Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1373/14.3PBSTB-A.E1
Relator: ANA BARATA BRITO
Descritores: MEDIDAS DE COACÇÃO
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PERIGO DE CONTINUAÇÃO DA ACTIVIDADE CRIMINOSA
PRISÃO PREVENTIVA
Data do Acordão: 03/03/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1. As medidas de coacção visam satisfazer exigências cautelares, exclusivamente processuais, que resultem da concreta verificação dos perigos previstos no art. 204º/2 do CPP, sendo de considerar ilegítimas finalidades de natureza retributiva, preventiva, ou mesmo de protecção do arguido.
2. Indiciando-se a prática de crime de violência doméstica (art. 152º do CP) por factos (graves) ocorridos (reiterada e intensamente) ao longo de seis anos, factos que se situam temporalmente no decurso de período de suspensão de pena de prisão aplicada já ao arguido por crime idêntico anterior cometido na pessoa da mesma vítima, vítima que ocupa no processo a posição de (principal) testemunha, deve concluir-se que existe, em grau muito elevado, perigo de continuação da actividade criminosa e ainda perigo para a conservação da prova.

3. Estando assim fortemente indiciado que a existência da conduta agressora - que incluiu maus tratos físicos, psíquicos, de natureza sexual e privações de liberdade - se mantém, globalmente, há cerca de 15 anos, qualquer medida de coacção não privativa de liberdade se revelaria insuficiente para acautelar as finalidades das medidas de coacção, devendo ser decretada a prisão preventiva, que se mostra ainda proporcional à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente podem vir a ser aplicadas.

Decisão Texto Integral:






PROC. Nº 1373/14.3PBSTB-A.E1

1. No processo nº 1373/14.3PBSTB-A, da Instância Criminal J2 da Comarca de S, o Ministério Público interpôs recurso do despacho da Sra. Juíza de Instrução Criminal que, após interrogatório de arguido detido, determinou que VMB aguardasse ulteriores termos do processo sujeito a TIR, a obrigação de apresentação periódica tri-semanal em posto policial e a proibição de residência e contactos com a vítima, assim indeferindo o seu requerimento para sujeição do mesmo a prisão preventiva.
Apresentou as seguintes conclusões:
“1.º O presente recurso tem como objecto a Decisão Judicial no processo identificado em epígrafe – e constante a fls. 117 a 123 –, que não aplicou ao arguido VMB a medida de coacção prisão preventiva, por factos considerados indiciados e que integram a prática do crime de violência doméstica, previsto e punível pelo artigo 152.°, n.º 1, b) e c) n.º 2 do Código Penal.
2.° No caso dos autos, estão verificados todos os pressupostos para aplicação da medida de coacção prisão preventiva.
3. ° Atento o exposto, constata-se que apesar dos actuais, reais e patentes e fortes perigos de continuação da actividade criminosa, não foi aplicada medida de coacção privativa da liberdade relativamente ao arguido, porquanto segundo fundamentação do despacho judicial de que ora se recorre (acima transcrito), a Mm.ª Juíza considerou não ser proporcional e adequada qualquer medida de coacção privativa da liberdade, porquanto (esquema nosso): I) O arguido tem estado mais calmo e no que se refere às agressões sexuais, a ofendida já não oferece resistência às mesmas; II) Apesar da gravidade dos factos indiciados, não há lesões graves; III) Atendendo a que o arguido está a ser acompanhado pela DGRS; e, IV) Está inserido social e profissionalmente. 4.°. Desde já e embora, repetindo-nos, damos por reproduzida, por razões de economia processual, toda a nossa promoção que antecedeu o primeiro interrogatório para efeitos também de motivação deste recurso (acima transcrita).
5.° Realçamos que o aqui o arguido foi condenado, no âmbito do processo n.º 1808/08.4TASTB, por sentença transitada em julgado em 04-07-2011, por factos praticados entre 2001 a 1 de Novembro de 2008, pelo crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.°, n.º 1, b) e n.º 2 do Código Penal, contra a mesma vítima destes autos, em pena de prisão suspensa sujeita a regime de prova mediante acompanhamento da DGRS, que ainda se encontra em curso.
6.° O arguido está, neste inquérito, fortemente indiciado de factos que consubstanciam também o crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.°, n.º 1, b) e c) e n.º 2 do Código Penal, factos estes ocorridos entre 2009 até Outubro do corrente ano de 2014 e que se traduzem em agressões físicas, psicológicas e até de carácter sexual.
7. ° Discordamos portanto, como se pôde considerar que o arguido estava mais calmo, apesar de a ofendida usar esta expressão aquando da inquirição, atendendo aos factos e prova deste processo e, também, pela mesma ordem de razões não se entende como pode considerar-se que o acompanhamento pela DGRS, esteja de algum modo a surtir efeito, pois que tal acompanhamento, em sede de execução de pena de prisão suspensa, foi iniciado em 2011.
8. ° Ademais, discordamos terminantemente, do entendimento quanto às agressões sexuais efectuado por parte da Mm.ª Juíza, em que, apenas por a vítima já não oferecer resistência foram desvalorizadas. Sempre com o devido respeito, tal atitude por parte da vítima demonstra querer evitar sofrimento, e um sinal claro dos efeitos nefastos a nível psicológico nesta, consequência das reiteradas e múltiplas condutas do arguido para com esta.
9.° E no que a lesões se refere, estas reflectem no desalento e no exposto em 8.º, pois que se o arguido demonstra claramente impunidade pelos seus actos, a sua libertação, atendendo os factos, o contexto, a prova, os antecedentes criminais, sem que lhe tenha sido aplicada a medida proposta – de prisão preventiva – só criará ainda maiores danos e desalento e mesmo maior submissão ao arguido.
10.º No que se refere à considerada inserção social e profissional, considerando também o certificado de registo criminal do arguido, constante de fls. 47 a 56, de onde constam 8 (oito) condenações, várias por crime de condução sem habilitação legal, uma por crime de ofensa à integridade física simples e outra por crime de violência doméstica (a do processo acima referido, contra a mesma ofendida deste inquérito), demonstram que o arguido não respeita as regras mais básicas de convivência social.
11.º É que atendendo ao que aqui nos atém, cumpre destacar que, de facto, se, por um lado, o estatuído no artigo 193.° do Código de Processo Penal, visa, nas palavras de Maia Gonçalves - Código de Processo Penal Anotado, Almedina, 17.ª edição, 2009, pág. 478 -, facultar «uma directiva para a escolha e graduação da medida a aplicar, segundo as exigências do caso concreto», por outro lado, e não se pode olvidar, que a própria previsão, como medida cautelar (medida de coacção) da prisão preventiva, surge ela própria também como corolário da previsão do artigo 28.° da Constituição da República Portuguesa. Por outras palavras, a limitação da privação da liberdade no âmbito de medida de coacção em processo penal, tem de ser reconhecida em pé de igualdade com a segurança dos cidadãos e nestes termos ponderada, como se dispõe no artigo 27.°, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa: «Todos têm direito à liberdade e à segurança».
10.º Pelo exposto e sem mais delongas, entendemos que a decisão recorrida violou os princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade, consagrados no artigo 193.º do Código de Processo Penal e os artigos 202.°, n.º 1, b), por referência à j) do artigo 1.º, e artigo 204.°, c) também do Código de Processo Penal, bem como violou ainda o artigo 27.°, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.”
O arguido respondeu ao recurso, pronunciando-se no sentido da improcedência.
A Senhora Procuradora-geral adjunta emitiu parecer, nada dizendo quanto ao sentido da decisão do recurso. O processo foi aos vistos e teve lugar a conferência

2. A decisão recorrida tem o seguinte teor:
“A detenção do arguido foi legal. Ademais, o capturado foi apresentado em juízo no prazo previsto nos artigos 28º da Constituição da República Portuguesa e 141º do Código de Processo Penal, tendo sido feita a comunicação a que se refere o artigo 58º, número 2, do mesmo diploma, pelo que vai validada a supra aludida detenção.
Tendo em conta, conjugadamente: Auto de notícia de fls. 2 a 7: 1. - Inquirição de (…) melhor id. a fls. 27; 2. Inquirição de (…), melhor id. a fls. 45; 3. C.R.C. do arguido de fls. 47 a 56; 4 - Certidão da sentença condenatória do arguido no processo 1808/08.4TASTB, de fls. 63 a 87; 5. Cópia da decisão de prorrogação do prazo de suspensão da pena suspensa no processo 1808/08.4TASTB, de fls. 14 a 16; 6. declarações do arguido ora prestadas, considera-se fortemente indiciado que:
1) O arguido VMB e MENC mantiveram uma relação amorosa da qual resultou o nascimento de VENR, em 1 de Outubro de 2001, e AFNC, em 2 de Dezembro de 2002.
2) Desde o início da relação amorosa, mais concretamente a partir da primeira gravidez, a referida relação foi pautada, por parte do aqui arguido, por dirigir palavras e expressões ofensivas e por bater com as mãos em diversas partes do corpo de MEC.
3) E, pelos factos relativos ao início da relação a agressões até Novembro de 2008 foi o arguido condenado no âmbito da sentença no processo 1808/08.4TASTB, pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, b) e n.º 2 do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período e sujeita a regime de prova.
4) Na referida sentença, datada de 2 de Junho de 2011, e transitada em julgado, foi ainda dado como provado, que:
- «A ofendida continua a viver na mesma casa com o arguido que ali continua a morar.»;
- «O arguido dirige à ofendida palavras com o sentido de que se a ofendida não é dele, não é de mais ninguém.»;
- «O arguido não aceita que a ofendida contacte com os seus pais e estes com aquela.»;
- «A ofendida vive na dependência económica do arguido.»;
- «A ofendida sente medo do arguido em virtude das expressões e dos actos por este praticados»; e,
- «O arguido mantém também o relacionamento conjugal com a mulher com quem está casado».
Sucede que,
5) Mesmo após a acusação e julgamento acima mencionados, o arguido continuou a manter uma vida dupla, passando uma semana com a aqui ofendida MEC e outra semana com a esposa, até ao Verão do passado ano de 2013.
6) Actualmente, o arguido e MEC vivem ambos na Rua G C, 15, 2.º esq.º, A G, em S.
7) E, em datas não concretamente apuradas mas após 1 de Novembro de 2008 a 27 de Outubro do corrente ano de 2014, o arguido, por várias vezes, desferiu bofetadas na face de MEC, chegando algumas das vezes esta a sangrar do nariz.
8) Também, neste período mencionado, quando o arguido se zangava chegou a partir o recheio da casa.
9) Ainda, em datas não concretamente apuradas, mas no lapso de tempo indicado, quando MEC lhe pedia dinheiro para algo necessário para si ou para casa, o arguido só lho dava se esta permitisse que mantivessem relações de sexo anal, ao que esta acedia por necessidade.
10) Da mesma forma, o arguido logrou manter relações de sexo anal contra a vontade desta, sob pena de, caso não acedesse, ficar trancada em casa.
11) Os referidos filhos menores do casal chegaram, inclusivamente, a assistir à coacção de foro sexual exercida pelo arguido.
12) A guarda de ambos os filhos do casal foi retirada aos progenitores no dia 11 de Julho de 2014, na sequência do processo de promoção e protecção n.º 411/10.3TMST.
13) No dia 4 de Outubro do corrente ano, o arguido insistiu com MEC para manterem relações sexuais, ao que esta, temendo-o, acedeu.
14) No dia seguinte, 5 de Outubro, domingo, a ofendida ia sair, mas o arguido, apercebendo-se disso, impediu-a e trancou-a dentro de casa, após o que exigiu que mantivessem relações sexuais ou não a deixaria sair, tendo MEC acedido.
15) No dia imediatamente após, 6 de Outubro de 2014, MEC mandou uma mensagem ao arguido, pela manhã, dizendo-lhe que já não voltaria para casa, ao que este, momentos depois, apareceu na Escola, local de trabalho daquela, e, ao portão da mesma, agarrou-a por um dos braços e tentou assim levá-la pela força física para um táxi que ali estava perto, conduzido por um amigo do suspeito.
16) O arguido apenas não logrou os seus intentos porquanto MEC agarrou-se à vedação da Escola e começaram a juntar-se alunos a ver o que se passava.
17) No dia em causa, MEC não dormiu em casa, mas no dia seguinte, o arguido disse-lhe que precisava de falar com ela, pois que a assistente social lhe dissera que só teriam os filhos de volta se os pais estivessem juntos, razão que a fez regressar a casa.
18) MEC mantém-se controlada pelo arguido, sujeita também aos seus caprichos, incluindo sexuais, do suspeito e teme-o pois este também lhe diz que se ela não for dele não é de ninguém, que a mata e não tem medo de ir preso.
19) O arguido já sofreu várias condenações em processos-crime, para além da acima mencionada por crimes de condução sem habilitação legal, ofensas à integridade física e dano.
20) Com todas as descritas condutas, o arguido VR quis e conseguiu molestar o corpo e o bem-estar físico de MEC, bem como o seu bem-estar psíquico, quer controlando e condicionando a sua liberdade de movimentação e a sua liberdade sexual, quer batendo nesta, quer dirigindo-lhe expressões ora intimidatórias ora ofensivas da sua honra, consideração, idóneas a humilhá-la e a fazer temer pela sua vida, segurança e integridade física, o que conseguiu.
O arguido agiu sempre livre, deliberada e conscientemente.
Decorre das próprias declarações do arguido a confirmação dos episódios passados nos dias 5 e 6 de Outubro, apesar de o arguido ter relativamente aos mesmos apresentado justificação para que esses ocorressem.
Na verdade, a justificação apresentada pelo arguido coincide com as declarações da própria ofendida (inquirição de fls. 28), quanto ao motivo alegado pelo arguido para a deslocação nesse dia ao local de trabalho da ofendida.
O arguido como decorre dos autos foi já condenado pela prática de crime de igual natureza tendo como vítima a aqui ofendida, por factos ocorridos até Novembro de 2008, tendo sido condenado na pena de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução mediante regime de prova.
Para além do referido crime o arguido foi já condenado, para além do mais, pela prática de crimes cujo bem jurídico é a integridade física da pessoa humana.
Tudo isto leva a crer, como o próprio arguido assumiu, que o mesmo tem uma personalidade impulsiva, com contornos de alguma agressividade latente sempre que contrariado.
Ademais, tal foi uma vez mais admitido e exprimido pelo próprio arguido, no relacionamento que relatou ter com a ofendida e na negação de até à data aceitar o fim do relacionamento.
Apesar do arguido negar as ofensas físicas à ofendida tais afirmações são contraditórias, relativamente às declarações desta e entendemos pouco credíveis atento o contexto, personalidade e situações relatadas com os filhos menores no meio familiar.
Da prova já carreada para os autos conclui-se então que arguido se encontra indiciado de factos que se subsumem ao crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2 do C. Penal.
A personalidade do arguido revela, como bem se refere na promoção que antecede, o perigo concreto e actual da continuação da actividade criminosa (art. 204º, al. c), do CPP).
Contudo, a postura do arguido revelou, neste momento aceitar o fim do relacionamento e alguma pacificação que acaba por ser corroborada pela vítima quando refere nas suas declarações que o denunciado “ que tem estado mais calmo e não a tem agredido” e quando a propósito das relações sexuais refere “ o denunciado já não a obriga pois esta despe-se e espera que acabe o trabalho sem sequer se mexer ou sentir algo(…)”, que o denunciado que apesar de perceber que ela não quer não se demove da sua intenção.
Acresce que, dos factos ora indiciados, não obstante se considerarem graves, em termos de agressões físicas não decorrem nos autos quaisquer lesões com gravidade.
Nos termos do artigo 193º, nº 1,do CPP as medidas de coacção a aplicar em concreto devem ser necessárias e adequadas às exigências cautelares que o caso requerer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas.
A prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação só poderão ser aplicadas quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coacção.
Ora no caso não obstante a condenação anterior o arguido encontra-se a ser acompanhado pela DGRSP, estar inserido social e profissionalmente entendendo-se como adequadas e proporcionais a aplicação das seguintes medidas de coacção ao arguido (artigos 191.º a , 193.º, 196.º e 198.º, 200º, al. d) e 204º, do CPP, e artigo 31º da Lei 112/2009, de 16 de Setembro, com a redacção da Lei 19/2013 de 21 de Fevereiro com a rectificação nº15/2013 de 19 de Março)
- sujeitar o mesmo, para além do TIR já prestado, à medida de coacção de obrigação de apresentações periódicas trissemanais, junto do OPC mais próximo da área da sua residência, devendo o arguido e aquele OPC acordar os dias e as horas da semana, sem prejuízo da actividade profissional, não permanecer na residência indicada nos factos ou na residência onde a ofendida habite ou venha a habitar durante a execução da medida, não contactar com a vítima por qualquer forma.
Em todo o caso, a primeira apresentação periódica deverá ocorrer no prazo máximo de 48horas.”

3. Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, a questão a decidir consiste na avaliação da suficiência do estatuto processual definido ao arguido como garante das finalidades das medidas de coacção.
Antes de avançar, recorde-se o quadro legal de referência e a interpretação que dele fazemos.
Decorre do art. 191º, nº1 do CPP que as medidas de coacção são medidas intraprocessuais, consistentes em modos de limitação da liberdade pessoal, com natureza instrumental relativamente às finalidades intrínsecas do processo penal. “São meios processuais de limitação de liberdade pessoal ou patrimonial (…) que têm por fim acautelar a eficácia do procedimento, quer quanto ao seu desenvolvimento, quer quanto à execução das decisões condenatórias” (Germano M. Silva, Curso de Processo Penal, II, p. 232).
Visam satisfazer exigências cautelares exclusivamente processuais – de garantia do bom andamento do processo e do efeito útil da decisão – e que resultem da concreta verificação dos perigos previstos nas três alíneas do art. 204º do CPP, sendo de considerar ilegítima qualquer outra finalidade, de natureza substantiva, retributiva, preventiva, ou mesmo de protecção do arguido (contra reacções populares).
Como condições gerais de aplicação exige-se, formalmente, a prévia constituição como arguido (art. 192º, nº1) e a existência de um processo criminal já instaurado; substancialmente, a verificação de um fumus comissi delicti, ou seja, um juízo de indiciação da prática de crime e a probabilidade de aplicação de uma pena (arts 192º,2; 193º,197º…).
Por último, do princípio da presunção de inocência (afirmado nos art. 11º da D.U.D.H., art. 6º, nº2 da C.E.D.H., art. 14º, nº 2 do P.I.D.C.P. e art. 32º, nº2 da C.R.P.) resulta que seja sempre aplicada a medida de coacção menos gravosa de entre todas as admissíveis, com respeito pelos princípios da necessidade, adequação, proporcionalidade (art. 193º, nº1 do CPP) e intervenção mínima (num critério de concordância prática). Os princípios da adequação e da proporcionalidade das medidas serão “critérios de escolha das medidas possíveis” (Paulo de Sousa Mendes, Sumários de Direito Processual Penal, 2008/9, p. 124).
Assim, exige-se uma adequação qualitativa (aptidão à realização dos fins cautelares visados) e quantitativa (quanto à sua duração) da medida, a qual deve ser ainda proporcional à gravidade do crime e à sanção que previsivelmente será aplicada ao arguido. Esta proporcionalidade obrigará à antecipação de um juízo de previsão quanto à sanção a proferir na decisão final.
De afirmação ope legis, ainda os princípios da precariedade – traduzido na consagração de prazos legais de duração máxima que obstam à transposição da barreira do comunitariamente suportável – e da judicialização – todas as medidas, à excepção do T.I.R., são aplicáveis exclusivamente por um juiz (arts 194º, 268, nº1-b do CPP).
No que respeita especificamente à medida de coacção prisão preventiva, reafirma-se o princípio da subsidiariedade (da prisão preventiva e da obrigação de permanência na habitação - art. 193º, nº2: “…só podem ser aplicadas quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coacção”).
Por último, e já no que toca ao tipo de crime “violência doméstica” (crime do artº 152º nºs 1 e 2 do CP, punível com prisão de máximo de cinco anos), cumpre destacar que este se enquadra na definição de "criminalidade violenta" contida na al. j) do art. 1º do CPP. Assim, a prisão preventiva surge como medida de coacção legalmente admissível, uma vez que o art. 202º nº 1/b) do CPP prevê que “ se considerar inadequadas ou insuficientes, no caso, as medidas referidas nos artigos anteriores, o juiz pode impor ao arguido a prisão preventiva quando houver fortes indícios de prática de crime doloso que corresponda a criminalidade”.
Passando à apreciação da concreta questão suscitada em recurso, começa por se consignar a correcção do juízo de indiciação sobre a factualidade a subsumir juridicamente, consignação a que se procede apesar de, nesta parte, a decisão não ter sido objecto de impugnação. Consigna-se também a correcção do enquadramento jurídico dos factos quanto ao tipo de crime indiciado.
Existem, assim, fortes indícios da prática, pelo arguido, como autor, de (pelo menos) um crime do art. 152º, nºs 1/a)/c) e 2 do CP. E os factos fortemente indiciados são os que constam do despacho recorrido e se encontram supra transcritos, em 2..
Cumpre, então, proceder a uma (re)avaliação dos pericula libertatis, fazendo-o a pedido do MP que, em recurso, pugna pela aplicação de prisão preventiva, assente essencialmente num perigo de continuação da actividade criminosa.
Já em audição prévia à prolação do despacho judicial, se pronunciara este magistrado pela prisão preventiva, considerando existir perigo de continuação da actividade criminosa e perigo de perturbação da prova.
Adiantamos que o despacho recorrido, no ponto impugnado, é efectivamente passível de censura.
A decisão falha na apreciação que faz dos factos que interessam não já especificamente ao juízo de subsunção em determinado tipo de crime, mas dos factos que relevam na avaliação das exigências cautelares - concretamente, do perigo de continuação de actividade criminosa e de perturbação da prova.
O perigo de continuação da actividade criminosa encontra-se previsto na al. c) do art. 204º do CPP. Esta alínea suscitou problemas de compatibilização com a natureza cautelar das medidas de coacção, afirmada no art. 191º, nº1 do CPP.
Na verdade, pelo menos até 2007, as medidas de coacção na situação prevista nesta alínea, pareciam extravasar as finalidades estritamente processuais, assumindo formas de protecção do próprio arguido e de defesa da sociedade.
Neste sentido se pronunciara Maia Costa: “A utilização da prisão preventiva como forma de impedir a continuação da actividade criminosa constitui claramente uma medida de defesa social, uma medida de segurança, mais até do que antecipação de pena, o que viola frontalmente diversos princípios constitucionais, entre os quais a presunção de inocência. Por outro lado, a prisão preventiva como meio de salvaguarda da ordem e da tranquilidade públicas serve fins de prevenção geral (a salvaguarda das famosas expectativas comunitárias), mas não é evidentemente uma medida cautelar do processo, violando também o princípio da presunção de inocência” (RMP Out/Dez 2002, nº 92, 74 e 75).
No entanto, o tribunal constitucional sempre considerou não inconstitucional o art. 204º do CPP (v.g. Ac. TC 720/97 de 23/12).
A reforma de 2007 (Lei nº 48/2007) retirou “o cunho estritamente objectivo ao requisito geral” (exposição de motivos da Proposta de Lei) enfatizando-se a preocupação de compatibilização desta al.c) com a natureza estritamente processual prevista no art. 191º e com o princípio da presunção de inocência.
Daí que a aplicação da medida de coacção não deva servir para acautelar a prática de qualquer crime pelo arguido, mas sim impedir a continuação da actividade criminosa pela qual o arguido está indiciado (assim, Germano Marques da Silva Curso de Processo Penal, II, p. 246/7), ou seja, deve servir para prevenir apenas comportamentos que sejam prolongamento da actividade já indiciada.
No caso presente, os factos indiciados (e é sempre de um juízo de indiciação que se trata e como tal devem ser entendidas todas as afirmações aqui efectuadas no âmbito da factualidade) assumem uma gravidade extrema.
Eles prolongam-se por um período de tempo muito longo.
Nesse período (longo) de tempo, ocorreram por via de uma prática reiterada e intensa (elementos que o tipo de crime nem exige cumulativamente, mas que, no caso, se verificaram conjuntamente).
Incluíram maus tratos físicos, maus tratos psíquicos, privações de liberdade e ofensas sexuais (quando bastaria um tipo de ofensas para realizar logo o crime).
Durante seis anos (contabilizando apenas o período de tempo em que se desenrolaram os factos em apreciação nos autos e retirados os factos anteriores que já foram objecto de condenação), não podem ter deixado de causar lesões graves na pessoa da vítima, que se sentirá necessariamente fragilizada e diminuída enquanto pessoa, como o demonstra o próprio comportamento dela, transcrito no despacho.
Na verdade, num quadro global de “vida em relação” como o presente (descrito nos factos indiciados), resulta incompreensível a afirmação feita então no despacho de que, “dos factos ora indiciados, não obstante se considerarem graves, em termos de agressões físicas não decorrem nos autos quaisquer lesões com gravidade”. Esta asserção final pode até ser verdadeira, mas a existência de lesões físicas graves ou a ausência delas, no presente contexto (de agressões físicas, psíquicas e sexuais, todas elas duradoras, reiteradas e intensas), afigura-se de diminuta valia na avaliação dos pericula libertatis.
Incompreensível é também a constatação feita no despacho sobre a existência de “alguma pacificação que acaba por ser corroborada pela vítima quando refere nas suas declarações que o denunciado “que tem estado mais calmo e não a tem agredido” e quando a propósito das relações sexuais refere “o denunciado já não a obriga pois esta despe-se e espera que acabe o trabalho sem sequer se mexer ou sentir algo (…)”, que o denunciado que apesar de perceber que ela não quer não se demove da sua intenção.”
Equiparar (no presente contexto, repete-se) uma eventual ausência de reacção por parte da vítima às agressões sexuais do agente (ausência de reacção em sentido activo), equiparar essa ausência de reacção visível a uma “pacificação” na relação entre agressor e agredida é um manifesto erro de percepção da realidade que se aprecia.
Das declarações da vítima, de que “o denunciado já não a obriga pois esta despe-se e espera que acabe o trabalho sem sequer se mexer ou sentir algo (…)”, que o denunciado que apesar de perceber que ela não quer não se demove da sua intenção”, nada se retira no sentido da pretensa atenuação das exigências cautelares.
Por último, injustificada é também a valoração, feita no despacho, da “postura” do arguido. Referimo-nos ao segmento final da asserção de que “a personalidade do arguido revela, como bem se refere na promoção que antecede, o perigo concreto e actual da continuação da actividade criminosa (art. 204º, al. c), do CPP). Contudo, a postura do arguido revelou, neste momento aceitar o fim do relacionamento“.
O “fim de um relacionamento” não significa o “fim de um comportamento agressor”. A actualidade da relação conjugal ou paraconjugal nem sequer é, por isso mesmo, elemento do tipo de crime (“…mantenha ou tenha mantido…”). A necessidade de protecção perdura sim (e intensificando-se até) nas situações de ruptura do casamento ou da relação.
Por último, existe ainda, em concreto, um perigo para a conservação da prova.
Na verdade, dos factos em apreciação retira-se que à continuação da actividade criminosa associar-se-á uma intimidação da vítima, já suficientemente fragilizada e diminuída enquanto “pessoa”.
Esta vítima ocupará, necessariamente, no processo, o papel de prova importante ou principal, à semelhança do que sucede noutros processos que tratam de criminalidade em contexto familiar.
Os crimes de violência doméstica raramente são perpetrados sob o olhar de terceiros, sendo prática comum a situação de isolamento da vítima provocada pelo próprio agressor. Daí que esta pessoa-testemunha surja naturalmente no processo como a principal, ou mesmo a única, fonte de conhecimento.
Em face do exposto, e estando ainda os factos (graves) em apreciação (que decorreram reiterada e intensamente ao longo de seis anos) temporalmente situados no decurso de um período de suspensão de pena de prisão aplicada ao arguido por crime semelhante e na pessoa da mesma vítima, ou seja, estando suficientemente demonstrado que a conduta agressora do arguido na pessoa da vítima se prolonga (e mantém) há cerca de catorze anos, impõe-se concluir que o perigo de continuação da actividade criminosa existe em grau elevadíssimo, coexistindo ainda com um perigo para a conservação da prova.
Neste contexto, qualquer medida de coação que não a prisão preventiva revelar-se-ia insuficiente para garantir as finalidades cautelares diagnosticadas no caso. A prisão preventiva mostra-se ainda proporcional à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente podem vir a ser aplicadas.

3. Em face do exposto, concede-se provimento ao recurso e revoga-se o despacho recorrido na parte em que fixou o estatuto processual do arguido, determinando-se agora que este aguarde ulteriores termos do processo em prisão preventiva.
Sem custas.
Évora, 03.03.2014
(Ana Maria Barata de Brito)
(Maria Leonor Vasconcelos Esteves)