Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
773/07.0TBALR.E1
Relator: ISABEL PEIXOTO IMAGINÁRIO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
PERDA DA CAPACIDADE DE GANHO
Data do Acordão: 07/13/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 - Os critérios a adotar para fixação do quantum indemnizatório atinente ao dano patrimonial futuro, na vertente de perda de capacidade de ganho decorrente do défice funcional de integridade físico-psíquica, assentam na equidade, à luz do regime inserto no artigo 566.º, n.º 3, do CC;
2 - Tais critérios são objeto de ponderação em face dos concretos contornos do caso em análise, sem descurar o princípio da igualdade. (Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 773/07.0TBALR.E1

ACÓRDÃO

Acordam os Juízes no Tribunal da Relação de Évora

I – As Partes e o Litígio

Recorrente / Ré: (…) Seguros, SA

Recorrido / Autor: (…)

Trata-se de uma ação declarativa de condenação através da qual o A pretende obter a condenação da R a pagar-lhe indemnização decorrente dos danos sofridos em consequência de acidente de viação causado por veículo seguro pela R.

II – O Objeto do Recurso

Decorridos os trâmites processuais legalmente previstos, foi proferida sentença julgando a ação parcialmente procedente, conforme segue[1]:
«- condeno a ré a pagar ao autor a quantia global de € 428.234,84 (quatrocentos e vinte e oito mil duzentos e trinta e quatro euros e oitenta e quatro cêntimos), acrescida de juros moratórios vencidos desde a citação e vincendos até integral pagamento, calculados à taxa legal;
- condeno a ré a pagar ao autor a quantia em que este seja condenado no âmbito da ação n.º 425/14.4tbabt, que corre termos pelo Tribunal Judicial do Entroncamento;
- condeno a ré a pagar ao autor as despesas inerentes à intervenção cirúrgica realizada no dia 8 de Janeiro de 2016, cuja liquidação se relega para execução de sentença.»

Inconformada, a R apresentou-se a recorrer, pugnando pela revogação da sentença recorrida, a substituir por outra que fixe o montante indemnizatório a título de ressarcimento do dano patrimonial futuro em valor não superior a € 150.000,00 descontados os valores já pagos a este propósito, ou, assim não se entendendo, em € 261.820,00, descontados os valores já pagos, sem prejuízo de se levar em linha de conta o limite do capital seguro. Conclui a sua alegação de recurso nos seguintes termos:
«1) A única questão que se submete a douta sindicância deste Venerando Tribunal e que constitui o objecto do presente recurso de apelação, contende com a indemnização fixada ao Autor/lesado, a título de dano patrimonial futuro, na vertente de perda da capacidade de ganho decorrente do défice funcional de integridade físico psíquica de que o mesmo ficou afectado por virtude das lesões e sequelas causadas no acidente de viação ocorrido com veículo automóvel seguro na Ré ora Apelante, e da responsabilidade deste.
2) Não se conforma a Apelante com o critério seguido na fixação da referida indemnização, nem com o quantum indemnizatur a que chegou o Meritíssimo Tribunal a quo, por considerar, além do mais, que os mesmos se mostram desfasados do que vem sendo seguido pela nossa doutrina e jurisprudência, seno manifestamente excessivos face ao dano a ressarcir, criando mesmo uma situação de enriquecimento injustificado do lesado.
3) Com efeito, andou mal o Meritíssimo Tribunal a quo em múltiplos aspectos atinentes à fixação desta indemnização, a saber:
- não podia o Meritíssimo Tribunal a quo, para o cálculo da indemnização, atender, desde logo, não só à remuneração fixa e habitual recebida pelo sinistrado, mas também à remuneração variável, a título de ajudas de custo motivadas pela sua deslocação na Irlanda.
- não podia o Meritíssimo Tribunal a quo, para esse mesmo cálculo, desconsiderar a percentagem da incapacidade de que o lesado ficou afectado e simplesmente multiplicar o valor da remuneração anual pelo número de anos restantes até à reforma.
- não podia o Meritíssimo Tribunal a quo olvidar que o limite do capital seguro ainda disponível é inferior ao valor global da condenação.
4) Salvo o devido respeito por diverso entendimento, e de acordo com o que infra se exporá, temos que o Meritíssimo Tribunal a quo, no cálculo da parcela indemnizatória aqui em apreço foi apara além daquilo que era efectivamente previsível, causando um verdadeiro enriquecimento injustificado para o lesado.
5) Com efeito, atendeu desde logo o Meritíssimo Tribunal a quo, para efeitos de cálculo do montante da indemnização, ao valor de € 1.500,00 que constituía a média percebida pelo A/lesado à data do acidente, a título de ajudas de custo devidas pelo facto de se encontrar deslocado na Irlanda ao serviço da sua entidade empregadora.
6) Sempre com o máximo respeito por diverso entendimento, não poderá esta remuneração variável – carecida de carácter regular e duradouro – ser considerada para efeitos de cálculo da indemnização a arbitrar a título de dano patrimonial futuro pela perda da capacidade de ganho.
7) Isto porque, atendendo ao cariz manifestamente transitório e irregular desta parte d a retribuição, não poderá fazer-se um juízo de prognose que nos permita, com o grau de previsibilidade e probabilidade que se impõe, que o sinistrado estivesse, até ao final da sua vida activa, deslocado na Irlanda (note-se, única circunstância justificativa do recebimento da referida quantia de € 1.500,00).
8) Para além disso, estamos em crer que o Meritíssimo Tribunal a quo não atendeu ainda, como se lhe impunha, à verdadeira natureza deste valor recebido a título de ajudas de custo que são unicamente destinados a compensar custos acrescidos, que o mesmo teria pelo facto de se encontrar a trabalhar fora do país.
9) Do mesmo modo, da factualidade dada como provada, não também não resulta que o concreto posto de trabalho do Autor/lesado fosse permanentemente na Irlanda.
10) Na verdade, e sempre com o máximo respeito por entendimento diverso, face à concreta profissão pelo mesmo exercida e à sua entidade patronal, seriamos antes forçados a concluir que o lesado trabalharia temporariamente em obra, finda a qual retornaria a Portugal ou, eventualmente, seria colocado noutra obra.
11) Certo é que, dos factos provados nada ficou demonstrado sobre o carácter permanente daquela deslocação e, portanto, do recebimento pelo lesado das ditas ajudas de custo.
12) Face às regras da experiência e diante dos conceitos de retribuição variável e ajudas de custo, temos que se impunha que o cálculo da indemnização fosse realizada apenas com recurso ao valor do salário fixo e diuturnidades recebidos à data pelo Autor/lesado pois apenas quanto a este seria, em abstracto, previsível e legitimamente expectável a repercussão negativa no património do Autor por via da perda da capacidade de ganho de que ficou afectado na sequência do acidente.
13) Ao não fazer esta distinção e ao atender a este valor de € 1.500,00 para o cálculo da indemnização pela perda aquisitiva de ganho, o Meritíssimo Tribunal a quo atribui ao lesado uma vantagem que este não teria caso não se tivesse dado o acidente dos autos.
14) Há aqui, e sempre com o máximo respeito, uma verdadeira subversão do princípio indemnizatório plasmado nos art.os 562º e ss. do Código Civil.
15) Por outro lado, urge constatar que o Meritíssimo Tribunal a quo, no cálculo indemnizatório levado a cabo, fez uma simples operação aritmética de multiplicação entre o valor do vencimento anual total e o número de anos que restavam ainda ao lesado para atingir a idade da reforma, resultado esse que entendeu ser a perda patrimonial que no futuro o lesado teria.
16) Ou seja, considerou que haveria aqui uma perda total de rendimento que se impunha indemnizar.
17) Salvo o devido respeito por diverso entendimento, sempre se impunha ao Meritíssimo Tribunal a quo que nessa operação aritmética, introduzisse igualmente a variável – absolutamente essencial – referente à percentagem da IPP ou défice funcional que se pretende ver ressarcido.
18) É que, face aos factos dados como provados, facilmente constamos que o lesado ficou portador de défice funcional de integridade físico-psíquica de 53%, sendo as
respectivas sequelas impeditivas do exercício da actividade profissional habitual, mas compatíveis com outras profissões da área da sua preparação técnico-profissional.
19) O lesado não ficou, pois, totalmente incapacitado para a prática de toda e qualquer profissão, não estando absolutamente incapaz de prover pelo seu rendimento de trabalho.
20) Por tal motivo, não se poderá, para efeitos de cálculo da indemnização por ano patrimonial futuro, ter por base o valor de 100% do vencimento, devendo aplicar-se esta percentagem de desvalorização de 53%, a qual corresponde, efectivamente, à perda funcional do lesado.
21) O que o Meritíssimo Tribunal a quo não fez, procedendo à fixação de uma indemnização que vem conceder ao lesado uma vantagem que o mesmo jamais teria caso não tivesse sofrido o acidente em apreço.
22) Revertendo para o caso em apreço, temos que, apara além do vencimento fixo habitual 4 do lesado, os factos tidos como relevantes para a determinação do quantum indemnizatório a título de dano biológico serão os seguintes:
- Idade: 39 anos à data do evento danoso
- Actividade profissional a que se dedicava: electricista
- Natureza das lesões e sequelas sofridas em consequência do acidente – sequelas permanentes que lhe demandam um défice funcional de integridade físico-psíquica de 53 pontos, sendo tais sequelas impeditivas do exercício da actividade profissional habitual, sendo contudo compatíveis com outras profissões da área da sua preparação técnico-profissional
- idade da reforma: 65 anos
23) Perante tal realidade fáctica e recorrendo aos critérios doutrinários e jurisprudenciais supra referidos, sem nunca esquecer o cálculo decorrente de utilização da fórmula matemática vertida no douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 04.04.1995 compatibilizada com a decorrente do Acórdão do STJ de 05.05.1994, e cotejada com um juízo equitativo, sem esquecer o necessário desconto a operar face à vantagem de receber todo este valor de uma só vez, e sempre com o merecido respeito por diverso entendimento, afigura-se adequada a atribuição da indemnização ou seja, aproximadamente Euro 880,00/mês a título de dano patrimonial futuro, na vertente de dano biológico, no valor nunca superior a € 150.000,00.
24) Ao qual teria, necessariamente, de se descontar os valores que a Seguradora Apelada já liquidou ao lesado a este título e que se mostram elencados na decisão recorrida, ou seja, € 25.531,02 e € 88.000,00.
25) O que se deixa expressamente invocado, para todos os devidos efeitos legais.
26) Ao consignar diverso entendimento a douta decisão proferida violou, entre o demais, o disposto no art.º 562.º do Código de Processo Civil, pelo que deverá ser revoga da.
27) Ainda que assim não seja doutamente entendido – o que por mero dever de patrocínio se concebe - e considerando-se o valor do vencimento anual a que se atendeu na douta sentença recorrida, os mesmos critérios, e operando-se o simples cálculo aritmético consubstanciado na multiplicação do valor do vencimento anual fixo e variável (€ 28.500,00), pelo número de anos que restam até à idade da reforma (39 anos), e aplicando-se a percentagem da desvalorização (53%), chegaríamos ao valor de € 392.730,00 (jamais ao valor de € 741.000,00 considerado pelo Tribunal a quo).
28) Operando-se o mesmo raciocínio expendido na douta decisão impugnada, ou seja, descontando 1/3 por força do valor vir a ser recebido de uma só vez, obteríamos o valor de € 261.820,00.
29) Desde já se reiterando que, quanto a nós, não se mostra minimamente adequado considerar-se o número de anos para além da idade da reforma (65 anos) porquanto não seria minimamente expectável que a actividade profissional do lesado se prolongasse para além dessa idade.
30) E tratando-se de uma indemnização tendente a ressarcir a perda da capacidade e ganho decorrente do défice funcional de que o lesado ficou afectado, essa perda da capacidade de ganho cessa com a reforma.
31) Pelo que, uma vez mais, prolongar-se a verificação deste dano futuro decorrente da perda da capacidade de ganho até ao fim da vida do lesado, equivale a atribuir-lhe uma vantagem que o mesmo certamente não teria em circunstâncias normais.
32) A tal valor teria, novamente, de ser descontado o valor já recebido pelo lesado, de € 25.531,02 e € 88.000,00.
33) Em suma, e no que diz respeito à indemnização fixada a título de dano patrimonial futuro, temos que, reiterando o supra alegado, andou mal o Meritíssimo Tribunal “a quo”, atendendo a critérios desadequados e a valores não conformes com a realidade, incorrendo em verdadeira violação do disposto nos art.os 562.º, 564.º e 566.º, todos do Código Civil.
34) Impõe-se, pois, a sua revogação nos termos supra expendidos.
DO LIMITE DO CAPITAL SEGURO
35) Ainda que assim não seja doutamente entendido, o que por mero dever se patrocínio se equaciona e a entender-se (o que não se concede) que nenhum reparo há a fazer ao critério seguido e quantum arbitrado a título de dano patrimonial futuro, sempre se dirá que na douta sentença recorrida se olvidou a limitação existente quanto ao valor global da condenação, e decorrente do facto do capital seguro se quedar em € 625.000,00.
36) Note-se, está provado que o capital seguro ascende unicamente a € 625.000,00 (à data vigorava ainda o Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, do qual decorria que o capital seguro mínimo obrigatório era de € 600.000,00 por sinistro, para danos corporais e materiais, fosse qual fosse o número de vítimas ou a natureza dos danos – cfr. artigo 6.º, n.º 1, daquele diploma).
37) Está igualmente demonstrado que, por conta do acidente dos autos, e ao abrigo da apólice de seguro aqui em causa, a Seguradora Apelante já liquidou ao sinistrado e ainda a outras entidades que lhe prestaram assistência médica/medicamentosa, o valor total de € 148.207,68.
38) O que perfaz o capital ainda disponível de € 476.792,32.
39) Ora, perante os valores fixados na douta sentença recorrida, temos que a condenação da Seguradora Ré ora Apelante em € 487.910,36, acrescida de juros de mora contados desde a data da citação, ultrapassa o capital disponível.
40) A responsabilidade da seguradora depende do contrato de seguro existente, pelo que a sua condenação nunca pode ir além do capital seguro uma vez que a sua responsabilidade é contratual e aquele é o limite estabelecido.
41) Não pode, pois, a Seguradora Apelante ser condenada a proceder ao pagamento de uma indemnização que ultrapasse o capital seguro contratado.
42) Ao contemplar diverso entendimento, a douta sentença incorreu em violação do disposto no art.º 6.º do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, entre outros.»

O Recorrido, em sede de contra-alegações, pugna pela manutenção da sentença recorrida, retificado que seja o lapso apontado.

Assim, em face das conclusões da alegação das Recorrentes, que definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso[2], cumpre conhecer do montante pecuniário adequado a indemnizar o Recorrido da perda de capacidade de ganho.


III – Fundamentos

A – Os factos provados em 1.ª instância
No dia 18 de Julho de 2004, pelas 15.40, ao Km 9,5 do IC 10, Almeirim, ocorreu um acidente de viação em que foram intervenientes o motociclo com a matrícula (…)-LM, marca Kawasaki, conduzido pelo seu proprietário, (…) e o veículo ligeiro de mercadorias, de matrícula RS-(…), conduzido por (…). (A)
O veículo de matrícula RS-(…), na data referida em (A), era propriedade de (…). (B)
Por contrato de seguro titulado pela apólice n.º (…) e posteriormente n.º (…), o proprietário do veículo ligeiro de mercadorias, de matrícula RS-(…), marca Isuzu, havia transferido a responsabilidade civil decorrente de acidente de viação para a ré Companhia de Seguros (…), SA, tendo por limite de capital o montante de € 625.000,00 (C)
O autor encontrava-se parado na berma do IC 10, no local, hora e data referidos em A, quando foi embatido pelo veículo RS-(…), que era proveniente do sentido de marcha Coruche-Santarém, tendo-se despistado, saiu da faixa de rodagem e veio a embater no autor e no motociclo por este conduzido, tendo-se imobilizado num baixo talude, fora da berma da via e a cerca de 100 metros do local do embate. (D)
Em consequência do embate, o autor e o seu motociclo foram projetados para o chão da berma da via referida em A (E)
No local do embate a faixa de rodagem tem 7,10 metros de largura, com 3,55 metros para cada semi-faixa, tendo a berma onde se encontrava o autor 2,40 metros de largura. (F)
O local do embate era uma reta e o tempo atmosférico estava bom. (G)
Do embate resultaram danos na pessoa do autor, sua roupa, equipamento e motociclo. (H)
Em consequência do embate o motociclo do autor, de marca Kawasaki, modelo Ninja ZX-9R (ZX 990 C) do ano de (…) e em bom estado, ficou destruído. (I)
O autor foi operado em 31 de Julho de 2004 à bacia, no Hospital de Santarém, e operado em 10 de Agosto de 2004 no Hospital de Tomar, com osteossíntese de ceredelo interno do fémur com parafusos, osteossíntese dos pratos da tíbia e metáfise proximal com placa e-L e e-T, de que resultou infeção. (J)
O autor deixou de poder caminhar, levantar-se ou baixar-se normalmente, só o podendo fazer com canadianas. (L)
O autor nasceu em 20 de Novembro de 1964. (M)
À data referida em A, o autor era técnico-eletricista de profissão, com o posto de encarregado, trabalhando por conta e sob a direção de (…)-Cooperativa de Estudo e Montagem de Electricidade, no estrangeiro, à época na República da Irlanda, encontrando-se na altura do sinistro de gozo de férias em Portugal. (N)
O autor é beneficiário da Segurança Social com o nº (…) e nunca recebeu ou recebe qualquer subsídio por doença ou de desemprego, por motivo do acidente referido em A. (O)
No ano de 2004 a remuneração habitual e mensal do autor era constituída por vencimento base no montante de € 800,57 acrescido de € 79,81 de diuturnidades e de uma remuneração variável designada por ajudas de custo, que abarcava as horas extraordinárias e o trabalho aos fins-de-semana e, que em média orçava os € 1.500,00 mensais. (P)
O autor recebia subsídio de férias e subsídio de Natal no montante de € 800,38 cada um. (Q)
A ré ressarciu o autor desde Agosto de 2004 até Dezembro de 2006, inclusive, com o pagamento de € 880,38 mensais, relativos à remuneração base e diuturnidades, e pagou diversas despesas com operações, tratamentos, medicamentos e transportes do autor. (P)
A ré nunca remunerou o autor no montante de subsídio de férias e 13º mês que deixou de auferir devido ao acidente. (S)
(…) nasceu a 25 de Maio de 1988 e é filho do autor. (T)
(…) nasceu a 13 de Setembro de 1997 e é filha do autor. (U)
O autor sofreu diástase da sínfise púbica, fratura exposta de grau III do ceredelo femoral, fratura exposta de grau III multiesquerolosa da tíbia, metáfise proximal da tíbia direita, fratura da cabeça do perónio direito, fratura do maléolo externo do perónio direito, lesão do nervo ciático poplíteo externo, feridas e escoriações várias.
O autor foi operado em 12 de Outubro de 2004 no Hospital de Tomar à artrodose do joelho com fixador AO, tendo tido alta em 5 de Novembro de 2004.
O autor foi operado em Junho de 2006 no Hospital do Entroncamento para excisão de fístula e de tecidos infetados.
O autor foi operado em 22 de Dezembro de 2006 no Hospital da Ordem Terceira sito em Lisboa.
O autor tem artrodose do joelho e no nervo CPE com pé pendente e rigidez tibio-társica.
O autor realizou tratamentos no Centro Ortopédico Tomarense, no Centro de Recuperação e Manutenção Física, Lda., sito no Entroncamento, na Clínica Médica e de Reabilitação, Lda., sita na Praia do Ribatejo, e na Policlínica de S. Pedro, sita no Seixal.
O autor tem dificuldades em exercer tarefas quotidianas como deitar-se e levantar-se da cama, vestir-se, calçar-se, descalçar-se, lavar-se e enxugar-se, necessitando de ajuda de familiares.
O autor é portador de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 53% e as sequelas são impeditivas do exercício da atividade profissional habitual, sendo no entanto compatíveis com outras profissões da área da sua preparação técnico-profissional.
Em consequência do embate o autor passou a sofrer de dores na bacia, perna e pé direitos.
O autor não assenta o pé direito no chão.
O autor deixou de poder conduzir.
No exercício da profissão referida na al. N dos factos assentes o autor era obrigado a subir e descer postes de alta, média e baixa tensão, a subir e descer escadas e a baixar-se e levantar-se.
O autor encontra-se desempregado, tendo a empresa referida na al. N dos factos assentes cessado o vínculo contratual com o autor.
No ano de 2007, e devido às lesões originadas pelo embate, o autor realizou as seguintes despesas: € 363,38 em meios de diagnóstico, análises e tratamentos, € 1.238,00 em medicamentos, € 840,00 em transportes de ambulância e € 7.787,50 em transportes de ambulância, ainda não pagos, e que são devidos à Associação de Bombeiros Voluntários de (…).
Aquando do acidente o autor era uma pessoa robusta, com saúde e muito ativa, praticando desporto como footing e motociclismo.
O autor tem dois filhos, um na GNR e a filha estuda.
O autor sofreu dores físicas intensas, tendo-lhe sido atribuído um quantum doloris de grau 6, numa escala de 7 graus de gravidade crescente.
O autor sofreu mal-estar psicológico, tristeza e desgosto com todo o sucedido.
O autor ficou deficiente da perna e pé direitos, coxeando, e tem cicatrizes e deformidades bem visíveis na anca, perna e pé direitos, tendo-lhe sido atribuído, em face da claudicação da marcha, da utilização de ajudas técnicas (canadianas), daquelas cicatrizes, das cicatrizes abdominais e da amiotrofia deste membro inferior direito, um dano estético permanente de grau 4, numa escala de 7 graus de gravidade crescente.
A ré procedeu a vários pagamentos que até Fevereiro de 2007 lhe foram solicitados pelo autor relativamente a perdas salariais e despesas, no valor global de € 59.675,52.
À data do acidente o valor comercial do motociclo de matrícula (…)-LM, marca Kawasaki, era de € 5.000,00.
Os salvados do motociclo tinham o valor de € 1.000,00.
A reparação do motociclo ascendia a € 7.683,00.
A ré deu a conhecer ao autor, por carta datada de 23 de Novembro de 2004, que considerava tratar-se de um caso de perda total.
O autor mantém na sua posse o referido motociclo.
Em 8 de Janeiro de 2016 o autor foi submetido a intervenção cirúrgica à perna e joelho direitos.
Por causa desta intervenção e do respetivo tratamento o autor tem suportado várias despesas de montante não concretamente apurado.
Após a entrada em Tribunal desta ação o autor realizou deslocações em ambulância para tratamento das lesões que sofreu e que ainda não pagou.
A Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de (…) propôs contra o autor ação cível pedindo a sua condenação no pagamento daquelas deslocações, que corre termos pelo Tribunal Judicial do Entroncamento com o n.º 425/14.4, ainda não tendo sido proferida decisão final.

B – O Direito

A Recorrente discorda do montante arbitrado pela 1.ª instância a título de indemnização pelo dano patrimonial futuro, na vertente de perda de capacidade de ganho decorrente do défice funcional de integridade físico-psíquica de que o mesmo ficou afetado por virtude das lesões e sequelas causadas no acidente versado nos autos.

Ora, a quantia fixada pela 1.ª instância ascende ao montante de € 550.000,00 alicerçada no rendimento médio anual de € 28.500,00 (corresponde a € 2.375,00/mês) e nos 39 anos que contava o Recorrido à data do acidente. Considerou-se que a perda da capacidade de ganho correspondia a € 741.000,00 (€ 28.500,00 x 26 anos), ao que se descontou 1/3 pela antecipação do capital, e considerou-se a esperança média de vida dos homens até aos 78 anos.

Efetivamente, tal como apontado pela Recorrente, é desde logo manifesto que não foi levado em conta o concreto défice funcional atribuído ao lesado, tendo-se computado o montante indemnizatório como se a incapacidade permanente fosse total, absoluta. E, de facto, não é, pois foi fixada em 53 pontos, sendo as sequelas verificadas compatíveis com outras profissões da área da preparação técnico-profissional do Recorrido.

Importa, pois, analisar o concreto quadro factual fixado em 1.ª instância, e que não foi colocado em causa, de modo a determinar o montante justo e adequado a indemnizar o Recorrido do dano aqui em discussão, a perda de capacidade de ganho decorrente do défice funcional de integridade físico-psíquica.

Nas palavras do Sr. Conselheiro Salvador da Costa[3], “o dano corporal traduz-se na alteração negativa do estado de integridade psicofísica da pessoa humana.
A sua reparação traduz-se, em regra, na fixação de uma indemnização ou compensação, em virtude da impossibilidade da plena restituição do lesado ao estado anterior à lesão.
Como o dano corporal direto propriamente dito, pela sua natureza imaterial, é insuscetível de avaliação pecuniária, salvo por ficção legal, porque não atinge o património do lesado, a conclusão é a de dever ser qualificado como não patrimonial.
Isto é assim exatamente porque se trata de ofensa de bens de caráter imaterial, desprovidos de conteúdo económico, como é o caso da vida, da integridade física, da saúde, do equilíbrio psíquico ou da correção estética.
Em regra, pois, o seu reflexo no lesado é subjetivo, porque se traduz em dor ou sofrimento de natureza física, psíquica ou moral, não raro exteriorizados por via de tristeza, angústia ou desinteresse pelas coisas da vida - Inocência Galvão Telles, “Direito das Obrigações”, Coimbra, 1997, páginas 376 a 378.
(…)
A mesma lesão corporal é suscetível de produzir danos patrimoniais e não patrimoniais.
(…)
A partir de 2004 começaram as referidas incapacidades a ser apelidadas por dano biológico, que a jurisprudência passou a utilizar até ao presente.

Nessa perspetiva, tem-se considerado que se o lesionado ficar a padecer, até ao fim da vida, de incapacidade funcional ao nível das atividades que exijam esforço e boa mobilidade dos membros inferiores ou superiores, isso se consubstanciava nessa espécie de dano.

Nessa linha, passou a jurisprudência a decidir que a afetação da pessoa do ponto de vista funcional, determinante de consequências negativas a nível da sua atividade geral, justificava a indemnização no âmbito do dano patrimonial, para além da valoração que se impusesse a título de dano não patrimonial.

É uma consideração que assenta na ideia de que a incapacidade permanente é suscetível, em abstrato, de diminuir a potencialidade de ganho do lesado ou de implicar acrescido esforço para manter os mesmos níveis de ganho.”


Em temos jurisprudenciais, referimos aqui, entre muitos outros, o Ac. STJ de 8 de setembro de 2009[4] que considerou, por um lado, que o dano biológico é o prejuízo que se repercute nas potencialidades e na qualidade de vida do lesado, afetando-lhe o seu viver quotidiano na sua vertente laboral, recreativa, sexual, social ou sentimental, determinando-lhe a perda de faculdades físicas ou intelectuais em termos de futuro, deficiências que se agravarão com a sua idade. E, por outro, que esse dano é indemnizável de per se, como dano patrimonial futuro, independentemente de se verificarem ou não consequências em termos de diminuição de proventos por parte do lesado.
Tendo o lesado ficado com incapacidade permanente mas sem sequelas em termos de rebate profissional, esforço acrescido ou particular repulsa, deve aquela incapacidade relevar em termos de prejuízo funcional, ou seja, do chamado dano biológico.

No Ac. STJ de 27 de Outubro de 2009[5], o dano biológico vem caracterizado como a diminuição somático-psíquica do lesado, com natural repercussão na sua vida, ressarcível como dano patrimonial ou compensável a título de dano moral, tudo dependendo de apreciação casuística, em termos de verificação se a lesão lhe originou, no futuro, durante o período ativo da sua vida, só por si, uma perda da capacidade de ganho ou se traduz apenas numa afetação da sua potencialidade física, psíquica ou intelectual, para além do agravamento natural resultante da idade. Ali é entendido que a mera necessidade de um maior dispêndio e de energia, mais traduz um sofrimento psicossomático do que, propriamente, um dano patrimonial, porque o exercício de qualquer atividade profissional se vai tornando mais penoso com o desgaste natural da vitalidade - paciência, atenção, perspetivas de carreira, desencantos – e da saúde, implicando um crescente dispêndio de esforço e energia. Ora, tal agravamento, desde que se não repercuta, direta ou indiretamente, no estatuto remuneratório profissional ou na carreira em si mesma e não se traduza necessariamente numa perda patrimonial futura ou na frustração de lucro, traduzir-se-á em dano moral, a fixar segundo a equidade, nos termos do artigo 496.º, n.ºs 1 e 3, do Código Civil.

No Ac. RC de 12/04/2011[6], pode ler-se que a incapacidade permanente é, de per si, um dano patrimonial indemnizável pela incapacidade em que o lesado se encontra e encontrará na sua condição física e psíquica, quanto à sua resistência e capacidade de esforços, independentemente da prova de um prejuízo pecuniário concreto. Em situações de relativa autonomia da limitação funcional, a incapacidade permanente parcial com reflexo na atividade em geral e profissional, não deverá ser compensada por forma englobante no contexto “dano biológico” mas como dano patrimonial.

Do Ac. STJ de 21/03/2013[7] alcança-se que o dano biológico, dano corporal lesivo da saúde, está na origem de outros danos (danos-consequência) designadamente aqueles que se traduzem na perda total ou parcial da capacidade de trabalho. Constitui dano patrimonial a perda de capacidade de trabalho permanente geral de 15 pontos que impõe ao lesado esforços acrescidos no desempenho da sua profissão a justificar, nos termos do art.º 564.º n.º 2 do CC, indemnização correspondente ao acrescido custo do trabalho que o lesado doravante tem de suportar para desempenhar as suas funções laborais.

O que decorre, desde logo, da circunstância de que “o estado de saúde normal é a premissa indispensável para uma capacidade produtiva normal.”[8]

No que respeita aos critérios a adotar para fixação do quantum indemnizatório, tem-se entendido que assentam na equidade, à luz do regime inserto no art. 566.º n.º 3 do CC. Porém, «a utilização de critérios de equidade não impede que se tenham em conta as exigências do princípio da igualdade, cuja prossecução implica a procura de uma uniformização de critérios, naturalmente não incompatível com a devida atenção às circunstâncias do caso. Os critérios seguidos pela Portaria n.º 377/2008, de 26/05, com ou sem as alterações introduzidas pela Portaria n.º 679/2009, de 25/06, destinam-se expressamente a um âmbito de aplicação extra-judicial, e se podem ser ponderados pelo julgador, não se sobrepõem ao critério fundamental para a determinação judicial das indemnizações fixado pelo Código Civil.»[9]

À luz de tais ensinamentos bem como dos parâmetros que vem sendo aplicados pelos tribunais superiores[10], importa levar em linha de conta a seguinte factualidade provada:
- o Recorrido contava, à data do acidente, 39 anos de idade;
- a esperança de vida ativa prolonga-se até aos 70 anos;[11]
- o Recorrido ficou a padecer de défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 53 pontos;
- as sequelas que regista são impeditivas do exercício da atividade profissional habitual mas compatíveis com outras profissões da área da sua preparação técnico-profissional;
- no ano do acidente, a remuneração habitual mensal do Recorrido ascendia ao vencimento base no montante de € 800,57 acrescido de € 79,81 de diuturnidades e de uma remuneração variável designada por ajudas de custo, que abarcava as horas extraordinárias e o trabalho aos fins-de-semana e, que em média orçava os € 1.500,00 mensais, sendo que recebia subsídio de férias e subsídio de Natal no montante de € 800,38 cada um.

No que diz respeito ao rendimento salarial a considerar para efeitos do apuramento da indemnização, afigura-se adequado atentar no vencimento base e no valor das diuturnidades recebidas, e não já na remuneração variável, pois inexistem elementos que apontem que se tratasse de rendimento com caráter regular ou consistente no tempo. Assim, o valor mensal a considerar ascende à quantia de € 1.027,11 (€ 880,38 x 14 = € 12.325,32:12).

Considerando ainda que resulta da factualidade assente que o Recorrido em nada contribuiu para a eclosão do acidente, atentas as sequelas descritas nos factos provados de que ficou a padecer, afigura-se adequado fixar o montante indemnizatório na quantia de € 280.000,00 (duzentos e oitenta mil euros).

Note-se que, por aplicação das regras decorrentes da Portaria n.º 377/2008 e respetivo anexo IV, na redação atualizada, a indemnização ascenderia ao montante de € 214.775,58. Trata-se do montante apontado como critério orientador para efeitos de apresentação, pelas seguradoras aos lesados por acidente automóvel, de proposta razoável para indemnização do dano corporal, em caso de incapacidade permanente parcial – v. art. 1.º da referida portaria. Afigura-se, no entanto, que a utilização de tal tabela só pode servir para determinar o minus indemnizatório, o qual terá de ser corrigido com vários elementos que possam conduzir a uma indemnização justa[12], já que tais tabelas não contemplam, designadamente, os seguintes itens:
- o prolongamento da IPP para além da idade de reforma (entrando na base de cálculo a referência à idade de reforma aos 65 anos, não significa necessariamente que se deixe de trabalhar depois dessa idade, ou que se deixe de ter atividade depois dela);
- a tendência, pelo menos a médio e longo prazo, quanto à melhoria das condições de vida do país e da sociedade e do próprio aumento de produtividade;
- o de não ter em consideração a tendência para o aumento da vida ativa para se atingir a reforma nem o aumento da própria longevidade;

- a inflação;
- as despesas que o próprio lesado terá de suportar por tarefas que, se não fosse o acidente, ele mesmo desempenharia;
- a progressão na carreira e, decorrentemente, a progressão salarial.[13]

Por conseguinte, inexiste fundamento para colocar em crise o juízo que supra se deixou consignado.

Fixa-se, assim, em € 280.000,00 (duzentos e oitenta mil euros) o montante indemnizatório atinente ao dano patrimonial futuro, na vertente de perda de capacidade de ganho decorrente do défice funcional de integridade físico-psíquica de que o Recorrido ficou afetado, valor que não é objeto de cálculo atualizado a esta data.[14] A tal montante hão de deduzir-se as quantias já recebidas pelo Recorrido neste âmbito, conforme determinado na 1.ª instância, o que não integra o objeto do presente recurso.

O que não contende com o limite do capital disponível a coberto da apólice em causa.

As custas recaem sobre a Recorrente e o Recorrido na proporção do decaimento (art. 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).

IV – DECISÃO

Nestes termos, decide-se pela parcial procedência do recurso, em consequência do que se revoga a decisão recorrida no que concerne ao montante indemnizatório atinente ao dano patrimonial futuro, na vertente de perda de capacidade de ganho decorrente do défice funcional de integridade físico-psíquica de que o Recorrido ficou afetado, que se fixa em € 280.000,00 (duzentos e oitenta mil euros).
Custas pela Recorrente e pelo Recorrido na proporção do decaimento.

Évora, 13 de Julho de 2017

Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria da Conceição Ferreira
Rui Machado e Moura

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[1] Cfr. retificação de fls. 677.
[2] Cfr. arts. 637.º, n.º 2 e 639.º, n.º 1, do CPC.
[3] In Caracterização, Avaliação e Indemnização do Dano Biológico, CEJ, 2010.
[4] Recurso n.º 17/09.0T2AND.S1-1
[5] Relatado por Sebastião Póvoas.
[6] Relatado por Fonte Ramos.
[7] Relatado por Salazar Casanova.
[8] Álvaro Dias, in Dano Corporal. Quadro Epistemológico e Aspectos Ressarcitórios, 2001, p. 133.
[9] Cfr. Ac. STJ de 04/06/2015 (Maria dos Prazeres Pizarro Beleza) e demais acórdãos aí citados.
[10] V. Ac. STJ de 21/03/2013, relatado por Salazar Casanova, in dgsi.pt.,
[11] V., entre muitos outros, Ac. STJ de 21/03/2013, já citado, Acs. STJ 17/11/2007, 02/10/2007, 11/03/2010.
[12] Ac. STJ de 04/12/2007 (Mário Cruz).
[13] Ac. STJ de 04/12/2007 (Mário Cruz).
[14] Tal como não foi na sentença recorrida.