Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3049/19.6T8STR-A.E1
Relator: VÍTOR SEQUINHO
Descritores: NULIDADE DA SENTENÇA
OPORTUNIDADE DA DECISÃO
Data do Acordão: 04/23/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Se, na sequência da interposição de recurso da sentença em que seja arguida a nulidade desta última, o tribunal de primeira instância constatar que tal nulidade se verifica, deverá, não proferir despacho a anular essa sentença e o processado subsequente, seguido da prolação de nova sentença, mas sim, no próprio despacho em que se pronuncia sobre a admissibilidade do recurso, suprir a nulidade, considerando-se o despacho proferido como complemento e parte integrante da sentença, nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 617.º do CPC.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 3049/19.6T8STR-A.E1

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Agropecuária (…), S.A., apresentou-se à insolvência, nos termos dos artigos 18.º e seguintes do CIRE.

Por sentença proferida em 28.11.2019, foi declarada a insolvência da requerente.

A requerente recorreu da sentença, invocando, como fundamento, a nulidade desta por omissão de pronúncia sobre as questões da administração da massa insolvente e do prazo para apresentação do plano de insolvência, por si suscitadas no requerimento inicial.

Em 14.01.2020, foi proferido despacho com o seguinte teor:

“Em sede de alegações de recurso, a Requerente e Devedora veio invocar a omissão de pronúncia da sentença proferida nos autos quanto ao conhecimento do requerimento para administração da massa insolvente pelo devedor, nos termos e para os efeitos do art.º 224.º do C.I.R.E., requerendo posteriormente o adiamento ou reagendamento para momento posterior da Assembleia de Credores.

Melhor compulsados os autos, resulta manifestamente evidente a existência grosseira de uma omissão de pronúncia, nos termos alegados, e porquanto o Tribunal deveria ter-se pronunciado sobre o mencionado requerimento para administração da massa insolvente pelo devedor, conhecendo dos seus pressupostos em sede de sentença de declaração de insolvência.

Esta omissão tange com a validade da sentença e com a normal tramitação dos autos.

Nos termos dos artigos 615.º, n.º 1 e 617.º, n.º 1, do CPC, ex vi art.º 17.º do C.I.R.E., esta nulidade pode e deve ser conhecida pelo Tribunal a quo, evitando-se com tal declaração maior protelamento dos autos, atenta a evidência do vício assinalado.

Pelo exposto, nos termos dos fundamentos e disposições legais citadas, declaro a nulidade da sentença proferida a 28-11-2019 e do processado sequente, dando sem efeito a Assembleia de Credores designada para o próximo dia 16 de janeiro de 2010, mais determinando a imediata abertura de conclusão para prolação de nova sentença.”

Em 16.01.2020, o tribunal a quo proferiu nova sentença, na qual, além de declarar a insolvência da requerente, determinou, nomeadamente, que a administração da massa insolvente seja assegurada pela requerente e devedora, por se verificarem os pressupostos exigidos pelo n.º 2 do artigo 224.º do CIRE (artigo 36.º, alínea e), do CIRE).

A requerente recorreu do despacho proferido em 14.01.2020, tendo formulado as seguintes conclusões:

I. A aqui recorrente intentou os presentes autos de insolvência, nos quais requereu que fosse decretada a sua insolvência, tendo tal pretensão sido acolhida pelo tribunal a quo.

II. Contudo, a sentença proferida pelo mesmo era omissa no que à questão da administração pela devedora diz respeito, e respectivos pressupostos.

III. Por força de tal omissão, a aqui recorrente viu-se obrigada a interpor recurso no qual era requerida a declaração de nulidade da referida sentença, com a consequente substituição da mesma por outra que, em aditamento, apreciasse todos os elementos do pedido formulado pela aqui recorrente na sua petição inicial.

IV. E, consequentemente, atribuísse a administração à devedora e conferisse prazo para apresentação de plano de insolvência.

V. Uma vez interposto o referido recurso, veio o Mm.º Juiz a quo, através de despacho de 14/01/2020, declarar “a nulidade da sentença proferida a 28-11-2019 e do processado sequente, dando sem efeito a Assembleia de Credores designada para o próximo dia 16 de janeiro de 2020, mais determinando a imediata abertura de conclusão para prolação de nova sentença”.

VI. No entanto, o despacho e a consequente nova sentença não podem ser considerados válidos, por violação do princípio da extinção do poder jurisdicional.

VII. Uma vez que, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 613.º do CPC, “proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa”, sendo, porém, lícito ao juiz “rectificar erros materiais, suprir nulidade e reformar a sentença, nos termos dos artigos seguintes”, conforme resulta do n.º 2 da referida norma legal.

VIII. Determinando os n.ºs 1 e 2 do artigo 617.º do CPC que “se a questão da nulidade da sentença ou da sua reforma for suscitada no âmbito de recurso dela interposto, compete ao juiz apreciá-la no próprio despacho em que se pronuncia sobre a admissibilidade do recurso, não cabendo recurso da decisão de indeferimento” e que “se o juiz suprir a nulidade ou reformar a sentença, considera-se o despacho proferido como complemento e parte integrante desta, ficando o recurso interposto a ter como objeto a nova decisão”.

IX. O que no caso dos presentes autos não sucedeu, uma vez que o Mm.º Juiz a quo declarou a nulidade total da sentença, quando não o podia fazer e quando deveria apenas e só ter proferido despacho em que tal nulidade era suprida, mantendo a sentença já proferida.

X. Despacho esse que seria um complemento da referida sentença, e que supriria a nulidade de que a mesma padecia, sem necessidade de anular a mesma, bem como todo o processado.

XI. Situação com a qual a ora recorrente não pode de forma alguma concordar, uma vez que se encontrava já ultrapassado o prazo para reclamação de créditos, o qual viria a ser dado sem efeito, e cuja contagem se voltou a iniciar com a prolação de nova sentença, com todas as consequências que daí poderão advir, quer para os credores, quer para a aqui recorrente.

XII. Actuação esta que a recorrente considera ser ilegal, pois viola claramente o princípio da extinção do poder jurisdicional consagrado no n.º 1 do artigo 613.º do CPC, o qual se havia extinguido aquando da prolação da sentença objecto do recurso anteriormente interposto, não podendo de forma alguma o M.º Juiz a quo anular na totalidade a mesma e proferir nova sentença sem mais, como sucedeu, uma vez que tal actuação lhe está vedada por lei.

XIII. Termos em que deverá tal despacho ser declarado nulo e, consequentemente, ser substituído por outro que supra a nulidade invocada, admitindo a gestão pela devedora, que ficará a fazer parte da sentença, mais admitindo o recurso interposto da primeira sentença, ou declarando a sua inutilidade superveniente, anulando todos os actos praticados nos autos após a prolação do despacho recorrido.

O recurso foi admitido.


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A única questão a resolver consiste em saber como deve o tribunal de primeira instância proceder se, na sequência da interposição de recurso de sentença por si proferida em que seja arguida a nulidade desta última, constatar que tal nulidade se verifica.

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Os factos relevantes para a decisão do recurso são os anteriormente descritos. Em resumo, na sequência da interposição de recurso de apelação no qual foi arguida a nulidade da sentença proferida em 28.11.2019 por omissão de pronúncia, o tribunal a quo considerou que tal nulidade se verificava e, com esse fundamento, anulou a sentença e o processado subsequente, dando sem efeito a assembleia de credores agendada e determinando a imediata abertura de conclusão com vista à prolação de nova sentença. Esta última foi proferida em 16.01.2020.

A recorrente insurge-se contra este procedimento, considerando que, atento o disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 613.º e nos n.ºs 1 e 2 do artigo 617.º, ambos do CPC, o tribunal a quo, na sequência da interposição do primeiro recurso, em vez de anular a sentença proferida e o processado subsequente e proferir nova sentença, devia ter-se limitado a proferir despacho suprindo a nulidade verificada, o qual seria considerado complemento e parte integrante da primeira sentença, a qual se manteria. Conclui a recorrente que, ao anular a primeira sentença e proferir nova sentença, o tribunal a quo violou o princípio do esgotamento do poder jurisdicional, consagrado no artigo 613.º, n.º 1, do CPC.

Na parte que nos interessa, os n.ºs 1 e 2 do artigo 617.º do CPC estabelecem que, se a questão da nulidade da sentença for suscitada no âmbito de recurso dela interposto, compete ao juiz apreciá-la no próprio despacho em que se pronuncia sobre a admissibilidade do recurso, e que, se o juiz suprir a nulidade, considera-se o despacho proferido como complemento e parte integrante da sentença, ficando o recurso interposto a ter como objecto a nova decisão.

O tribunal a quo não procedeu em conformidade com o exposto. Se o tribunal a quo considerar que se verifica a nulidade da sentença suscitada no recurso desta interposto, a sede própria para suprir tal nulidade é o despacho em que se pronuncia sobre a admissibilidade do recurso e esse despacho passa a constituir um complemento e, como tal, parte integrante da sentença recorrida, sentença esta que, logicamente, se mantém na parte restante. Este procedimento não se confunde com a anulação da totalidade da sentença e do processado a esta subsequente, seguida da prolação de nova sentença. A diferença entre um e outro procedimentos não é meramente formal, pois, como a recorrente bem salienta, a circunstância de ser anulada a primeira sentença e proferida uma nova sentença, necessariamente em data posterior, tem implicações processuais importantes, nomeadamente em matéria de prazos que se contem a partir da notificação da sentença.

Mais, como a recorrente também acertadamente nota, importa ter em consideração o disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 613.º do CPC. O n.º 1 estabelece que, proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa. O n.º 2 prevê a possibilidade de o juiz rectificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença, nos termos dos artigos seguintes. Ora, tais rectificação, suprimento ou reforma não se concretizam através da anulação da sentença pelo próprio tribunal que a proferiu e na prolação de nova sentença, o que violaria o princípio do esgotamento do poder jurisdicional consagrado no n.º 1, mas sim através da prolação de despacho que, intervindo cirurgicamente sobre a sentença proferida, proceda, consoante os casos, à rectificação dos erros materiais, ao suprimento das nulidades ou à reforma da mesma sentença, como expressamente estabelecem os artigos 614.º, n.º 1, e 617.º, n.ºs 1 e 2, do CPC.

Concluindo, o recurso merece provimento, impondo-se a revogação do despacho recorrido, com a consequente anulação do processado subsequente, devendo o tribunal a quo cumprir o disposto no artigo 617.º do CPC, nos termos definidos no presente acórdão, tendo por referência a sentença proferida em 28.11.2019 e o recurso dela interposto.


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Sumário:

(…)


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Decisão:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso procedente, revogando-se o despacho recorrido e anulando-se o processado a este subsequente. Deverá o tribunal a quo cumprir o disposto no artigo 617.º do CPC, nos termos definidos no presente acórdão, tendo por referência a sentença proferida em 28.11.2019 e o recurso dela interposto.

Não são devidas custas.

Notifique.


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Évora, 23 de Abril de 2020

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

Mário Rodrigues da Silva

José Manuel Barata