vencidas – que constitui o critério primordial fixado no artigo 3.º – tomando apenas posição sobre a relação entre o activo e o passivo, e informando que, apesar de a sociedade, em Maio de 2021, não ter ainda fechado as contas de 2019 e 2020, teria, em data que se ignora, uma situação patrimonial positiva em cerca de € 1.500.000,00.

8. A desconformidade da declaração que acompanhou o requerimento inicial deveria ter conduzido o Tribunal, em obediência ao referido artigo 27.º, n.º 1, alínea b), a notificar a devedora para a sanação do vício, sob pena de indeferimento do requerimento, o que – novamente – não sucedeu, ficando a irregularidade por suprir até ao momento da prolação da sentença de homologação.

9. Mas, neste caso, com a particularidade de o andamento dos autos ter vindo revelar a fragilidade da declaração no tocante à existência de uma situação patrimonial positiva, pois foi precisamente da insuficiência do activo para solver o passivo que o plano de recuperação aprovado se veio a servir para justificar a abissal diferença de tratamento entre os credores privilegiados e os credores comuns.

10. A devedora não logra demonstrar, como lhe incumbia, que, na data em que se apresentou a requerer o PER, não se encontrava em situação actual de insolvência, o que, face ao disposto no artigo 17.º-A, n.º 1, do CIRE lhe vedava recorrer a tal procedimento.

11. Além de apresentar declaração de contabilista certificado ou de revisor oficial de contas em seu apoio, deveria ter fornecido todos os elementos sobre os seus créditos, em ordem a provar que não estava incapacitada de solver a generalidade das suas obrigações, e não o fez, antes fornecendo elementos que apontam no sentido dessa incapacidade.

12. A devedora, entre os créditos que indicou, incluiu créditos da Segurança Social e da Autoridade Tributária de elevadíssimo montante que, face à dimensão a empresa, só podem ter sido gerados ao longo de mais de 6 meses – como de resto se infere do ponto 1.3 da proposta de plano de recuperação que acompanhou o requerimento inicial.

13. Por outro lado, apesar de ter alegado ter apenas quatro trabalhadores ao seu serviço, indicou como credores, nada mais nada menos do que doze trabalhadores, alguns com créditos muito elevados, e confessou dívidas à generalidade dos fornecedores de bens e serviços essenciais à sua actividade, reconhecendo, em particular, uma dívida à ora recorrente, por fornecimento de apetrechos navais, que atinge a impressionante quantia de € 1.272.914,98!

14. Ao que se soma que, como resulta da declaração de revisor oficial de contas que a devedora juntou, esta, em Maio de 2021, não tinha ainda fechado as contas de 2019 e 2020, o que revela atraso muito superior a 9 meses na aprovação e depósito de contas.

15. Qualquer dos factos indicados, subsumíveis às subalíneas (i), (ii) e (iii) da alínea g), e à alínea h), do artigo 20.º, n.º 1, do CIRE, legitimaria qualquer credor ou o Ministério Público a requerer a declaração da insolvência da devedora.

16. E isto sem nunca esquecer que a omissão da indicação das datas de vencimento dos créditos indicia uma suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas – cfr. artigo 20.º, n.º 1, alínea a). Aliás,

17. A requerida reconhece, nos artigos 10.º e 11.º do requerimento inicial e no ponto 2 da proposta de plano de recuperação que apresentou, que se encontrava impossibilitada de operar os seus três navios, com paralisação da sua actividade desde Setembro de 2020.

18. O que significa que esteve, desde então, a acumular dívidas aos seus credores até 20.05.2021, não pagando, designadamente, à Segurança Social, à Autoridade Tributária, aos seus trabalhadores e aos fornecedores, indispensáveis à sua actividade.

19. O próprio plano de recuperação aprovado confirma o estado de insolvência da devedora, pois uma empresa cujas forças apenas permitem pagar aos credores comuns 30% do capital em 9 anos, em 96 prestações mensais, iguais e sucessivas, após um período de carência de 12 meses, e com perdão de juros vencidos e vincendos, não se encontra capaz de solver a generalidade das suas obrigações.

20. A violação de não negligenciável de regras procedimentais e a situação actual de insolvência largamente indiciada nos autos e que a devedora não logrou infirmar impunha a recusa de homologação do plano de recuperação. Mas, sem prescindir,

21. O plano de recuperação deve respeitar o princípio da igualdade dos credores consagrado no artigo 194º, n.º 1, aplicável ao processo especial de revitalização por força do artigo 17.º-F, n.º 5, sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objectivas.

22. A distinção que possa ser efectuada no tratamento dos credores que se considere realizada na cobertura deste princípio de igualdade não pode deixar de ter em conta critérios de proporcionalidade.

23. Do plano apresentado pela devedora resulta uma abissal diferença de tratamento entre credores garantidos, privilegiados e comuns, para a qual não é apresentada justificação bastante.

24. De um lado, a devedora pagará aos credores garantidos e privilegiados a totalidade dos seus créditos com juros e, do outro, aos credores comuns paga apenas 30% do crédito, sem juros, apesar de lhes impor um diferimento de 8 anos, com um ano de carência!

25. Na prática, o custo da recuperação da devedora será integralmente arcado pelos credores comuns, uma vez que os garantidos e privilegiados não só não são atingidos no capital dos seus créditos, como ainda auferem juros pelo diferimento no pagamento.

26. Visando o PER, em primeira linha, a recuperação da empresa devedora, deveria o plano, encontrar nesse objectivo, e à luz da própria racionalidade das medidas de recuperação propostas, uma justificação para o tratamento diferenciado dos credores que não fosse claramente coberto pelo princípio da igualdade e não o faz.

27. Fica totalmente por explicar, por exemplo, por que razão, num contexto de continuação da actividade da devedora, recebem os credores garantidos por hipoteca um tratamento muito mais favorável do que os credores comuns.

28. A única justificação avançada para a diferença de tratamento pressupõe a liquidação da devedora, própria do processo de insolvência, e é, ainda assim, incongruente, na medida em que o plano, apesar de argumentar com a impossibilidade absoluta da recuperação dos créditos comuns nesse cenário, acaba por reconhecer que mesmo a liquidação integral dos créditos garantidos e privilegiados seria inviável, tornando-se incompreensível por que razão são estes pagos na totalidade enquanto os outros sofrem um corte radical.

29. A diferença é tratamento é discriminatória e desproporcionada, sendo certo que o pagamento de uma percentagem tão baixa dos créditos comuns só se compreenderá se a empresa se encontrar verdadeiramente impossibilitada de satisfazer a generalidade das suas obrigações e, portanto, em estado actual de insolvência.

30. A douta sentença recorrida violou as normas dos artigos 17.º-A, n.ºs 1 e 2, 17.º-C, n.º 3, alínea b), 17.º-F, n.º 5, 24.º, n.º 1, alíneas a) e f), 194.º, n.º 1 e 215.º do CIRE.

Na resposta da empresa Requerente, sustenta-se a manutenção do decidido.
Dispensados os vistos, cumpre-nos decidir.

O elenco fáctico a ponderar é o seguinte:
1- A Requerente tem por objecto o exercício da pesca artesanal, industrial e desportiva, aquacultura, transformação e comercialização de pescado e marisco;
2- Está vocacionada e equipada para a pesca de palangre de grandes quantidades, em especial de atum, espadarte e tintureira;
3- Detém três veículos ligeiros de mercadorias e três embarcações dedicados à pesca de palangre, estas hipotecadas aos credores Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do Algarve, C.R.L, e Caixa Geral de Depósitos, S.A.;
4- O plano de recuperação prevê, quanto aos créditos garantidos destes dois credores hipotecários:
MODIFICAÇÃO DO CRÉDITO
(alínea a) do n.º 2 do art. 212.º do CIRE)
Consolidação do capital e juros vencidos à data da publicação da lista definitiva de créditos
FINANCIAMENTO DE LONGO PRAZO
(dívida a ser regularizada pelo PER)
Capital: 100% do valor do crédito reconhecido;
Prazo de reembolso: 144 meses (início no mês seguinte ao da data de trânsito em julgado da sentença homologatória do Plano);
Taxa de Juro: EURIBOR 6M + Spread 2,5% (sendo que em qualquer circunstância, designadamente se o valor do indexante for negativo, este considera-se como zero (floor zero) e a taxa de juro nominal anual aplicável nunca será inferior ao valor do "spread".)
Reembolso de capital e pagamento de juros: Prestações trimestrais de capital e juros
Amortização de capital: durante os 2 primeiros anos, as prestações de capital serão reduzidas a:
1T - 5% (95% redução)
2T - 10% (90% redução)
3T - 15% (85% redução)
4T - 20% (80% redução)
5T - 25% (75% redução)
6T - 30% (70% redução)
7T - 35% (65% redução)
8T - 40% (60% redução)
CONTRATUALIZAÇÃO:A definir.
5- Quanto aos créditos comuns, o plano prevê o perdão de juros vencidos e vincendos; um período de carência de 12 meses contados do mês seguinte ao do trânsito em julgado da sentença de homologação do plano de recuperação; reembolso de 30% do crédito em 96 prestações mensais, iguais e sucessivas;
6- Quanto aos créditos privilegiados laborais, o plano de prevê o reembolso da totalidade do crédito em 24 prestações mensais, iguais e sucessivas, com início no mês seguinte ao da data de trânsito em julgado da sentença homologatória;
7- Quanto aos créditos privilegiados da Autoridade Tributária e da Segurança Social, prevê o pagamento da totalidade em 150 prestações mensais e sucessivas;
8- Quanto aos restantes créditos privilegiados, prevê a regularização de 100% do crédito, em 48 prestações mensais, iguais e sucessivas com início no mês seguinte ao da data de trânsito em julgado da sentença homologatória do plano;
9- Quanto aos credores subordinados prevê que, durante a vigência do PER, os accionistas não receberão quaisquer dividendos; os credores subordinados só começarão a ser reembolsados, e nas condições dos credores comuns sujeitos a corte, depois de pagos 100% dos créditos comuns;
10- O plano prevê, também, que “no caso dos EBITDA deduzidos do valor de dívida e juros pagos no exercício superarem a qualquer momento, nos primeiros 10 anos, o valor de € 200.000 (duzentos mil euros), 50% do seu valor será distribuído no final do ano a todos os credores com dívida ainda por receber nos termos do presente Plano (e até ao montante em dívida), na proporcionalidade do valor do crédito de cada credor em relação ao total ainda em dívida”;
11- No capítulo relativo à “Situação resultante da ausência de qualquer plano”, consta do plano o seguinte:
“Pretende-se, com o presente Plano de Recuperação, garantir a liquidação dos créditos da (…) em moldes que permitam, também, a sua manutenção no giro comercial, com a garantia dos postos de trabalho que assegura.
Com efeito, não obstante as condições de liquidação de passivo ora impostas, a verdade é que, do presente Plano de Recuperação, resulta para os credores uma situação inequivocamente mais benéfica do que aquela que resultaria da sua ausência.
No que toca aos credores garantidos e privilegiados, fazendo a devida análise comparativa entre os valores dos bens da (…) – a liquidar num hipotético processo de insolvência – com o valor total dos créditos destas classes, resulta evidente a impossibilidade absoluta da sua liquidação integral. Com efeito, os barcos da (…), liquidados no âmbito de uma venda forçada e demorada em processo de insolvência, não seriam suficientes para a liquidação da totalidade dos créditos que garantem. Note-se que em causa estão bens com necessidade de manutenção diária, com deterioração acelerada e com características técnicas muito exigentes, nomeadamente as associadas à pesca de palangre que poucos operadores dominam.
Por maioria de razão, os restantes credores, nomeadamente os credores comuns, não receberiam, num eventual cenário de insolvência, resultante da ausência deste Plano de Recuperação, qualquer valor, uma vez que este seria rateado apenas pelos credores garantidos e privilegiados.
Resulta assim evidente que, com o presente Plano de Recuperação, que evita um eventual e indesejável cenário de insolvência, não só se garante a liquidação total dos credores garantidos e privilegiados, bem assim como, em parte, dos credores comuns, como se garante a manutenção no giro comercial da (…).”
12- O total de créditos relacionados com direito de voto ascende a € 8.364.700,31;
13- O plano de recuperação foi votado por 26 credores, representando € 7.965.817,11 dos créditos com direito de voto;
14- Não votaram 72 credores, representando um total de créditos de € 398.883,20;
15- Dos votantes, 16 credores representando um total de créditos no valor de € 5.224.613,74, votaram favoravelmente o plano proposto, o equivalente a 62,46% dos créditos relacionados;
16- Por seu turno, 10 credores (entre eles, a Recorrente, com um crédito no valor de € 1.411.754,70), representando um total de créditos no valor de € 2.741.203.37, votaram desfavoravelmente o plano proposto, o equivalente a 32.77% dos créditos;
17- Mais de metade dos votos favoráveis correspondem a créditos não subordinados.

Aplicando o Direito.
Dos vícios formais
Alega a Recorrente a ocorrência de vícios formais que deveriam ter impedido o prosseguimento do processo, nomeadamente a circunstância da relação de credores anexa ao requerimento inicial não conter as datas de vencimento dos créditos, da declaração do revisor oficial de contas não se pronunciar sobre a impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas, e ainda que os créditos incumpridos e o plano de recuperação confirmam o estado de insolvência da devedora.
Quanto ao primeiro argumento, diremos que a não menção da data de vencimento dos créditos não constitui vício apto ao indeferimento liminar da petição inicial, para os fins dos artigos 24.º, n.º 1, alínea a) e 27.º, n.º 1, alínea a), do CIRE. Como referem Carvalho Fernandes e João Labareda “neste ponto, deve, aliás, o tribunal revelar-se tolerante, porquanto, (…) a generalidade dos documentos exigidos pela lei tem por função a simples facilitação de produção das consequências que estão ligadas à declaração de insolvência mas não são estruturalmente condicionantes da apreciação da situação do devedor.”[1]
A verdade é que a ausência dessa menção não impediu que os credores reclamassem os seus créditos e votassem o plano de recuperação proposto, e certo é que a Recorrente não reclamou de tal irregularidade[2] ao longo do processo, só a invocando após a votação e a homologação do plano, ao interpor o recurso agora em análise.
Ora, se a Recorrente entendia que a referida irregularidade tinha influência no exame ou na decisão da causa, provocando nulidade para os fins do artigo 195.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, deveria ter deduzido a competente reclamação perante o tribunal recorrido, conforme a conhecida lição de Alberto dos Reis, “dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se”.[3]
Não o fez, no prazo imposto no artigo 199.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, na sequência das suas várias intervenções no processo, pelo que a eventual nulidade cometida por omissão da devedora, mostra-se sanada.
Quanto à suficiência da declaração do revisor oficial de contas anexa ao requerimento inicial, o raciocínio é idêntico.
Ademais, ao proferir o despacho a que se refere o n.º 4 do artigo 17.º-C do CIRE, não cabe ao juiz indagar dos requisitos materiais do procedimento, nomeadamente se é viável a recuperação do devedor.
Essa tarefa cabe aos credores, através do processo negocial, que poderá conduzir à aprovação do plano de recuperação, ou ao encerramento do processo negocial, sem essa aprovação, por o devedor ou a maioria dos credores antecipadamente concluírem não ser o acordo possível, ou quando se mostre ultrapassado o prazo previsto no n.º 5 do artigo 17.º-D do CIRE.
De resto, como já se decidiu nesta Relação de Évora, “no processo especial de revitalização, o devedor não foi ainda declarado insolvente e a homologação de um plano de recuperação é o reconhecimento de que o devedor não se encontra impossibilitado de cumprir as obrigações vencidas.”[4][5]
Em consequência, quer a alegação da insuficiência da declaração do revisor oficial de contas, quer a alegação de insolvência da devedora, também não procedem.

Da violação do princípio da igualdade
De acordo com a Recorrente, o diferente tratamento que o plano concede aos credores garantidos, privilegiados e comuns, é injustificado e como tal viola o artigo 194.º do CIRE, pelo que não devia ser homologado.
Este normativo prevê no seu n.º 1 que o plano de insolvência obedece ao princípio da igualdade dos credores, sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objectivas. Por seu turno, o n.º 2 dispõe que o tratamento mais desfavorável relativamente a outros credores em idêntica situação depende do consentimento do credor afectado, o qual se considera tacitamente prestado no caso de voto favorável.
A propósito desta norma, Carvalho Fernandes e João Labareda[6] escrevem que o princípio da igualdade dos credores configura-se como uma trave basilar e estruturante na regulação do plano de insolvência, sendo que a sua afectação traduz, por isso, seja qual for a perspectiva, uma violação grave – não negligenciável – das regras aplicáveis. Todavia, a letra da lei procurou acolher de uma forma evidente as duas facetas em que se desdobra o princípio da igualdade, traduzidas na necessidade de tratar igualmente o que é semelhante e de distinguir o que é distinto. Observam ainda que a razão objectiva porventura mais clara que fundamenta a legalidade da diferença de tratamento dos credores será a que assenta na distinta classificação dos créditos, mas, para além disso, dentro da mesma categoria pode haver motivos para destrinçar em função do grau hierárquico dos créditos, e, inclusivamente, a ponderação das circunstâncias de cada situação pode justificar outros alinhamentos, nomeadamente tendo em conta as fontes do crédito.
Em aresto de 22.02.2018, esta Relação de Évora[7] teve a oportunidade de afirmar que o plano de recuperação conducente à revitalização do devedor deve justificar o diferente tratamento concedido aos credores, com indicação das razões objectivas para essa diferença, e que para apreciação do carácter objectivamente justificável da diferenciação de tratamento dos fornecedores relativamente a instituições bancárias, ambos titulares de créditos comuns, impõe-se que conste do plano a concreta vinculação, e em que termos, das instituições bancárias credoras no sentido do apoio financeiro futuro.
No Supremo Tribunal de Justiça também já se escreveu que «naqueles casos em que as instituições bancárias se vinculam a apoiar financeiramente o devedor em certos termos concretos, efectivos e programados (fixados no plano) que denotem, de forma minimamente significativa, a assunção de sacrifícios e de riscos para elas, tal possa constituir um factor justificador de uma diferenciação do regime de satisfação dos créditos no confronto de outros credores. Não assim quando, ao invés, o plano é omisso relativamente a tal, ou quando não mostra que exista qualquer efectiva, concreta e programada vinculação ao apoio financeiro, ou ainda quando em nada se revela na prática a existência de sacrifícios e riscos associados às operações financeiras que tais instituições bancárias se proponham favorecer.»[8]
Apliquemos, pois, estes princípios jurídicos ao caso dos autos.
A Recorrente argumenta que os credores garantidos por hipotecas constituídas sobre as embarcações da devedora, bem como os credores privilegiados, obtêm o pagamento da totalidade dos seus créditos, com juros, enquanto os credores comuns – como é o seu caso – apenas obtêm o pagamento de 30% do crédito, sem juros, diferido ao longo de oito anos, com um ano de carência.
Será este tratamento discriminatório e violador do princípio da igualdade?
Como já referido, o princípio da igualdade dos credores não proíbe o estabelecimento de distinções entre eles, apenas proíbe diferenças de tratamento sem fundamento material bastante, sem uma justificação razoável, segundo critérios objectivos relevantes.
Ora, a distinção operada no plano funda-se, essencialmente, na distinta classificação dos créditos, circunstância que indicia, desde logo, a existência de razão objectiva bastante para a distinção operada.
Poderá argumentar-se que, a distinção de pagamentos operada no plano, impõe um sacrifício desproporcionado aos credores comuns, que sofrem a redução dos seus créditos a apenas 30%, sem juros.
Mas esse sacrifício só seria desproporcionado se fosse possível concluir que, em caso de não aprovação do plano, os credores comuns ficariam em idêntica ou melhor situação.[9]
Ora, o plano preocupa-se em justificar o tratamento desfavorável dos credores comuns, argumentando que a venda em processo de insolvência das embarcações de pesca que constituem o seu principal património apenas permitiria o pagamento de parte dos créditos garantidos e privilegiados, ficando os credores comuns sem qualquer valor.
Se esta circunstância já constitui razão objectiva bastante para o sacrifício imposto – os credores comuns receberão pelo menos 30% dos seus créditos, enquanto em caso de insolvência nada receberiam – haverá a notar que o plano lhes concede a oportunidade de receberem valores superiores dos seus créditos em caso dos EBITDA[10] deduzidos do valor de dívida e juros pagos no exercício superarem a qualquer momento, nos primeiros 10 anos, o valor de € 200.000,00, caso em que 50% do seu valor será distribuído no final do ano a todos os credores com dívida ainda por receber, na proporção do valor do crédito de cada credor em relação ao total ainda em dívida.
Nestas condições, não se considera que a Recorrente tenha logrado demonstrar que a sua situação ao abrigo do plano é previsivelmente menos favorável do que a resultaria na ausência de qualquer plano, motivo pelo qual não se demonstra a violação do princípio da igualdade a que se refere o artigo 194.º do CIRE.
E tal determina a improcedência do recurso.

Decisão.
Destarte, nega-se provimento ao recurso, com confirmação da decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.
Évora, 10 de Março de 2022
Mário Branco Coelho (relator)
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria Domingas Simões


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[1] In CIRE Anotado, 3.ª ed., páginas 235.
[2] Entendendo que está em causa uma mera irregularidade, que não justifica o indeferimento liminar da petição inicial, vide os Acórdãos da Relação de Coimbra de 15.11.2005 (Proc. 3043/05), da Relação do Porto de 07.04.2014 (Proc. 3527/13.0TBVLG.P1), e também da Relação do Porto de 18.12.2018 (Proc. 1502/18.8T8AMT.P1), disponíveis em www.dgsi.pt.
[3] In Código de Processo Civil Anotado, vol. V, reimpressão, Coimbra, 1984, páginas 424.
[4] Acórdão de 04.06.2020 (Proc. 2727/19.4T8STR.E1), também publicado em www.dgsi.pt.
[5] No mesmo sentido, o Acórdão da Relação do Porto de 18.02.2016 (Proc. 3521/15.7T8AVR.P1), sempre em www.dgsi.pt.
[6] In CIRE Anotado, 3.ª ed., páginas 712-713.
[7] Acórdão proferido no Proc. 444/17.9T8STR-A.E1, publicado em www.dgsi.pt, subscrito pelas Adjuntas que intervêm do presente.
[8] Acórdão de 24.11.2015, proferido no Proc. 212/14.0TBACN.E1.S1 e publicado no mesmo endereço.
[9] Essa foi a situação analisada no Acórdão da Relação de Guimarães de 27.04.2017 (Proc. 1933/16.8T8VNF.G1) e nos Acórdãos da Relação de Coimbra de 18.02.2020 (Proc. 1369/19.9T8LRA.C1) e de 12.10.2021 (Proc. 1097/21.5T8LRA.C1), publicados em www.dgsi.pt, nos quais se considerou ocorrer tratamento desproporcionado entre credores garantidos e credores comuns quando estes sofriam uma redução muito acentuada dos seus créditos, e não se demonstrou que ficariam em pior situação em caso de não aprovação do plano.
[10] Acrónimo da expressão inglesa “earnings before interest, taxes, depreciation and amortization”, utilizada por analistas financeiros, traduzindo, grosso modo, o lucro bruto da empresa, deduzidas apenas as despesas operacionais. O equivalente em português seria “LAJIDA”, isto é, “Lucros antes de juros, impostos, depreciação e amortização”.