Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
54/20.3GBTNV-A.E1
Relator: NUNO GARCIA
Descritores: PRIMEIRO INTERROGATÓRIO JUDICIAL
COMUNICAÇÃO DE ELEMENTOS DO PROCESSO
NULIDADE DE DESPACHO
Data do Acordão: 12/16/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Se é certo que quer o artº 141º, nº 1, al. e), do C.P.P., quer o artº 194º, nºs 6, al. b) e 7, ambos do C.P.P., permitem que ao arguido detido não seja dado conhecimento de alguns elementos constantes no processo, não é menos certo que tal decisão tem que ser devidamente fundamentada, conforme obriga o nº 5 do artº 97º do C.P.P..

Não basta referir que o processo está em segredo de justiça ou que o conhecimento de determinados elementos “contendem com a necessidade de preservar a prova … e de prosseguir com a própria investigação, de modo desde logo a compreender o alcance e a dimensão da actividade”.

É necessário algo mais. É que se o arguido tem, em princípio, o direito a conhecer todos os elementos que indiciam os factos imputados (é este o princípio geral), tem também o direito a conhecer os motivos que levam a que não lhe seja concretizado esse direito em toda a sua extensão. E a fundamentação não se pode quedar por uma generalidade

Se foi decidido ocultar elementos do processo que põem em causa a defesa do arguido, o defensor pode interpor recurso da medida coactiva ou de garantia patrimonial que vier a ser aplicada, caso tenha sido fundamentada a aplicação dessa medida nos elementos do processo não revelados durante o interrogatório. Só então o arguido tem legitimidade para recorrer, pois se o juiz ocultar elementos do processo, mas não usar esses elementos para fundamentar a medida de coacção ou de garantia patrimonial, nenhum prejuízo foi causado ao arguido, inexistindo qualquer nulidade.

Decisão Texto Integral: No âmbito do processo 54/20.3GBTNV, RPVG foi sujeito a primeiro interrogatório judicial de arguido detido, tendo no final do mesmo sido proferido o seguinte despacho:
“Mostram-se fortemente indiciados os factos narrados pelo Ministério Público no despacho de apresentação a este interrogatório ou seja, mostram-se fortemente indiciados os seguintes factos:

1.º

Pelo menos desde os inícios do ano de 2020 que RPVG se dedica à cedência e venda de produtos estupefacientes, designadamente cocaína, resina de canábis e folhas e sumidades de canábis, a consumidores que o procurem, por cedência ou mediante a entrega de contrapartidas monetárias, na cidade de … e nas localidades limítrofes, por vezes mediante contato telefónico ou eletrónico prévio.

2.º

No âmbito dessa atividade, o arguido RG adquire produtos estupefacientes, mormente cocaína, resina de canábis e folhas e sumidades de canábis, em locais e a indivíduos não concretamente apurados e, após, divide, corta, pesa e ensaca esses produtos em doses individuais, para efeitos de as vender diretamente, por preços ainda não concretamente apurados, a clientes/consumidores que o procuram.

3.º

No dia 16-02-2020, pelas 03h30m, na …, localidade da …, concelho de …, o arguido conduzia a viatura automóvel de matrícula …, e detinha, no interior de uma bolsa que trazia na cintura:

- Três embalagens (panfletos), contendo cocaína com o peso bruto total de 2,14 gramas, o peso líquido de 1,989 gramas, um grau de pureza de 54,8%, sendo suficiente para 5 doses diárias;

- Uma bolota e meia de resina de canábis, com o peso bruto total de 15,82 gramas, o peso líquido de 13,403 gramas, um grau de pureza de 30,1%, sendo suficiente para 80 doses diárias;

- Uma cabeça de planta de canábis, com o peso bruto total de 1,00 gramas, o peso líquido de 1,00 gramas, um grau de pureza de 13,3%, sendo suficiente para 2 doses diárias;

- 120,00 € em notas do Banco Central Europeu.

4.º

Devido a ser portador de substâncias ilícitas, o arguido RG foi detido e restituído, tendo sido interrogado por magistrada do Ministério Público no dia 17-02-2020, pelas 11h55m.

5.º

Não obstante a detenção e o interrogatório, o arguido continuou com a sua atividade de compra e venda de produtos estupefacientes, sendo que uma destas vendas, que se logrou concretizar até à presente data, ocorreu na noite do dia 30-04-2021, quando cedeu a BC pelo menos 0,3 gramas de resina de canábis.

6.º

E, no dia 13-06-2021, pelas 17h15m, na Rua do …, localidade de …, concelho de …, o arguido RG detinha, no interior de uma bolsa que trazia na cintura:

- Uma embalagem em película celofane, contendo resina de canábis, com o peso bruto de 9,9 gramas;

- Uma embalagem de plástico com fecho hermético, contendo resina de canábis, com o peso bruto de 0,8 gramas.

7.º

No dia 13-06-2021, pelas 17h40m, no interior da habitação sita na Rua de Cima, n.ºs 5 e 5C, localidade de Pedrógão, concelho de Torres Novas, o arguido detinha na sua posse:

A- No seu quarto:

a. No interior de um móvel, 750,00 € (setecentos e cinquenta euros) em numerário, em notas do BCE, composto por 2 notas com o valor facial de 50,00 €, 29 notas com o valor facial de 20,00 € e 3 notas com o valor facial de 10,00 €;

b. No interior de um bolso de um casado, uma embalagem em película celofane contendo resina de canábis com o peso bruto de 4,9 gramas;

c. Seis telemóveis de diversas marcas, com cartões e embalagens.

B- Na cozinha:

a. No interior de um móvel, uma balança de precisão, sem marca, de cor cinzenta;

b. Em cima de uma secretária:

i. No interior de uma caixa de cor azul, resina de canábis com o peso bruto de 1,4 gramas;

ii. No interior de um recipiente, resina de canábis com o peso bruto de 0,5 gramas.

8.º

O arguido atuou sempre de forma livre, deliberada e consciente, com conhecimento da qualidade, características e natureza dos produtos estupefacientes que detinha, transportava, preparava, cedia e vendia, com o propósito concretizado de os vender a consumidores indiferenciados que o procurassem para o efeito, de forma a auferir da vantagem económica resultante da diferença existente entre o preço de compra e preço de venda de tais produtos estupefacientes, o que conseguiu.

9.º

O arguido bem sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.

O enquadramento jurídico-penal atribuído pelo Ministério Público aos mesmos mostra-se nesta fase razoável. Pois, se bem que não é despicienda a possibilidade de a investigação vir a apontar para o enquadramento no tipo do art.º 25 do mesmo diploma, o certo é que ao menos por ora a posse de uma quantia relativamente significativa de €750,00 dissimulada no interior de um móvel e ainda a posse não só de diversas quantidades de canábis mas também de cocaína parecem encaixar com ruídos no tipo do art.º 25. De todo o modo, à luz do princípio da proporcionalidade previsto no art.º 193 do CPP, tal situação de fronteira não deixará de ser tida em conta no âmbito desta apreciação.

A convicção do tribunal assenta sobretudo no teor dos autos de apreensão incluindo os autos de pesagem e testes rápidos perspetivados à luz das regras da lógica e da experiência comum e também do prisma da condição pessoal do arguido tal como o mesmo a descreveu. Sobressaindo daqui que o arguido repetiu que não é consumidor nem tem problemas de consumo, não tendo também dívidas ou responsabilidades de vulto, estudante e trabalhando auferindo um vencimento de €860,00 e vivendo em casa dos pais com os mesmos. A circunstância do arguido não ser consumidor reforça à luz das regras da lógica e da experiência a convicção de que as quantidades de estupefaciente apreendidas se destinam à comercialização. Ainda que assim não o fosse ou seja, ainda que se entendesse, conforme manifestou agora a defesa, que o arguido não tinha respondido a esta pergunta desconhecendo-se portanto se era ou não consumidor, para o mesmo resultado se chegaria pois que também concorre a observação da forma como estavam divididas e acondicionadas as substâncias de estupefaciente. Por outro lado, coaduna-se mal com as regras da experiência que alguém jovem que vive com os pais tenha de esconder num móvel o seu vencimento. Nesta confluência, o tribunal conclui pois pelo caráter forte dos aludidos indícios. Repise-se que conforme sobredito, nesta fase a convicção do tribunal atem-se quase exclusivamente ao teor dos aludidos autos e recorde-se que o teor de conversas intercetadas até pelo grau de encriptação, que frequentemente é o seu, não consubstanciam meios de prova mas antes meios de obtenção de prova. O mesmo se deve dizer relativamente aos autos de vigilância externa. Servem pois para a recolha de elementos que permitem ao Ministério Público prosseguir na investigação e portanto, a não ser que sejam inequívocas as palavras usadas nas conversas telefónicas ou os atos testemunhados nas vigilâncias externas, não poderão sem mais servir para fundamentar a aplicação desta ou daquela medida de coação nem para tecer considerandos sobre a verificação deste ou aquele perigo previsto no art.º 204 do CPP.

Relativamente à ponderação que nos impõe o art.º 204 do CPP, salta desde logo à vista a particular intensidade do perigo de continuação da atividade criminosa ante o facto de, não obstante em 16/02/2020 terem sido apreendidas ao arguido diversas substâncias estupefacientes designadamente, 3 panfletos de cocaína e de nessa data o arguido assim ter sido constituído, o arguido não alterou 1 milímetro na sua conduta, insensível à advertência que esta intervenção processual constituiu. Ora, não sendo conhecidas ao arguido dificuldades económicas graves ou outros problemas de ordem pessoal, é de concluir que o arguido age indiferente à ação da justiça, indiferente ao bem jurídico protegido e às consequências jurídico penais e processuais da sua conduta. Parece também contar com a complacência ou distração dos seus progenitores, com quem reside. Por outro lado, tratando-se de uma comunidade pequena aquela onde o arguido exerce a sua actividade, são também significativos os perigos de alarme social e perturbação do inquérito na vertente de conservação da prova. O crime que os factos que ora se julgam fortemente indiciados consubstancia admite qualquer das medidas de coação prevista no Código de Processo Penal, sendo que só está vedado ao Juiz de Instrução discordar do Ministério Público aplicando medida mais grave quando o perigo que fundamenta a sua decisão é o previsto nas als. a) e c) do art.º 204 do CPP. Não pode também o tribunal deixar de considerar o princípio da proporcionalidade previsto o art.º 193 do CPP, considerando designadamente nesse domínio a probabilidade de, sendo o arguido bastante jovem e primário, não lhe vir apesar de tudo a ser aplicada uma pena efetiva de prisão ainda que se venham a julgar provados em julgamento os factos que ora consideramos fortemente indiciados. Entendemos por isso que, ao menos por ora, serão de afastar as medidas detentivas da liberdade. Contudo, entendemos que uma apresentação no posto policial da área da residência que não tenha uma frequência diária não responde às exigências cautelares sobreditas. Entende-se também como o Ministério Público que, para além destas obrigações, se impõem as medidas de proibição de contactos e de frequência dos locais de venda e aquisição para obviar aos aludidos perigos.

Pelo exposto e ao abrigo das disposições conjugadas dos arts.º 21, n.º 1 do DL 15/93 de 22 de janeiro e 193, 196, 198 e 200, n.º 1, al. d) 204, als. b) e c) todos do CPP, determina-se que o arguido aguarde os ulteriores trâmites processuais sujeito às seguintes medidas de coacção para além das obrigações emergentes do TIR:

1.º Obrigação de apresentação diária no posto policial da respetiva área de residência ou em qualquer outro se as suas condições profissionais assim o determinarem;

2.º Proibição de contactos com fornecedores e clientes;

3.º Proibição de frequência dos locais onde vem procedendo quer ao abastecimento do estupefaciente quer à venda do mesmo.”

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Inconformado com tal despacho, dele recorreu o arguido, tendo terminado a motivação de recurso com as seguintes conclusões:

1. Por intermédio do despacho ora recorrido foram aplicadas, ao Recorrente, as seguintes medidas de coacção: obrigação de apresentação diária no posto policial da respetiva área de residência ou em qualquer outro se as suas condições profissionais assim o determinarem; proibição de contactos com fornecedores e clientes e proibição de frequência dos locais onde vem procedendo quer ao abastecimento do estupefaciente quer à venda do mesmo.

2. Porquanto considerou o Tribunal a quo que os autos indiciavam fortemente a prática, por parte do Recorrente, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15793, de 22-01, por referência às tabelas I-B e I-C anexas a esse diploma legal.

3. Em sede de primeiro interrogatório judicial, o Recorrente requereu, ao abrigo da alínea e), do n.º 4, do artigo 141.º do Código de Processo Penal, a consulta de todos os elementos probatórios acima discriminados porquanto os mesmos se encontravam detalhados no despacho de indiciação para efeitos de primeiro interrogatório judicial e aplicação de medidas de coacção, porém, por despacho proferido naquela sede, o Tribunal a quo indeferiu a consulta dos seguintes elementos: Relatórios de Vigilância Externa a fls. 262 a 277, 310 a 317, 322, 438 a 444, e o Apenso A, respeitante à Transcrição de Escutas Telefónicas.

4. Face à posição assumida pelo Tribunal a quo, o Arguido, ora Recorrente, arguiu a nulidade e inconstitucionalidade, uma vez que a interpretação levada a cabo pelo Tribunal a quo da norma ínsita na alínea e), do n.º 4, do artigo 141.° do Código de Processo Penal, é ilegal e inconstitucional.

5. Nos termos do artigo 141.°, n.° 4, alínea e) do Código Processo Penal, no âmbito do interrogatório judicial, o Arguido é obrigatoriamente e sob pena de nulidade, informado dos elementos do processo que indiciam os factos imputados, cuja comunicação não coloque em causa a investigação, não dificulte a descoberta da verdade nem crie perigo para a vida, a integridade física ou psíquica ou a liberdade dos intervenientes processuais ou das vítimas do crime.

6. Do mesmo modo, e no que concerne à fundamentação do despacho que aplica medida de coacção, o artigo 194.°, n.º 6, alínea b), do Código de Processo Penal determina que dela conste, sob pena de nulidade, a enunciação dos elementos do processo que indiciam os factos imputados, desde que a sua comunicação não ponha gravemente em causa, a investigação, não impossibilite a descoberta da verdade, nem crie perigo para a vida, a integridade física ou psíquica ou a liberdade dos intervenientes processuais ou das vítimas do crime, dispondo o n.º 7 do mesmo artigo que, sem prejuízo do disposto na alínea b), do n.° 6, não podem fundamentar a aplicação ao arguido de medida de coacção, quaisquer factos ou elementos do processo que não lhe tenham sido comunicados.

7. Acresce que o n.º 8, do artigo 194.° do Código de Processo Penal, estabelece um especial direito à consulta do processo, dispondo que, sem prejuízo do disposto na alínea b), do n.º 6, o Arguido e o seu Defensor podem consultar os elementos do processo determinantes da aplicação da medida de coacção, constantes do Despacho de Indiciação, durante o interrogatório judicial.

8. O regime descrito, privativo que é do 1° interrogatório de arguido detido e da fundamentação da aplicação das medidas de coacção, porque regime especial, não é afastado pelas regras gerais do segredo de justiça.

9. Daqui resulta que no interrogatório, o Mmo. Juiz de Instrução pode não efectuar a informação dos elementos indiciadores, como pode não permitir a sua consulta, se entender estar verificado algum daqueles perigos, não podendo, no entanto, tais elementos servirem para fundamentar a aplicação de qualquer medida de coacção, para além do TIR prestado.

10. Sucede que, os elementos cuja consulta foi vedada, não só foram enunciados na fundamentação do despacho que aplicou a medida de coacção como elementos indiciadores da prática do crime, como foram decisivos para a aplicação ao ora recorrente das medidas de coacção impostas.

11. Não obstante a fundamentação da decisão proferida de que ora se recorre, e o facto de o artigo 194.°, n.º 8 do Código Processo Penal conferir ao arguido o direito de consulta dos elementos do processo determinantes da aplicação da medida de coacção, durante o interrogatório judicial, até à presente data, não teve o mesmo acesso àqueles elementos probatórios, apesar de o conhecimento dos mesmos se afigurar imprescindível e indispensável ao esclarecimento da verdade e absolutamente essenciais à defesa efectiva do arguido e à impugnação do Douto Despacho que em 15 de Junho aplicou as medidas de coacção supra indicadas ao recorrente.

12. Assim, a interpretação dada pelo Tribunal ao artigo 141.° nº 4 als. c), d) e e), no sentido de que o cumprimento deste normativo se basta com a comunicação de factos genéricos e abstractos, não concretizadores das exactas circunstâncias de tempo, modo e lugar que determinaram a imputação ao recorrente do ilícito de tráfico de produtos estupefacientes, é manifestamente inconstitucional por violação do estatuído nos artigos 27.° nº 4, 28.° nº 1, e 32.° da CRP, que impõe que seja dado a conhecer ao arguido tais elementos, inconstitucionalidade esta, que desde já se argui com as devidas consequências legais.

13. Do mesmo passo, verifica-se a nulidade do artigo 194.º, n.º 6, alínea b), por referência ao artigo 141.º, n.º 4 alínea e), ambos do Código de Processo Penal - nulidade que se argui para todos os efeitos legais - pois que o arguido foi informado de forma restritiva dos elementos constantes do processo e o despacho de aplicação da medida de coacção contém, nessa enunciação, elementos que não foram mostrados e dos quais o arguido não foi informado ao momento do 1º interrogatório.

14. Nestes termos e nos demais de Direito que V. Exas Doutamente suprirão, deverá o presente recurso proceder e a Decisão de que se recorre ser declarada nula, por interpretação ilegal e inconstitucional do normativo do artigo 141.° nº 4 do Código de Processo Penal, devendo o arguido recorrente ficar apenas sujeito à medida de coacção do TIR já prestado.

15. Por outro lado, entende o Recorrente que a medida de coacção de obrigação de apresentações diárias, imposta ao Recorrente, é ineficaz para prevenir o perigo que o Tribunal a quo entendeu verificar-se e que fundamentou a aplicação daquela medida, isto, é a continuação de continuação da actividade criminosa, sendo por isso claramente desadequada.

16. Primeiramente, refira-se que o enquadramento jurídico-penal atribuído pelo Ministério Público foi empolado de forma engrandecida, uma vez que, face à factualidade apurada e às quantidades apreendidas e caso esta se venha a confirmar, entende-se que a conduta do Arguido seria, no limite, enquadrável no art. 25.º, al. a), do DL 15/93, de 22-01, e não no artigo 21.º do mesmo diploma legal, tendo, inclusivamente, o Tribunal a quo, deixado consignado, no despacho de que ora se recorre: “se bem que não é despicienda a possibilidade de a investigação vir a apontar para o enquadramento no tipo do art.º 25 do mesmo diploma” (…).

17. Por outro lado, considera o Recorrente que, tendo por assente o perigo de continuação da actividade criminosa - o que faz apenas por hipótese académica, sem conceder - a aplicação da medida de coacção de apresentações periódicas, viola o princípio da adequação, pois não acautela aquele perigo.

18. E aqui, fazemos nossas as palavras do Tribunal da Relação de Évora: “o perigo de continuação da actividade delituosa de traficante de estupefacientes, não é minimamente acautelado com a sujeição do arguido à medida de coacção de apresentação periódica perante OPC, pois é por demais evidente que ela não é passível de obviar ao referido perigo de continuação da actividade criminosa, pois não é minimamente impeditiva dele continuar a desenvolver a actividade delituosa de tráfico de produto estupefaciente. Tal medida não tem, pois, aptidão para prevenir ou minimizar que o arguido prossiga essa actividade, sendo por isso, completamente ineficaz para acautelar esse perigo.”

19. Pelo que, soçobrando a adequação da medida aplicada, deverá a mesma, só por aqui, ser revogada.

20. Por seu turno, e tendo como pressuposto que o perigo de continuação da actividade criminosa ocorre quando, em concreto, se verifica indiciação de uma situação de indigência profissional do arguido e da sua dependência do comércio de psicotrópicos, fácil é verificar que, no presente caso, estando o recorrente integrado profissionalmente, auferindo um vencimento de €860,00, não se verifica o perigo de continuação da actividade criminosa.

21. Face ao exposto, o despacho recorrido fez incorrecta apreciação dos factos e errada aplicação do direito, violando desse modo, o artigo 32.º, n.º 2 e o artigo 27.º da Constituição da República Portuguesa, bem como os artigos 191º, 193º, 198.º e 204º todos do Código de Processo Penal, devendo, por conseguinte, ser revogado na parte em que aplicou ao Recorrente a medida de coacção de Obrigação de Apresentações Diárias.

22. Ainda que assim não se entenda, o que por mera cautela de patrocínio se concebe - sem conceder - dir-se-á que o facto de o Recorrente ter estado detido, e ser confrontado com o presente processo, por si só, prevenirá toda qualquer exigência cautelar que se possa fazer sentir, ao que acresce o facto de o mesmo estar social, familiar e profissionalmente integrado.

23. Assim, entente o Recorrente, socorrendo-se do que supra se aludiu que outra medida de coacção acautelaria, satisfatoriamente, os propósitos de tal aplicação: obrigação de apresentações trissemanais ou mesmo semanais e não diárias, pois que tal medida é manifestamente excessiva.

24. Desta forma, caso não se entenda revogar o despacho recorrido na parte em que aplicou a medida de coacção de obrigação de apresentações diárias, deve a mesma ser substituída por outra, nomeadamente, apresentações trissemanais ou mesmo semanais.

Nestes termos e nos melhores de Direito, requer-se a V. Exas. se dignem julgar o presente recurso procedente, por provado, e, em consequência:

Declarar nulo, por interpretação ilegal e inconstitucional do normativo do artigo 141.° nº 4 do Código de Processo Penal, o despacho recorrido, devendo o arguido recorrente ficar apenas sujeitos à medida de coacção do TIR já prestado;

Ainda que assim não se entenda, o que por mera cautela de patrocínio se concebe , sem conceder,

Ser revogado o despacho ser revogado na parte em que aplicou ao Recorrente a medida de coacção de Obrigação de Apresentações Diárias, por violação os artigos 191º, 193º, 198.º e 204º todos do Código de Processo Penal;

Ainda que assim não se entenda, o que por mera cautela de patrocínio se concebe , sem conceder,

Substituir a medida de coacção de obrigação de apresentações diárias por apresentações trissemanais ou semanais nos termos acima requeridos.

P.D.”

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Respondeu o Ministério Público, tendo terminado a sua resposta com as seguintes conclusões:

1 - Em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido, realizado no dia 15 de junho de 2021, foi proferido douto despacho considerando estar fortemente indiciado a prática pelo arguido RPVG de um crime de tráfico de estupefacientes de maior gravidade, previsto e punido pelo artigo 21º, nº. 1 do Decreto-Lei 15/93, de 22 de janeiro, por referência às tabelas I-B e I-C anexas a esse diploma legal.

2 – Porquanto foram aplicadas por despacho, ao recorrente, as seguintes medidas de coação: Obrigação de apresentação diária no posto policial da respetiva área da residência ou em qualquer outro se as suas condições profissionais assim o determinarem, Proibição de contactos com fornecedores e clientes e Proibição de frequência dos locais onde vem procedendo quer ao abastecimento do estupefaciente quer à venda do mesmo.

3 – Em virtude de existir perigo de continuação da atividade criminosa, alarme social e perturbação do inquérito na vertente de conservação da prova.

4 – O arguido, ora recorrente, em sede de primeiro interrogatório requereu a consulta de todos os elementos probatórios discriminados no despacho de indiciação para efeitos do primeiro interrogatório.

5 – O Tribunal a quo deferiu a consulta da maior parte dos elementos e indeferiu a consulta respeitante a Relatórios de Vigilância Externa, bem como do Apenso A, respeitante à Transcrição das Escutas Telefónicas, por se encontrarem em segredo de justiça e contender com a necessidade de preservar a prova produzida e de prosseguir a própria investigação.

6 – O recorrente, arguiu a nulidade e inconstitucionalidade da interpretação feita pelo tribunal do artigo 141º nº. 4, alínea e).

7 – O juízo de forte indiciação sobre a prática dos factos foi formulado de acordo com os elementos em que os presentes autos se mostram instruídos, designadamente, do teor dos autos de apreensão incluindo os autos de pesagem e testes rápidos e atentas as regras da lógica e da experiência comum.

8 – O Tribunal legitimou a sua decisão com base no material probatório disponibilizado ao arguido e seu mandatário.

9 – O Tribunal não sustentou a sua convicção em elementos probatórios vedados ao arguido, pelo que não violou qualquer princípio constitucional.

10 – O Mmo. Juiz de Instrução fundou-se no teor dos autos de apreensão, de pesagem e de testes rápidos perspetivados à luz das regras da lógica e da experiência comum.

11 – O recorrente não teve acesso àqueles elementos probatórios, por não se afigurarem indispensáveis ao esclarecimento da verdade, nem absolutamente essenciais à efetiva defesa do arguido, por se encontrarem em segredo de justiça e contenderem com a necessidade de preservação da prova, e por não servirem de fundamentação do despacho de aplicação das medidas de coação.

12 – Não enferma o ínsito no nº. 4 do artigo 141º do Código de Processo Penal de qualquer ilegalidade ou inconstitucionalidade.

13 – O recorrente entende que a medida de coação de obrigação de apresentações diárias é ineficaz para prevenir o perigo que o Tribunal a quo entendeu verificar-se, isto é, a continuação da atividade criminosa.

14 – O Ministério Público entende que a medida é adequada e proporcional, por referência aos factos mencionados nos artigos 3º, 4º, 5º, 6º e 7º do douto despacho.

15 – É evidente que aplicar qualquer outra medida se revela inadequada, porque insuficiente, pois que, no crime de tráfico de estupefacientes de maior gravidade, o “negócio” pode ser efetuado e mantido, caso o arguido não fique sujeito a uma apresentação diária no posto policial da sua área de residência.

16 - Só a medida coativa de apresentações diárias – enquanto medida não privativa da liberdade - acautela de forma adequada, proporcional e suficiente o perigo da prossecução da atividade criminosa, o alarme social e o perigo de perturbação do inquérito.

17 - A ver do Ministério Público bem andou o Tribunal a quo ao considerar fortemente indiciada a prática do crime de tráfico de estupefacientes e a verificação dos perigos elencados, que justificam as medidas de coação determinadas.

18 - O despacho recorrido fez uma correta apreciação dos factos e do direito, pelo que não deverá ser revogado na parte em que aplicou ao recorrente a medida de coação de Obrigação de Apresentações Diárias.

19 – O recorrente pugnou pela substituição por apresentações trissemanais ou semanais, por o se mostrar suficiente para debelar o perigo de continuação da atividade criminosa, alarme social e perturbação do inquérito.

20 - Não deverá a medida de coação de obrigação de apresentações diárias ser substituída por qualquer outra, ainda que bissemanal, por não se revelar suficiente para satisfazer as necessidades cautelares dos presentes autos.

Destarte, entende o Ministério Público que o douto despacho em recurso não padece de qualquer dos vícios invocados pela recorrente, sendo de manter, com as legais consequências, pois, no caso em apreço, as necessidades cautelares apenas ficarão satisfeitas com a manutenção das medidas de coação determinadas pelo Tribunal a quo, no douto despacho recorrido pelo arguido.

Restando concluir que não merece provimento o recurso ora em causa.

Nesta conformidade, deve ser negado provimento ao recurso e, consequentemente, ser mantido, integralmente, quanto ao recorrente Rui Pedro Vieira Gameiro, o douto despacho ora em crise.

Assim decidindo, farão V. Exas., como sempre, a melhor JUSTIÇA!”

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Neste tribunal da Relação, o Exmº P.G.A. emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, transcrevendo-se do mesmo com especial interesse o seguinte:

“(…) há que reconhecer que o supra referido despacho que vedou o acesso do arguido às transcrições das conversações telefónicas e a parte dos autos de vigilância externa sem justificar que tal acesso põe gravemente em causa a investigação ou impossibilita a descoberta da verdade, afronta efectivamente o disposto nos artigos 141.º, n.º 4, alínea e), e 194.º, n.ºs 6, alínea b), e 8, do Código de Processo Penal, e, como tal, seria passível de manchar o subsequente despacho que definiu o estatuto coactivo do recorrente com o vício da nulidade (artigo 194.º, n.º 6, do Código de Processo Penal).

Sucede que, como bem refere a Exm.ª colega do Ministério Público na sua resposta, a Mm.ª juiz de instrução não se socorreu nem dos relatórios de vigilância externa nem das transcrições das conversações telefónicas para fundamentar a determinação das medidas de coacção (e justificou-o porquê).

(…)

Daí que não faça sentido alegar que o despacho se encontra inquinado de qualquer ilegalidade ou inconstitucionalidade.

(…)

Ainda assim, não nos custa conceder que a combinação das medidas decretadas (apresentações periódicas diárias perante o órgão de polícia criminal e proibição de contactos e de frequência de determinados locais) também é idónea a responder satisfatoriamente aos assinalados perigos do artigo 204.º, alíneas b) e c), do Código de Processo Penal.

(…)

À vistas destas cogitações, com as quais não podemos deixar de concordar, temos por inequívoca a verificação do perigo de continuação da actividade criminosa.”

O recorrente respondeu ao referido parecer, entre o mais, contrariando-o na parte em que se referiu que não se tiveram em conta os relatórios de vigilância externa e as transcrições das conversas telefónicas.

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APRECIAÇÃO

Tendo em conta as conclusões do recurso, importaria apreciar o seguinte:

- inconstitucionalidade da interpretação dada pelo tribunal recorrido ao artigo 141.° nº 4 als. c), d) e e), do C.P.P., no sentido de que o cumprimento deste normativo se basta com a comunicação de factos genéricos e abstractos, não concretizadores das exactas circunstâncias de tempo, modo e lugar que determinaram a imputação ao recorrente do ilícito de tráfico de produtos estupefacientes;

- nulidade do despacho recorrido por não ter facultado ao recorrente os relatórios de vigilância externa e as transcrições das conversas telefónicas;

- adequação da medida de coacção aplicada.

Referiu-se acima que importaria apreciar as referidas três questões porque relativamente à primeira rigorosamente não há nada a apreciar.

Com efeito, quer tendo em conta o corpo da motivação, quer as conclusões, o que verdadeiramente o recorrente põe em causa é a circunstância de não lhe ter sido dado conhecimento de elementos constantes no processo, designadamente parte dos relatórios de vigilância e as transcrições de escutas telefónicas.

O despacho recorrido seria nulo por causa disso.

Mas quanto à comunicação de factos genéricos e abstractos, nada de concreto alega o recorrente, quer no corpo da motivação, quer nas conclusões, que possa consubstanciar esse tipo de comunicação ilegal e/ou inconstitucional.

E são duas coisas diferentes: a comunicação dos factos que dever ser feita nos termos do artº 141º, nº 4, al. d), do C.P.P.; a comunicação dos elementos do processo que indiciam a prática de tais factos, a qual deve ser feita nos termos da al. e) do mesmo preceito legal.

O recorrente substancialmente só se insurge contra a violação da referida al. e) (para além do nº 7 do artº 194º do C.P.P.), nada de concreto, repete-se, tendo alegado que pudesse consubstanciar também violação da al. d) ou qualquer nulidade/inconstitucionalidade a isso referente.

Temos, portanto, que quanto a isso nada há a apreciar, sempre se dizendo que, como bem refere o Exmº P.G.A. no seu parecer, ressalta do auto de interrogatório que os factos indiciados sob os nºs 3º, 4º, 5º, 6º e 7º são bem concretos.

Temos, portanto, que para além da questão da medida de coacção adequada, o que há a apreciar é apenas a alegada nulidade do despacho recorrido por não ter sido fornecido ao recorrente o conhecimento de todos os elementos que indiciavam a prática dos factos em causa, sendo, aliás, que essa é a única questão sobre que se debruça o corpo da motivação (para além da questão da medida de coacção adequada).

E porque quanto à questão da alegada inconstitucionalidade a pretensão do recorrente não é nada clara, uma vez que tanto inclui nesse juízo de inconstitucionalidade a interpretação de todo o nº 4 do artº 141º do C.P.P. – cfr. parte final da motivação de recurso -, como apenas das als. c), d) e d) – cfr. último parágrafo da pág. 7 do corpo da motivação e conclusão 12 -, como, ainda, o limita apenas à al. e) – cfr. conclusão 4) -, não deixará se se fazer essa apreciação quanto à única questão verdadeiramente suscita, ou seja, quanto à al. e) referida.

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Vejamos então a questão relativa à comunicação dos elementos constantes no processo

Há que considerar o seguinte:

- consta no auto de interrogatório judicial do arguido que quanto aos “elementos do processo que indiciam os factos imputados” o mesmo foi informado da existência, entre o mais de:

a) Relatórios de vigilância externa de folhas 120 a 125, 129 a 134, 136 a 141, 150, 262 a 277, 310 a 317, 322, 438 a 444;

b) Transcrição de escutas telefónicas, Apenso A;

- tendo o arguido requerido, logo após lhe ter sido dada essa informação, a consulta de todos os elementos constantes nos autos e, após o Ministério Público se ter pronunciado (opondo-se), foi proferido o seguinte despacho, conforme consta no auto de interrogatório:

“Não obstante o inciso legal mencionado pelo arguido no requerimento ora apresentado seja muito menos exigente do que o regime previsto no artº 89º do mesmo diploma, o que é certo é que também isso ressalva as exigências de investigação. Por conseguinte, tendo o processo sido sujeito a segredo de justiça interno e externo pelos motivos oportunamente escautilizados, é de observar que a consulta ora pretendia ao teor das conversações interceptadas ou o testamento com o cerne dos fundamentos que determinaram a confirmação da sujeição do processo a segredo de justiça. Em suma, essas preocupações contendem com a necessidade de preservar a prova até ao momento produzida e de prosseguir a própria investigação, de modo desde logo a compreender o alcance e a dimensão da actividade. Indefere-se portanto a consulta ao teor dessas conversas interceptadas, deferindo-se no mais o ora requerido”.

- o interrogatório judicial continuou com algumas outras vicissitudes, conforme contam no respectivo auto e na gravação do mesmo (a cuja audição este tribunal procedeu), até que foi decidido o estatuto coactivo do arguido, conforme despacho inicialmente transcrito.

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Ora, e posição expressa pelo Exmº P.G.A. no seu parecer é a que nos parece ser a acertada.

Com efeito, entendemos que realmente o despacho recorrido não contém fundamentação suficiente que justifique o não fornecimento de todos os elementos solicitados pelo arguido.

Se é certo que quer o artº 141º, nº 1, al. e), do C.P.P., quer o artº 194º, nºs 6, al. b) e 7, ambos do C.P.P., permitem que ao arguido detido não seja dado conhecimento de alguns elementos constantes no processo, não é menos certo que a decisão que assim tem que ser devidamente fundamentada, conforme obriga o nº 5 do artº 97º do C.P.P..

Não basta referir que o processo está em segredo de justiça ou que o conhecimento de determinados elementos “contendem com a necessidade de preservar a prova … e de prosseguir com a própria investigação, de modo desde logo a compreender o alcance e a dimensão da actividade”.

É necessário algo mais. É que se o arguido tem, em princípio, o direito a conhecer todos os elementos que indiciam os factos imputados (é este o princípio geral), tem também o direito a conhecer os motivos que levam a que não lhe seja concretizado esse direito em toda a sua extensão. E a fundamentação não se pode quedar por uma generalidade.

É evidente que a fundamentação não pode ser de tal modo que com a mesma se dê a conhecer aquilo que se pretende evitar com o fornecimento dos elementos em causa, sob pena de ficar completamente frustrado o fim que se pretendia obter com a não comunicação dos mesmos.

Há que encontrar, caso a caso, o ponto de equilíbrio entre os objectivos da investigação e a descoberta da verdade, por um lado, e os direitos do arguido detido, por outro lado.

Como bem refere o Sr. Cons. Santos Cabral, no Código de Processo Penal Comentado, 3ª edição, pág. 539, “Se, em defesa de imperativos constitucionais, há que informar o arguido dos elementos em questão, do outro lado deste equilíbrio de interesses está a investigação, e a funcionalidade da justiça penal que não pode, nem deve ser posta em causa”.

Sempre tendo em conta que, como bem se refere no parecer do Exmº P.G.A.:

“Como se pode verificar, a redacção dos dois preceitos não é exactamente igual.

O artigo 141.º, n.º 4, alínea e), permite que o arguido detido sujeito a primeiro interrogatório judicial não seja informado de determinados elementos de prova indiciadores dos factos imputados se a comunicação dos mesmos puser em causa a investigação ou dificultar a descoberta da verdade [ou se criar perigo para a vida, a integridade física ou psíquica ou a liberdade dos participantes processuais ou das vítimas do crime].

O artigo 194.º, n.º 6, alínea b), permite que na fundamentação do despacho que aplicar medida de coacção ou de garantia patrimonial não sejam enunciados os mesmos elementos de prova se a sua comunicação puser gravemente em causa a investigação ou impossibilitar a descoberta da verdade [ou criar perigo para a vida, a integridade física ou psíquica ou a liberdade dos participantes processuais ou das vítimas do crime].

«Esta diversidade de regimes, se levada à letra, envolve uma evidente restrição dos direitos de defesa, que não é tolerável. Na verdade, ao arguido podem vir a ser sonegados, no interrogatório, elementos de prova, com fundamento em que a sua comunicação poria (simplesmente) em causa a investigação ou dificultaria (sem impossibilitar) a descoberta da verdade; mas esses elementos já lhe serão comunicados, com o despacho de aplicação da medida de coacção, se não puserem gravemente em causa a investigação ou não impossibilitarem a descoberta da verdade. No entanto, relativamente a tais elementos de prova, que o arguido não conhecia, não pôde obviamente defender-se.

Deverá, pois, adoptar-se um critério único de informação ao arguido, que não pode deixar de ser o do n.º 6, b) deste artigo [194.º], único que permite a defesa eficaz do arguido» (1).

À luz deste entendimento, que temos por correcto, o juiz de instrução, no primeiro interrogatório judicial, deve dar conhecimento e permitir que o arguido aceda a todos os elementos de prova que indiciam os factos imputados, só não devendo fazê-lo se o conhecimento de tais elementos por parte daquele puser gravemente em causa a investi-gação ou impossibilitar a descoberta da verdade [ou criar perigo para a vida, integridade física ou psíquica ou a liberdade dos participantes processuais ou vítimas do crime] (2).

Na decorrência do que antecede, há que reconhecer que o supra referido despacho que vedou o acesso do arguido às transcrições das conversações telefónicas e a parte dos autos de vigilância externa sem justificar que tal acesso põe gravemente em causa a investigação ou impossibilita a descoberta da verdade, afronta efectivamente o disposto nos artigos 141.º, n.º 4, alínea e), e 194.º, n.ºs 6, alínea b), e 8, do Código de Processo Penal, e, como tal, seria passível de manchar o subsequente despacho que definiu o estatuto coactivo do recorrente com o vício da nulidade (artigo 194.º, n.º 6, do Código de Processo Penal).

(1) Conselheiro Maia Costa, Código de Processo Penal comentado, 2014, Almedina página 864. No mesmo sentido António Gama preconiza que a «necessidade de congruência das soluções normativas, até porque a leitura mais restritiva de direitos do arguido resulta da técnica remissiva para norma com matriz diversa (o art. 141.º) passa pela afirmação de um único critério, de informação e fundamentação, que não pode deixar de ser o do n.º 6/b» (Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo III, Artigos 191.º a 310.º, Almedina, página 90).

(2) E não se diga que, com este alcance, a restrição legal é inconstitucional. Apenas seria inconstitucional, por violação das garantias de defesa previstas no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, se a lei vedasse, sempre e em quaisquer circunstâncias, o acesso aos elementos probatórios, ainda que de tal acesso não decorressem riscos para as actividades de recolha da prova ou inconvenientes sérios para a conclusão do inquérito. Se, ao invés, houver razões ponderosas que impeçam, por força de uma avaliação concreta das circunstâncias do caso, a autorização de acesso aos autos, dados os riscos ligados a tal acesso, nomeadamente quanto a actividades probatórias ainda não concluídas respeitantes aos factos ilícitos investigados, a recusa de acesso, em tal caso, não se traduz em restrição excessiva, dados os diferentes interesses e valores em jogo (v. a este propósito os acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 121/97 e n.º 416/2003, ambos em www.tribunalconstitucional.pt). “

Nada existe no despacho que indeferiu o fornecimento de todos os elementos que possa levar à conclusão de que tal fornecimento punha em causa gravemente a investigação ou impossibilitava a descoberta da verdade (atente-se que o despacho acabou por indeferir apenas a consulta das conversas interceptadas, nem sequer se referindo aos relatórios de vigilância externa que também estavam em causa).

Sobre a necessidade de uma ponderação “em concreto”, veja-se Paulo Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, pág. 405, nota 16, e Mouraz Lopes, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, 2ª edição, II, pág. 293).

Temos, portanto, que se os elementos que não foram fornecidos tivessem sido utilizados para fundamentar as medidas de coacção que foram aplicadas, o respectivo despacho seria nulo, nos termos do nº 6 do artº 194º do C.P.P..

Mas o que é certo é que, substancialmente falando, não foram.

Com efeito, bem verificado o despacho recorrido, constata-se que o que se teve em conta foram os autos de apreensão, incluindo os autos de pesagem e os testes rápidos.

E no despacho recorrido estão também bem explícitas as razões pelas quais se entendeu que a indiciada detenção dos estupefacientes tinha como objectivo a sua comercialização.

Tanto basta para se concluir pela indiciação de um crime de tráfico de estupefacientes.

O próprio despacho recorrido contém afirmações acerca da não consideração das escutas e dos autos de vigilância externa, pois que aí se refere:

(…)o teor de conversas intercetadas até pelo grau de encriptação, que frequentemente é o seu, não consubstanciam meios de prova mas antes meios de obtenção de prova. O mesmo se deve dizer relativamente aos autos de vigilância externa. Servem pois para a recolha de elementos que permitem ao Ministério Público prosseguir na investigação e portanto, a não ser que sejam inequívocas as palavras usadas nas conversas telefónicas ou os atos testemunhados nas vigilâncias externas, não poderão sem mais servir para fundamentar a aplicação desta ou daquela medida de coação nem para tecer considerandos sobre a verificação deste ou aquele perigo previsto no art.º 204 do CPP.” (sublinhado nosso).

E não nos prendamos a aspectos formais/literais como seja o emprego das palavras “sobretudo” ou “quase exclusivamente”, embora, em coerência com a fundamentação, o acto concreto referido no artº 5º da matéria considerada indiciada não devesse ter sido assim considerado.

É certo, porém, que tal em nada afecta a conclusão a que chegamos, uma vez que, repete-se, mesmo desconsiderando (para este efeito) tal venda concreta, sempre estaríamos perante um crime de tráfico de estupefacientes (atente-se que a qualificação jurídica dos factos indiciados não está posta em causa no recurso, subsidiariamente falando, está claro).

Se todos os factos considerados indiciados se tivessem baseado apenas nos elementos cujo conhecimento foi recusado ou se a aplicação das medidas de coacção se tivesse fundamentado apenas nesses elementos, então o desfecho do presente recurso seria outro.

Com bem refere Paulo Albuquerque, ob. cit. pág. 406, nota 19, “Se o juiz decidir ocultar elementos do processo que põem em causa a defesa do arguido, o defensor pode interpor recurso da medida coactiva ou de garantia patrimonial que vier a ser aplicada, caso o juiz tenha fundamentado a aplicação dessa medida nos elementos do processo não revelados durante o interrogatório. Só então o arguido tem legitimidade para recorrer, pois se o juiz ocultar elementos do processo, mas não usar esses elementos para fundamentar a medida de coacção ou de garantia patrimonial, nenhum prejuízo foi causado ao arguido”. (no mesmo sentido, Sr. Cons. Santos Cabral, ob. cit. último parágrafo da pág. 539).

Por último: o recorrente tem razão quando refere que no início do interrogatório, após lhe terem sido comunicados os factos imputados, lhe foram comunicados também os elementos do processo que indiciam tais factos, neles se tendo incluído todos os relatórios de vigilância externa e as transcrições das escutas telefónicas.

Essa inclusão mais não é do que a reprodução do despacho do Ministério Público que fundamentou a apresentação do arguido detido para o juiz proceder ao seu interrogatório (neste sentido, Paulo Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 4ª edição, pág. 405, nota 15)

No fundo, não é mais do que informar o detido do que o Ministério Público entende que está indiciado, mas o que importa, repete-se, é que no caso concreto o despacho que aplicou as medidas de coacção não teve em conta os referidos elementos.

Face ao exposto, há que concluir que não ocorre nulidade do despacho recorrido.

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Embora não de forma muito clara, como já acima se referiu, o recorrente parece pretender que se formule um juízo de inconstitucionalidade quanto ao entendimento seguido pelo tribunal recorrido também quanto à questão da não comunicação de alguns elementos.

Alega o recorrente a inconstitucionalidade desse entendimento por violação dos seguintes preceitos constitucionais:

Artigo 27.º

(Direito à liberdade e à segurança)

4. Toda a pessoa privada da liberdade deve ser informada imediatamente e de forma compreensível das razões da sua prisão ou detenção e dos seus direitos.

Artigo 28.º

(Prisão preventiva)

1.A detenção será submetida, no prazo máximo de quarenta e oito horas, a apreciação judicial, para restituição à liberdade ou imposição de medida de coacção adequada, devendo o juiz conhecer das causas que a determinaram e comunicá-las ao detido, interrogá-lo e dar-lhe oportunidade de defesa.

Artigo 32.º

(Garantias de processo criminal)

1. O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso.

2. Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa.

3. O arguido tem direito a escolher defensor e a ser por ele assistido em todos os actos do processo, especificando a lei os casos e as fases em que a assistência por advogado é obrigatória.

4. Toda a instrução é da competência de um juiz, o qual pode, nos termos da lei, delegar noutras entidades a prática dos actos instrutórios que se não prendam directamente com os direitos fundamentais.

5. O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório.

6. A lei define os casos em que, assegurados os direitos de defesa, pode ser dispensada a presença do arguido ou acusado em actos processuais, incluindo a audiência de julgamento.

7. O ofendido tem o direito de intervir no processo, nos termos da lei.

8. São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações.

9. Nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior.

10. Nos processos de contra-ordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa.

Reproduziu-se todo o artº 32º da C.R.P. porque o recorrente não concretizou qual a norma, ou normas, nele contidas que teria sido violada.

Seja como for, a questão está prejudicada uma vez que, repete-se, o tribunal recorrido não considerou os elementos cujo conhecimento foi recusado.

Não foi, assim, adoptado qualquer entendimento que pudesse, eventualmente, colidir com qualquer dos referidos preceitos legais: pura e simplesmente, os elementos em causa não foram considerados.

Nesta parte, deve, pois, o recurso improceder.

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Quanto à questão das medidas de coacção aplicadas

Embora de forma não muito assertiva, o recorrente coloca em causa a qualificação jurídica dos factos feita no despacho recorrido.

Para a questão da apreciação da adequação das medidas de coacção aplicadas, concretamente para a única pretensão formulada pelo recorrente a este propósito – substituição da obrigação e apresentações diárias por apresentações tri-semanais -, a questão da qualificação jurídica dos factos não se revela com especial interesse, uma vez que o crime em causa é o mesmo – tráfico de estupefacientes – e a moldura penal para o crime de tráfico de menor gravidade também permite a aplicação da medida em causa (artº 198º, nº 1, do C.P.P.).

Seja como for, e tendo em conta que, conforme acima se referiu, não deveria ter sido considerado indiciado o facto identificado sob o nº 5 (venda a BC) e, por isso, restam apenas as detenções, para comercialização, a conduta do arguido enquadra-se mais adequadamente no artº 25º, nº 1, do D.L. 15/93 de 22/1.

O recorrente não põe em causa a verificação dos perigos referidos no despacho recorrido: perigo de continuação da actividade criminosa e perigo de alarme social e de perturbação do inquérito na vertente da conservação da prova (embora este último sem qualquer concretização no despacho recorrido).

Entende o recorrente que com a aplicação da obrigação de apresentações diárias se violou o princípio da adequação ínsito no artº 193º do C.P.P., uma vez que não acautela o perigo de continuação da actividade criminosa.

À cautela, pugna o recorrente para que se estabeleça a periodicidade tri-semanal ou mesmo semanal para as apresentações periódicas.

Ora, bem vistas as coisas, de facto as apresentações perante a autoridade policial nunca impedem, só por si, a continuação da actividade criminosa se esta se consubstanciar em detenção de estupefacientes para comercialização ou mesmo se se tratar de vendas ou cedências concretas.

O arguido faz a sua apresentação durante uns brevíssimos minutos e em todo o resto do dia pode dedicar-se ao tráfico de estupefacientes. Só a prisão preventiva seria de molde a impossibilitar a actividade de tráfico de estupefacientes, pelo menos fora da prisão.

Como é bom de ver, a medida de coacção de obrigação de apresentação periódica tem mais um efeito indirecto no que diz respeito à tentativa de evitar a continuação da actividade criminosa. Para além de “dificultar” a capacidade de movimentação do arguido, faz com que o mesmo sinta um maior controlo das autoridades.

Julga-se, no entanto, que face aos factos que por ora se devem considerar indiciados, a apresentação bi-semanal do arguido nas autoridades policiais será suficiente para satisfazer os objectivos propostos com a aplicação de tal medida.

Resta referir que não se vislumbra qualquer violação dos artºs 32º, nº 2 e/ou do artº 27º, da C.R.P.

Com efeito, a aplicação da medida de coacção (de qualquer medida de coacção) não põe em causa a presunção de inocência (artº 32º, nº 2), pois que se assim não fosse nunca poderia ser aplicada qualquer medida de coacção, nem está em causa o direito à liberdade do arguido (artº 27º).

De notar que o recorrente não concretiza em que é que consistiria a violação do artº 32º, nº 2, e/ou do artº 27º da C.R.P., sendo até acerto que quanto a este último nem sequer se especifica qual o normativo, ou normativos, violados.

Assim sendo, entende-se que nesta parte o recurso deverá ser julgado procedente, alterando-se a periodicidade das apresentações impostas ao recorrente.

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DECISÃO

Face ao exposto, julga-se o recurso parcialmente procedente, revogando-se o despacho recorrido na parte em que estabeleceu a periodicidade diária para as apresentações no posto policial, fixando-se agora a periodicidade bi-semanal, a concretizar às 2ªs e 5ªs feiras de cada semana.

Sem custas, atenta a inexistência de decaimento total no recurso.

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Évora, 16 de Dezembro de 2021

Nuno Garcia

Edgar Valente