Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
215/18.5T9TVR.E1
Relator: MARIA DE FÁTIMA BERNARDES
Descritores: VIOLAÇÃO DA OBRIGAÇÃO DE ALIMENTOS
DIREITO DE QUEIXA
INÍCIO DO PRAZO
Data do Acordão: 06/18/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
I - As modalidades típicas do crime de violação da obrigação de prestação de alimentos, previstas nos n.ºs 1 e 2 do artigo 250.º do C.P., aditados pela Lei n.º 61/2008, não podem ser classificadas como crimes permanentes.

II - Atenta a descrição típica da conduta, preenchidos que estejam os demais elementos do tipo objetivo, a consumação do tipo base previsto no n.º 1, ocorre e esgota-se com o incumprimento da obrigação de alimentos, decorridos que sejam dois meses sobre o vencimento da prestação alimentícia e a consumação do tipo agravado previsto no n.º 2 verifica-se havendo o incumprimento de, pelo menos, duas prestações da obrigação de alimentos (normalmente, com periodicidade mensal) e decorrido que seja o prazo de dois meses sobre a data do respetivo vencimento, sem prejuízo de a consumação do crime se poder prolongar no tempo, mediante a reiteração sucessiva do incumprimento da obrigação de alimentos.

III – A modalidade de conduta típica mais agravada encontra-se prevista no n.º 3, exigindo-se para o preenchimento do tipo legal que a conduta do agente ponha em perigo a satisfação das necessidades fundamentais do alimentando.

IV - A contagem do prazo de seis meses para o exercício do direito de queixa inicia-se, logo que decorram dois meses sobre o vencimento da última prestação de alimentos que o obrigado deixou de cumprir e cessada que seja tal obrigação, seja qual for a causa da respetiva cessação, designadamente, por ocorrer uma modificação das circunstâncias que presidiram à definição da obrigação de alimentos.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Criminal, do Tribunal da Relação de Évora:

1 - RELATÓRIO
Neste processo n.º 215/18.5T9TVR, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Juízo de Instrução Criminal de Faro – Juiz 2 e que se iniciou com a queixa apresentada, em 02/04/2018, por AA contra CC, findo o inquérito, o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento, ao abrigo do disposto no artigo 277º, n.º 1, do C.P.P., por inadmissibilidade legal do procedimento, decorrente da intempestividade do exercício do direito de queixa e consequente falta de legitimidade do Ministério Público para a prossecução da ação penal relativamente à factualidade denunciada, suscetível de, em abstrato, integrar o crime de violação da obrigação de alimentos p. e p. pelo artigo 250º do Código Penal.

Constituindo-se assistente a queixosa AA requereu a abertura de instrução contra o identificado arguido e pelo referido ilícito criminal.

Realizada a instrução foi, a final, proferida decisão instrutória, que apreciando a questão prévia, decidiu ser extemporânea a queixa apresentada pela ora assistente e, nessa decorrência, não estando verificado um dos requisitos formais para o prosseguimento do procedimento criminal, não pronunciar o arguido pela prática do crime de violação de obrigação de alimentos p. e p. pelo artigo 250º, n.º 1, do Código Penal.

Não se conformando com o assim decidido, recorreu a assistente, para este Tribunal da Relação, apresentando a respetiva motivação e dela extraindo as seguintes conclusões:

1.ª
As normas jurídicas violadas são as seguintes:
- a norma contida no artigo 115.º, n.º 1, do Código Penal;
- a norma contida no artigo 250.º, n.º 1 e n.º 4, do Código Penal.

2.ª
A norma contida no artigo 115.º, n.º 1, do Código Penal, porque o direito de queixa da assistente não se havia extinguido na data de apresentação da queixa, uma vez que a obrigação de alimentos do pai do seu filho continuava - como hoje continua - a ser violada, pelo que deveria o obrigado ter sido pronunciado pela prática do crime de violação de obrigação de alimentos, em vez de ter sido não pronunciado.

3.ª
A norma contida no artigo 250.º, n.º 1 e n.º 4, do Código Penal, porque, tendo o obrigado a alimentos violado esta obrigação e estando verificados os elementos do tipo, deveria ter sido pronunciado pela prática do crime de violação de obrigação de alimentos, em vez de ter sido não pronunciado.

Nestes termos e nos demais de Direito - que V.as Ex.as doutamente suprirão -, deverá o presente recurso ser julgado procedente, por provado, e, em consequência, ser revogada a decisão recorrida e substituída por outra que pronuncie o arguido pelo crime de violação de obrigação de alimentos, p. e p. no artigo 250.º, n.º 1 e n.º 4, do Código Penal.

O recurso foi regularmente admitido.

O Ministério Público, junto da 1ª Instância, apresentou resposta, pronunciando-se no sentido de dever ser negado provimento ao recurso.

O arguido também respondeu ao recurso, pugnando para que seja julgado improcedente e mantida a decisão recorrida, formulado, a final as seguintes conclusões:

a) Vem com o presente recurso a Recorrente alegar que não se conforma com a decisão instrutória na medida em que por não se verificarem os requisitos formais de prosseguimentos dos presentes autos, decidiu por não pronunciar o Recorrido pela prática de um crime de violação de alimentos, p. e p. pelo art.º 250.º, n.º 1 do Código Penal.

b) Alega a Recorrente que não é verdade que os presentes autos tiveram origem em queixa apresentada pela Recorrente contra o Recorrido, imputando-lhe a prática, no período compreendido entre outubro de 2012 e junho de 2017, de factualidade suscetível de integrar, eventualmente e em abstrato, um crime de violação de obrigação de alimentos, p. e p. pelo art.º 250.º do Código Penal.

c) Para sustentar as suas alegações a Recorrente, alega que ao Recorrido imputa é a prática, no período compreendido entre o dia 8 de outubro de 2012 e o dia 2 de abril de 2018, de factualidade suscetível de integrar, eventualmente e em abstrato, e no entender da Recorrente em concreto, um crime de violação de obrigação de alimentos, p. e p. pelo art.º 250.º do Código Penal.

d) Dado que a Recorrente desde o dia 8 de outubro de 2012, data em que transitou em julgado a decisão proferida no processo de divórcio por Mútuo Consentimento, onde foi homologado o acordo celebrado entre a Recorrente e o Recorrido e o relativo ao exercício das responsabilidades parentais e o dia 2 de abril de 2018, data em que a Recorrente apresentou a queixa, nunca o Recorrido entregou à Recorrente qualquer quantia.

e) A douta decisão recorrida não deve ser revogada e substituída por outra que pronuncie o Recorrido pelo crime de violação de obrigação de alimentos, p. e p. pelo art.º 250.º, n.º 1 e n.º 4 do Código Penal.

f) Por decisão proferida no processo de divórcio por Mútuo Consentimento, e transitada em julgado em 8 de outubro de 2012, foi homologado o acordo celebrado entre a Recorrente e o Recorrido relativo ao exercício das responsabilidades parentais do filho menor de ambos.

g) Em 1 de julho de 2017 foi o referido acordo alterado, tendo sido fixado o regime de residência alternada, e em consequência dessa alteração no que toca a alimentos ficou estabelecido que “Cada progenitor suportará os custos inerentes ao sustento do filho nos períodos em que o tiver a seu cargo”.

h) Em 2 de abril, por queixa formalizada pela Recorrente imputa esta ao Recorrido a prática de um crime de violação de obrigação de alimentos, p. e p. pelo art.º 250.º, n.º 1 e n.º 4 do Código Penal, por no período compreendido entre o dia 8 de outubro de 2012 e o dia 2 de abril de 2018, nunca o Recorrido entregou à Recorrente qualquer quantia.

i) A douta decisão recorrida, não deve ser revogada e substituída por outra que pronuncie o Recorrido pela prática do crime supra referido.

j) O crime que a Recorrente imputa ao Recorrido é um crime que reveste a natureza semi pública, logo um dos pressupostos indispensáveis ao exercício da ação penal é o direito de queixa.

k) Direito este de queixa que segundo o art.º 115, n.º 1 do Código Penal se extingue no prazo de seis meses a contar da data em que o titular tiver conhecimento do facto e dos seus autores.

l) Em 2 de abril de 2018 (data em que foi apresentada a queixa) já se mostrava esgotado o prazo legalmente fixado para exercer esse direito, tendo o mesmo terminado em 1 de dezembro de 2017.

m) O crime de violação de obrigação de alimentos é um crime permanente, cuja execução subsiste enquanto a obrigação de prestar alimentos não se extingue.

n) Nos crimes permanentes, o prazo de seis meses se inicia com o conhecimento da respetiva consumação, consumação esta que ocorreu na data que cessou a obrigação de prestar alimentos (1 de julho de 2017), contrariamente ao alegado pela Recorrente.

o) Contrariamente ao alegado pela Recorrente no período compreendido entre o dia 8 de outubro de 2012 e o dia 2 de abril de 2018, o Recorrido não estava obrigado a entregar à Recorrente qualquer quantia, pois tal obrigação cessou em 1 de julho de 2017.

p) Razão pela qual, entende o Recorrido que a douta decisão recorrida não ser revogada e substituída por outra que pronuncie o Recorrido pelo crime de violação da obrigação de alimentos, p. e p. pelo art.º 250.º, n.º 1 e n.º 4 do Código Penal.

q) Devendo o presente recurso improceder, pugnando-se pela manutenção integral da douta decisão recorrida.

Termos em que por se concordar com o teor da douta decisão recorrida posta em crise pela Recorrente, se pugna pela sua integral manutenção.

Neste Tribunal da Relação, a Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

Cumprido o disposto no n.º 2 do artigo 417º do Código de Processo Penal, a recorrente exerceu o direito de resposta, acrescentando outros argumentos em sustentação da posição que preconiza de que o direito de queixa foi tempestivamente exercido e concluindo nos mesmos termos que na motivação de recurso.

Feito o exame preliminar e, colhidos os vistos legais, realizou-se a conferência. Cumpre agora apreciar e decidir:

2 – FUNDAMENTAÇÃO

2.1. Delimitação do objeto do recurso
É consabido que as conclusões formuladas pelo recorrente extraídas da motivação do recurso balizam ou delimitam o objeto deste último (cf. artigo 412º do CPP), sem prejuízo da apreciação das questões de natureza oficiosa.

Assim, no caso em análise, considerando os fundamentos do recurso, a única questão suscitada e que há que apreciar e decidir é a da (in)tempestividade do direito de queixa exercido pela assistente.

Para que possamos apreciar a questão suscitada, importa ter presente o teor do despacho recorrido.

2.2. Decisão recorrida
O despacho recorrido tem o seguinte teor:

«DECISÃO INSTRUTÓRIA

Declaro encerrada a instrução.
*
I – Despacho saneador
O Tribunal é o competente e as partes encontram-se dotadas de legitimidade.
*
Questão prévia – da tempestividade da queixa apresentada pela Assistente

Nos presentes autos, a Assistente apresentou queixa no dia 02/04/2018.

Em tal queixa, imputa ao arguido a ausência de pagamento de qualquer valor relativo à obrigação de alimentos devido ao filho menor de ambos, CCR.

Para o efeito, refere que por acordo no exercício das responsabilidades parentais, datado do ano de 2012, o arguido ficou obrigado ao pagamento mensal do valor de € 100,00 a título de alimentos relativos ao filho menor de ambos, com actualização anual; que tal obrigação cessou em 01/07/2017, uma vez que foi alterado o exercício das responsabilidades parentais, passando a vigorar o regime da residência alternada; e que o arguido nunca pagou qualquer valor referente àquele período entre Outubro de 2012 e 01/07/2017.

O Digno Magistrado do Ministério Público arquivou liminarmente os autos, por considerar que o exercício do direito de queixa era intempestivo, tendo findado em 01/12/2017.

Em consequência, veio a Assistente requerer a abertura de instrução, pugnando, entre o mais, que a queixa apresentada era tempestiva.

Para o efeito, alegou que o crime de violação da obrigação de alimentos é um crime de execução permanente, apenas se consumando aquando do cumprimento da obrigação.

Indicou jurisprudência e doutrina que perfilham idêntico entendimento.

Cumpre apreciar.

O crime de obrigação da prestação de alimentos encontra-se previsto no art.º 250.º, n.º 1, do Cód. Penal, que estabelece:

“Quem, estando legalmente obrigado a prestar alimentos e em condições de o fazer, não cumprir a obrigação no prazo de dois meses seguintes ao vencimento, é punido com pena de multa até 120 dias.”

Por sua vez, o n.º 5 do mesmo normativo determina que “o procedimento criminal depende de queixa”.

Por seu turno, o art.º 115.º, n.º 1, do Cód. Penal, preconiza que “O direito de queixa extingue-se no prazo de seis meses a contar da data em que o titular tiver tido conhecimento do facto e dos seus autores”.

Contrariamente ao estabelecido para a prescrição do crime, o legislador não elaborou qualquer distinção quanto ao início do prazo para o exercício de direito de queixa nos crimes continuados ou de execução permanente, estabelecendo como único critério para o início do prazo o conhecimento, pelo ofendido, da prática do crime.

Não obstante, tal simples interpretação poderia, teoricamente, redundar em situações em que o crime ainda se encontraria a ser praticado, e o direito de queixa já não pudesse ser exercido.

Face ao exposto, a jurisprudência tem considerado que, nos crimes permanentes, o prazo de seis meses se inicia com o conhecimento da respectiva consumação.

Assim, no que ao caso nos interessa, importa aferir se, conforme referiu o Digno Magistrado do Ministério Público, a consumação do crime ocorreu na data em que cessou a obrigação de prestar alimentos ou se, ao invés, a consumação apenas ocorrerá com a cessão do incumprimento, ou seja, com o pagamento.

Embora a jurisprudência citada pela Assistente faça cabal referência que o momento da consumação ocorre com o fim do incumprimento, não pode este Tribunal concordar, sem mais, com tal entendimento.

Na verdade, um entendimento de tal forma amplo levaria não só a que o direito de queixa nunca se extinguisse, como o próprio crime nunca prescrevesse enquanto o obrigado a alimentos não procedesse ao respectivo pagamento.

Aliás, a própria prescrição da dívida civil não levaria ao início do decurso do prazo de apresentação de queixa e de prescrição, porquanto a obrigação de pagamento mantinha-se, ainda que a título de obrigação natural.

Ou seja, a crer no entendimento da jurisprudência acima citada, se o agente nunca pagasse os alimentos a que estava devido, a prática do crime apenas se extinguiria com a sua morte – mesmo que a dívida de alimentos tivesse surgido há décadas atrás.

Tal entendimento não nos parece razoável, chocando contra os basilares princípios penais que sustentam a ausência de acção punitiva do Estado após o decurso de um período de tempo considerável desde a prática da conduta criminosa.

A jurisprudência citada pela Assistente tem, por via disso, que ser lida cuidadosamente. Assim, os casos referidos jurisprudencialmente – em que a prática do crime se consuma a partir do momento em que o agente cessa o incumprimento, pagando o valor devido – apenas ocorrem quando o pagamento se dá durante o período em que a obrigação da prestação periódica de alimentos ainda se mantém.

Tal entendimento jurisprudencial não invalida que se considere que o crime igualmente se consuma após a cessação da obrigação de prestar alimentos. Seguindo tal entendimento, Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, 2.ª Edição actualizada, nota 12 ao art.º 250.º, refere que: “A consumação do crime verifica-se quando cessa (definitiva ou transitoriamente) a obrigação de alimentos ou cessa a situação de perigo, uma vez que o crime de violação da obrigação de alimentos é um crime permanente”.

Há que referir que a incriminação legal tem como objectivo acautelar a subsistência do dependente de alimentos, sendo que tal dependência ocorre enquanto durar aquela obrigação de prestar os alimentos. Por via disso, quando a obrigação termina, não existe qualquer situação de carência que a lei acautele, motivo pelo qual deixa de existir qualquer bem jurídico que se encontre protegido pela incriminação em causa.

Assim, e também por esse motivo, não se pode considerar que a consumação do crime apenas se dê com o efectivo pagamento da obrigação.

Face a todo o exposto, conforme se encontra referido na queixa e relatado no despacho de arquivamento, a prática do crime consumou-se na data em que cessou a obrigação de alimentos, em 01/06/2017.

Assim, o direito de queixa poderia ser exercido até aos seis meses após o conhecimento da consumação do crime, ou seja, 01/12/2017.

Deste modo, tendo a queixa apenas sido apresentada em 02/04/2018, a mesma é extemporânea, motivo pelo qual não poderá o presente procedimento criminal prosseguir.

VI – Decisão
Face ao supra exposto, e uma vez que não se mostram verificados os requisitos formais de prosseguimento dos presentes autos, o Tribunal decide não pronunciar o arguido CC pela prática de um crime de violação de obrigação de alimentos, p. e p. pelo art.º 250.º, n.º 1, do Cód. Penal.

Em consequência, determina-se o oportuno arquivamento dos presentes autos.
*
Custas pela Assistente, fixando-se a taxa de justiça em 1 UC, considerando-se tal valor já integralmente pago com a oportuna autoliquidação aquando da apresentação do requerimento de abertura de instrução.

Notifique.»

2.3. Conhecimento do recurso
Como acima referimos, a questão suscitada no recurso e que há que apreciar e decidir é a da (in)tempestividade do direito de queixa exercido pela assistente, ora recorrente.

O Tribunal a quo decidindo ser extemporânea a queixa apresentada pela assistente, ora recorrente, em 02/04/2018, por factos suscetíveis, em abstrato, de integrar o crime de violação da obrigação de alimentos p. e p. pelo artigo 250º, n.º 1, do Código Penal, por haverem decorrido mais de seis meses sobre a data (01/06/2017) em que cessou a obrigação de alimentos e a consumação do crime, proferiu despacho de não pronúncia do arguido, por falta de um dos requisitos formais da prossecução do procedimento criminal.

O Ministério Público manifesta concordância com o decidido no despacho recorrido.

Por seu lado, a assistente sustenta que o direito de queixa foi tempestivamente exercido, estando em causa um crime de execução permanente, cuja consumação só se verifica com o cumprimento da obrigação de alimentos ou com a cessação dessa obrigação, o que ainda não ocorreu, só se extinguindo o direito de queixa decorridos seis meses sobre a data em que se verifique a consumação do crime.

Apreciando:

O crime de obrigação de alimentos encontra-se previsto no artigo 250º do Código Penal, cuja atual redação introduzida pela Lei n.º 61/2008, de 31 de outubro, é a seguinte:

1. Quem estando legalmente obrigado a prestar alimentos e em condições de o fazer, não cumprir a obrigação no prazo de dois meses seguintes ao vencimento, é punido com pena de multa até 120 dias.

2. A prática reiterada do crime referido no número anterior é punível com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias.

3. Quem, estando legalmente obrigado a prestar alimentos e em condições de o fazer, não cumprir a obrigação, pondo em perigo a satisfação, sem o auxílio de terceiro, das necessidades fundamentais de quem a eles tem direito, é punido punível com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias.

4. Quem, com a intenção de não prestar alimentos, se colocar na impossibilidade de o fazer e violar a obrigação a que está sujeito criando o perigo previsto no número anterior, é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias.

5. O procedimento criminal depende de queixa.

6. Se a obrigação vier a ser cumprida, pode o tribunal dispensar de pena ou declarar extinta, no todo ou em parte, a pena ainda não cumprida.

Na redação anterior, que lhe foi dada pela Lei n.º 59/2007, de 4 se setembro, o n.º 1 do artigo 250º correspondia ao atual n.º 2, tendo os atuais n.ºs 1 e 2 sido aditados pela Lei n.º 61/2008.

O tipo legal da incriminação em apreço, artigo 250º do Código Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 61/2008 e, no que aqui importa considerar, prevê três modalidades de conduta, nos seus n.ºs 1, 2 e 3, tendo subjacente uma lógica de agravação, na sua enunciação, sendo o n.º 1 o tipo fundamental; o n.º 2, o tipo legal fundamental “reiterado”; e o n.º 3 o tipo legal reiterado, que produz um “efeito-perigo” agravante (cf. Prof. J.M. Damião da Cunha, Comentário ao crime de violação da obrigação de alimentos, in Revista do Ministério Público, 154, Abril-Maio de 2018, pág. 16).

O preenchimento do tipo legal, na modalidade prevista no n.º 1, supõe que o agente, estando legalmente obrigado a prestar alimentos e em condições de o fazer, não cumpra a obrigação no prazo de dois meses após o vencimento.

A modalidade típica agravada, prevista no n.º 2, reconduz-se à “prática reiterada” do crime previsto no n.º 1.

A determinação do conceito de “prática reiterada” suscita algumas dúvidas. Perfilhamos o entendimento do Prof. Damião da Cunha in ob. cit., pág. 27, no sentido de que, para que se verifique a prática reiterada é necessário é necessário que se verifiquem, pelo menos, dois crimes do n.º 1 “sucessivos”, que integrarão um crime de prática reiterada.

No mesmo sentido, vai o entendimento de Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República …, 3ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, pág. 471, que escreve: «Aquando do primeiro incumprimento de uma obrigação de alimentos o obrigado comete o crime do n.º 1, cometendo o crime do n.º 2 a partir do segundo incumprimento daquela mesma obrigação de alimentos

A modalidade de conduta típica mais agravada encontra-se prevista no n.º 3, exigindo-se para o preenchimento do tipo legal que a conduta do agente ponha em perigo a satisfação das necessidades fundamentais do alimentando.

Os crimes previstos nos n.ºs 1 e 2 constituem crimes de perigo abstrato e o crime previsto no n.º 3 crime de perigo concreto.

Qualquer dos crimes é semipúblico, dependendo o procedimento criminal de queixa (n.º 5 do artigo 250º).

De harmonia com o princípio geral estabelecido no artigo 115º, n.º 1, do Código Penal, o direito de queixa deve ser exercido até seis meses a contar da data em que o titular tiver tido conhecimento do facto e dos seus autores, extinguindo-se, por caducidade, o respetivo direito, se a queixa não for apresentada nesse prazo.

Para efeito de determinação do início da contagem do prazo para o exercício do direito de queixa é decisiva a classificação do crime, em razão da sua estrutura típica.

Na vigência da anterior redação do artigo 250º, ao que se crê era unânime, a classificação do crime de violação da obrigação de alimentos como sendo um crime permanente.

Nesse âmbito e a esse propósito, escreveu o Prof. J.M. Damião da Cunha, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, Coimbra Editora, 1999, páginas 633 e 634: «O problema mais complexo refere-se ao facto de poder dar-se a violação plúrima deste tipo legal. A violação de uma obrigação de alimentos apenas a favor de um alimentando corresponde, em regra, à prática de um crime permanente, pois normalmente o obrigado cria um estado ilícito duradouro que ele próprio conserva. A conduta punível começa com o pôr em perigo e só cessa com a cessação deste, ou quando, por qualquer razão, não haja mais possibilidade de um comportamento típico (p. ex., ausência de condições para prestar, doença, cumprimento de pena de prisão, etc.). A renovação da violação da obrigação após a cessação da razão que implicou o termo do primeiro crime (reaquisição da condição de prestar, etc.) implica um novo crime.»

Após a alteração ao artigo 250º introduzida pela Lei n.º 61/2008, alguma doutrina e certo setor da jurisprudência continuam a defender que se mantém a estrutura típica do crime de violação da obrigação de alimentos como sendo um crime permanente (cf., na doutrina, Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 918; e, na jurisprudência, entre outros, Ac. da RL de 17/02/2016, proc. n.º 1735/09.8TACSC.L1-9 e Ac.s da RP de 20/02/2013, proc. n.º 688/07.1TAMAI.P1 e de 16/02/017, proc. n.º 1735/09.8TACSC.L1-9, todos acessíveis no endereço www.dgsi.pt).

Salvo o devido respeito, entendemos que, as modalidades típicas do crime de violação da obrigação de prestação de alimentos, previstas nos n.ºs 1 e 2 do artigo 250º do C.P., aditados pela Lei n.º 61/2008, não podem ser classificadas como crimes permanentes.

Explicitando:
A distinção entre crimes instantâneos e crimes permanentes é feita pela doutrina, entendendo-se que crime instantâneo é aquele em que a respetiva consumação se traduza na realização de um ato, esgotando-se num único momento – v.g. o crime de homicídio e o crime de furto – e o crime permanente é aquele em que a consumação é constituída por uma situação duradoura, que se prolonga no tempo, por vontade do agente e que só termina mediante um ato de sentido contrário, que ponha termo à situação antijurídica e restitua o bem jurídico violado à situação anterior ao início da execução – v.g. o crime de sequestro do artigo 158º e o crime de violação de domicílio do artigo 190º, n.º 1 – (cf., entre outros, Prof. J. Figueiredo Dias, in Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, Coimbra Editora, 2012, pág. 314 e Prof. Germano Marques da Silva, in Direito Penal Português Teoria do Crime, Universidade Católica Editora, 2012, páginas 38 e 39).

Como elucidativamente escreve o Prof. Germano Marques da Silva, in ob. cit., pág. 39: «Nos crimes instantâneos o tipo legal é construído de modo a que a conduta (acção ou omissão) se realiza numa unidade de tempo, enquanto nos crimes permanentes a conduta típica perdura no tempo e, por isso, a ofensa ao bem jurídico tutelado também perdura no tempo. É em função da descrição típica da conduta que se distingue o crime instantâneo do crime permanente, pois que enquanto no crime permanente a continuidade do estado danoso ou perigoso é essencial à sua configuração típica, no crime instantâneo a permanência não é elemento do crime, muito embora a sua consumação se possa prolongar também (ex: crime de usurpação de funções – artigo 358º).»

Tendo presentes estas considerações e com referência ao crime de violação da obrigação de alimentos, nas modalidades típicas previstas nos n.ºs 1 e 2 do artigo 250º do C.P., atenta a descrição típica da conduta, preenchidos que estejam os demais elementos do tipo objetivo, a consumação do tipo base previsto no n.º 1, ocorre e esgota-se com o incumprimento da obrigação de alimentos, decorridos que sejam dois meses sobre o vencimento da prestação alimentícia e a consumação do tipo agravado previsto no n.º 2 verifica-se havendo o incumprimento de, pelo menos, duas prestações da obrigação de alimentos (normalmente, com periodicidade mensal) e decorrido que seja o prazo de dois meses sobre a data do respetivo vencimento, sem prejuízo de a consumação do crime se poder prolongar no tempo, mediante a reiteração sucessiva do incumprimento da obrigação de alimentos.

De todo o modo, mesmo para a hipótese de se entender que crime em referência, na redação dada ao artigo 250º do Código Penal, pela Lei n.º 61/2008, continua a ser um crime permanente e, ressalvando sempre o devido respeito pela posição contrária, discordamos da posição defendida por certo setor da jurisprudência e que a ora recorrente invoca em sustentação da tese que preconiza, no sentido de que a consumação do crime de violação da obrigação de alimentos só se verifica quando cessa a situação antijurídica, seja pelo cumprimento da obrigação, seja pela cessação da obrigação de alimentos ou, no caso da modalidade típica prevista no n.º 3 do artigo 250º, da cessação da situação de perigo (cf. citados Ac. da RP de 08/03/2017, proc. 1012/13.0TAVLG.P1 e Ac. da RL de 17/02/2016, proc. n.º 1735/09.8TACSC.L1-9).

A defender-se esta posição ter-se-ia de considerar que na situação em que o obrigado a prestar alimentos cumprisse a obrigação e verificados que fossem os demais elementos do tipo legal, só então ocorreria a consumação do crime em referência, solução que se nos afigura não ter cabimento legal, desde logo, por que constituindo o cumprimento da obrigação causa de dispensa da pena ou de extinção, no todo ou em parte, da pena ainda não cumprida (cf. n.º 6 do artigo 250º), necessariamente se impõe concluir que a consumação do crime ocorreu antes do cumprimento da obrigação.

O que nos parece correto é entender, conforme defende o Prof. Figueiredo Dias, in ob. cit., pág. 314, que nos crimes permanentes ou duradouros, a consumação «ocorre logo que se cria o estado antijurídico; só que ela persiste (ou dura) até que um tal estado tenha cessado.»

Ora, quando a obrigação de alimentos cessa, independentemente da causa de cessação (v.g. seja pela verificação de qualquer das causas previstas no 2013º do C. Civil, seja por ocorrer uma modificação das circunstâncias que presidiram à definição da obrigação de alimentos), o bem jurídico tutelado pela incriminação que é a satisfação das “necessidades fundamentais” do titular do direito a alimentos, não pode continuar a ser acautelado, por essa via, pelo que, se entende, que também por essa razão, não se pode considerar que a consumação do crime apenas se dê com o efetivo cumprimento da obrigação de alimentos.

Entendemos que a consumação do crime de que se trata, na modalidade típica prevista no n.º 1 do artigo 250º, ocorre logo que se mostrem decorridos dois meses sobre a data do vencimento da prestação de alimentos não cumprida e, na modalidade típica prevista no n.º 2, que, como já referimos, pressupõe o incumprimento de, pelo menos, duas prestações de alimentos, a consumação ocorrerá decorridos que sejam dois meses sobre a data do vencimento da última prestação e havendo a reiteração do incumprimento da obrigação de alimentos para além desse momento, a consumação do crime, ocorre, nos mesmos termos, ao longo do período de tempo em que, mantendo-se a obrigação de alimentos nos moldes em que foi definida, persistir o incumprimento.

Neste quadro e relativamente à contagem do prazo de seis meses, para o exercício do direito de queixa, entendemos que se inicia, no caso do n.º 1 do artigo 250º, verificados que sejam os respetivos pressupostos, estabelecidos no artigo 116º, n.º 1, assim que decorram dois meses sobre o vencimento da obrigação de alimentos (neste sentido, cf. Prof. J.M. Damião da Cunha, Comentário ao crime de violação da obrigação de alimentos, in Revista do Ministério Público, 154, Abril-Maio de 2018, pág. 46).

Em relação ao crime, na modalidade típica prevista no n.º 2 do artigo 250º, ainda que se possa equacionar, o que faz o Prof. Damião da Cunha in ob. e loc. cit., como é que se pode concretizar o exercício do direito de queixa por prática reiterada ou pelo crime mais grave (por “renovação” de queixa, por “multiplicação” de queixas?), em consonância com a posição defendemos no tocante à qualificação do crime de que se trata, é nosso entendimento que a contagem do prazo de seis meses para o exercício do direito de queixa se inicia, assim que decorram dois meses sobre o vencimento da última prestação de alimentos que o obrigado deixou de cumprir e cessada que seja tal obrigação, seja qual for a causa da respetiva cessação, designadamente, por ocorrer uma modificação das circunstâncias que presidiram à definição da obrigação de alimentos.

Tendo presentes estas considerações e revertendo ao caso concreto, temos que:

- A assistente, ora recorrente, apresentou, em 02/04/2018, queixa contra o arguido, por factos suscetíveis de poderem, em abstrato, integrar o crime de violação da obrigação de alimentos p. e p. pelo artigo 250º, nºs 1 e 2, do C.P.

- As prestações de alimentos que alegadamente o arguido incumpriu, devidas ao filho, nascido em 26/07/2007, respeitam ao período compreendido entre outubro de 2012 até junho de 2017;

- Por força do acordo, homologado por decisão do Exm.º Conservador do Registo Civil de Tavira e transitada em julgado em 08/10/2012, referente à regulação das responsabilidades parentais, o arguido ficou obrigado a pagar, a título de alimentos ao menor, a quantia mensal de €100,00, e entregar à ora recorrente no dia 1 do mês a que respeitar, com atualização anual em, janeiro, de acordo com o índice de variação de preços ao consumidor, relativo ao ano anterior, publicado pelo INE.

- Por decisão proferida no processo de regulação das responsabilidades parentais, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo de Família e Menores de Faro, Juiz 2, sob o n.º ---/14.7T8FAR-A, procedeu-se à alteração da regulação das responsabilidades parentais referentes ao menor, sendo fixado, no referente a alimentos, que a partir de 1 de julho de 2017, cada progenitor suportaria os custos inerentes ao sustento do filho nos períodos em que o tiver a seu cargo.

Considerando que a obrigação de alimentos do ora arguido ao filho, menor, pela forma que estava obrigado a prestá-los, foi alterada, por decisão judicial, com efeitos a partir de 1 de julho de 2017, sendo que no período compreendido entre outubro de 2012 e junho de 2017, o arguido estava adstrito a pagar quantia mensal, a título de alimentos, que se vencia no dia 1 do mês a que a prestação respeitasse e que, de acordo com queixa apresentada pela ora assistente, o arguido nunca cumpriu e a partir de 1 de julho de 2017, ficou estabelecido que o arguido passaria a suportar os custos inerentes ao sustento do filho nos períodos em que o tivesse a seu cargo, a última prestação de alimentos que o arguido alegadamente deixou de cumprir venceu-se em 1 de junho de 2017.

A prática reiterada do crime de violação da obrigação de alimentos que a conduta do arguido, considerando a queixa apresentada pela ora assistente, seria suscetível de preencher, p. e p. pelo artigo 205º, n.ºs 1 e 2, do C.P., tendo em conta o último segmento da conduta omissiva do arguido, reporta-se ao mês de junho de 2017, ocorrendo a consumação dessa fração do comportamento ilícito, decorridos dois meses sobre o vencimento da prestação, ou seja, no dia 2 de agosto de 2017.

Assim e em conformidade com a posição que defendemos e que supra se deixou exposta, no tocante à contagem do prazo, para o exercício do direito de queixa, tendo a ora recorrente conhecimento dos factos e do seu agente, desde o momento inicial, o prazo de seis meses para a apresentação da queixa iniciou-se no dia 2 de agosto de 2017 e completou-se no dia 2 de fevereiro de 2018.

Acontece que a ora recorrente só veio a apresentar a queixa em 2 de abril de 2018, altura em que já havia decorrido o prazo legal para o exercício do direito de queixa, nos termos sobreditos.

A queixa apresentada pela ora recorrente, nos autos, é, pois, como bem se decidiu no despacho recorrido [ainda que com menção a data do terminus do prazo para o exercício do direito de queixa, não conforme àquela que se considera ser a correta], extemporânea.

Impõe-se, pois, julgar improcedente o recurso, confirmando-se a decisão recorrida.

3– DISPOSITIVO
Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso interposto pela assistente AA, e, em consequência, confirmar o despacho recorrido.

Custas pela assistente/recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC´s (art. 515º, n.º 1, al. b), do CPP e art. 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III, anexa).

Notifique.
Évora, 18 de junho de 2019


MARIA DE FÁTIMA BERNARDES

FERNANDO PINA