Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
12/19.0GBGLG.E1
Relator: FÁTIMA BERNARDES
Descritores: HOMICÍDIO QUALIFICADO
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
DETENÇÃO ILEGAL DE ARMA
DUPLA VALORAÇÃO
NE BIS IN IDEM
Data do Acordão: 04/28/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO EM PARTE
Sumário:
I – O fundamento da agravação do crime de violência doméstica, que se refere à prática dos factos no «domicílio comum», prevista no n.º 2 do artigo 152º do C.P., é totalmente distinto do fundamento da qualificação do homicídio prevista na al. b) do n.º 2 do artigo 132º do Código Penal, sendo que a qualidade do sujeito passivo prevista nesta última disposição legal, qual seja, na parte que, tem aplicação no caso concreto, pessoa com quem o agente tenha mantido «uma relação análoga à dos cônjuges» constitui elemento típico do crime de violência doméstica, que leva a que seja caraterizado como um crime específico.

II - A proibição da dupla valoração apenas ocorre quando as circunstâncias agravantes correspondam a uma mesma dimensão da ilicitude, ou da culpa.

III - Sendo distintos os atos que materializam o crime de homicídio, na forma consumada, dos atos que integram a prática do crime de violência doméstica, perpetrados pelo arguido contra a vítima, descortinando-se diferentes sentidos de ilicitude, com pluralidade de bens jurídicos violados e pluralidade de resoluções criminosas, há concurso efetivo entre o crime de violência doméstica e o crime de homicídio.

IV - E, nessa situação, a condenação do arguido pelo crime de violência doméstica, contra a pessoa com quem o agente mantenha ou tenha mantido «uma relação análoga à dos cônjuges» (al. b) do n.º 1 do artigo 152º do CP), não obsta a que, relativamente ao crime de homicídio praticado pelo agente contra a mesma pessoa, possa funcionar a circunstância qualificativa do homicídio, prevista na al. b) do n.º 2 do artigo 132º do CP.

V - Estamos perante atuações distintas, empreendidas em execução de resoluções criminosas diversas e que violam bens jurídicos distintos, pelo que, a circunstância qualificativa prevista na al. b) do n.º 2 do artigo 132º do CP, pode ser aplicada existindo relação de concurso efetivo entre o crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152º, n.º 1, al. a), do CP (mesmo que agravado, nos termos do n.º 2 do artigo 152º) e o crime de homicídio.

VI - Não existe, assim, qualquer impedimento legal ou imperativo constitucional que fundamente o afastamento do funcionamento da circunstância qualificativa prevista na al. b) do n.º 2 do artigo 132º do Código Penal, existindo relação de concurso efetivo entre o crime de homicídio e o crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152º, n.º 1, al. a), do CP.

VII – Não ocorre violação do princípio do “ne bis in idem” pelo facto do tribunal recorrido ter valorado a circunstância agravante, prevista no artigo 86º, n.º 3, da Lei nº 5/2006, de 23 de fevereiro, em relação a cada um dos dois crimes de homicídio, um na forma consumada e outro na forma tentada, perpetrados pelo arguido contra duas vítimas, com utilização da mesma arma, sendo para tanto, irrelevante que os dois crimes hajam sido cometidos nas mesmas circunstâncias espácio temporais e que exista unidade da ação, pois que, o que releva, neste domínio, estando em causa a violação de bens jurídicos pessoais e individuais (concretamente o direito à vida), é o número de vitimas da atuação do arguido.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Criminal, do Tribunal da Relação de Évora:

1. RELATÓRIO
1.1. Neste processo comum, com intervenção do Tribunal Coletivo, n.º 12/19.0GBGLG, do Tribunal Judicial da Comarca de Comarca de Santarém – Juízo Central Criminal de Santarém – Juiz 2, foi submetido a julgamento o arguido RR, melhor identificado nos autos, acusado da prática, em autoria material e em concurso real de: um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131º e 132º, n.ºs 1 e 2, alíneas b), e), i) e j), todos do Código Penal, agravado nos termos do artigo 86º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro; um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, alínea a), do Código Penal; um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 22º, 23º, 131º e 132º, n.ºs 1 e 2, alíneas e), i) e j), todos do Código Penal, agravado nos termos do artigo 86º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro e de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86º, n.º 1, alíneas c) e d) e n.º 2 da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro.

1.2. No decurso da audiência de discussão e julgamento, finda a produção da prova, foi comunicada ao arguido, a alteração não substancial dos factos descritos na acusação, ao abrigo do disposto no artigo 358º, n.º 1, do CPP, conforme consta da ata da audiência referente à sessão de 26/11/2019, inserta a fls. 769 a 774 dos autos, nada tendo sido requerido pelo arguido.

1.3. Nessa mesma data (26/11/2019), foi proferido acórdão, com o seguinte dispositivo:
«(…) decide o Tribunal:

a) Absolver RR da prática do crime de homicídio qualificado previsto e punido pelo artigo 132.º, n.º 1 e n.º 2, alíneas e), i) e j), todos do Código Penal e do crime de homicídio qualificado na forma tentada previsto e punido pelos artigos 22.º, 23.º, 132.º, n.º 1 e n.º 2, alíneas e), i) e j), todos do Código Penal;

b) Condenar RR da prática de um crime de homicídio qualificado, na forma consumada, previsto e punido pelos artigos 131.º e 132.º, n.º 1 e n.º 2, alínea a), do Código Penal, agravado nos termos do artigo 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de 19 (dezanove) anos de prisão; de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, alínea a), do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão; de um crime de homicídio simples, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 22.º, 23.º e131.º do Código Penal, agravado nos termos do artigo 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de 9 (nove) anos de prisão; e de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea c) e d) e n.º 2 da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de 2 (dois) anos de prisão; e, em cúmulo jurídico, na pena única de 22 (vinte e dois) anos de prisão;

c) Julgar parcialmente procedente, por provado, o pedido civil deduzido nestes autos por AA, GG e DD e, em consequência, condenar RR a pagar aos mesmos a quantia de €150.500,00 (cento e cinquenta mil e quinhentos euros), acrescida de juros de mora, à taxa de 4% ao ano, a contar da data da data da presente decisão e até integral pagamento, absolvendo-o do demais peticionado;

d) Julgar totalmente procedente, por provado, o pedido civil deduzido nestes autos pelo Centro Hospitalar do Médio Tejo, E.P.E. e, em consequência, condenar RR a pagar ao mesmo a quantia de €99,71 (noventa e nove euros e setenta e um cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa de 4% ao ano, a contar da data da data da notificação do pedido e até integral pagamento;

e) Condenar RR pagar as custas criminais, fixando em 3UC a taxa de justiça;

f) Condenar demandantes AA, GG e DD e o demandado no pagamento das custas do pedido civil, na proporção do decaimento;
(…).»
1.4. Inconformado com o assim decidido, recorreu o arguido para este Tribunal da Relação, extraindo da motivação de recurso apresentada as conclusões que seguidamente se transcrevem:

«1 O recorrente foi condenado pela “prática de um crime de homicídio qualificado, na forma consumada, p. e p. pelos artigos 131º e 132º, nº 1 e nº 2, alínea a), do Código Penal, agravado nos termos do artigo 86º, nº 3, da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de 19 (dezanove) anos de prisão; de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nº 1, alínea b) e nº 2, alínea a), do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão; de um crime de homicídio simples, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 22º, 23º e 131º do Código Penal, agravado nos termos do artigo 86º, nº 3, da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de 9 (nove) anos de prisão; e de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86º, nº 1, alínea c) e d) e nº 2 da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de 2 (dois) anos de prisão; e, em cúmulo jurídico, na pena única de 22 (vinte e dois) anos de prisão.”. (cf. Acórdão, IV – DISPOSITIVO, alínea b) – pág. 86).

2 – Os crimes de homicídio qualificado, na forma consumada na pessoa de BBe de homicídio simples, na forma tentada na pessoa de FF, foram ambos agravadosnos termos do artigo 86º, nº 3, da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro”.

Estamos perante agravações correspondentes a uma mesma dimensão da ilicitude.

3 – Nos autos, os factos praticados pelo arguido (falamos dos homicídios) ocorreram no mesmo dia e em actuação indubitavelmente “sequencial” ou “imediata”. Sendo que no descrito contexto, a íntima interligação dos factos praticados é de tal sorte notória que do ponto de vista dos actos de execução, aqueles quase se poderiam reconduzir a um só.

4 – A tal obsta apenas, a autonomia e diferenciação do objecto tutelado pela norma incriminatória por via da qual se pondera: existirem dois ofendidos distintos.

5 – Não há pois lugar para a concluir quanto à “tendência” ou “carreira” criminosa do arguido e tão – somente, pelo acto ocasional que ofendeu em simultâneo, o mesmo bem jurídico.

6 – A proibição da dupla agravação existe quando as agravações correspondem a uma mesma dimensão da ilicitude ou da culpa, em violação do principio ne bis in idem.

7 – Como é sabido, a agravação resultante do n.º 3 do art. 86.° da Lei 5/2006, tutela a especial ilicitude do crime, em função do meio usado para a sua prática.

8 – Por conseguinte, a agravação em apreço feita pelo tribunal a quo viola o principio ne bis in idem previsto no art. 29º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa (CRP), se e quando, como é o caso, for duplamente valorada face à mesma “unidade fáctica”, independentemente de esta se decompor em tantos crimes quantos os ofendidos.

9 – Nesta perspetiva, o artigo 86º, nº 3, da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, deve ser declarado inconstitucional, quando aplicado – como o fez o acórdão recorrido – , numa relação de concurso efetivo da agravação nele prevista aos crimes que, ofendendo o mesmo bem jurídico, se reconduzem à mesma “unidade fáctica”, sendo o concurso efetivo dos crimes-base apenas consequência do número de ofendidos, pois significa uma desproporção punitiva para além do consentido pelas regras da tipicidade e da necessidade penal previstas nos artigos 1º, n.º 1, 18º n.º 2, e 29º n.º 1 da Constituição.

10 – O princípio da proporcionalidade das penas, em particular na sua vertente de necessidade de pena, é manifestamente violado pela dupla punição acima referida: com efeito, o acórdão recorrido entendeu que o recorrente cometeu efetivamente duas violações da norma ínsita no cit. artigo 86º, nº 3, da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, quando, afinal, a especial ilicitude do crime, em função do meio usado para a sua prática, já ficou esgotada com a sua agregação a um dos crimes de homicídio por que o arguido foi efetivamente condenado, uma vez que estamos, como já se disse, perante a mesma “unidade fáctica”, e não perante crimes de homicídio com resoluções autónoma e/ou uso de armas diferentes e/ou momentos temporais e espaciais diferentes.

11 – Nos autos, o limite máximo da pena a ponderar é de 25 anos, sendo de 19 anos de prisão o seu limite mínimo, sendo que, na determinação em concreto da pena única, pondera-se, desde logo, que o princípio da proibição da dupla valoração e ainda que “na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará sobretudo a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou mesmo a uma “carreira” criminosa), ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade, só no primeiro caso sendo cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante”

12 - Ora, considerando as Conclusões 3 a 5 supra, e tendo presente o que nos pontos 66 a 69, 77 a 79, 84 e 86 dos FACTOS PROVADOS é referido e aqui se dá por reproduzido, conjugados com a sua idade (63 anos, cf. I- RELATÓRIO), e, bem como, a reação do arguido quando soube que a ofendida BB tinha morrido - “perguntando pela sua ex-companheira, …o arguido chorou quando esta testemunha (PM) lhe confirmou que esta já estaria morta” (cf. MOTIVAÇÃO DE FACTO, págs. 23 e 24),

13 – Tais factos relativos à personalidade do arguido, afigura-se que de alguma forma inculcam esperanças quanto ao prognóstico favorável, em matéria de prevenção especial positiva.

14 – É manifesto, pois, quanto a nós, o erro na aplicação do direito aos factos, tendo o tribunal a quo violado o disposto nos nºs 1 e 2 do artº 77º do C. Penal.

15 – Por não ter o Tribunal “a quo” atendido, com todo o respeito, na determinação da medida da pena, às circunstâncias que depõem a favor do aqui Recorrente, apesar de a elas fazer referência, a pena aplicada de 22 anos de prisão é excessiva.

16 – Se assim não se entender, e por mera cautela de patrocínio, sempre se dirá que atentos os factos expostos e dados por provados, a medida da pena não só se mostra inadequada como manifestamente excessiva ao condenar o Arguido numa pena única de 22 anos de prisão, levando o fim punitivo muito além do que é justo e sem que a necessidade de prevenção a tanto obrigue (arts. 70º e 71º do CP), sem esquecer a atenuação.

17 – Pelo que deverá a pena a aplicar ao arguido ser balizada em função da culpa e das necessidades de prevenção, reduzindo a pena junto dos seus limites mínimos, dado o Arguido não ter sido condenado nem anteriormente nem posteriormente por qualquer tipo de crime.

18 – Deveria o Tribunal “a quo” ter em consideração na determinação da medida concreta da pena todas as circunstâncias e que depuseram a favor do Arguido, (apesar de referenciadas), mas não sopesadas, como:

A) - O facto do arguido não ter antecedentes criminais;
B) - Não foi tido em consideração a idade do arguido e o tempo de vida que lhe resta;
C) - A sua condição humilde;
D) - A sua baixa cultura;
E) - Não teve em consideração o Recorrente sempre estar inserido social, familiar e profissionalmente;
F) - A sua frágil condição económica;
G) - O ser bom pai para as suas filhas (...);
H) - Trabalhador,
I) - Não ter qualquer plano gizado, tendo agido por ciúme passional.

19 – Mostra-se a pena de 22 anos de prisão desajustada e excessiva, devendo a pena ser proporcional à gravidade dos factos e à perigosidade do Arguido, pois a aplicação de uma pena visa, além da proteção de bens jurídicos, a “reintegração do agente na sociedade”art. 40º, n.º 1, do Código Penal.

20 – A fragilidade psicológica que o arguido patenteia, apesar de beneficiar de apoio psicológico no estabelecimento prisional, dificilmente será ultrapassada pela sua inclusão em meio prisional, por um período de 22 anos, podendo, aliás, agravar-se significativamente.

21 – O arguido é primário, tem 63 anos de idade, devendo in casu de efectuar um juízo de prognose favorável, centrado na pessoa daquele e no seu comportamento futuro.

22 – O Tribunal “a quo” ao ter interpretado o nºs 1, alíneas c) e d), e 2, do art. 86º da Lei nº 5/2006, de 23.02, da forma que interpretou, violou entre o mais a letra da Lei, a organização do nosso sistema Penal e a “ratio legis” do legislador quando estatuiu tais normas.

23 – A pena de 2 anos de prisão aplicada pelo Tribunal " a quo" ao arguido, pela prática de um crime de detenção de arma proibida, vai ao arrepio de toda a jurisprudência que faz corrente nos nossos tribunais, na verdade é doutrina e jurisprudência dominante que a pena de prisão efectiva, nestes casos, não atinge a finalidade ressocializadora de uma filosofia criminal eficaz e não traduz o pensamento legislativo do Código Penal de reagir contra penas detentivas da liberdade, sempre que os fins das mesmas possam atingir-se por outra via, aliás conforme prescreve o art. 70º do Código Penal;

24 – O arguido, inserido no meio social e com um comportamento irrepreensível após os factos, a pena a que foi condenado o recorrente é manifestamente desajustada, exagerada e desadequada, por não se mostrar, como não se mostra, a necessidade de prevenção especial, no caso concreto.

25 – O Tribunal “a quo” ao optar por aplicar uma pena detentiva da liberdade, em detrimento de uma pena de multa, violou, entre o mais os arts. 50º e 70º do C.P.

26 – O arguido não se conforma com a subsunção da matéria de facto ao direito discordando ainda, como discorda, da pena aplicada ao recorrente de 19 anos de prisão pelo homicídio qualificado consumado na pessoa de BB.

27 – A pena de 19 anos de prisão aplicada pelo tribunal "a quo" ao arguido, pela prática do referido crime de homicídio qualificado, vai ao arrepio de toda a jurisprudência que faz corrente nos nossos tribunais, na verdade é doutrina e jurisprudência dominante que em casos semelhantes e até homicídios com contornos brutais e animalescos, a pena de prisão efectiva, nestes casos, situa-se entre 15 e 16 anos.

28 – O Arguido não era, como não é, um “bandido armado”, um delinquente com cadastro, um psicopata, um serial killer e não pertence a uma organização terrorista. Pelo que a pena aplicada pelo Tribunal “a quo” é de uma extrema violência, impedindo que o Arguido, com 63 anos de idade, tenha uma nova oportunidade de viver em sociedade livremente.

29 – O exposto nas antecedentes Conclusões 26 a 28 é igualmente válido para a pena de 22 anos de prisão aplicada em cúmulo.

30 – O douto acórdão recorrido deu como provado que o arguido praticou os crimes de crime de violência doméstica (artº 152º/1 –b) do Código Penal), na sua forma qualificada (pelo nº 2), e de homicídio qualificado na forma consumada (p.e p. pelos artºs 131º e 132º/1-a), do Código Penal).

31 – No caso concreto, considerando o disposto no art. 152º, nº 1, al. b) e nº 2, do CP, e atentos os pontos 1, 3, 4 e 7 a 14 dos FACTOS PROVADOS, verifica-se que o arguido infligiu à ofendida:

A – Por duas vezes, maus tratos físicos de menor gravidade (numa vez apertou-lhe os braços, noutra deu-lhe estalos e puxou-a pelos cabelos), que de per si ou conjugados nem sequer configuram violência doméstica, tão-só meras ofensas à integridade física;

B – E, maus tratos psíquicos, recortados em dois segmentos, a saber

b.1. injúrias verbais entre 2010 e 2012, no domicílio comum do casal (que já era o da ofendida);

b.2. Injúrias via SMS e verbais, telefonemas e perseguição da ofendida nos sítios que esta frequentava, já após o término do relacionamento entre ambos.

32 – Diz o acórdão que entre 2010 e 2012, durante o tempo que viveram juntos, no domicílio comum do casal, o arguido, em várias ocasiões, o arguido apelidou a ofendida de “cabra”, “vaca” e “puta” e acusou-a de “ter muitos amantes” (cf. ponto 3 dos FACTOS PROVADOS).

33 – Não se vislumbra minimamente em que prova é que o tribunal sustenta tal asserção de que o arguido apelidou a ofendida com tais epítetos ofensivos, pois, designadamente, a ofendida BB não deixou qualquer registo de que o arguido tivesse proferido tais expressões, designadamente não fez qualquer queixa crime relativamente a tais alegadas ofensas verbais. Pelo contrário, após alguns meses de separação, reatou o relacionamento com o arguido, facto em princípio incompatível com a gravidade das ofensas.

34 – Na MOTIVAÇÂO DE FACTO (cf. pág. 17) o tribunal diz que “o arguido prestou declarações, confessando...que dirigiu à vítima as expressões injuriosas imputadas ao mesmo no libelo acusatório...”, o que NÃO CORRESPONDE MÍNIMAMENTE ÀS DECLARAÇÕES PRESTADAS PELO ARGUIDO EM AUDIÊNCIA

35 – O Arguido Recorrente disse o seguinte (transcrito a itálico) em audiência de julgamento:

- 18.35 m: “Eu estava-lhe a perguntar se nessas discussões que os senhores tinham ...o senhor lhe chamava “cabra”, “puta”...” (Mª Juiz Presidente)
- 18.48 m: (aqui Recorrente) “…Eu nunca lhe chamava nem “cabra” nem “puta”, eu chamava-lhe “mentirosa” e “ranhosa”
- 18.55 m: (aqui Recorrente) “…Os filhos nem mereciam a mãe que tinham, nem o lixo iam despejar...”
- 20.47 m: (aqui Recorrente) “…Ela quando se exaltava comigo chamava-me “cabrãozito”, “és um cabrãozito...muita vez me chamou “cabrão
- 20.57 m: (aqui Recorrente) “…Eu gostava dela, acha que eu le ia dizer isso...”
- 28.40 m: (aqui Recorrente) “…Uma caçadeira a esta distância mata qualquer pessoa...mas a maneira como ele ia à frente, aí uns três ou quatro metros dela quando a empurrou, eu desviei o tiro para o apanhar nas pernas, nem era para o matar a ele, era mesmo nas pernas, que era para ele...porque ele tinha tado a gozar comigo...quando ele ia para fugir eu disparei o outro tiro sem querer, aquilo é de monogatilho, foi sem querer, eu nunca tive intenções de a matar, se eu a quisesse matar, já a tinha matado há mais tempo
- 29.23 m: (aqui Recorrente) “…Se eu me pudesse arrepender quinhentas vezes aquilo que fiz, eu não tinha ideias de matar, eu não a queria matar...eu gostava dela, eu ia matá-la?!...”

36 – Na MOTIVAÇÃO DE FACTO (cf. pág. 17) o tribunal diz ainda que “o assistente AA, filho de BB, confirmou as expressões proferidas (QUAIS? QUANDO? ONDE?insuficiência manifesta da fundamentação) ... que numa ocasião o arguido começou a gritar e a insultar a sua mãe (não se recordando...quais as palavras concretamente proferidas), pelo que...neste contexto o agrediu e expulsou de casa...”.

37 – O assistente AA, perante insultos que nem se lembra quais são agride e expulsa de casa o aqui recorrente, no entanto ouve este chamar à mãe “cabra” e “puta” – afinal, confirmou as expressões proferidas – e nada faz?! Trata-se de um depoimento sem credibilidade.

38 – Além do erro notório na apreciação da prova (art. 410º, nº 2, al. c), do CPP), é manifesto que o tribunal, ao valorar este depoimento, fê-lo à revelia das regras da experiência e da psicologia, violando assim o art. 127º do CPP.

39 – De outra banda, verifica-se que o tribunal não analisou criteriosamente todos os anacronismos e incongruências do depoimento supra assinalados, não se vislumbrando que o tenha feito em sede de fundamentação, nem mesmo concisamente – art. 374º, nº 2, do CPP – daí que o douto Acórdão é nulo, porquanto deixou de pronunciar-se sobre questões que devia apreciar, o que configura nulidade de sentença, que se vem arguir neste recurso – art. 379º, nºs 1, alínea c), e 2, do CPP.

40 – E do supra exposto, afigura-se que a matéria de facto apurada em audiência de julgamento não foi adequada e suficiente à imputação do crime de violência doméstica qualificada, cujos elementos objectivos e subjectivos não ficaram de todo preenchidos.

41 – É neste quadro gravoso, em que o Acórdão diz que o arguido confessou factos que não confessou, antes os negou rotunda e peremptoriamente, e que se valoriza um depoimento no mínimo contraditório e insuficiente, que o Tribunal “a quo” encontrou o motivo para qualificar o crime de violência doméstica (e indiretamente, por efeito repercutor, também o de homicídio) praticado (s) e dar como provada a matéria vertida no ponto 3 dos Factos Provados.

42 – O Tribunal “a quo” não pode dessa forma inverter factos conhecidos sobre os quais recaiu prova, pois nessa fase já está a passar de possíveis presunções naturais sobre as quais quis eventuamente alicerçar a sua convicção, para o domínio do imaginário; esta manifesta insuficiência da matéria de facto, é fundamento do presente recurso nos termos da alínea a) do nº 2 do artigo 410º do C.P.P..

43 – Impunha-se, face à prova produzida, a aplicação do princípio “in dúbio pro reo” – uma das vertentes que o princípio constitucional da presunção de inocência (art. 32º, nº 2, 1ª parte, da CRP) contempla –, uma vez que não é um depoimento contraditório e despido de lógica intrínseca, à luz das regras da experiência e da psicologia, que pode alicerçar a convicção de um Tribunal e, não tem factos que lhe permitam sustentar a matéria dada como provada sob o ponto 3 dos Factos Provados.

44 – Do supra exposto, deflui, por outro lado, que não se provando (ou havendo dúvidas suficientes sobre) as injúrias verbais entre 2010 e 2012, no domicílio comum do casal (que já era o da ofendida), o arguido apenas pode ser condenado pelo crime de violência doméstica simples.

45 – Afigura-se excessiva a dupla valoração da conjugalidade, quer dizer, a violência doméstica é qualificada por parte das alegadas injúrias terem sido proferidas no domicílio comum do casal e, depois, também o homicídio é qualificado por via da conjugalidade (art. 132º, nº 2, alínea a), do Código Penal).

46 – Desde logo, porque que o princípio da proibição da dupla valoração impede que se considerem novamente como factores agravantes ou atenuantes, as circunstâncias que anteriormente alcançaram o mesmo desiderato na fixação das penas parcelares.

47 – Temos para nós que a norma ínsita na alínea a) do nº 2 do art. 132º do Código Penal, só pode funcionar não estando em concurso real com o crime de violência doméstica, mormente quando qualificado.

48 – Não parece curial que tendo o factor agravante “conjugalidade” sido levado à exaustão no crime de violência doméstica qualificado – como é o caso dos autos – possa agora servir novamente para qualificar o crime de homicídio.

49 – A existência do quadro de especial censurabilidade e perversidade imposto pelo nº 1 do artº 132º do CP, que flui na circunstância “padrão” contida na alínea a) do seu nº 2, a existir, já foi considerada na qualificação do crime de violência doméstica. O acórdão recorrido faz, pois errónea interpretação do artigo 71 °, n.ºs 1 e 2, "in proemium" do C. Penal.

50 – Nesta perspetiva, o art. 132º, nº 2, alínea a), do Código Penal, deve ser declarado inconstitucional, quando entendido e aplicado – como o fez o acórdão recorrido – , numa relação de concurso efetivo da agravação nele prevista com o crime de violência doméstica, mormente qualificado, pois pese embora este crime e o o homicídio tutelem bens jurídicos diferentes, se naquele o fator agravante “conjugalidade” já foi exaurido, a sua repescagem para efeitos de qualificar o crime de homicídio, significa uma desproporção punitiva para além do consentido pelas regras da tipicidade e da necessidade penal previstas nos artigos 1º, n.º 1, 18º n.º 2, e 29º n.º 1 da Constituição.

51 – CONCRETAS PROVAS QUE IMPÕEM DECISÃO DIVERSA DA RECORRIDA (art. 412º, nº 3, alínea b), do CPP)

- Declarações prestadas pelo arguido recorrente em audiência de julgamento, conforme a seguir detalhado:

- 18.35 m: “Eu estava-lhe a perguntar se nessas discussões que os senhores tinham ...o senhor lhe chamava “cabra”, “puta”...” (Mª Juiz Presidente)
- 18.48 m: (aqui Recorrente) “…Eu nunca lhe chamava nem “cabra” nem “puta”, eu chamava-lhe “mentirosa” e “ranhosa”
- 18.55 m: (aqui Recorrente) “…Os filhos nem mereciam a mãe que tinham, nem o lixo iam despejar...”
- 20.47 m: (aqui Recorrente) “…Ela quando se exaltava comigo chamava-me “cabrãozito”, “és um cabrãozito...muita vez me chamou “cabrão
- 20.57 m: (aqui Recorrente) “…Eu gostava dela, acha que eu le ia dizer isso...”
- 28.40 m: (aqui Recorrente) “…Uma caçadeira a esta distância mata qualquer pessoa...mas a maneira como ele ia à frente, aí uns três ou quatro metros dela quando a empurrou, eu desviei o tiro para o apanhar nas pernas, nem era para o matar a ele, era mesmo nas pernas, que era para ele...porque ele tinha tado a gozar comigo...quando ele ia para fugir eu disparei o outro tiro sem querer, aquilo é de monogatilho, foi sem querer, eu nunca tive intenções de a matar, se eu a quisesse matar, já a tinha matado há mais tempo
- 29.23 m: (aqui Recorrente) “…Se eu me pudesse arrepender quinhentas vezes aquilo que fiz, eu não tinha ideias de matar, eu não a queria matar...eu gostava dela, eu ia matá-la?!...”
(cf. ficheiro de gravação da audiência 20191112101005 do dia 12.11.2019, com 10678 Kb)

52 – NORMAS JURÍDICAS VIOLADAS (art. 412º, nº 2, alínea a), do CPP)
Foram violados os artigos: 1º, n.º 1, 18º, n.º 2, 29º, n.ºs 1 e 5, e 32º, nº 2, 1ª parte, da CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA; 40º, nº 1, 50º, 70º, 71º, nºs 1 e 2, "in proemium", e 77º, nºs 1 e 2, do CÓDIGO PENAL; 127º, 374º, nº 2, 379º, nºs 1, alínea c), e 2, 410º, nº 2, alíneas a) e c), e 412º, nº 3, alínea b), do CÓDIGO DE PROCESSO PENAL, e 86º, nº 3, da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro.

Termos em que requer V.Exªs se dignem revogar o douto Acórdão recorrido, com as legais consequências.

Assim se respeitará a Lei e o Direito e fará a costumada e serena JUSTIÇA!»

1.5. O recurso foi regularmente admitido.

1.6. O Ministério Público, junto da 1ª Instância, apresentou resposta ao recurso, pronunciando-se no sentido de dever ser negado provimento ao recurso, mantendo-se integralmente o acórdão recorrido.

1.7. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmº. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer a fls. 823 a 827, assinalando a existência de um lapso de escrita na al. b) do dispositivo do acórdão recorrido, ao remeter para a al. a) do n.º 2 do artigo 132º do CP, quando queria remeter para a al. b) do mesmo número e concluindo que o recurso deve ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se o acórdão recorrido, com a correção do referenciado lapso de escrita.

1.8. Foi cumprido o disposto no art.º 417º, n.º 2, do CPP, sem resposta do recorrente.

1.9. Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos, vieram os autos à conferência[1], cumprindo agora apreciar e decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Delimitação do objeto do recurso
Em matéria de recursos, que ora nos ocupa, importa ter presente as seguintes linhas gerais:

O Tribunal da Relação tem poderes de cognição de facto e de direito – cfr. artigo 428º do CPP.
As conclusões da motivação do recurso balizam ou delimitam o respetivo objeto – cfr. artºs. 402º, 403º e 412º, todos do CPP.

Tal não preclude o conhecimento, também oficioso, dos vícios enumerados nas als. a), b) e c), do nº. 2 do artigo 410º do C.P.P., mas tão somente quando os mesmos resultem do texto da decisão recorrida por si só ou em sua conjugação com as regras da experiência comum (cfr. Ac. do STJ nº. 7/95 – in DR I-Série, de 28/12/1995, ainda hoje atual); bem como das nulidades principais, como tal tipificadas por lei.

Tendo presentes as considerações que se deixam enunciadas e atentas as conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, são as seguintes as questões suscitadas e a decidir:

1ª – Nulidade do acórdão – artigos 374º, n.º 2, do CPP e 379º, n.º 1, al. c), ambos do CPP;

2ª – Impugnação da matéria de facto dada como provada sob o n.º 3:
- Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
- Erro notório na apreciação da prova;

3ª – Violação do princípio in dúbio pro reo;

4ª – Erro de subsunção dos factos ao crime de violência doméstica agravado;

5ª – Violação do princípio da dupla valoração relativamente à circunstância qualificativa prevista no artigo 132º, n.º 2, al. a), do Código Penal;

6ª – Inconstitucionalidade do artigo 132º, n.º 2, al. a), do Código Penal;

7ª – Violação do princípio ne bis in idem por valoração da circunstância agravante, prevista no artigo 86º, n.º 3, da Lei nº 5/2006, de 23 de fevereiro, relativamente ao homicídio qualificado, na forma consumada e, simultaneamente, em relação ao crime de homicídio simples, na forma tentada.

8ª – Inconstitucionalidade do artigo 86º, n.º 3, da Lei nº 5/2006, de 23 de fevereiro.

9ª – Aplicação de pena de multa, em vez da pena de prisão, pelo crime de detenção de arma proibida;

10ª – Medida das penas parcelares e da pena única.

2.2. Do acórdão recorrido
Por relevar para a apreciação das questões suscitadas pelo recorrente transcreve-se o teor do acórdão recorrido nos segmentos que importa considerar:
«(…)
III – FUNDAMENTAÇÃO
A) – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
1.º FACTOS PROVADOS
Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos com interesse para a boa decisão da mesma:

1) RR e BB viveram em condições análogas à dos cônjuges entre os anos de 2010 e de 2012, fixando residência …na Chamusca, onde já vivia a mesma.

2) Com o casal residiam os filhos de BB, AA, nascido a 9 de Julho de 1991, GD, nascido a 21 de Agosto de 1993, e DD, nascido a 8 de Janeiro de 1995.

3) Durante o período em que viveram juntos, em várias ocasiões, RR dirigiu-se a BB apelidando-a de “cabra”, “vaca” e “puta” e acusou-a de “ter muitos amantes”.

4) Após alguns meses de separação, em data não concretamente apurada, o casal reatou o relacionamento entre eles e passou a encontrar-se pontualmente, sobretudo aos fins-de-semana, na habitação de um ou do outro.

5) Em data não concretamente apurada ocorrida no ano de 2014, no decurso de uma discussão ocorrida na cozinha, BB cortou-se com a faca que, na altura, usava para cortar batatas.

6) Como consequência direta e necessária deste corte, BB sentiu dores e teve que ser suturada com quatro pontos no dedo.

7) No dia 27 de agosto de 2018, o casal terminou o seu relacionamento por vontade de BB.

8) Em data não concretamente apurada, ocorrida no final do mês de agosto de 2018, quando BB se encontrava a residir na Chamusca e saiu de casa para despejar o lixo, RR, que aí a esperava, abordou-a e apertou-lhe os braços, o que lhe causou dores e hematomas.

9) No dia 4 de Setembro de 2018, pelas 14h30, RR dirigiu-se à residência de BB, …na Chamusca.

10) Avistando-a, abeirou-se dela e, após uma troca de palavras entre ambos, RR desferiu-lhe estalos na face e, puxando-a pelos cabelos, atirou-a ao chão.

11) Em consequência direta e necessária atuação de RR, BB sofreu dores e mal-estar.

12) No período compreendido entre os dias 6 de setembro e 8 de outubro do ano de 2018, RR enviou diversas mensagens escritas para o telemóvel de BB pedindo-lhe para atender os seus telefonemas, recolher os seus pertences, conversarem, encontrarem-se para tomarem um café e irem dançar, sendo que em muitas dessas SMS apelidou a mesma de “porca falsa” e, no dia 1 de Outubro de 2018, referiu “Es falsa nunca vais ser feliz com ninguém eu não vou deixar ate certas pessoas que nos conhecem dizem que não vales nada pois andas a trair falsa porca”.

13) Apesar disso não se voltaram a encontrar até ao dia 11 de outubro de 2018, pelas 14h00, no terminal rodoviário de Torres Novas, altura em que, depois de trocarem algumas palavras, RR telefonou repetidamente para o telemóvel de BB, que não atendeu os seus telefonemas.

14) Apesar disso, RR continuou a perseguir BB nos sítios que esta frequentava, dizendo-lhe, numa ocasião em que se encontraram no estacionamento da Danceteria Truão, em Ourém, no início de 2019, que era uma “vaca” e uma “puta”, bem como que “se és minha, não és de mais ninguém”.

15) No início do ano de 2019, RR e BB voltaram a encontrar-se na Danceteria Solar, em Fátima, onde dançaram cada um com o seu par.

16) FF convidou BB em diversas ocasiões para dançar quando se encontraram na Danceteria Solar, em Ourém, na Danceteria Truão, em Fátima, e na Dancetaria S. Martinho, na Golegã.

17) No dia 17 de fevereiro de 2019, cerca das 21h00, depois de jantarem juntos, BB e FF deslocaram-se à Danceteria S. Martinho, sita na …Zona Industrial da Golegã, onde se encontrava RR que, enquanto dançava com outra mulher, esbracejava e falava alto, mostrando-se enciumado pelo facto daquela se encontrar acompanhada.

18) Nessa sequência, RR, determinado a por termo à vida de BB e FF, abandonou o local, dirigiu-se à sua residência onde se muniu de uma espingarda caçadeira de calibre 12, da marca “Fabarm”, com o n.º 158395, monogatilho, de dois canos sobrepostos e diversos cartuchos e, pelas 22h00, regressou ao parque de estacionamento da Dancetaria “S. Martinho”, para concluir a sua resolução.

19) Aí, RR entrou novamente na referida Dancetaria e, pelas 23h00, quando se apercebeu que BB e FF estavam a sair, foi no seu encalço, deslocou-se à bagageira do seu carro e retirou a aludida arma e os cartuchos que aí tinha colocado.

20) Quando BB e FF já se encontravam no parque de estacionamento e se dirigiam para o veículo do segundo, que aí se encontrava estacionado, aperceberam-se da presença de RR nesse mesmo estacionamento, que se encontrava munido de um objeto que lhes parecia ser um pau.

21) Nesse momento, enquanto lhes dirigiu palavras de teor não concretamente apurado, RR empunhou a referida arma já municiada, apontou-a na direção do corpo do BB e FF e efetuou um disparo.

22) Apercebendo-se que RR se encontrava munido de uma arma de fogo e não de um pau, BB e FF correram em direção ao interior do referido estabelecimento de diversão noturna e, nessa altura, o primeiro, na prossecução do seu intento de tirar a vida a ambos, efetuou um novo disparo na direção dos mesmos.

23) De imediato, BB caiu no solo, acabando por falecer no local na sequência de lesões traumáticas torácicas causadas pelo disparo.

24) Assim, em consequência direta e necessária atuação de RR, FF foi atingido com um projéctil no ombro, na mão, na coxa e na perna esquerdos, respectivamente, bem como com um projéctil na perna direita, ao passo que BB foi atingida com vários projécteis, na sua maioria, na face posterior do tórax, bem como na face anterior, lateral e posterior do braço direito, na face posterior do antebraço e mão ipsilateral, na face medial e posterior do braço esquerdo e face posterior do antebraço homolateral.

25) Nesta sequência, BB sofreu soluções de continuidade (orifícios de entrada dos projécteis) concentradas maioritariamente na face posterior do tórax, com atingimento de parte dos membros superiores, infiltração sanguínea de tecidos epicranianos, fractura bilateral das costelas, soluções de continuidade pericárdicas e cardíacas, infiltração sanguínea da aorta torácica (atingida por projécteis), hemotórax bilateral, soluções de continuidade dispersas em ambos os pulmões (com múltiplos projécteis na espessura dos mesmos) e soluções de continuidade do diafragma e a nível hepática.

26) As descritas lesões traumáticas no tórax, com penetração cardíaca, vieram, directa e necessariamente, a determinar a morte de BB, verificada pelas 00h 20m do dia seguinte.

27) Como consequência direta e necessária da atuação de RR, FF foi assistido no hospital de Abrantes e, para além de equimoses e diversas crostas cicatriciais no membro superior esquerdo, no membro inferior direito e no membro inferior esquerdo, passou a padecer de uma perturbação de ajustamento gerada por toda a envolvência da agressão, percepcionada como um risco iminente para a vida de carácter traumático que precipitou o aparecimento de um quadro de natureza funcional que envolve um certo sofrimento, isolamento e inadaptação ao meio social circundante.

28) Enquanto FF corria em direção ao interior desse estabelecimento para se proteger, RR dirigiu-se ao seu veículo automóvel, da marca “Mercedes”, com a matrícula --ZC, iniciou a marcha, conduziu-o até à entrada do estabelecimento e aí o estacionou.

29) Acto contínuo, RR muniu-se da mesma espingarda e dirigiu-se à porta do estabelecimento, empunhando-a.

30) Uma vez que PM, responsável pela animação musical do estabelecimento, estava à porta da Danceteria, dirigiu-lhe umas breves palavras e deu-lhe um abraço a lamentar todo o sucedido, designadamente a morte de BB, RR acabou por abandonar o local, em direção à residência das suas sobrinhas, sita …em Parceiros de S. João, onde veio a ser encontrado.

31) Nesta ocasião, RR guardava no interior do seu veículo, a arma utilizada nos disparos que efetuou na direção de BB e FF, bem como 4 (quatro) cartuchos intactos do mesmo calibre 12.

32) Desde data não concretamente apurada e até ao dia 18 de fevereiro de 2019, pelas 12h45, RR manteve na sua posse no interior da sua residência, sita …, em Riachos:

(i) Um saco de plástico de cor verde contendo uma caixa de papel com 9 (nove) cartuchos de calibre 12, de invólucro vermelho;
(ii) Uma caixa em papel com 21 (vinte e um) cartuchos de calibre 12, com invólucro de cor branca; e,
(iii) Dois cartuchos já deflagrados com invólucro de cor branca.

33) Com as expressões que lhe dirigiu enquanto viviam juntos, RR quis, como conseguiu, ofender BB na sua honra e consideração, bem sabendo que as mesmas eram profundamente ultrajantes e lesivas da sua honra e da consideração pessoal que lhe era devida.

34) Ao atuar da forma descrita, naquele dia 4 de Setembro de 2018, o arguido quis, como conseguiu, molestar fisicamente e maltratar o corpo e saúde de BB e atingi-la na sua integridade física.

35) Sabia que os seus atos afetavam a dignidade pessoal de BB bem como o seu equilíbrio psicológico e emocional, e eram adequados a criar nela angústia e sentimentos de insegurança, o que igualmente quis e conseguiu.

36) Fê-lo com total indiferença pelos deveres de respeito àquela devidos, sem qualquer motivo justificativo e com o fim exclusivo de fazer valer a sua vontade pelo recurso à violência física e psíquica.

37) Ao agir da forma descrita, efetuando um disparo com arma de fogo na direção do corpo de BB, do modo como o fez e movido pelo ciúme, RR agiu com o propósito de lhe tirar a vida, bem sabendo que a ação que praticava era apta a alcançar tal resultado, como alcançou.

38) Ao agir da forma descrita, efetuando um disparo com arma de fogo na direção do corpo de FF, do modo como o fez e movido pelo ciúme, RR agiu com o propósito de lhe tirar a vida, bem sabendo que a ação que praticava era apta a alcançar tal resultado, o qual somente não alcançou uma vez que o mesmo logrou fugir e refugiar-se no interior do aludido estabelecimento.

39) RR não possui licença de uso e porte de arma ou autorização de detenção no domicílio.

40) RR conhecia as características da espingarda e das munições que guardava, na sua habitação e no seu automóvel, sabia que não as podia ter em seu poder nas circunstâncias descritas, fosse por não estar habilitado, fosse por tal detenção lhe estar vedada por lei em quaisquer circunstâncias.

41) Agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
*
42) O custo da assistência médica prestada a FF nos Serviços de Urgência e de Radiologia do Centro Hospitalar do Médio Tejo, E.P.E., ascendeu a €99,71 (noventa e nove euros e setenta e um cêntimos).

43) AA, GG e DD são os filhos e únicos herdeiros de BB.

44) Na sequência das condutas de RR descritas em 3) a 14), BB sofreu dores físicas, preocupações, incómodos, medo, tristeza, vergonha e ansiedade.

45) BB nasceu no dia 20 de Março de 1965, tendo falecido com 53 (cinquenta e três) anos de idade.

46) BB era uma pessoa trabalhadora, bem humorada e próxima dos seus amigos.

47) BB amava a vida e era estimada pela família e pelos amigos.

48) BB era saudável, forte e vivia harmoniosamente com os filhos.

49) BB amava os filhos AA, GG e DD, sendo uma mãe dedicada.

50) BB sofreu muitas dores quando foi atingida pelos múltiplos projéteis da arma de fogo no seu corpo.

51) BB teve a percepção prévia da sua morte quando RR empunhou a arma de fogo na sua direcção no dia 17 de Fevereiro de 2019, tendo sofrido angústia e terror de morte.

52) AA, GG e DD sofreram grande dor e desgosto com a morte de BB.

53) AA, GG e DD choraram e lamentaram o sucedido, recordando BB permanentemente.
*
54) RR é o mais novo de dois filhos, cujos progenitores, já falecidos, o pai há 17 (dezassete) anos e a mãe há 3 (três) anos, assumiram a qualidade de operário numa fábrica de curtumes e doméstica, respectivamente.

55) Durante a infância de RR, o agregado vivia de forma modesta, mas nunca esteve em causa a satisfação das necessidades básicas.

56) RR viveu com os pais até aos 40 (quarenta) anos de idade, sendo a relação familiar caracterizada por vínculos afetivos entre todos os elementos do agregado

57) Depois, durante 4 (quatro) anos, RR manteve-se integrado no agregado familiar da irmã MR e posteriormente arrendou uma casa em Riachos, Torres Novas, onde passou a viver sozinho.

58) RR tem o 4º ano de escolaridade, que concluiu com 14 anos de idade, por apresentar algumas dificuldades na assimilação das matérias letivas, registando várias retenções.

59) Após o término dos estudos, RR ingressou no mercado de trabalho e desempenhou funções numa fábrica de curtumes, atividade que manteve durante toda a vida, mas em várias empresas.

60) Aos 20 anos de idade RR contraiu matrimónio com uma jovem da sua idade, de quem se viria a divorciar dois anos depois.

61) Deste relacionamento RR tem um filho, atualmente com 44 (quarenta e quatro) anos de idade.

62) Após a separação, RR não manteve qualquer contacto com o filho, nem assumiu as suas responsabilidades parentais.

63) De uma relação amorosa pouco significativa e pouco duradoura RR tem um filho, atualmente 28 (vinte e oito) anos de idade, com quem não estabelece qualquer relação de convívio.

64) RR nunca viveu com a mãe do filho e demitiu-se das suas responsabilidades parentais.

65) Posteriormente RR encetou nova relação amorosa, que durou poucos meses; deste relacionamento tem uma filha, atualmente com 25 anos de idade.

66) Por falta de condições da progenitora, a filha ficou aos cuidados de RR até aos 13 (treze) anos de idade; nesta altura, o mesmo vivia no agregado familiar da mãe que o auxiliou nos cuidados de que a filha necessitava; depois, a filha optou por ir viver com a mãe, mas foi sempre mantendo contactos com o pai.

67) Presentemente a filha encontra-se a viver em França, mas RR mantém com a mesma um relacionalmente de maior afetividade.

68) RR tem ainda uma filha fruto de outro relacionamento, que tem atualmente 17 (dezassete) anos de idade.

69) RR mantinha alguns contactos com esta filha, que se encontra aos cuidados da mãe, a residir em Santarém, bem como pagava a prestação de alimentos, no valor de €150,00 (cento e cinquenta euros) mensais.

70) RR contextualiza o término dos anteriores relacionamentos no facto de, nem ele, nem as namoradoras, pretenderem manter relacionamentos que implicassem compromissos.

71) Em 2010 RR iniciou o aludido relacionamento com BB, mas, após dois anos de relacionamento, os filhos de BB passaram a contestar o relacionamento amoroso e não permitiam que RR pernoitasse na casa.

72) Apesar desta oposição, RR manteve o relacionamento com BB, mas os fins-de-semana eram passados em casa do arguido em Riachos, Torres Novas.

73) Inicialmente a dinâmica relacional era pautada pela harmonia e entendimento, mas, com o passar do tempo, registaram-se situações de conflitos e desavenças entre o casal, cujo foco da discórdia era sobretudo pela desconfiança de que BB poderia ter uma relação extraconjugal.

74) Após o término do relacionamento, no final de agosto de 2018, RR passou a demonstrar uma postura de instabilidade emocional e uma atitude ciumenta e, por vezes, controlava às rotinas e hábitos da vítima.

75) Há mais de trinta anos, ainda que não de forma ininterrupta, RR exerce a actividade de caça cinegética, daí que tenha adquirido e manifestado a espingarda supra descrita.

76) À data dos factos, RR morava sozinho, numa casa arrendada situada em Riachos.

77) RR trabalhava por turnos numa das fábricas de curtumes da região, auferindo um vencimento mensal no valor de €600,00 (seiscentos euros).

78) RR despendia mensalmente o valor de €200,00 (duzentos euros) no pagamento da renda de casa e o valor de €150,00 (cento e cinquenta euros) no pagamento da prestação de alimentos da filha menor.

79) Em contexto laboral, RR era uma pessoa educada e assídua, sendo descrito como um bom trabalhador.

80) Durante vários anos RR manteve como hobby a caça desportiva, sendo esse o motivo pelo qual tinha uma arma em casa.

81) Porém, nos últimos RR abandonou esta atividade, pelo que, não renovou a licença de uso e porte de arma.

82) RR gostava também de frequentar algumas danceterias da região, contexto em que conheceu BB.

83) Em termos pessoais RR aparenta instabilidade emocional e apresentou-se muito agitado, ansioso e com sentimentos de tristeza.

84) No Estabelecimento Prisional mantém um comportamento consentâneo com as normas e regras institucionais, encontra-se inativo, recebe acompanhamento a nível psicológico e manifesta um evidente estado de ansiedade, pelo que faz medicação a nível de ansiolíticos.

85) RR conta com o apoio da irmã, que o visita, sempre que pode.
*
86) RR não te antecedentes criminais.

2.º FACTOS NÃO PROVADOS
Nenhuns outros factos se provaram com interesse para a boa decisão da causa, designadamente, e no essencial, que:

I) Quando BB anunciou a RR que pretendia terminar o relacionamento entre ambos, este procurou demovê-la, dizendo-lhe que “se o fizesse teria um desgosto de morte”.

II) Do mesmo modo, quando efetuou o disparo na direção do corpo de FF, RR representou como possível atingi-lo em órgãos e zonas vitais do seu corpo e, dessa forma, provocar-lhe a morte, e, ainda assim, conformou-se com esse resultado, o que só não se concretizou por motivos alheios à sua vontade.

3.º MOTIVAÇÃO DE FACTO
O Tribunal formou a sua convicção com base na análise crítica do conjunto da prova produzida em audiência de julgamento, designadamente as declarações do arguido e dos assistentes, os depoimentos das testemunhas e a prova documental e pericial produzidas e examinadas em audiência.

O critério de valoração da prova é o da livre apreciação, segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, de acordo com o disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal.

A factualidade dada como provada em 1) a 16) alicerçou-se na concatenação das declarações do arguido e dos assistentes e do depoimento das testemunhas MM e EE, com o teor do auto de notícia de fls. 194 e ss, da fotografia de fls. 206, dos SMS transcritos a fls. 212 e ss, da habilitação de herdeiros de fls. 493 e ss e do auto de inquirição da vítima BB de fls. 210 e ss (reproduzido em audiência atento o acordo manifestado por todos os intervenientes processuais, em conformidade com o disposto no artigo 365.º, n.ºs 2, alínea b), e 5, do Código de Processo Penal), documentos cuja autenticidade e veracidade de conteúdo não foi alvo de qualquer impugnação.

Com efeito, o arguido prestou declarações, confessando que manteve com BB uma relação análoga à dos cônjuges no circunstancialismo descrito na acusação, que os dois residiram em comum com os filhos da mesma, que a coabitação cessou quando o arguido foi expulso de casa e agredido pelo assistente AA, que a relação amorosa nos moldes descritos se manteve até 27 de Agosto de 2018, que dirigiu à vítima as expressões injuriosas imputadas ao mesmo no libelo acusatório, que lhe enviou as SMS transcritas a fls. 212 e que a vitima cortou acidentalmente um dedo quando descascava batatas nas circunstancias descritas em 5). No mais, o arguido negou peremptoriamente ter atingido BB, por qualquer modo, no corpo ou exercido qualquer tipo de violência física sobre a mesma.

Por sua vez, o assistente AA, filho de BB, confirmou as injúrias proferidas e o mau ambiente que pautava o relacionamento do casal quando viviam juntos (com muitas discussões, gritos e desentendimentos entre o casal), explicando que teve notícia, pela mãe, que ela própria se cortou acidentalmente enquanto descascava batatas e discutia com o arguido. Mais referiu que, numa ocasião, o arguido começou a gritar e a insultar a sua mãe (não se recordando, contudo, quais as palavras concretamente proferidas), pelo que efectivamente, neste contexto, o agrediu e expulsou de casa, não tendo admitido o reatamento do relacionamento naqueles moldes (apesar da mãe lhe ter solicitado o regresso do arguido à residência que partilhava com os filhos). Mais asseverou que, com efeito, o arguido seguia a sua mãe para diversos locais, que esta se sentia perseguida e se queixava que tinha medo do arguido. Acresce que, este assistente presenciou o episódio ocorrido junto ao balde do lixo situado nas imediações da sua residência, em que a o arguido agarrou a vítima, lhe desferiu estalos na face, puxou-a pelos cabelos e atirou-a ao chão; somente tendo cessado a conduta ilícita porque avistou este filho da vítima a acorrer ao local e, nessa altura, de imediato, encetou a fuga. A este propósito concretizou que o próprio assistente fez um registo fotográfico das lesões que a mãe sofreu nesta ocasião, que se encontram documentadas a fls. 206.

Os assistentes DD e GG, filhos de BB, corroboraram igualmente as expressões ofensiva dirigidas à mãe pelo arguido e o mesmo mau relacionamento que caracterizava a convivência do casal. Neste contexto, estes assistentes referiram que o arguido apelidava a sua mãe de “puta” e “vaca”, bem como rondava a casa da mesma constantemente. Referiram ainda foram acompanhando a vida da mãe e tiveram notícia não só que o arguido continuava a aparecer nos locais que a mesma frequentava, bem como lhe enviava os aludidos SMS, mas sobretudo que a mãe estava muito impressionada e receosa (daí que tenha sentido necessidade de apresentar queixa e suscitar a intervenção da autoridade policial). Saliente-se que, no mais, limitaram-se a confirmar o conhecimento indirecto, através da mãe, entretanto falecida, do corte acidental do seu dedo, das circunstancias em que o irmão AA expulsou o arguido de casa e dos episódios das agressões físicas supra elencadas.

Concomitantemente, a testemunha MM, amiga de BB, que conviveu com o casal e que frequentava igualmente as aludidas Danceterias (contexto em que privava com os mesmos), explicou que o arguido e a vítima formavam um casal aparentemente harmonioso, mas que, após a separação, RR manifestou não aceitar bem a situação, revelando ciúmes da ex-companheira, ligando-lhe constantemente e aparecendo nos locais que a mesma frequentava; tendo descrito mesmo o comportamento assumido pelo arguido na ocasião cabalmente descrita no facto provado 14), que a testemunha presenciou e descreveu de forma espontânea, rigorosa e credível.

Por sua vez, a testemunha EE, amiga e colega de trabalho de BB, que conviveu com o casal e que frequentava igualmente as aludidas danceterias, confirmou os constantes telefonemas do arguido e a circunstância do mesmo aparecer sempre em todo o lado (junto à residência, no terminal rodoviário, nas danceterias, etc.), o que deixava a vítima muito nervosa e a levava a adoptar providências para salvaguardar a sua segurança, designadamente pedir ao motorista do autocarro em que seguia à noite quando regressava a casa do trabalho para a deixar à porta da sua residência. Mais asseverou que ouviu o arguido dizer à vítima, mais do que uma vez, que se não era dele também não seria de mais ninguém.

Por fim, o auto de notícia de fls. 194 e ss coonestado com o auto de inquirição da vítima BB de fls. 210 e ss (reproduzido em audiência atento o acordo manifestado por todos os intervenientes processuais, em conformidade com o disposto no artigo 365.º, n.ºs 2, alínea b), e 5, do Código de Processo Penal) evidenciam de forma pormenorizada o contexto-espácio temporal em que foram perpetradas as sucessivas ofensas, bem como a caracterização detalhada e consistente dos actos ilícitos perpetrados em harmonia com o relatado pelos assistentes e pelas mencionadas testemunhas.

Ponderada toda a prova produzida e supra sumariada, no confronto com as declarações do arguido, o único elemento de prova produzido em sentido verdadeiramente divergente, o Tribunal formulou uma convicção segura e fundada quanto à concreta intervenção do arguido nos factos em análise, que por tal razão fizemos reverter para os factos que resultaram como provados em 1) a 16). Com efeito, os relatos dos assistentes, analisados concertadamente, afiguram-se ser absolutamente concludentes e mostram-se integralmente corroborados pela prova aludida testemunhal e documental produzida. Ademais, as declarações prestadas pelo arguido, que impugnou somente os factos atinentes à perpetração das ofensas à integridade física que lhe foram imputados, não logram minimamente convencer o Tribunal.

Sucede que, os assistentes e as testemunhas MM e EE não revelaram qualquer animosidade em relação ao arguido, descreveram os factos com vivacidade desassombro, naturalidade e credibilidade e, sobretudo, apresentaram uma versão absolutamente convergente não só entre si, mas também com o relato da vítima, vertido no auto de inquirição da mesma em sede de inquérito de fls. 210 e ss e com a postura que o mesmo assumiu por escrito, nas mensagens de texto enviadas à vítima, transcritas a fls. 212 e ss. Ora, sendo a vítima unanimemente descrita por todas as pessoas inquiridas como uma pessoa independente e, nas palavras da testemunha MM, “bem resolvida”, mantendo a mesma uma vivência autónoma do arguido (com quem só se encontrava aos fins de semana) e estando inclusivamente a conhecer novas pessoas, não se vislumbra qualquer fundamento, à luz das regras da experiência comum, para uma alegada imputação ao arguido de falsas ofensas à integridade física. Aliás, a reforçar o entendimento preconizado, refira-se que o recurso à autoridade policial pela prática do crime de violência doméstica surge numa fase anterior à data fatídica (não resultando de qualquer exageração gerada pelo comportamento posterior do arguido), que o assistente AA presenciou parte das agressões perpetradas e corroborou integralmente a versão da vítima e, ainda, que todos os demais actos ilícitos foram confirmados inclusivamente pelo arguido, não se vislumbrando qualquer fundamento para pôr em causa, nesta parte, a versão de BB.

Pelo contrário, o arguido, prestou declarações, negando a prática da violência física, mas este relato encontra-se, em parte, em absoluta contradição com as declarações imaculadas, isentas e credíveis do assistente AA, que presenciou o episódio com as ofensas à integridade física mais gravosas, ocorridas junto ao caixote do lixo situado nas imediações da residência da vítima, o que, desde logo, a par das razões já expostas, inquina irremediavelmente a verosimilhança da versão apresentada pelo arguido. Assim, considerando os elementos constantes dos autos e supra mencionados, sobretudo a aludida prova documental produzida, sempre se dirá que na ponderação dos factos, a explanação dada pelo arguido não mereceu qualquer credibilidade e não apresenta qualquer excepcionalidade, por forma a gerar dúvidas ao Tribunal.

Do cotejo da prova produzida em audiência, resulta manifesta a dinâmica dos factos descrita pelos assistentes e pela vítima (nesta parte com recurso às declarações que prestou na fase anterior do procedimento criminal, documentadas no auto de fls. 210), que se mostra absolutamente verosímil, considerando a prova produzida em julgamento e considerada nos termos supra elencados.

Para prova da factualidade vertida em 17) a 32) o Tribunal ateve-se nas declarações do arguido concatenadas com o depoimento das testemunhas FF, AF, NV, EP, JR, GL, PM, MM, ED e NV, bem como com da prova documental e pericial produzida, elencada adrede, cuja autenticidade e veracidade de conteúdo não foi alvo de qualquer impugnação.

Na verdade, o arguido prestou declarações, nas quais admitiu globalmente a prática dos factos objectivos imputados ao mesmo no libelo acusatório, afirmando, porém, que foi “instigado” pelo ofendido FF que, no interior da Danceteria São Martinho, fez questão de dançar com a sua ex-companheira BB de forma ostensiva e desafiadora, olhando para o arguido e provocando-lhe deliberadamente ciúmes, razão pela qual se muniu da arma de fogo elencada na factualidade dada como provada com o escopo de o matar. Na verdade, o arguido corroborou todo o desenrolar dos acontecimentos descrito no elenco dos factos provados, confirmando a fidedignidade do auto de reconstituição de fls. 79 e ss, mas admitindo que, antes de abandonar o local do crime, ainda imobilizou o veículo que conduzia junto à porta do estabelecimento de diversão nocturna e, saindo do mesmo, dirigiu-se à porta do estabelecimento com a arma na mão, tendo ocorrido neste momento o encontro e troca de palavras com a testemunha PM que o terá determinado a abandonar o local em direcção à casa da sua irmã.

Por sua vez, o ofendido FF descreveu de forma absolutamente espontânea, natural, convincente, rigorosa e, sobretudo, extraordinariamente pormenorizada a dinâmica da específica actuação ilícita do arguido, o número de disparos realizados pelo mesmo que percepcionou, o local do corpo das vítimas visado e o efectivamente atingido, a localização exacta dos intervenientes e o desfecho de todo o sucedido. Aliás, o depoimento da vítima foi bem revelador do trauma que vivencia, documentado no relatório de exame pericial de fls. 597 e ss, sendo pautado por uma ostensiva necessidade imperiosa de cumprir rapidamente a sua missão como testemunha a fim de se afastar/isolar o mais possível deste processo. Assim, FF explicou, por um lado, que não deduziu pedido de indemnização civil pois pretende ter o menor envolvimento possível neste processo e, por outro lado, que o seu maior receio é que o arguido o volte a tentar matar quando sair da prisão e que efectivamente consiga tirar-lhe a vida. Neste contexto, FF explicou que estava a começar a sair socialmente com BB, que esta nunca lhe transmitiu toda a situação de violência doméstica que vivenciou (provavelmente com o escopo de não o afugentar nesta fase inicial em que se estavam a conhecer), que estava convencido que a relação da mesma com o arguido pertencia ao passado, que este casal se comportou com toda a naturalidade no interior da Danceteria de São Martinho e que só se apercebeu que a presença do arguido a incomodava no dia da prática do crime uma vez que RR, no interior daquele estabelecimento, mostrou-se muito exaltado e falava alto, criando um ambiente desconfortável para os envolvidos. Ainda assim, o ofendido referiu que nunca imaginou que o arguido estivesse à espera do casal no exterior, nem reparou que o mesmo entrara e saíra do estabelecimento. Sem prejuízo, confirmou que o casal se deparou com a presença do arguido no exterior a empunhar um objecto, que lhes pareceu um pau, mas que era uma arma e que, visando os dois ofendidos, realizou dois disparos precisamente na direcção do local onde ambos se encontravam.

Saliente-se que a descrição realizada pela vítima FF mostra-se muito enriquecida com pormenores expressivos e reveladores da forma vívida e precisa como guarda memória de um evento deveras marcante ocorrido na sua vida há menos de um ano. Assim, o Tribunal optou por considerar provado o comportamento assumido pelo arguido no interior da Danceteria, para além do disparo efectuado na direcção de ambos os ofendidos, cujos correspondentes vestígios (nas zonas atingidas) foram recolhidos pela autoridade policial e se encontram documentados nos autos.

Saliente-se, neste contexto, que o depoimento das testemunhas NV, EP, JR, Inspectores da Polícia Judiciária, AF e GL, militares da Guarda Nacional Republicana, que acorreram ao local do crime e ao local da intercepção do arguido no mesmo dia, procederam ao exame meticuloso destes locais e da residência do arguido e participaram na recolha de todos vestígios, atestando de forma segura e convincente o rigor e cuidado com que os mesmos foram apreendidos e remetidos, sem qualquer mácula, para exame, veio consolidar a convicção do Tribunal em relação à veracidade do relato da vítima FF. Com efeito, os Srs. Inspectores asseveraram a consistência entre os vestígios encontrados no local do crime e o relato da mencionada testemunha demonstrando, designadamente, com toda a precisão e credibilidade as características do local onde foram efectuados os disparos, especificando os invólucros e os projécteis encontrados no local do crime, que se encontram integralmente documentados nos autos.

Concomitantemente, a testemunha PM, conhecido do arguido e responsável pela animação musical da Danceteria São Martinho, prestou um depoimento sincero, circunstanciado e manifestamente credível, explicando que estava a gozar de um momento de pausa junto à porta do estabelecimento quando se apercebeu dos disparos, que avistou o arguido com a arma na mão, que viu a vítima BB caída no chão (já sem qualquer reacção), que nem se apercebeu da existência da segunda vítima (tal era o seu estado de exaltação e alteração emocional), nem deu conta da entrada de FF no estabelecimento (apesar deste necessariamente ter tido de passar próximo da testemunha e de ter verificado posteriormente que havia um rasto de sangue), que o arguido iniciou a marcha do seu veículo e estacionou-o junto à entrada da Danceteria, que RR saiu do veículo e dirigiu-se para a porta empunhando a arma, sabendo que FF estava no interior e perguntando pela sua ex-companheira, que o arguido chorou quando esta testemunha lhe confirmou que a mesma já estaria morta (nunca fazendo, contudo, qualquer menção de lhe prestar qualquer assistência) e que PM teve a coragem e a sensibilidade de dar um abraço ao arguido para o acalmar, o que fez com que o mesmo voltasse ao interior do seu veículo e abandonasse o local.

Por sua vez, as testemunhas MM, irmã do arguido, ED, sobrinha do mesmo, e NV, amiga desta sobrinha, referiram não ter qualquer conhecimento directo dos factos ilícitos em apreço, limitando-se, no caso da primeira, a confirmar a deslocação do arguido para a sua residência após a prática do crime e a sua colaboração com as autoridades e, no caso das demais, a confirmar que o arguido e as vítimas se encontraram previamente no interior da Danceteria São Martinho.

Saliente-se, contudo, que as testemunhas PM e NV afirmaram que não se aperceberam do comportamento do arguido e das vítimas no interior do estabelecimento nos momentos em que antecederam a prática do crime.

Por sua vez, ED veio corroborar a versão do arguido no sentido das vítimas terem provocado ciúmes ao arguido, versão que, reforce-se, se encontra em franca contradição com a do ofendido FF.

Ora, atenta a personalidade do arguido que emerge dos factos provados em 1) a 16), afigura-se-nos que mesmo um comportamento considerado normal, de acordo com o critério do homem médio, poderia desencadear no mesmo uns ciúmes desproporcionados. Com efeito, o arguido “perseguia” a ofendida e apregoava que a mesma não podia ser de mais ninguém se não fosse sua, pelo que vê-la com outro homem seguramente seria encarado pelo mesmo, de forma manifestamente subjectiva, como uma provocação, mesmo que BB e FF assumissem um comportamento perfeitamente “inocente”. Aliás, somente a sobrinha do arguido ED alegadamente deu conta do mesmo comportamento provocatório, mas o seu depoimento mostrou-se manifestamente comprometido com a defesa do arguido e com o propósito de proteger o seu tio, com quem mantém uma boa relação.

Portanto, a versão coerente e consistente do ofendido FF não se mostra minimamente beliscada pelas declarações do arguido e pelo depoimento da testemunha ED. Aliás, se as vítimas tivessem assumido um comportamento “impróprio” seguramente tal seria notado pelas demais testemunhas presentes no local (com uma relação menos próxima com o arguido), designadamente PM e NV, face a tudo o que aconteceu de seguida.

Refira-se, ainda, que quer os assistentes, quer as testemunhas MM e EE não tiveram qualquer conhecimento directo dos eventos ocorridos no dia 17 de Fevereiro de 2019.

Em suma, a testemunha FF demonstrou isenção e objectividade, e depôs de forma congruente, sequencial e circunstanciada, razão pela qual foi merecedora de credibilidade e logrou convencer o Tribunal quanto à veracidade dos factos pela mesma relatado.

Tomou-se ainda em consideração a prova documental e pericial produzida – concretamente o auto de notícia por detenção de fls. 337 e ss, as certidões de nascimento do arguido e das vítimas de fls. 15 e ss, os relatórios de inspecção judiciária, com reportagem fotográfica, de fls. 39 e ss e 95 e ss e o relatório de exame pericial ao local de fls. 303 (que caracterizam com exactidão o local do crime de homicídio e a residência do arguido, o circunstancialismo espácio-temporal em que os factos ocorreram e os vestígios aí encontrados pela autoridade policial imediatamente após o sucedido), o aditamento de fls. 349 (que descreve as circunstâncias da localização do arguido), os autos de apreensão de fls. 43, 91, 93, 102 e 293, o auto de diligência de fls. 74 e ss (que contextualiza a localização de mais vestígios no local do crime no dia seguinte quando foi realizada a reconstituição e quando ocorreu uma melhoria das condições climatéricas), o auto de reconstituição de fls. 79 (que ilustra a versão dos factos apresentada pelo arguido), o auto de interrogatório do arguido de fls. 255 (que consagra as declarações prestadas pelo arguido em sede de primeiro interrogatório que foram reproduzidas em sede de audiência, as quais coincidem com a versão apresentada nas suas declarações); a documentação clínica de fls. 340 e os relatórios de exame médico legal de fls. 358 e ss e 597 e ss (que concretizam as lesões infligidas ao mesmo), a informação sobre a ausência de licença de uso e porte de arma por parte do arguido de fls. 287, os autos de exame pericial da arma e munições de fls. 383 e ss e 392 e ss (que consagram a caracterização da arma e munições encontradas no local do crime e confirmam a relevante probabilidade das mesmas terem sido deflagradas pelas armas de fogo que o arguido asseverou que utilizou) e o relatório de autópsia de fls. 436 e ss (que revelam com exactidão as consequência médico-legais da conduta do arguido na esfera da vítima BB).

Estes documentos e perícias forenses assumem especial relevância na medida em que demonstram que os vestígios objectivos recolhidos no local são, como se disse, compatíveis com a descrição da vítima e mesmo do arguido de todo o desenrolar dos acontecimentos.

Cumpre, ainda, salientar que as declarações prestadas pelo arguido, cujo sentido manteve até final, somente constituem elemento probatório que aponta em sentido divergente daquele que o Tribunal entendeu dar como provado na parte que respeita ao sucedido no interior da Danceteria São Martinho, sendo, no mais, no essencial, coincidente com os demais meios de prova produzidos.

Nesta conformidade, atentas as declarações do arguido, com expecção daqueles pormenores que se reportam à sua percepção subjectiva do comportamento das vítimas, e o depoimento ofendido FF, prestado de forma serena e circunstanciada e corroborados pela panóplia de meios de prova testemunhal e pericial anteriormente elencados, o tribunal não teve dúvidas em considerar provados os factos objectivos imputados ao arguido e ao contexto sócio-familiar em que os mesmos ocorreram. Com efeito, a riqueza de pormenores dos seus relatos inculcam-nos, com recurso às regras da experiência comum e de juízos de normalidade social, a convicção segura da credibilidade da versão dos factos apresentada pela vítima, tudo contribuindo para a convicção positiva do Tribunal quanto à dinâmica do evento em apreço.

Os factos subjectivos provados em 33) a 41), porque insusceptíveis de prova directa, dada a sua natureza, extraem-se dos factos objectivos provados, que, tendo em conta as regras da experiência comum e com base em presunção natural, permitem de forma segura inferir tal factualidade. De qualquer modo, cumpre salientar que quer as declarações do arguido, quer do depoimento da testemunha FF revelam à saciedade que o arguido visou claramente os dois ofendidos na medida em que disparou uma espingarda a cerca de 20m (vinte metros) do local onde as vítimas se encontravam sabendo, por ser caçador experiente, que os múltiplos projécteis que se encontravam no interior dos dois cartuchos se iriam dispersar em leque e atingir tanto BB, como FF. Aliás, da análise coonestado do relatório de autópsia de fls. 436 e ss e da reportagem fotográfica de fls. 45 e ss resulta claro que o arguido visou deliberadamente uma zona vital do corpo da vítima BB uma vez que esta foi essencialmente atingida na zona do coração e dos pulmões, praticamente não havendo projécteis nos seus membros inferiores. Por outro lado, verificamos da análise concatenada do depoimento de PM e do auto de apreensão de fls. 43, que o arguido, após FF lograr fugir para o interior do estabelecimento, se dirigiu à porta do mesmo empunhando a mesma arma de fogo e que, aliás, pelo menos, no interior do veículo ainda tinha quatro munições intactas do mesmo calibre. Donde se depreende que manifestamente o arguido tinha o propósito de tirar a vida a FF e que somente não foi bem sucedido, porque no primeiro momento, a vítima conseguiu escapar e, no segundo momento (junto à porta do estabelecimento), a testemunha PM o logrou acalmar. Aliás, o arguido confirmou precisamente a sua intenção de tirar a vida a FF, afirmando reiteradamente ao longo de toda a sua prestação de declarações que esse sempre foi o seu propósito, mas que este se escondeu atrás da sua ex-companheira e com este comportamento determinou a morte de BB. Este entendimento, apesar de descabido de bom senso e razoabilidade, coaduna-se com a visão distorcida que o arguido apresentou em tribunal de todos os acontecimentos. Com efeito, instado para o efeito, RR afirmou peremptoriamente que FF é o culpado de todo o sucedido na medida em que o provocou no interior da Danceteria e, depois, usou a vítima BB como escudo para se proteger do disparo que o visava exclusivamente a ele. Ora, nunca o disparo realizado nas circunstâncias anteriormente descritas (com aquela espingarda e a cerca de 20m de distância do alvo) poderia visar somente um dos ofendidos.

Sem prejuízo, não podemos deixar de notar que esta infundada percepção do arguido da culpabilidade do ofendido FF, à luz das regras da experiência comum, se coaduna igualmente com o injustificado comportamento provocatório que o mesmo lhe atribui – afigura-se-nos que esta versão traduz apenas a tentativa do arguido racionalizar o inexplicável - o motivo que o levou a tirar a vida à ex-companheira -, o que o mesmo se recusa aceitar e procura ainda presentemente imputar a terceiros, concretamente ao ofendido FF.

A factualidade provada em 42) avulta da concatenação do depoimento consistente e objectivo das testemunhas FF e CC, administrativa do Centro Hospitalar do Médio Tejo, E.P.E., com a documentação clínica de fls. 340 e ss e a fatura de fls. 628, que se referem de forma uniforme, objectiva e crível a esta factualidade.

A factualidade provada em 43) a 53) baseou-se nas declarações e no comportamento dos assistentes em sede de audiência de julgamento, que, coonestados com o depoimento das testemunhas MM e EE, amigas da família que conviviam com a vítima, designadamente no seu contexto familiar, revelam ostensivamente o sofrimento, a perda, a angústia, sofridas pelos mesmos, bem como a caracterização a situação familiar, profissional e social de BB. Todos, sem excepção, apresentaram um discurso claramente fundado num conhecimento profundo da vivência da vítima, atenta a relação de proximidade que mantinham com a mesma, e procederam a uma caracterização da personalidade e da sua vivência com manifesta espontaneidade, sinceridade, naturalidade e credibilidade.

A factualidade provada em 54) a 85), respeitante às condições sócio-económicas e familiares do arguido e à personalidade revelada pelo mesmo, alicerçou-se na análise do relatório social elaborado pela DGRSP de fls. 624 e ss, elemento documental que se nos afigura manifestamente idóneo e cujo teor não foi igualmente posto em causa por qualquer outro elemento probatório. Pelo contrário, a situação actual do arguido descrita neste relatório foi até corroborada, no essencial, pelas declarações prestadas pelo mesmo.

A ausência de antecedentes criminais do arguido, factualidade provada em 86), avultam do teor do Certificado de Registo Criminal do mesmo junto a fls. 553.

A factualidade dada como não provada avulta da ausência de prova concludente sobre a mesma.

Com efeito, nem arguido ou assistentes, nem a prova testemunhal, pericial ou documental reproduzida fizeram qualquer referência com um mínimo de consistência às palavras que o primeiro dirigiu a BB quando a mesma pôs termo ao relacionamento.

Por outro lado, resulta ostensivamente da prova produzida que o arguido previu e quis tirar a vida a FF, agindo deliberadamente e sabendo que o uso da espingarda naquelas condições era adequada a provocar esse resultado, pelos motivos acima expostos, pelo que manifestamente, a contrario sensu, não pode dar-se como prova a alegada actuação a título de dolo eventual vertida no libelo acusatório.

B) – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
QUESTÕES A DECIDIR
As questões jurídicas que importa conhecer, atento o objecto do processo, delimitado pelo teor da acusação, e o princípio da vinculação temática do Tribunal, são as seguintes:

- Primeira, aquilatar RR deve ser jurídico-penalmente responsabilizado pela prática, em autoria material e concurso real, em autoria material e concurso real, de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 131.º e 132.º, n.º 1 e n.º 2, alíneas b), e), i) e j), todos do Código Penal, agravado nos termos do artigo 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro; de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, alínea a), do Código Penal; de um crime de homicídio qualificado na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 22.º, 23.º, 131.º e 132.º, n.º 1 e n.º 2, alíneas e), i) e j), todos do Código Penal, agravado nos termos do artigo 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro; e de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea c) e d) e n.º 2 da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro;

- Segunda, caso se conclua pela sua responsabilidade jurídico-penal, apurar a espécie e medida das penas a aplicar-lhe; e

- Terceira, apreciar se RR incorre em responsabilidade civil pela prática dos mesmos factos e, em consequência, se constitui na obrigação de indemnizar os demandantes AA, GG, DD e Centro Hospitalar do Médio Tejo, E.P.E.

BA) – DA RESPONSABILIDADE CRIMINAL
1.º ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL DOS FACTOS
Vejamos então as normas fundamentais e os dados doutrinários e jurisprudenciais essenciais para o enquadramento jurídico do caso.

1. Nos termos do disposto no artigo 26.º do Código Penal, “punível como autor quem executar o facto, por si mesmo ou por intermédio de outrem, ou tomar parte directa na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros, e ainda quem, dolosamente, determinar outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo de execução”.

Atenta a factualidade provada, afigura-se, desde logo, que a responsabilidade do arguido pela prática do crime em causa lhe deve ser imputada a título de autoria material.

2. Nos termos do artigo 152.º do Código Penal, comete o crime de violência doméstica:
“1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;
c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou
d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2 - No caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.
3 - Se dos factos previstos no n.º 1 resultar:
a) Ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão de dois a oito anos;
b) A morte, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos.
4 - Nos casos previstos nos números anteriores, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.
5 - A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.
6 - Quem for condenado por crime previsto neste artigo pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente, ser inibido do exercício do poder paternal, da tutela ou da curatela por um período de um a dez anos”.

Na senda de Taipa de Carvalho, in Comentário Conimbricense ao Código Penal, Parte Especial, tomo I, Coimbra Editora, pág. 329 e ss (referindo-se ainda à anterior redacção do preceito, mas de forma pertinente para a presente análise), refira-se que “a função deste artigo é prevenir as frequentes e, por vezes, tão "subtis" quão perniciosas – para a saúde física e psíquica e/ou para o desenvolvimento harmonioso da personalidade ou para o bem-estar – formas de violência no âmbito da família (...). A ratio do tipo não está, pois, na protecção da comunidade familiar, conjugal, educacional (...), mas sim na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana (...). Se em tempos passados, se considerou que o bem jurídico protegido era apenas a integridade física, constituindo o crime de maus tratos uma forma agravada do crime de ofensas corporais simples, hoje, uma tal interpretação redutora é, manifestamente, de excluir. A ratio desse artigo 152.º vai muito além dos maus tratos físicos, compreendendo os maus tratos psíquicos (p. ex., humilhações, provocações, ameaças, etc.). Portanto deve dizer-se que o bem jurídico protegido por este crime é a saúde – bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental e bem jurídico que pode ser afectado por uma multiplicidade de comportamentos que impeçam ou dificultem o normal e saudável desenvolvimento da personalidade (...), e afectem a dignidade pessoal do cônjuge.”

Em regra o crime de violência doméstica pressupunha alguma reiteração das condutas, de modo a inculcar um carácter de habitualidade. Contudo e tal como vinha sendo decidido em instâncias superiores e resulta da recente alteração legislativa, o artigo 152.° do Código Penal não exige como elemento objectivo do tipo, para verificação do crime nele previsto, uma conduta plúrima e repetitiva.

Assim, as condutas que integram o tipo objectivo deste crime podem ser de várias espécies – maus tratos físicos (ofensas corporais simples) e maus tratos psíquicos (humilhações, provocações, ameaças, injúrias) – e podem ser susceptíveis de, singularmente consideradas, constituírem, em si mesmas, outros crimes, a saber, ofensa à integridade física simples, ameaça, injúria, difamação.

De acordo com a razão de ser da autonomização deste tipo de crime, as condutas que integram o tipo de ilícito não são individualmente consideradas enquanto integradoras de um tipo de crime para serem atomisticamente perseguidas criminalmente, são, antes, valoradas globalmente na definição e integração de um comportamento repetido que signifique maus tratos sobre o cônjuge ou sobre menores.

Aliás, independentemente do sentido da necessidade de reiteração que ao nível da jurisprudência tem sido seguido, tem aqui pleno enquadramento a decisão do Tribunal da Relação de Coimbra, plasmada no Acórdão de 29 de Janeiro de 2003 (Proc. n.º 3827/2002), in www.dgsi.pt, no qual se considerou que não são os simples actos plúrimos ou reiterados que caracterizam o crime de maus tratos a cônjuge, o que importa é que os factos, isolados ou reiterados, apreciados à luz da intimidade do lar e da repercussão que eles possam ter na possibilidade de vida em comum, coloquem a pessoa ofendida numa situação que se deva considerar de vítima, mais ou menos permanente, de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade, dentro do ambiente conjugal.

A revisão do Código Penal de 2007 alterou mais uma vez a disposição central nesta matéria – o artigo 153.º na versão originária de 1982, mais tarde (a partir de 1995) artigo 152.º.

Entre outras modificações, o texto do Código ostenta agora pela primeira vez a expressão “violência doméstica”, na própria epígrafe expressa do artigo (152.º), tendo o revisor optado, sensatamente, por separar as matérias relativas a outros assuntos, como a violação de normas de segurança, agora no artigo 152º-B, que anterior revisão misturara com o crime de maus-tratos, conferindo ao preceito legal acentuado grau de desnecessária e indesejável complexidade. Escolheu também separar os maus-tratos sobre cônjuge ou figura análoga (nº 1, a, b, c), ou ainda pessoa de especial vulnerabilidade (d), dos maus-tratos sobre crianças ou outros dependentes (artigo 152.º-A).

O legislador com a alteração introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, entendeu reservar para as situações do artigo 152.º a expressão violência doméstica, embora no corpo do artigo utilize a expressão “maus-tratos”, enquanto escolheu a epígrafe maus-tratos para os casos contemplados no actual artigo 152.º-A

Na descrição do facto típico, o texto da lei refere agora a inflicção de “maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais”, “de modo reiterado ou não”. Saliente-se que, como se disse, nem a referência à desnecessidade de reiteração, nem a inclusão expressa dos actos designados como castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais constavam da versão anterior.

Por outro lado, entre as múltiplas agravantes, surge a hipótese de “o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima”, que faz o mínimo da moldura penal subir de um para dois anos, mantendo-se o máximo nos cinco anos.

As agravações pelo resultado preterintencional mantêm-se: a provocação negligente de ofensa à integridade física grave eleva a pena a dois a oito anos e a de morte para a moldura de três a dez anos.

De qualquer modo, em ambos os regimes, acompanhando a progressiva consciencialização ético-social da gravidade individual e social dos comportamentos violentos perpetrados no seio da família e abandonando a concepção tradicionalmente prevalecente do lar conjugal como um espaço tendencialmente auto-regulador da actuação dos seus membros e subtraído, por natureza, à intervenção do direito penal, o legislador assumiu o inequívoco propósito de prevenir e reprimir as mais relevantes formas da chamada violência doméstica, convocando, para o efeito, o subsidiário sistema das reacções criminais.

Na génese da incriminação da conduta supra descrita, está, assim, não tanto uma preocupação de preservação da comunidade, familiar ou conjugal, mas sim, e decisivamente, de tutela da pessoa humana, na sua irrenunciável dimensão de liberdade e dignidade.

Daí que, directamente abrangida pelo âmbito de protecção dispensada se encontre, como se disse, mais do que a integridade física propriamente dita, a saúde de cada pessoa em si mesma e enquanto tal, abrangendo o bem estar físico, psíquico e mental do indivíduo, enquanto elemento essencial e indispensável à “mais livre realização possível da personalidade de cada homem na comunidade” (cfr. Figueiredo Dias, in Direito Penal - Questões Fundamentais e Doutrina Geral do Grime, pág.63).

Assim, não obstante a possível existência de uma zona de incidência comum, o crime de maus tratos distingue-se, com autonomia, do crime de ofensas à integridade física, do crime de ameaça e do crime de injúria, em qualquer uma das diversas tipificações consagradas na lei penal.

São essencialmente os seguintes os elementos diferenciadores a considerar: o crime de violência doméstica é, desde logo, um crime específico, no sentido em que só pode ser levado a cabo por pessoa que se encontre numa determinada relação para com o sujeito passivo.

Perspectivado já, não do ponto de vista das características supostas no agente, mas do modo de execução do facto, o ilícito típico em presença supõe, segundo a ratio da autonomização do tipo, uma certa reiteração de condutas ofensivas: não basta uma acção isolada do agente para o preenchimento da factualidade, exigindo-se, ao invés, um carácter de continuidade, denunciado pela sucessiva renovação do comportamento descrito no tipo por um determinado período de tempo.

Decifrado o bem jurídico protegido pela norma cuja violação se imputa, detenhamo-nos, agora, com a caracterização das condutas em presença.

Trata-se, em primeiro lugar, de injúrias e ofensas à integridade física que, considerado a reiteração e o meio utilizado, apreciado no contexto situacional e relacional em que foram realizadas, são susceptíveis de amesquinhar a pessoa visada, humilhando-a perante si própria e rebaixando-a na sua condição de pessoa humana.

Não podendo admitir-se que o espaço de convivência análoga à conjugal exclua, por natureza, a possibilidade de comissão de crimes inofensivos, como o são os de ofensas à integridade física, de injúria e de ameaça, é altura de retomar o essencial elemento especializador do delito que vem imputado: trata-se apenas dos comportamentos que, de forma reiterada, atentam contra a dignidade das vítimas, infligindo-lhes, de forma reiterada e plúrima, sofrimento, físico, psíquico ou sexual.

Ora, estando em causa diversas injúrias e ofensas à integridade física – ocorridas, numa fase inicial, na casa de morada de família e perpetuadas no decurso de um longo lapso temporal – e comportamentos intimidatórios no sentido já assinalado, bem se vê que os comportamentos do arguido, pela sua natureza e intencionalidade subjacente, se subsume tanto ao tipo objectivo da mencionada norma incriminadora.

Deste modo, e uma vez que os factos foram praticados no interior da casa de morada de família, não há dúvidas que as condutas do arguido preenchem o tipo legal do crime de violência doméstica por que vem acusado.

3. Analisando especificamente a fattispecie do crime de homicídio, verifica-se que dispõe o artigo 131.º do Código Penal que “quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos”.

Este preceito consagra a protecção jurídico-penal do valor absoluto da vida humana, emanado da essencial dignidade da pessoa humana.

O tipo legal de crime de homicídio simples caracteriza-se pela existência de dois elementos: um objectivo – matar outrem – e outro subjectivo – a intenção de matar.

Dispõe o artigo 132.º, n.º 1, do Código Penal que “Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de 12 a 25 anos”.

Este preceito consagra, pois, o crime de homicídio qualificado, que se traduz numa forma agravada de homicídio, em que a qualificação decorre da verificação de um tipo de culpa agravado, definido pela orientação de um critério generalizador enunciado no n.º 1 da disposição, moldado pelos vários exemplos-padrão constantes das diversas alíneas do nº 2 do mencionado artigo 132º.

O critério generalizador está traduzido na cláusula geral com a utilização de conceitos indeterminados – a especial censurabilidade ou perversidade do agente.

As circunstâncias relativas ao modo de execução do facto ou ao agente são susceptíveis de indiciar a especial censurabilidade ou perversidade e, por esta mediação de referência, preencher e reduzir a indeterminação dos conceitos da cláusula geral.

Sendo elementos constitutivos do tipo de culpa, a verificação de alguma das circunstâncias que definem os exemplos-padrão não significa, por imediata consequência, a realização do tipo especial de culpa e a directa qualificação do crime, como, também por isso mesmo, a não verificação de qualquer dos modelos definidos do tipo de culpa não impede que existam outros elementos e situações que devam ser considerados no mesmo plano de valoração que está pressuposto no crime qualificado e na densificação dos conceitos bem marcados que a lei utiliza.

Com efeito, bem pode suceder que a verificação de qualquer uma dessas circunstâncias não implique, por si só, a qualificação do crime pelo que, então, o juiz deixará de operar tal qualificação – e isto porque as circunstâncias descritas nas várias alíneas do nº 2 do artigo 132º não são de funcionamento automático (neste sentido, entre outros, Maia Gonçalves, em anotação ao artigo 132.º do Código Penal; Actas das Sessões da Comissão Revisora do Código Penal, Parte Especial, pág. 21 a 24; também, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Maio de 1983, in BMJ n.º 327, pág. 458, de 8 de Fevereiro de 1984, in BMJ nº 334, pág. 258, de 5 de Janeiro de 1983, in BMJ nº 323, pág. 121, de 26 de Abril de 1989, in BMJ nº 386, pág. 273 e de 5 de Dezembro de 1990, in BMJ nº 402, pág.195).

Constituindo a enumeração das circunstâncias previstas no nº 2 meramente exemplificativa, sempre poderão existir outras circunstâncias não descritas no tipo legal, mas reveladoras da especial censurabilidade ou perversidade, dando origem, assim, aos chamados casos de homicídio qualificado atípico – o que é fundamental é que se trate de um homicídio qualificado em circunstâncias que possam desencadear o efeito de indício de uma maior culpa (cfr. Teresa Serra, in Homicídio Qualificado -Tipo de Culpa e Medida da Pena, págs. 70 e ss).

Face ao seu funcionamento não automático e à sua não taxatividade, tais circunstâncias só podem ser compreendidas enquanto elementos da culpa, exigindo-se, por isso, que, no caso concreto, elas exprimam insofismavelmente, uma especial perversidade ou censurabilidade do agente.

Deste modo, verificando-se algumas das circunstâncias enunciadas no mencionado n.º 2, embora exista um efeito de indício de uma especial censurabilidade ou perversidade, tal efeito tem de ser demonstrado, posteriormente, na situação em concreto, através de uma análise das circunstâncias do caso (cfr. actas das Sessões da Comissão Revisora do Código Penal, Parte Especial, pág. 21 e 22 e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Julho de 1989, in B.M.J. nº 389, pág. 310).

Assim, seja mediada pelas circunstâncias referidas nos exemplos-padrão, seja por outros elementos de idêntica dimensão quanto ao desvalor da conduta do agente, o que releva e está pressuposto na qualificação é sempre a manifestação de um especial e acentuado «desvalor de atitude», que se traduz na especial censurabilidade ou perversidade e que conforma o especial tipo de culpa no homicídio qualificado.

A qualificação do homicídio do artigo 132º do Código Penal supõe, pois, a imputação de um especial e qualificado tipo de culpa, reflectido, no plano da atitude do agente, por uma conduta em que se revelam «formas de realização do facto especialmente desvaliosas (especial censurabilidade), ou aquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas» (cfr. Figueiredo Dias, in Comentário Conimbricense do Código Penal, vol. I, págs. 27 e 28).

O modelo de construção do tipo qualificado – qualificado pelo especial tipo de culpa – através da enunciação do critério geral, moldado pela densificação através dos exemplos-padrão, não permitirá, como se disse, salvo afectação do princípio da legalidade, «fazer um apelo directo à cláusula de especial censurabilidade ou perversidade, sem primeiramente a fazer passar pelo crivo dos exemplos-padrão e de, por isso, comprovar a existência de um caso expressamente previsto [...] ou de uma situação valorativamente análoga» (cfr. Figueiredo Dias, in ob. cit., págs. 28).

A decisão sobre a integração do crime qualificado exige que se proceda à definição da imagem global do facto, de modo a logo aí detectar a particular forma de culpa que justifica a qualificação do homicídio, sem esquecer, na dimensão da integração diferencial, a circunstância de que o tipo geral de homicídio constitui já, por si mesmo, um crime de acentuada gravidade que protege o bem vida como valor essencial inerente à pessoa humana.

Acompanhando Teresa Serra, pode dizer-se que existe especial censurabilidade quando "as circunstâncias em que a morte foi causada são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal com os valores"; por seu turno, a especial perversidade supõe “uma atitude profundamente rejeitável no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade" (in Homicídio Qualificado -Tipo de Culpa e Medida da Pena, págs. 63 e 64).

Por conseguinte, subjacente à especial censurabilidade ou perversidade está um maior grau de culpa que o agente manifesta em tais circunstâncias, o que motiva a agravação.

A agravação da culpa tem, afinal, a ver com a "maior desconformidade que a personalidade manifestada no facto possui, face à suposta e querida pela ordem jurídica, em relação à desconformidade, já de si grande, da personalidade subjacente à prática de um homicídio simples" (cfr. Figueiredo Dias, in C.J., ano XII, pág.52).

Em jeito de conclusão, portanto, diremos que, para aquilatar da especial censurabilidade ou perversidade do agente na prática do homicídio, por forma a que este seja considerado como qualificado e, por via disso, punido com pena agravada, se impõem duas operações: a primeira consiste em saber se existe alguma circunstância das enunciadas no n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, enquanto indício daquela censurabilidade e perversidade e a segunda em averiguar se, perante as circunstâncias concretas do caso dos autos e vista a estrutura valorativa em tal grau de gravidade dos factos em julgamento, o aumento da culpa é em grau tão elevado que justifica a agravação subjacente ao homicídio qualificado (neste sentido, Teresa Serra, in Homicídio Qualificado -Tipo de Culpa e Medida da Pena, pág. 7).

4. De acordo com o disposto 132.º, n.º 2, do Código Penal:
É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente:
a) Ser descendente ou ascendente, adoptado ou adoptante, da vítima;
b) Praticar o facto contra cônjuge, ex-cônjuge, pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação, ou contra progenitor de descendente comum em 1.º grau;
c) Praticar o facto contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez;
d) Empregar tortura ou acto de crueldade para aumentar o sofrimento da vítima;
e) Ser determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil;
f) Ser determinado por ódio racial, religioso, político ou gerado pela cor, origem étnica ou nacional, pelo sexo, pela orientação sexual ou pela identidade de género da vítima;
g) Ter em vista preparar, facilitar, executar ou encobrir um outro crime, facilitar a fuga ou assegurar a impunidade do agente de um crime;
h) Praticar o facto juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas ou utilizar meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime de perigo comum;
i) Utilizar veneno ou qualquer outro meio insidioso;
j) Agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas;
l) Praticar o facto contra membro de órgão de soberania, do Conselho de Estado, Representante da República, magistrado, membro de órgão do governo próprio das regiões autónomas, Provedor de Justiça, membro de órgão das autarquias locais ou de serviço ou organismo que exerça autoridade pública, comandante de força pública, jurado, testemunha, advogado, solicitador, agente de execução, administrador judicial, todos os que exerçam funções no âmbito de procedimentos de resolução extrajudicial de conflitos, agente das forças ou serviços de segurança, funcionário público, civil ou militar, agente de força pública ou cidadão encarregado de serviço público, docente, examinador ou membro de comunidade escolar, ministro de culto religioso, jornalista, ou juiz ou árbitro desportivo sob a jurisdição das federações desportivas, no exercício das suas funções ou por causa delas;
m) Ser funcionário e praticar o facto com grave abuso de autoridade”.

Deve, porém, tratar-se sempre de condutas que exteriorizam um especial juízo de culpa por serem uma refracção, ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente censuráveis, ou que documentem no facto qualidades particularmente desvaliosas da personalidade do agente.

No caso vertente, ponderada a factualidade dada como provada, afigura-se que os actos praticados pelo arguido visaram a sua ex-companheira, com quem viveu em condições análogas às dos cônjuges, tendo sido adequados a produzir o resultado típico.

Nesta circunstância do arguido ter, ao praticar os actos de execução do crime de homicídio, visado a própria companheira, fortemente indiciadora da especial censurabilidade ou perversidade do autor do crime de homicídio, é que encerra o fundamento da agravação. Como tal, deve a personalidade do arguido, tal como ela emerge deste crime, ser objecto de um acrescido juízo de censura, fundado no especial desvalor.

Com efeito, perante os elementos de integração da cláusula-padrão referida, os factos provados revelam, impressivamente, que o arguido actuou de modo resoluto e com absoluta indiferença pela relação conjugal com a vítima BB, insistindo na sua intenção de concretizar, sem falhas, a eliminação física da mesma.

Tal circunstância, bem documentadas nos factos provados, integra a dimensão qualificativa da alínea b) do nº 2 do artigo 132º do Código Penal, por revelarem no facto uma projecção de especial censurabilidade e perversidade na execução do crime, adensando exponencialmente a culpa do arguido.

Concomitantemente, “por qualquer motivo torpe ou fútil” significa que o motivo da actuação, avaliado segundo as concepções éticas e morais ancoradas na comunidade, deve ser considerado pesadamente repugnante, baixo ou gratuito» (in Comentário Conimbricense, I, 1999, p. 32).

Motivo «torpe» é, assim, o que se considera comummente como muito repugnante ou baixo.

“Motivo fútil é aquele que não pode razoavelmente explicar e, muito menos, justificar a conduta do agente”. É “o motivo sem valor, irrelevante, insignificante”. É “aquele que não tem qualquer relevo, que não chega a ser motivo, que não pode sequer razoavelmente explicar (e, muito menos, portanto, de algum modo justificar) a conduta”. É “aquele que não tem importância, é insignificante, irrelevante” (cfr. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 1998/02/10, proc. 478/98, de 1995/05/29, proc. 48517, de 1997/12/11, proc. 1050/97, de 1996/11/11, proc. 152/97, in www.dgsi.pt).

Ora, o motivo do assassinato foi o ciúme exacerbado do arguido, o qual, teve uma relação análoga à dos cônjuges e depois de namoro durante cerca de 8 (oito) anos com a vítima, embora com algumas interrupções e que terminou por vontade exclusiva da ofendida BB.

A paixão ou ciúme que leva a matar a pessoa que se diz amar é um sentimento muito reprovável, pois que não demonstra amor, que é uma dádiva, mas uma enorme frustração pelo sentimento de perda, como se o outro que se diz amar fosse uma coisa apropriável ou já apropriada. E conduz a uma contradição, pois que leva a não querer bem a quem se diz que mais se quer.

Mas, também sabemos que matar por ciúme é um tema clássico da arte (o do Otelo que mata Desdémona e as suas múltiplas réplicas na literatura, no cinema, no teatro), o que demonstra que tem sido universal e intemporal. Esperar-se-ia, porém, que hoje em dia, quando vivemos numa sociedade mais aberta, mais informada e mais democrática do que qualquer das anteriores, o ciúme – não podendo desaparecer, pois que é um sentimento natural e espontâneo – não fosse tão patológico e aberrante, ao ponto de alguém querer tirar a vida a outrem só porque essa outra pessoa não corresponde aos afectos que se desejam dar.

Todo o homicídio é reprovável, como reprováveis ou muito reprováveis são a esmagadora maioria dos motivos que levam a tal acto. Por isso se disse anteriormente que há que encontrar uma especial censurabilidade ou perversidade no acto para o crime ser legalmente considerado como homicídio qualificado, algo que seja particularmente reprovável no domínio da culpa do agente, que o faça distinguir dos homicídios mais comuns.

Ora, a relação afectiva entre o arguido e a ofendida ainda era próxima no tempo e terminara por vontade desta, o que era um direito, sem dúvida, que lhe assistia por inteiro e que não poderia ser contestado por quem quer que fosse, muito menos com violência.

Não há, pois, que conceder que o motivo do crime foi de algum modo compreensível, pois não o foi. Foi mesmo um motivo muito reprovável, até porque se provou que o relacionamento entre o arguido e a vítima há muito que se havia transformado num mero «namoro», isto é, numa fase do relacionamento em que não há compromisso de vida em comum.

Mas, embora o motivo tenha sido muito reprovável, não se deve qualificá-lo como «fútil», isto é, irrelevante ou insignificante, ou como «torpe», ou seja, vil e abjecto.

Teresa Serra, in ob. cit., refere que o ciúme, em certas condições, pode ser considerado como motivo torpe ou fútil. Será o caso, diremos nós, por exemplo, de um relacionamento já terminado há muito tempo e em que um dos indivíduos descobre que o outro tem agora uma nova companhia e decide, mais por despeito do que por ciúme, matar o seu ex-cônjuge.

Como também é o caso relatado no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Novembro de 2008, proc. 08P3706, in www.dgsi.pt, que se reporta a uma situação factual em que o ciúme que levou o marido a matar a sua mulher não tinha qualquer suporte nos factos e não passava de uma mera suspeita, completamente infundada. Nesse caso, que não é equiparável ao dos autos, o motivo foi considerado “fútil”, por ser imaginário e quase tresloucado.

Assim, o ciúme que o arguido sentiu e que o levou ao crime – o ciúme exacerbado de um namoro que findara ainda muito recentemente e da consciência de que a amada entretanto iniciara novo relacionamento com terceiro - não pode ser considerado como especialmente censurável, ao ponto de conduzir o crime ao de homicídio qualificado, embora seja muito censurável.

Por último, a frieza de ânimo, a que se refere a alínea j) do nº 2 do artigo 132º do Código Penal, traduz a formação da vontade de praticar o facto de modo “frio, lento, reflexivo, cauteloso, deliberado e calmo na preparação do projecto criminoso” (cfr. Leal Henriques e Simas Santos, in Código Penal Anotado, Parte Especial, pág. 73); trata-se, assim, de uma circunstância agravante relacionada com o processo de formação da vontade de praticar o crime, devendo reconduzir-se às situações em que se verifica calma, reflexão ou sangue frio na preparação do ilícito, insensibilidade, indiferença e persistência na sua execução (neste sentido, vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 30 de Outubro de 2003, Proc. 3252/03, in www.dgsi.pt).

O protelamento da intenção de matar por mais de vinte e quatro horas evidencia uma vontade firme e de certo modo inabalável de execução do projecto criminoso, reflectindo-se também necessariamente, ao menos, numa maior censurabilidade do agente.

A reflexão sobre os meios é vista como “a escolha, o estudo ponderado dos meios de actuação que facilitem a execução do crime ou pelo menos diminuam a vulnerabilidade da concretização do desígnio criminoso. Isto é: o agente, ao escolher entre os meios disponíveis ou possíveis os mais idóneos, mais pensados e com maior capacidade de êxito, amplia a eficácia da acção e diminui as possibilidades de defesa da vítima (…)” (cfr. Leal Henriques e Simas santos, in ob. cit., pág. 73).

Deve, porém, tratar-se sempre de condutas que exteriorizam um especial juízo de culpa por serem uma refracção, ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente censuráveis, ou que documentem no facto qualidades particularmente desvaliosas da personalidade do agente.

No caso vertente, ponderada a factualidade dada como provada, afigura-se que, não obstante o instrumento utilizados pelo arguido (arma caçadeira de calibre de 12 mm) seja, sem dúvida, perigoso, se considera que não se pode considerar o mesmo “particularmente perigoso” ou “insidioso” – o que afasta a verificação da circunstância qualificativa agravante ao homicídio praticado pelo arguido prevista na alínea i).

Quanto à alínea j) – actuação “com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de 24 horas” –, refira-se que a matéria de facto dada como provada não integra esta circunstância qualificativa.

Na verdade, não obstante a conduta do arguido revelar um grau de culpa intenso, pelas circunstâncias de modo e tempo – a espera por parte do arguido à porta do estabelecimento, depois de se ter deslocado à sua residência para ir buscar a arma de fogo e as munições – não pode tal conduta ser considerada especialmente censurável para efeitos de integração dos factos no artigo 132.º do Código Penal. No entanto, essas circunstâncias devem ser valoradas, contra o arguido, na determinação da medida concreta da pena, nos termos do artigo 71.º do Código Penal.

De facto, não escamoteamos a existência de uma espera por parte do arguido aos ofendidos, espera essa que ocorreu de noite e que precedeu imediatamente a prática dos factos.

Contudo, essa espera não pode ser considerada como um ato traiçoeiro, pois que surge na sequência do encontro corrido na mesma noite na Danceteria São Martinho e da percepção que a sua ex-companheira iniciara um novo relacionamento, não constituindo para os ofendidos qualquer surpresa a presença do arguido nas imediações daquele estabelecimento de diversão noturna.

Assim, por tudo o exposto, conclui-se, pela verificação de um crime de homicídio simples (na forma tentada) em relação ao ofendido FF, previsto e punível pelos artigos 22.º, 23.º e 131.º do Código Penal, bem como pela verificação de um crime de homicídio qualificado (na forma consumada) em relação à ofendida BB, previsto e punível pelos artigos 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), do Código Penal

5. A tipicidade objectiva desse tipo legal de crime exige, para a sua verificação, que alguém cause a morte de outrem, pelo que, tratando-se de um crime material e de dano, a sua consumação depende da ocorrência de um certo resultado, que é a morte de uma pessoa, o que não se verificou in casum.

Dispõe o artigo 22.º do Código Penal que “há tentativa quando o agente praticar actos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este chegue a consumar-se (n.º 1), sendo estes actos de execução os que preencherem um elemento constitutivo de um tipo de crime, os que forem idóneos a produzir o resultado típico ou os que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes sigam actos das espécies indicadas nas alíneas anteriores” (n.º 2).

Daqui flui que é necessário os actos de execução em relação a cada crime e que para a existência da tentativa punível se exige um desvalor de acção e um desvalor de resultado. Este é dado pela exteriorização de actos que objectivamente se possam verificar orientados com idoneidade para violar o bem jurídico protegido.

A este propósito esclarece o n.º 3 do artigo 23.º do Código Penal que “a tentativa não é punível quando for manifesta a inaptidão do meio empregado pelo agente ou a inexistência do objecto essencial à consumação do crime”.

Segundo Maia Gonçalves, in Código penal Português Anotado, pág. 252, “a idoneidade do meio (…) salvo nos casos em que são manifestos não constitui obstáculo à existência da tentativa (…). O verdadeiro cerne da punibilidade da tentativa reside na avaliação da perigosidade referida ao bem jurídico (…). É que entende-se, dado o circunstancialismo em que o agente actuou, que o desvalor da acção merece ser punido (…) E merece porque denotou perigosidade em relação a um certo bem jurídico (…)”.

Na verdade, na tentativa, os fundamentos subjectivos do facto criminoso encontram-se totalmente preenchidos, mas a consumação delitiva não chega a ocorrer, pelo que não se realiza a lesão do correspondente bem jurídico, que quando muito foi posto em perigo pela actuação do sujeito.

Os pressupostos do crime tentado estão, por um lado, preenchidos quando, como diz a lei, o crime não chega a consumar-se, mas tais pressupostos estão igualmente preenchidos quando o tipo objectivo de ilícito se encontra por completo realizado. Também aqui o crime que acabou de consumar-se teve que passar, necessariamente, pela fase da correspondente tentativa, enquanto fase intermédia. Assim, pode-se afirmar que a ideia delitiva nasce na pessoa e que a partir daí até à consumação vai percorrer um caminho, o chamado iter criminis, em que se distinguem várias etapas: a fase interna, da decisão de cometer o crime, durante a qual o autor idealiza o seu plano, a fase preparatória, a fase da execução e a da consumação, quando todas as características típicas se encontram preenchidas.

Acresce que, a definição legal constante do artigo 22.º do Código Penal afigura-se ainda relevante para estabelecer a distinção entre actos preparatórios, que o artigo 21.º do Código Penal consigna que não são puníveis, salvo disposição em contrário, e a tentativa. Neste é patente a recepção, sublinhada por diversos autores, de uma noção objectiva de tentativa coincidente com a definição que de actos de execução se faz nas três alíneas do respectivo n.º 2. Mas a referência à expressão “actos de execução de um crime que decidiu cometer” leva a incorporar na tentativa um elemento subjectivo sem o qual, como escreve Figueiredo Dias, in “Sobre o Estado Actual da Doutrina do Crime”, in RPCC, 1 (1991), pág. 50, se “renunciaria à exigência de tipicização da ilicitude!” Segundo o Professor, recorrendo a um exemplo, “se um homem derruba uma rapariga e nesse momento é preso, qual o tipo de ilícito perante o qual vai pôr-se questão da tentativa? O do roubo, o do homicídio, o da violação? Eis o que só é possível responder através da referência à resolução do agente”. Sem uma referência ao dolo, ao menos como “dolo do tipo”, isto é, como conhecimento e vontade de realização do tipo de ilícito objectivo, “não é possível fundamentar tipicamente o ilícito da tentativa, não é possível, por outras palavras, realizar, relativamente à tentativa, a função de tipicização do ilícito”.

Nos presentes autos, somente se tendo verificado o resultado morte no caso da vítima BB, verifica-se que o crime de homicídio visando FF assume a forma tentada, pelo que, de qualquer modo, como se disse, se exige o dolo, elemento que se analisará de seguida.

6. O artigo 13.º do Código Penal, que estatui que “só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência”, consagra o princípio da excepcionalidade da punição das condutas negligentes e a ideia de que o dolo forma a característica geral do tipo subjectivo e a base para a imputação subjectiva do resultado típico. Ora, o legislador, tratando-se de crime doloso, qualquer que ele seja, limita-se a descrever os correspondentes elementos objectivos – ficando o lado subjectivo implicitamente reservado ao dolo como elemento subjectivo geral.

O dolo é essencialmente representação e vontade: é a vontade de realizar um tipo penal conhecendo o sujeito todas as circunstâncias fácticas objectivas, isto é, o dolo assume-se como conhecimento (momento intelectual) e vontade de realização do tipo (momento volitivo).

Portanto, o dolo é saber e querer: em sede de tipo de ilícito, enquanto determinante da direcção do comportamento, o dolo entende-se como conhecimento e vontade da realização do tipo objectivo; como forma de culpa, enquanto modo de formação de vontade que conduz ao facto, o dolo é portador da atitude pessoal contrária ao direito, especificamente ligado à realização dolosa do tipo. A diferença entre a ilicitude e a culpa reside na distinção entre desvalor de conduta e desvalor de atitude. Sendo, em regra, o dolo o portador destes dois juízos de desvalor, este desempenha necessariamente uma dupla função: na ilicitude, ele exprime a finalidade, o sentido subjectivo da acção; na culpa, será a expressão da atitude contrária ou indiferente ao direito característica da realização dolosa do tipo (neste sentido, vide Teresa Serra, in Homicídio Qualificado -Tipo de Culpa e Medida da Pena, pág. 32; também, Figueiredo Dias, in “Sobre o Estado Actual da Doutrina do Crime”, RPCC, 1 (1991), pág. 48 e ss).

Do que ficou dito resulta que a afirmação do dolo do tipo exige, antes de tudo, a apreensão do sentido ou significado, no essencial e segundo o nível próprio das representações do agente, da totalidade dos elementos constitutivos do respectivo tipo de ilícito objectivo, da factualidade típica.

Mas, se, de um lado, se impõe que, ao actuar, o agente conheça tudo o que é necessário a uma correcta orientação da sua consciência ética para o desvalor jurídico que concretamente se liga à acção intentada, para o seu carácter ilícito, de outro, exige-se a verificação no facto de uma vontade dirigida à sua realização, que se pode manifestar com maior ou menor grau de intensidade, de acordo com o disposto no artigo 14.º do Código Penal (a este propósito, vide Figueiredo Dias, “Direito Penal, Parte Geral”, Tomo I, 2004, pág. 328 e ss).

No plano da vontade, o dolo do tipo manifesta-se na intenção, nas diversas modalidades consagradas no artigo 14.º do Código Penal: dolo directo, dolo necessário e dolo eventual.

O dolo directo (dolo de intenção ou de primeiro grau) está identificado, grosso modo, com a intenção criminosa no n.º 1, do mencionado artigo 14.º. O agente prevê a realização do facto criminoso e tem como fim essa mesma realização: a realização do tipo objectivo de ilícito surge como verdadeiro fim da conduta.

No que tange ao dolo necessário, previsto no n.º 2 do mesmo preceito, o facto criminoso não constitui o fim que o agente se propõe realizar, é, antes, consequência necessária da realização pelo agente do fim que se propõe. Neste caso, produz-se um facto típico indissoluvelmente ligado ao almejado pelo autor e que, por isso mesmo, é conhecido e querido por ele.

Nesta sede, o resultado típico é representado pelo agente como consequência certa da sua conduta, enquanto que no dolo de intenção a tensão do agente é forte e marcante, pois o resultado típico corresponde ao objectivo primeiro e final da sua conduta.

No n.º 3 do artigo 14.º consagra-se legislativamente o dolo eventual, cuja exacta compreensão se move no espaço da mera representação como possível do resultado proibido – trata-se de um espaço onde o elemento vontade não se perfila frontalmente, antes se insinua na conformação da realização de um facto que preenche um tipo legal de crime. De resto, “é perfeitamente patente, na estrutura funcional do dolo, e independentemente da posição doutrinal que se adoptar, a possibilidade de verificação de dois ou mais resultados” (cfr. Faria Costa, in As Definições Legais de Dolo e Negligência, BFDUC, vol. LXIX, 1993).

Delicado é apurar o conteúdo verdadeiro do chamado dolo eventual. A estrutura fundamental do dolo como combinação de elementos cognitivos e volitivos resulta do próprio artigo 14.º do Código Penal, sendo certo que mesmo no dolo eventual não se prescinde de uma qualquer relação volitiva ou emocional. Na doutrina, contudo, sobram divergências – o único ponto de acordo consiste em que, nesta forma de dolo, o agente tem de representar o facto, pelo menos, como consequência possível da sua conduta (momento intelectual) – quanto a saber se poderá prescindir-se de uma relação emocional do agente com o resultado ou se o dolo eventual supõe, pelo menos, um rudimento do antigo dolus malus, ou seja, uma atitude hostil ou no mínimo indiferente em face do bem jurídico ameaçado.

A discussão faz sentido, sobretudo se pensarmos que os crimes negligentes têm molduras penais consideravelmente aligeiradas e que a tentativa e a participação são compatíveis apenas com a prática da infracção dolosa (cfr. artigos 22.º, 26.º e 27.º, todos do Código Penal).

A lei penal portuguesa acolhe a fórmula da conformação do agente com a realização do tipo de ilícito objectivo como elemento diferenciador do dolo eventual e da negligência consciente: age com dolo eventual quem, tendo previsto um certo resultado como consequência possível da sua conduta (elemento intelectual), toma a sério a possibilidade de violação dos bens jurídicos respectivos e, não obstante isso, decide-se pela execução do facto.

Nas palavras de Figueiredo Dias, in Textos de Direito Penal. A Doutrina Geral do Crime. Lições ao 3.º ano da FDUC, pág. 130, “o agente que revela uma absoluta indiferença pela violação do bem jurídico, apesar da representação da consequência como possível, sobrepõe de forma clara a satisfação do seu interesse ao desvalor do ilícito e por isso decide-se (se bem que não sob a forma de uma resolução ponderada, ainda que sí implicitamente, mas nem por isso de forma menos segura) pelo sério risco contido na conduta e, nesta acepção, conforma-se com a realização do tipo objectivo. Tanto basta para que o tipo subjectivo de ilícito deva ser qualificado como doloso”.

No caso dos autos, ponderando globalmente a factualidade dada como provada, não restam dúvidas que o arguido no que tange ao crime de homicídio qualificado, na forma tentada, e ao crime de homicídio simples, na forma tentada, agiu com dolo directo.

Com efeito, resultou provado que o arguido representou e quis, com a sua conduta, pôr termo à vida de BB e FF.

Paralelamente, a factualidade considerada provada revela que os ilícitos são intensamente culposos uma vez que o arguido, com a conduta descrita, revelou uma atitude particularmente censurável de leviandade ou de descuido perante o comando jurídico-penal, verificando-se, assim, a par do ilícito típico, o tipo de culpa do crime de homicídio qualificado, na forma consumada, e de homicídio simples, na forma tentada.

6. No que concerne à agravação prevista no nº 3 do artigo 86.º da Lei nº 5/2006, estabelece a norma incriminadora que «as penas aplicáveis a crimes cometidos com arma são agravados de um terço nos seus limites mínimo e máximo, excepto se o porte ou uso de arma for elemento do respectivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma».

E, em complemento, estabelece-se no n.º 4: «Para os efeitos previstos no número anterior, considera-se que o crime é cometido com arma quando qualquer comparticipante traga, no momento do crime, arma aparente ou oculta prevista nas alíneas a) a d) do nº 1, mesmo que se encontre autorizado ou dentro das condições legais ou prescrições da autoridade competente».

Como se diz no n.º 3, a agravação aí prevista só não terá lugar quando «o porte ou uso de arma for elemento do respectivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma».

O uso ou porte de arma não é elemento do crime de homicídio, cujo tipo legal fundamental é o previsto no artigo 131.º do Código Penal. Pode ser um factor de agravação, mas só o será se, para além de preencher um dos exemplos-padrão «meio particularmente perigoso» ou «prática de um crime de perigo comum» da alínea h) do n.º 2 do artigo 132.º, revelar «especial censurabilidade ou perversidade».

Enquanto a agravação do n.º 3 do artigo 86.º, encontrando fundamento num maior grau de ilicitude, tem sempre lugar se o crime for cometido com arma, a do artigo 132.º só operará se o uso de arma ocorrer em circunstâncias reveladoras de uma especial maior culpa. Além, para haver agravação, basta o uso de arma no cometimento do crime; aqui não.

O nº 3 do artigo 86.º só afasta a agravação nele prevista nos casos em que o uso ou porte de arma seja elemento do respectivo tipo de crime ou dê lugar, por outra via, a uma agravação mais elevada. A agravação do artigo 86.º, n.º 3, não é arredada ante a mera possibilidade de haver outra agravação, mas apenas se for de accionar efectivamente essa outra agravação. Ora, o uso de arma não é elemento do crime de homicídio, como se disse, e, no caso, não levou ao preenchimento do tipo qualificado do artigo 132º.

Não há, assim, fundamento para afastar a agravação daquele artigo 86.º, n.º 3, à qual se subsumem as condutas do arguido supra descritas.

7. Por seu turno, estatui o artigo 86.º, n.º 1, do Regime Jurídico das Armas e Munições, que:

“1 - Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, importar, transferir, guardar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação, transferência ou exportação, usar ou trouxer consigo:

a) Equipamentos, meios militares e material de guerra, arma biológica, arma química, arma radioativa ou suscetível de explosão nuclear, arma de fogo automática, arma longa semiautomática com a configuração de arma automática para uso militar ou das forças e serviços de segurança, explosivo civil, engenho explosivo civil, engenho explosivo ou incendiário improvisado, é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos;

b) Produtos ou substâncias que se destinem ou possam destinar, total ou parcialmente, a serem utilizados para o desenvolvimento, produção, manuseamento, accionamento, manutenção, armazenamento ou proliferação de armas biológicas, armas químicas ou armas radioactivas ou susceptíveis de explosão nuclear, ou para o desenvolvimento, produção, manutenção ou armazenamento de engenhos susceptíveis de transportar essas armas, é punido com pena de prisão de 2 a 5 anos;

c) Arma das classes B, B1, C e D, espingarda ou carabina facilmente desmontável em componentes de reduzida dimensão com vista à sua dissimulação, espingarda não modificada de cano de alma lisa inferior a 46 cm, arma de fogo dissimulada sob a forma de outro objecto, ou arma de fogo transformada ou modificada, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos ou com pena de multa até 600 dias;

d) Arma da classe E, arma branca dissimulada sob a forma de outro objeto, faca de abertura automática, estilete, faca de borboleta, faca de arremesso, estrela de lançar, boxers, outras armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse, aerossóis de defesa não constantes da alínea a) do n.º 7 do artigo 3.º, armas lançadoras de gases, bastão, bastão extensível, bastão elétrico, armas elétricas não constantes da alínea b) do n.º 7 do artigo 3.º, quaisquer engenhos ou instrumentos construídos exclusivamente com o fim de serem utilizados como arma de agressão, silenciador, partes essenciais da arma de fogo, artigos de pirotecnia, exceto os fogos-de-artifício de categoria 1, bem como munições de armas de fogo independentemente do tipo de projétil utilizado, é punido com pena de prisão até 4 anos ou com pena de multa até 480 dias.

2 - A detenção de arma não registada ou manifestada, quando obrigatório, constitui, para efeitos do número anterior, detenção de arma fora das condições legais.

3 - As penas aplicáveis a crimes cometidos com arma são agravadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo, excepto se o porte ou uso de arma for elemento do respectivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma.

4 - Para os efeitos previstos no número anterior, considera-se que o crime é cometido com arma quando qualquer comparticipante traga, no momento do crime, arma aparente ou oculta prevista nas alíneas a) a d) do n.º 1, mesmo que se encontre autorizado ou dentro das condições legais ou prescrições da autoridade competente.

5 - Em caso algum pode ser excedido o limite máximo de 25 anos da pena de prisão”.

Para efeitos do disposto no mencionado diploma legal e sua regulamentação e com vista a uma uniformização conceptual, entende-se por “Espingarda» a arma de fogo longa com cano de alma lisa (cfr. artigo 2.º, n.ºs 1, alíneas ar), e 2, alínea z), do mesmo diploma legal).

As armas e as munições são classificadas nas classes A, B, B1, C, D, E, F e G, de acordo com o grau de perigosidade, o fim a que se destinam e a sua utilização.

Assim, são armas, munições e acessórios da classe A, designadamente, “as armas, munições e acessórios fabricadas sem autorização” e da classe B “as armas de fogo curtas de repetição ou semiautomática” (cfr. artigo 3.º, n.ºs 2, alínea m) e n. 3, do mesmo diploma legal).

Analisando, antes de mais, o bem jurídico tutelado com a incriminação em causa, mostra-se pertinente parafrasear o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 5 de Junho de 2007 (Processo n.º 3994/2007-5), in www.dgsi.pt, que, a propósito, sublinha que o “que se pretende com a incriminação em causa, punindo a detenção ilegal de arma, é assegurar o controlo do Estado sobre a existência de armas em poder de particulares, obviando assim à disseminação destas pela sociedade, de forma indiscriminada e incontrolável, assim se prevenindo a lesão de bens jurídicos que podem ser postos em causa com esse tipo de comportamento”.

No mesmo aresto considerou-se ser irrelevante a origem da arma, sendo indiferente para os bens jurídicos que a norma visa proteger a origem regular ou irregular da mesma. Importante é, apenas, o facto de, no momento da detenção pelo arguido, a arma ter as características exigidas pelo tipo criminal.

Do cotejo do mencionado tipo legal resulta a exigência dos seguintes elementos objectivos: a) a verificação de uma das modalidades de comportamento ilícito (iguais em ambos); b) tendo por objecto, na parte que agora releva (atenta a configuração dos autos) uma arma proibida; c) fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente; e d) a ausência de justificação do portador da arma branca para a sua posse.

Com efeito, o crime de detenção de arma proibida é um crime de realização permanente e de perigo abstracto, em que o que está em causa, como se disse, é a própria perigosidade das armas, visando-se, com a incriminação da sua detenção tutelar o perigo de lesão da ordem, segurança e tranquilidade públicas face aos riscos da livre circulação e detenção de armas.

Neste sentido, este requisito legal – “o seu portador não justifique a sua posse” –, para uma arma como aquela transportada pelo arguido, não é um mero elemento retórico, assim não disponível como uma mera fórmula mais ou menos utilizável de acordo com uma geometria variável, ou que se possa inferir de outros factos que não aludam à utilização efectiva ou potencial da arma ou instrumento. Das duas uma: ou a posse de tal arma tem uma aplicação e justificação concreta, e então não há crime, ou o seu portador não consegue justificar a posse, e assim há crime.

Vejamos, então, antes de mais, se o tipo legal em apreço se encontra ou não preenchido.

Neste sentido, considerando a factualidade jurídica dada como provada, verifica-se que o arguido detinha, para além do mais, uma panóplia de munições e uma espingarda (condutas que integram as alíneas c) e d) do mencionado artigo 86.º).

Sucede que, no caso sub judice, resultado provado que o arguido não apresentou qualquer motivo para deter aquela arma naquela circunstância pelo que, tendo sido demonstrado que os objectos apreendidos na posse do arguido tinham as características legais de uma arma exigidas pela definição legal impõe-se decidir, nesta parte, pela condenação do mesmo.

8. Do ponto de vista subjectivo, os crimes de violência doméstica e de detenção de arma proibida são igualmente dolosos, pelo que, de acordo com a conceitualização da doutrina hoje dominante, se exige que o agente tenha conhecimento (momento intelectual) e vontade (momento volitivo) de realização dos tipos objectivos de ilícito.

De um lado, impõe-se que, ao actuar, o agente conheça tudo o que é necessário a uma correcta orientação da sua consciência ética para o desvalor jurídico que concretamente se liga à acção intentada, para o seu carácter ilícito, de outro, exige a verificação no facto de uma vontade dirigida à sua realização, que se pode manifestar com maior ou menor grau de intensidade, de acordo com o disposto no artigo 14.º do Código Penal.

No caso dos autos, resultou provado que o arguido agiu com a vontade determinada de causar vergonha, humilhação e indignação na vítima Ana Silva, bem como provocar-lhe mau estar psicológico e físico, causar-lhe receio pela vida e integridade física e quis deter as mencionadas arma e munições ilegalmente, sabendo que as suas condutas eram adequadas a produzir o resultado típico e punidas por lei, pelo que se verifica que o arguido actuou em todas as ocasiões com dolo directo, nos termos do disposto no artigo 14.º, n.º 1, do Código Penal.

9. Questão que deve ser posta nesta sede é a da relação entre o crime de detenção de arma proibida e os crimes de homicídio cometidos.

Sucede que, não obstante os homicídios serem agravados em função da utilização da arma, ao abrigo do aludido artigo 86.º, n.º 3, não é valorada nessa agravação a situação de proibição em que o arguido se encontrava em relação à arma, por falta da licença de uso e porte. Isso porque à agravação é indiferente que o agente esteja numa situação de legalidade ou de ilegalidade em relação à arma: a agravação teria lugar mesmo que o recorrente tivesse licença de uso e porte.

Mas, apesar de o comportamento global do arguido ser subsumível a dois tipos legais – homicídio e uso de arma proibida –, importa aquilatar se estamos em presença de um concurso efectivo ou aparente de crimes.

Importa, então, tomar em consideração os ensinamentos de Figueiredo Dias, in Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, pág. 989 e ss, que, depois de ter como assente que «é a unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica» existente no comportamento global do agente «que decide em definitivo da unidade ou pluralidade de (…) de crimes», considera que «a ideia central que preside à categoria do concurso aparente deve pois ser, repete-se, a de que situações da vida existem em que, preenchendo o comportamento global mais que um tipo legal concretamente aplicável, se verifica entre os sentidos de ilícito coexistentes uma conexão objectiva e/ou objectiva tal que deixa aparecer um daqueles sentidos de ilícito como absolutamente dominante, preponderante, ou principal, e hoc sensu autónomo, enquanto o restante ou os restantes surgem, também a uma consideração jurídico-social segundo o sentido, como dominados, subsidiários ou dependentes; a um ponto tal que a submissão do caso à incidência das regras de punição do concurso de crimes (…) seria desproporcionada, político-criminalmente desajustada e, ao menos em grande parte das hipóteses, inconstitucional. A referida dominância de um dos sentidos dos ilícitos singulares pode ocorrer em função de diversos pontos de vista: seja, em primeiro lugar e decisivamente, em função da unidade de sentido social do acontecimento ilícito global; seja em função da unidade de desígnio criminoso; seja em função da estreita conexão situacional, nomeadamente espácio-temporal, intercedente entre diversas realizações típicas singulares homogéneas; seja porque certos ilícitos singulares se apresentam como meros estádios de evolução ou de intensidade da realização típica global».

Como se viu, o arguido muniu-se de uma espingarda e, não possuindo a necessária licença de uso e porte, efectuou dois disparos na direcção das duas vítimas, que foram causa directa e necessária da morte de uma delas e só não determinaram a morte da outra por razões alheias à sua vontade. Sucede que, a conexão existente entre a conduta do arguido em relação às armas e o homicídio não se esgota na prática deste, mas faz aparecer, no comportamento global, o sentido autónomo de ilícito da detenção de uma panóplia de outras munições, não havendo, por isso, qualquer «unidade de sentido social do acontecimento ilícito global», pois o que o arguido pretendeu foi matar, sendo o uso de arma proibida mais que o processo de que se serviu para atingir o resultado almejado.

Impõe-se, por isso, autonomizar o crime do artigo 86.º, n.ºs 1, alínea c), e 2, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, devendo o arguido igualmente ser condenado nessa parte.

10. Por fim, refira-se que nenhum dos factos provados tem a virtualidade de integrar qualquer causa de justificação da ilicitude ou de exclusão da culpa do arguido por não se verificarem os respectivos pressupostos, sem prejuízo de serem considerados no momento da determinação concreta da medida da pena a aplicar ao arguido.

Face ao exposto, o arguido praticou, em autoria material e concurso real, de um crime de homicídio qualificado, na forma consumada, previsto e punido pelos artigos 131.º e 132.º, n.º 1 e n.º 2, alínea a), do Código Penal, agravado nos termos do artigo 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro; de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, alínea a), do Código Penal; de um crime de homicídio simples, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 22.º, 23.º e131.º do Código Penal, agravado nos termos do artigo 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro; e de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea c) e d) e n.º 2 da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro.

2.º DETERMINAÇÃO DA ESPÉCIE E MEDIDA DA PENA
1. O Código Penal traça um sistema punitivo que parte do princípio basilar de que as penas devem ser executadas com um sentido pedagógico e ressocializador.

Efectivamente, o artigo 40.º do Código Penal elege como fins das penas e das medidas de segurança a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente infractor na sociedade. Em articulação com este preceito, o n.º 1 do artigo 71.º do diploma legal citado, estabelece que a determinação da medida da pena é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.

No processo de escolha da medida da reacção criminal a culpa assume, assim, a dignidade de pressuposto incontornável de toda e qualquer punição.

Como considera Figueiredo Dias, in Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 352, a culpa e a prevenção constituem os dois vectores fundamentais em que assenta a operação de determinação da medida da pena. “Através do requisito de que sejam levadas em conta as exigências de prevenção, dá-se lugar à necessidade comunitária da punição do caso concreto e, consequentemente, à realização in casu das finalidades da pena.

Através do requisito de que seja tomada em consideração a culpa do agente, dá-se tradução à exigência de que a vertente pessoal do crime – ligada ao mandamento incondicional de respeito pela imanente dignidade da pessoa do agente – limite de forma inultrapassável as exigências de prevenção.”

Ora, dispõe o artigo 22.º, n.º 2, do Código Penal que “a tentativa é punida com a pena aplicável ao crime consumado, especialmente atenuada” pelo que, tratando-se de uma pena de prisão, e de acordo com o artigo 73.º, n.º 1, do mesmo diploma legal, o limite máximo da pena é reduzido a um terço e o limite mínimo é reduzido a um quinto se for igual ou superior a três anos e ao mínimo legal se for inferior.

Sucede que, por força da agravação prevista no artigo 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, as penas aplicáveis aos crimes de homicídio em apreço são agravadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo.

Assim, no caso vertente, a pena aplicável ao crime de detenção de arma proibida, na forma consumada, é de prisão de 1 (um) a 5 (cinco) anos ou de multa até 600 (seiscentos) dias, nos termos do disposto no artigo 86.º, n.ºs 1, alínea b) e c), e 2, da Lei n.º 5 /2006, de 23 de Fevereiro.

Por seu turno, o crime de homicídio qualificado, na forma consumada, agravado nos termos do artigo 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro é punido com pena de prisão de 16 (dezasseis) a 25 (vinte e cinco) anos, ao passo que o crime de homicídio simples, na forma tentada, agravado nos termos do artigo 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, é punido com pena de prisão de 8 (oito) a 16 (dezasseis) anos, nos termos do disposto nos artigos 22.º, 23.º,131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), todos do Código Penal, e o crime de violência doméstica é punido com pena de 2 (dois) a 5 (cinco) anos de prisão, nos termos do disposto nos artigos 152.º, n.º 1, alínea b), e 2, alínea a), do Código Penal.

Foi o legislador que, atendendo aos ponderosos interesses em causa, afastou a regra da preferência pela pena não detentiva no caso dos crimes de homicídio simples e qualificado, bem como no crime de violência doméstica, impondo a pena de prisão como única aplicável.

No mais, tratando-se de crime punido, em alternativa, com pena de prisão ou pena de multa, importa desde logo proceder à escolha da sanção a aplicar, em obediência ao disposto no artigo 70.º do Código Penal, nos termos do qual “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.

Sucede que, no caso vertente, avultam essencialmente factores que depõem contra o arguido, designadamente o elevado grau de ilicitude da sua conduta, a intensidade do dolo dessa conduta – que é directo –, o modo particularmente censurável de execução dos factos, a gravidade das consequências da conduta ilícita e, “the last, but not the least”, razões de prevenção geral, porquanto, crimes como o dos autos geram grande sentimento de insegurança na população impondo restabelecer a confiança da sociedade no restabelecimento da normatividade jurídica.

Ponderando os factores concretos de determinação da pena supra referidos, afigura-se que, não obstante a pena de prisão esteja sujeita ao princípio de ultima ratio, a pena de multa não se mostra suficiente e adequada a prevenir a prática de novos crimes de detenção de arma proibida, quer por parte do arguido, quer por parte da comunidade em geral.

Resta, por conseguinte, determinar o seu quantum.
2. Para a determinação da medida concreta da pena, importa ponderar todas as circunstâncias que, não integrando o tipo legal de crime em análise, se revelem susceptíveis de evidenciar as exigências concretas da culpa e da prevenção, em conformidade com o estatuído no n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal, tendo presente a sua natureza ambivalente, bem como a necessidade de ponderação global e valoração concreta de todas as circunstâncias apuradas.

A culpa do agente, por consubstanciar um juízo de valor, é insusceptível de medição exacta, pelo que, se confere ao julgador alguma flexibilidade na sua apreciação – que Anabela Miranda Rodrigues, in “O modelo de prevenção na determinação da medida concreta da pena”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 12, n.º 2, Abril -Junho de 2002, pág. 147 e ss, sublinha não ser ilimitada, mas consubstanciar discricionariedade juridicamente vinculada, sindicável por via de recurso – e que, não obstante, deverá ser integrada pela consideração das exigências de prevenção de futuros crimes.

O quantum de culpa constituirá sempre o limite máximo da pena a aplicar, em nome do princípio da culpa em sentido unilateral, segundo o qual, apesar de poder haver culpa sem pena, a pena dependerá sempre da existência de culpa, nos termos do disposto no artigo 40.º, n.º 2, do Código Penal.

Neste contexto, a prevenção geral determinará o mínimo abaixo do qual a intervenção punitiva do Estado seria de todo ineficaz para restabelecer a confiança comunitária na norma e ao mesmo tempo o máximo, que será o ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e de estabilização das expectativas comunitárias; a culpa funcionará sempre como limite máximo inultrapassável da pena, ainda que abaixo do óptimo encontrado quando operando com critérios de prevenção geral; por último, dentro da moldura assim encontrada, funcionará a prevenção especial positiva que determinará o quantum necessário para permitir ao arguido a sua ressocialização.

No caso sub judice, o Tribunal ponderou o elevado grau de ilicitude dos factos (vertido nos meios empregues pelo arguido para alcançar o resultado típico), bem como a intensidade do dolo com que o arguido agiu, que foi directo, pois que o arguido sabia e quis agir do modo descrito. Também foram ponderadas as qualidades da sua personalidade manifestadas no facto, que revelam uma marcada desconformação com o direito, atenta a gravidade dos ilícitos praticados, o motivo altamente censurável para a prática do crime, a preparação do acto lesivo (a espera pelas vítimas depois de ir buscar a arma à sua residência) e o modo de execução dos factos (pautado por uma ostensiva persistência em consumar os crimes de homicídio).

Saliente-se que a circunstância de concomitantemente o arguido ter matado a companheira na presença de FF, agrava o sofrimento desta vítima, o que eleva o gau de ilicitude, já por si intenso, para um patamar muito elevado.
Acresce que o arguido demonstrou uma manifesta falta de respeito pela vida humana e uma total ausência de sentido crítico, mostrando-se incapaz de interiorizar o desvalor jurídico da sua conduta.

Avulta ainda contra o arguido a relevância das consequências danosas dos seus actos ilícitos, sobretudo no que concerne à vítima mortal; sendo, contudo muito relevante os efeitos psicológicos causadores de perturbação de desajustamento à vítima FF.

No que concerne às necessidades de prevenção geral, diremos que as mesmas são se fixam num grau muito alto, merecendo, no caso em apreço, um especial cuidado, não só porque têm frequentemente sido levadas a cabo na nossa sociedade, como também pelo modo próprio e motivos subjacentes, sendo necessário repor a confiança nas normas jurídicas violadas de tal forma que se evitem situações de insegurança.

Por último, e no que diz respeito à prevenção especial, teremos que atender ao modo particularmente reprovável com que o crime foi cometido, à intensidade do dolo que presidiu às suas resoluções, à inserção sócio-profissional do arguido, à existência de um suporte familiar e social do mesmo e à inexistência de antecedentes criminais.

Entende-se, assim, que é simultaneamente adequado às exigências de prevenção geral e especial e respeitador do limite imposto pela culpa a aplicação ao arguido de uma pena de 19 (dezanove) anos de prisão pela prática de um crime de homicídio agravado, na forma consumada (perpetrado na pessoa de BB); de uma pena de 9 (nove) anos de prisão pela prática de um crime de homicídio simples agravado, na forma tentada, (perpetrado na pessoa de FF); de uma pena de 3 (três) anos de prisão pela prática de um crime de violência doméstica; e de uma pena de 2 (dois) anos de prisão pela prática de um crime de detenção de arma proibida.

3. Uma vez que se nos depara um caso em que o arguido cometeu quatro crimes em concurso real e efectivo, impõe-se proceder à aplicação de uma pena única, nos termos do disposto no artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal.

De acordo com este preceito, “quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.”

Neste caso, nos termos do n.º 2 do mesmo preceito, “a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes”.

Atentas estas regras, e a natureza idêntica das sanções penais, deverá equacionar-se a cumulação jurídica das penas únicas aplicadas ao arguido de acordo com a moldura que varia entre os 19 (dezanove) e os 25 (vinte e cinco) anos de prisão – considerando que o somatório das penas concretamente determinadas, que ascende a 33 (trinta e três) anos, excede o limite máximo aplicável.

No caso vertente, como vimos anteriormente, as consequências do crime de homicídio foram de máxima gravidade e a ilicitude, dentro da moldura penal apurada, é muito elevada, como são também muito elevadas as exigências de prevenção geral.

Já as exigências de prevenção especial mostram-se muito atenuadas, pois o arguido é considerado pessoa estimada no seu meio social; não registando antecedentes criminais.

De qualquer modo, a personalidade revelada pelo arguido (manifestada no extenso elenco dos factos dados como provados) e o seu comportamento posterior aos factos (expresso sobretudo na sua postura de total ausência de crítica em relação à ilicitude e à danosidade social das suas condutas ilícitas) revela o carácter assaz elevado das exigências de prevenção especial in casu.

A par deste juízo de prognose desfavorável, afigura-se-nos serem igualmente elevadas as expectativas da comunidade no sentido da defesa do ordenamento jurídico em face das características, da extensão e da gravidade das condutas ilícitas praticadas pelo arguido.

Com efeito, neste contexto, tendo em conta as finalidades da prevenção, quer geral, quer especial, cumpre incentivar nos cidadãos a convicção que comportamentos deste jaez são punidos, assim como há que dissuadir o arguido para que não volte a prevaricar.

Na verdade, a pena só cumpre a sua finalidade enquanto sentida como tal pelo seu destinatário. As penas têm essa designação, de outro modo não o seriam, nem constituiriam dissuasor necessário para prevenir as infrações, se não forem sentidas como tal, quer pelo agente, quer pela comunidade em geral.

Ponderando os vectores apontados, o conjunto dos factos, especialmente o grau de ilicitude das condutas do arguido e o seu grau de censurabilidade, e tendo em conta a moldura penal do crime pelo qual o arguido foi condenado, afigura-se adequado e suficiente fixar a pena única em 22 (vinte e dois) anos de prisão, atentas as considerações expendidas supra.

4. Nos termos do artigo 50.º do Código Penal estatui que “o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.

Nesta sede não estão em causa considerações sobre a culpa, mas exigências de prevenção, importando de determinar se existe a possibilidade fundada de que a socialização pode ser alcançada em liberdade.

Deste modo, sempre que o julgador formular um juízo de prognose favorável, à luz de considerações de prevenção especial, acerca da possibilidade de ressocialização, deverá deixar de decretar a execução da pena de prisão (neste sentido, vide Acórdão da Relação de Évora de 4 de Janeiro de 2000, in BMJ, Nº 493, pág. 432).

No plano da prevenção especial mostra-se necessária uma resposta punitiva que promova uma eficaz recuperação do agente, prevenindo a prática de comportamentos da mesma natureza, fazendo-lhe sentir a antijuridicidade e gravidade da sua conduta. Por isso, a opção deve partir de razões fundadas e sérias que levem a acreditar na capacidade do delinquente para a autoprevenção do cometimento de novos crimes, devendo a suspensão ser decretada sempre que se configure esse juízo favorável.

Sucede que, no caso vertente, não só se mostra legalmente inadmissível qualquer substituição da prisão fixada atenta a medida da pena concretamente determinada, mas sobretudo a personalidade revelada pelo arguido e as elevadas exigências de prevenção geral sempre imporiam, em absoluto, a opção pela pena privativa da liberdade.
(…)»

2.3. Conhecimento do recurso
2.3.1. Questão prévia:
Da correção do lapso de escrita existente na al. b) do dispositivo do acórdão recorrido:

Tal como assinalado pelo Exm.º PGA, constata-se existir lapso de escrita na alínea b) do dispositivo do acórdão recorrido, com referência à menção que nela se faz à alínea a) do n.º 2 do artigo 132º do Código Penal – que se refere à circunstância de o agente «Ser descendente ou ascendente, adoptado ou adoptante da vítima» , resultando da fundamentação de direito exarada no mesmo acórdão, que a circunstância qualificativa do crime de homicídio, na forma consumada, que o arguido preencheu é a prevista na al. b) do n.º 2 do artigo 132º do Código Penal – que, no segmento que, ao caso importa, se refere à circunstância de o agente «Praticar o facto contra (…) pessoa (…) com quem o agente (…) tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges (…)», sendo a esta última que se quis fazer referência na al. b) do dispositivo.

Assim, e ao abrigo do disposto no artigo 380º, n.º 1, al. b) e n.º 2, do CPP, determina-se a retificação do aludido lapso de escrita, nessa conformidade.

O enunciado lapso de escrita, determinou que, no recurso, o recorrente, se reportasse à al. a) do n.º 2 do artigo 132º do Código Penal, designadamente, referindo-lhe em algumas das questões suscitadas, pelo que, na decorrência da correção a que se acaba de proceder, considerar-se-á que, no recurso, a referência é feita à al. b) do n.º 2 do artigo 132º do Código Penal.

Posto isto, passamos a apreciar as questões suscitadas no recurso:
2.3.2. Da nulidade do acórdão
Sustenta o arguido/recorrente, em ordem a fundamentar a existência da invocada nulidade, que, em sede de fundamentação, o “tribunal não analisou criteriosamente todos os anacronismos e incongruências” das declarações do demandante AA, tendo, na ótica do recorrente, o tribunal deixado de pronunciar-se sobre questões que devia apreciar e, nessa medida, que o acórdão enferma da nulidade prevista no artigo 379º, n.º 1, al. c), do CPP.

O Ministério Público pronuncia-se no sentido da inexistência da apontada nulidade, manifestando que o Tribunal a quo explicitou, de forma racional e irrefutável, por que motivo valorou os depoimentos sobre os quais assentou a sua convicção, fazendo uma exaustiva apreciação das declarações do assistente AA, concluindo que o acórdão decorrido se mostra bem fundamentado.

Vejamos:
Sob a epígrafe “Requisitos da sentença”, estatui o artigo 374º do CPP, no seu n.º 2: «Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.»

Decorre da citada disposição legal, que a fundamentação da sentença penal, em relação à exposição dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, a mesma, ainda que concisa, deve ser completa, contendo e enunciação das provas que serviram para fundar a convicção alcançada pelo tribunal, bem como o exame crítico de tais provas.

O exame crítico da prova, como se refere no Acórdão da R.L. de 18/01/2011, proferido no processo nº. 1670/07.4TAFUN-A.L1-5, acessível no endereço www.dgsi.pt «deve consistir na explicitação do processo de formação da convicção do julgador, concretizada na indicação das razões pelas quais, e em que medida, determinado meio de prova ou determinados meios de prova, foram valorados num certo sentido e outros não o foram ou seja, a explicação dos motivos que levaram o tribunal a considerar certos meios de prova como idóneos e/ou credíveis e a considerar outros meios de prova como inidóneos e/ou não credíveis, e ainda na exposição e explicação dos critérios, lógicos e racionais, utilizados na apreciação efectuada

Um aspeto que haverá que ter presente é que, conforme vem sendo entendimento constante da jurisprudência, a atribuição de credibilidade, ou não, a prova testemunhal ou por declarações, assenta numa opção do julgador na base da imediação e da oralidade, decidindo de acordo com a livre convicção, que o tribunal de recurso só poderá censurar, se for contrária às regras da experiência comum e lógica[2].

A obrigatoriedade de fundamentação da decisão de facto em conformidade com o que se deixa exposto, como se escreve no Ac. do STJ de 29/06/1995, in CJ-STJ, Tomo III, tomo 2, pág. 254, que vem sendo reiteradamente citado em outros Acórdãos do STJ, «destina-se a garantir que o julgador seguiu um procedimento de convicção lógico e racional na apreciação das provas, e que a decisão sobre a matéria de facto não é arbitrária, dominada pelas impressões, ou afastada do sentido determinado pelas regras da experiência.

A razão de ser da exigência da exposição, ainda que concisa, dos meios de prova, é não só permitir aos sujeitos processuais e ao tribunal de recurso o exame do processo lógico ou racional que subjaz à formação da convicção do julgador, como assegura como assegurar a inexistência de violação do princípio da inadmissibilidade das proibições de prova; é necessário revelar o processo racional que conduziu à expressão da convicção. E a indicação das provas que serviram para formar a convicção apenas é obrigatória na medida do que é necessário.»

Nos termos do disposto no artigo 379º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Penal, a sentença é nula quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar.

Tal como decorre desse normativo, verifica-se quando o tribunal deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar, ou seja, como escreve o Cons. Oliveira Mendes, in Código de Processo Penal Comentado, 2016, 2ª edição, págs. 1132 e 1133, «(…) questões de conhecimento oficioso e questões cuja apreciação é solicitada pelos sujeitos processuais e sobre as quais o tribunal não está impedido de se pronunciar – artigo 608º, nº. 2, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 4º, do CPP. (…).

A falta de pronúncia que determina a nulidade da sentença incide, pois, sobre as questões (…), entendendo-se por questão o dissídio ou problema concreto a decidir e não os simples argumentos, razões, opiniões ou doutrinas expendidos pela parte em defesa da sua pretensão.»

É neste sentido o entendimento pacífico na jurisprudência[3].
Tendo presentes estas considerações e baixando ao caso dos autos:
Lida a motivação da decisão de facto consignada no acórdão recorrido, que se deixou transcrita supra, entendemos que o Tribunal a quo observou a apontada exigência de fundamentação da decisão tomada, no referente à convicção alicerçada e que o levou a dar como provados os factos acima descritos, enunciando as provas que serviram de suporte a essa convicção e procedendo ao respetivo exame crítico, designadamente, explicitando as razões por que atribuiu credibilidade às declarações do demandante AA (existindo lapso material na referência que é feita, quer no acórdão, que na motivação de recurso, à qualidade de assistente), em detrimento das declarações do arguido, ora recorrente, na parte em que se revelaram divergentes.

A fundamentação explicitada pelo Tribunal a quo evidencia o raciocínio seguido para atingir a convicção que formou, observando a exigência prevista no artigo 374º, n.º 2, do CPP.

Questão diferente e que será objeto de apreciação infra é a de saber se as provas a que o Tribunal a quo atendeu e respetiva valoração, são ou não suficientes para permitirem ao Tribunal a quo, no exercício do poder de livre apreciação da prova e para além da dúvida razoável, concluir no sentido em que o fez, dando como provados os factos que são objeto de impugnação pelo arguido, ora recorrente.

Nesta conformidade, conclui-se pela inexistência do apontado fundamento de nulidade do acórdão, pelo que, nesta vertente, improcede o recurso.

2.3.3. Da impugnação da matéria de facto dada como provada sob o n.º 3

O arguido/recorrente impugna a matéria de facto dada como provada no acórdão recorrido sob o ponto 3, invocando o erro de julgamento, a violação do princípio da livre apreciação da prova previsto no artigo 127º do CPP, a insuficiência da matéria de facto para a decisão e o erro notório na apreciação da prova.

O Ministério Público pronuncia-se no sentido de que o acórdão recorrido não enferma de qualquer dos invocados vícios e de que o Tribunal a quo procedeu a uma correta apreciação da prova produzida, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, que foi respeitado, pelo que, a decisão da matéria de facto deve ser mantida.

Antes de passarmos a apreciar a questão referenciada, importa tecer algumas considerações teóricas sobre a impugnação da matéria de facto em sede recursiva:

O recorrente que pretenda impugnar a matéria de facto, pode fazê-lo por duas vias, sendo uma delas, de âmbito mais restrito, invocando os vícios previstos no artigo 410º, n.º 2, do CPP – a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) O erro notório na apreciação da prova; e a outra através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412º, n.ºs 3, 4 e 6, do C.P.P.

Em relação aos vícios previstos no artigo 410º, n.º 2, tendo em conta os fundamentos da impugnação da matéria de facto aduzidos pelo ora recorrente, importa considerar os vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e do erro notório na apreciação da prova.

Assim:
A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, vício previsto na al. a) do n.º 2 do artigo 410º do C.P.P., ocorre quando os factos provados e constantes da decisão recorrida são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem – absolvição, condenação, existência de causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou de dispensa da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc. – e isto, porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda, porque não investigou factos que deviam ter sido apurados na audiência.

«A insuficiência para decisão da matéria de facto provada não se confunde com a insuficiência da prova para os factos que erradamente foram dados como provados. Na primeira critica-se o Tribunal por não ter indagado e conhecido os factos que podia e devia, tendo em vista a decisão justa a proferir de harmonia com o objeto do processo; na segunda censura-se a errada apreciação da prova levada a cabo pelo Tribunal: teriam sido dados como provados factos sem prova para tal.» - Ac. da RL de 18/07/2013, proferido no proc. 1/05.2JFLSB.L1-3, acessível no endereço www.dgs.pt.

O vício do erro notório na apreciação da prova, previsto na al. c) do n.º 2 do artigo 410º do CPP, verifica-se quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar, arbitrária, de todo insustentável, e as regras da experiência comum. Tem de ser um erro patente, evidente, percetível por um qualquer cidadão.

No dizer dos Cons. Simas Santos e Leal-Henriques, in Recursos em Processo Penal, 7ª edição, 2008, Editora Rei dos Livros, pág. 77, existe erro notório na apreciação da prova quando ocorre «falha grosseira e ostensiva na análise da prova, percetível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou (…).
Ou, dito de outro modo, há um tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios, ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das legis artis.»

Conforme vem sendo afirmado pela jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores e tal como decorre do n.º 2 do artigo 410º, tais vícios têm que resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo admissível o recurso a elementos estranhos à decisão recorrida, para fundamentar a impugnação, ainda que constem dos autos e mesmo que tenham resultado do próprio julgamento.

A impugnação ampla da matéria de facto a que alude o artigo 412º, n.º 3, do CPP, visa a correção do erro de julgamento, que ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova, pelo que deveria ter sido considerado não provado, ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.

Diversamente do que sucede quando são invocados os vícios do artigo 410º, n.º 2, do CPP, essa reapreciação não se restringe ao texto da decisão recorrida, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada/gravada) produzida em audiência, dentro dos limites fornecidos pelo recorrente, no cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do artigo 412º do CPP, sem prejuízo de poder ouvir outras passagens que não as indicadas no recurso (n.º 6 do artigo 412º do CPP).

Todavia, conforme jurisprudência uniforme dos nossos Tribunais Superiores, o recurso da matéria de facto, não visa a realização de um segundo e novo julgamento sobre aquela matéria, com base na audição de gravações e na apreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, como se esta não existisse. O que se visa é uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos pontos de facto que o recorrente especifique como incorretamente julgados.

Daí que a delimitação desses pontos de facto seja determinante na definição do objeto do recurso, cabendo ao tribunal da Relação confrontar o juízo sobre eles que foi realizado pelo tribunal a quo com a sua própria convicção, determinada pela valoração autónoma das provas que o recorrente identifique nas conclusões da motivação.

Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa.

A ausência de imediação determina que o tribunal de 2ª instância, no recurso da matéria de facto, só possa alterar o decidido pela 1ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida e não apenas se a permitirem (cf. al. b) do n.º 3 do referenciado artigo 412º)

É que a decisão do recurso sobre a matéria de facto não pode ignorar, antes tem de respeitar o princípio da livre apreciação da prova do julgador, estabelecido no artigo 127º do Código de Processo Penal e a sua relação com os princípios da imediação e a oralidade, sobretudo quando tem de se debruçar sobre a valoração efetuada na 1ª instância da prova testemunhal.

O princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127º do CPP, estabelece que, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.

A livre apreciação da prova, conforme bem refere o Prof. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, II, Lisboa, Verbo, 1993, pág. 111, deve ser entendida como “valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objetivar a apreciação, requisito necessário para uma efetiva motivação da decisão”.

Esta valoração da prova, que vai ser obrigatoriamente expressa na fundamentação da sentença (cf. artigo 374º, nº. 2, do CPP e artigo 205º, nº. 1, da CRP), é importante porque constituiu “um verdadeiro factor de legitimação do poder jurisdicional, contribuindo para a congruência entre o exercício desse poder e a base sobre a qual repousa: o dever de dizer o direito no caso concreto (iuris dicere). E, nessa medida, é a garantia de respeito pelos princípios da legalidade, da independência do juiz e da imparcialidade das suas decisões”. – Ac. do TC nº. 281/2005, DR II Série de 6/7/2005, pág. 9844.

Existirá violação do princípio da livre apreciação da prova se, na apreciação da prova e nas ilações extraídas, o julgador não respeitar os princípios em que se consubstancia o direito probatório e as regras da experiência comum, da lógica e de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório. – Ac. da RC de 01/10/2008, proferido no proc. 3/07.4GAVGS.C2, acessível no endereço www.dgsi.pt.

Do exposto decorre, por um lado, uma «intima conexão existente entre o princípio da livre apreciação da prova, o princípio da presunção de inocência, o dever de fundamentação das sentenças, o direito ao recurso, e o direito à tutela efectiva.» – Paulo Saragoça da Matta, A livre apreciação da prova e o dever de fundamentação da sentença, in Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Almedina, junho de 2004, pág. 251.

Tendo presentes as considerações que se deixam expendidas e baixando ao caso concreto:

Verifica-se que o arguido/recorrente, ao impugnar a matéria de facto dada como provada, no ponto 3) – que tem a seguinte redação: «Durante o período em que viveram juntos, em várias ocasiões, RR dirigiu-se a BB apelidando-a de “cabra”, “vaca” e “puta” e acusou-a de “ter muitos amantes –, fá-lo convocando as declarações prestadas pelo demandante AA, que qualifica de contraditórias e incongruentes, defendendo que, com base nas mesmas não poderia o Tribunal a quo dar como provada aquela factualidade, ao mesmo tempo que, com esse fundamento, invoca a existência da “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada” e do “erro notório na apreciação da prova”, respetivamente, previstos nas alínea a) e c) do n.º 2 do artigo 410º, n.º 2, do C.P.P., que constituem, tal como se referiu supra, vícios intrínsecos da decisão.

Neste contexto, resulta manifesto que, não obstante invocar os apontados vícios do n.º 2 do artigo 410º, o que o recorrente pretende é atacar a apreciação/valoração da prova que foi feita pelo julgador, o que se reconduz ao erro de julgamento – artigo 412º, n.º 3 do C.P.P.

Não obstante a apontada incongruência, apreciaremos a impugnação da matéria de facto, nas duas vertentes enunciadas, sendo que no tocante à impugnação ampla da matéria de facto, o recorrente cumpriu, no essencial, o ónus de especificação previsto no artigo 412º, n.º 3, alíneas a) e b) e n.º 4 do Código de Processo Penal.

Assim:
2.3.3.1. Da insuficiência da matéria de facto para a decisão
Alega o recorrente, para fundamentar a existência da invocada insuficiência, que o Tribunal a quo deu como provada a matéria factual vertida no ponto 3 (que determinou a agravação do crime de violência doméstica e indiretamente, por efeito de repercussão, também do de homicídio), quando, contrariamente ao que consta da fundamentação da decisão de facto, o arguido não confessou ter dirigido à vítima as expressões “cabra” e “puta”, antes negou, de forma perentória, tê-lo feito e tendo valorado o depoimento de AA, que se revela contraditório e despido de lógica intrínseca, à luz das regras da experiência e da psicologia, alvitrando o recorrente que em relação a esse segmento da decisão de facto o Tribunal a quo possa ter alicerçado a sua convicção em presunções naturais, sem que se mostram verificados os respetivos pressupostos.

Apreciando:
Tendo em conta os contornos do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, que acima se deixaram definidos, sendo que, como se frisou, tal vício não se confunde com a ausência ou a insuficiência da prova para que fossem dados como provados determinados factos (situação que se reconduz ao erro na apreciação/valoração da prova), tratando-se de um vício que terá de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, no caso vertente, lido o acórdão recorrido, resulta clarividente que o mesmo não enferma de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada. Com efeito, os factos que foram dados como provados no acórdão recorrido, considerando o respetivo enquadramento jurídico-penal, são bastantes para a decisão de direito, que foi tomada (sem prejuízo, obviamente, do que venha a decidir-se em sede de apreciação da questão do erro de subsunção), pelo que, se impõe concluir pela inexistência do invocado vício.

Improcede, pois, este fundamento do recurso.

2.3.3.2. Do erro notório na apreciação da prova
Sustenta o recorrente que existe erro notório na apreciação da prova, na medida em que o Tribunal a quo valorou o depoimento de AA, quando o mesmo não devia merecer credibilidade, pois que, contraria as regras da experiência comum e da psicologia que «perante insultos que nem se lembra quais são agride e expulsa de casa o aqui recorrente, no entanto ouve este chamar à mãe “cabra” e “puta” – afinal, confirmou as expressões proferidas – e nada faz?!».

Apreciando:
Constituindo o erro notório na apreciação da prova, nos termos sobreditos, um defeito estrutural/intrínseco da decisão, terá de resultar do respetivo texto, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, não se podendo recorrer à prova produzida na audiência, gravada, nem à prova documental ou pericial que consta dos autos, para sustentar a existência de tal vício.

Lida a motivação da decisão de facto exarada no acórdão recorrido, tendo em conta os contornos do erro notório na apreciação da prova, nos termos que acima se deixaram definidos, entendemos ser inequívoco que o acórdão recorrido, não enferma de tal vício, enquanto erro grosseiro, ostensivo e apreensível pela generalidade das pessoas, mediante a simples leitura da decisão.

E contrariamente ao que entende o arguido/recorrente, não afronta as regras da experiência comum, de molde a poder pôr em crise a credibilidade que o Tribunal a quo atribuiu às declarações do demandante AA, a circunstância deste não se recordar das palavras que o arguido dirigiu à sua mãe, na ocasião em que, no circunstancialismo que descreveu, agrediu o arguido e expulsou-o de casa. Na verdade, a atitude do demandante AA, na concreta situação em que agiu da forma descrita, para com o arguido, ora recorrente, surge como reação ao descrito comportamento que o arguido vinha assumindo para com a mãe do declarante, ao longo do tempo, tendo a mesma já anteriormente apresentado queixa/denuncia contra o arguido, na GNR, e dado o estado de tensão emocional inerente a acontecimentos desta natureza, é perfeitamente normal e consentâneo com as regras da experiência comum que o declarante não se recorde de quais as palavras que, na concreta situação, o arguido dirigiu à sua mãe.

O recurso é, pois, também nesta vertente, improcedente.

2.3.3.3. Do erro de julgamento
Defende o recorrente que se impunha que tivesse sido dada como não provada a factualidade constante do ponto 3 dos factos provados, por o depoimento do demandante AA não ser merecedor da credibilidade que lhe foi atribuída pelo Tribunal a quorevelando-se, no entender do recorrente, contraditório e despido de lógica intrínseca, à luz das regras da experiência e da psicologia – e, como tal não devendo ser valorado, ao invés do que aconteceu e devendo as declarações do arguido serem valoradas, sendo que, contrariamente ao que se consignou na fundamentação de facto, o arguido negou que tivesse dirigido à vítima as expressões “cabra” e “puta”.

Vejamos:
Desde logo, importa deixar claro que o erro de julgamento, não pode ser confundido, com a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em julgamento e a convicção que o tribunal formou, vigorando, neste âmbito, o princípio da livre apreciação da prova pelo julgador, previsto no artigo 127º do Código de Processo Penal.

Não pode admitir-se que haja uma inversão de papéis do juiz e do recorrente, em termos de a convicção pessoal deste último se poder afirmar ou sobrepor à convicção formada pelo julgador, logo que esta se mostre alicerçada nas provas produzidas, respeitando os princípios e as normas legais do direito probatório e que seja devidamente fundamentada.

Neste âmbito, o tribunal de recurso limita-se a aferir do processo de motivação e de conformidade com as regras legais de apreciação de prova e a só pode determinar a alteração da matéria de facto fixada se concluir que os elementos de prova indicados pelo recorrente impõem uma decisão diversa e não se apenas permitem uma outra decisão.

E conforme vem sendo entendimento constante da jurisprudência, a atribuição de credibilidade, ou não, a prova testemunhal ou por declarações, assenta numa opção do julgador na base da imediação e da oralidade, decidindo de acordo com a livre convicção, que o tribunal de recurso só poderá censurar, se for contrária às regras da experiência comum e lógica[4].

Consequentemente, a crítica à convicção do tribunal a quo sustentada na livre apreciação da prova e nas regras da experiência não pode ter sucesso se se alicerçar apenas na diferente convicção do recorrente sobre a prova produzida.

Defende o arguido/recorrente que o Tribunal a quo devia ter valorado as suas declarações, que, contrariamente ao que fez constar da fundamentação da decisão de facto, não confessou, mas antes negou, rotunda e perentoriamente, que tivesse dirigido à vitima, as expressões “cabra” e “puta”.

Tendo-se procedido à audição da gravação das declarações prestadas pelo arguido, ora recorrente, na audiência de julgamento, constata-se que lhe assiste inteira razão quando sustenta que negou, perentória e repetidamente, que tivesse chamado à vitima BB “cabra” e “puta”, admitindo que lhe chamou “mentirosa” e “ranhosa”, pelo que, a asserção feita na motivação da decisão de facto de que o arguido confessou que “dirigiu à vítima as expressões injuriosas imputadas ao mesmo no libelo acusatório” não se mostra conforme ao que o arguido admitiu/confessou.

Porém, ainda que o arguido haja negado ter dirigido à vitima os epítetos “cabra” e “puta”, conforme resulta da motivação da decisão de facto e confirmámos pela audição da gravação das declarações dos demandantes AA, DD e GG (sendo em relação aos dois últimos o fizemos, ao abrigo do disposto no artigo 412º, n.º 6, do CPP), se é certo que o primeiro (ao invés do que resulta do que foi consignado, nessa parte, pelo Tribunal a quo, na motivação da decisão de facto) não confirmou ter presenciado o arguido a dirigir as referenciadas expressões à vitima, sua mãe (explicando o mesmo demandante que a mãe procurava esconder dele o que se passava, pois sabia que não ia reagir bem à situação, como aconteceu, na altura em que agrediu e expulsou o arguido de casa e que por ter horários de trabalho e de descanso desencontrados dos do arguido, muitas das coisas passavam-se nas suas costas), os dois últimos confirmaram ter o arguido, durante a vivência em comum com a mãe dos mesmos, dirigido a esta, no decurso de discussões havidas, expressões tais como “puta” e “vaca” e acusando-a de andar com outros homens.

Neste contexto, ainda que a asserção feita pelo Tribunal a quo, no sentido de que o arguido confessou que “dirigiu à vítima as expressões injuriosas imputadas ao mesmo no libelo acusatório”, seja incorreta, posto que, no tocante às expressões que constam do ponto 3 da matéria factual provada e objeto de impugnação, o arguido negou tê-las proferido e ainda que o demandante AA, contrariamente ao que foi exarado na motivação da decisão de facto, não tenha confirmado “as injúrias proferidas”, pelo arguido e dirigidas à sua mãe (o demandante AA não afirmou que não tivessem existido, mas não revelou conhecimento direto da sua ocorrência, explicando que, durante a vivência em comum da sua mãe e do arguido, o demandante fazia horários completamente distintos dos do arguido e que muitos dos acontecimentos se passavam nas suas costas), tendo os demandantes DD e GG confirmando que presenciaram o arguido a “chamar nomes” à sua mãe, designadamente, “puta” e “vaca” e acusando-a de andar outros homens, corroborando o depoimento da ofendida BB, prestou em sede de inquérito, perante o órgão de Polícia Criminal, a fls. 210, que foi reproduzido, na audiência de julgamento, com observância do disposto no artigo 356º, n.ºs 2, al. b) e 5, do CPP e valorado pelo Tribunal a quo, resultando deste que o arguido também lhe dirigiu o epíteto “cabra”, contrariando, desse modo, a versão do arguido, que negou ter dirigido essas expressões à ofendida, atribuindo o Tribunal a quo credibilidade às declarações dos demandantes, decidindo de acordo com a livre convicção, devidamente explicitada e não existindo quaisquer razões objetivas para pôr em causa essa atribuição de credibilidade, há que concluir que as declarações dos demandantes DD e GG, em conjugação com o depoimento da ofendida prestado em sede de inquérito e reproduzido na audiência de julgamento e que foi valorado, conduzem, inevitavelmente, à assunção probatória da matéria de facto vertida no ponto 3 e que as provas indicadas pelo arguido/recorrente (concretamente as declarações que prestou, na audiência de julgamento), não impõem decisão diversa da acolhida pelo Tribunal a quo, ao dar como provados esses factos.

A impugnação da matéria de facto é, pois, também nesta vertente, improcedente.

2.3.4. Da violação do princípio in dúbio pro reo
Defende o recorrente que, face à prova produzida, tendo em conta o depoimento do demandante André Diniz e na ausência de outra prova que confirmasse a matéria factual vertida no ponto 3, impunha-se a aplicação do princípio “in dúbio pro reo”, pelo que, ao assim decidir, o Tribunal a quo violou esse princípio.

O Ministério Público pronuncia-se no sentido de não ter sido violado, pelo Tribunal a quo, o enunciado principio.

Apreciando:
O princípio in dúbio pro reo, que é decorrência do princípio constitucional consagrado no artigo 32º, n.º 2 da CRP, impõe ao julgador que, quando confrontado com a dúvida, razoável e fundada, em matéria de prova, que resolva tal dúvida em sentido favorável ao arguido.

E como vem frisado pela jurisprudência, o tribunal de recurso apenas pode censurar o uso feito do princípio in dúbio pro reo se da decisão recorrida resultar que o tribunal a quo chegou a um estado de dúvida insanável e que, perante essa dúvida, optou por decidir em sentido desfavorável ao arguido.[5]

Noutra vertente, a violação do princípio in dúbio pro reo, verificar-se-á, quando, no âmbito da impugnação ampla da matéria de facto, resulte demonstrado, o erro na apreciação da prova produzida, em termos de se concluir que o julgador, ao condenar o arguido, com base na prova a que atendeu e na valoração a que procedeu, contrariou as regras da experiência comum, quando, deveria ter chegado a um estado de dúvida insanável e, por isso, deveria ter decidido a favor do arguido.

Como decidiu o STJ, em Acórdão de 15/06/2000, in BMJ 498, pág. 148[6] «O princípio in dúbio pro reo acha-se intimamente ligado ao da livre apreciação da prova do qual constitui faceta e este último apenas comporta as exceções integradas no princípio da prova legal ou tarifada ou as que derivem de uma apreciação arbitrária, discricionária ou caprichosa da prova produzida ou ofensiva das regras da experiência comum

Temos assim, que o tribunal de recurso só pode censurar o não uso do princípio in dúbio pro reo se da decisão recorrida resultar que o tribunal a quo chegou a um estado de dúvida insanável e que, perante essa dúvida, optou por decidir em sentido desfavorável ao arguido ou, se, em sede de impugnação ampla da matéria de facto, o tribunal de recurso concluir que da prova produzida e documentada, resulta que, ao condenar o arguido, com base em tal prova, o julgador contrariou as regras da experiência comum ou desrespeitou as regras da lógica, caso em que, ao contrário do decidido, deveria ter chegado a um estado de dúvida insanável e, por isso, deveria ter decidido a favor do arguido.

Ora, lendo a motivação da matéria de facto exarada no acórdão recorrido constata-se que o julgador não ficou com qualquer dúvida em relação à prova dos factos que deu como assentes, designadamente, dos factos que são impugnados pelo ora recorrente.

Por outro lado, atentando-se nas razões que presidiram à valoração da prova produzida, enunciadas na motivação da decisão de facto, que se revelam consentâneas com a regras da experiência comum, decidindo o Tribunal a quo, de acordo com a livre convicção, nos termos previstos no artigo 127º do CPP – ainda que com a ressalva, nos termos sobreditos, da existência de incorreção nas asserções feitas pelo Tribunal a quo, de que o arguido confessou que “dirigiu à vítima as expressões injuriosas imputadas ao mesmo no libelo acusatório” e de que o demandante AA confirmou “as injúrias proferidas” pelo arguido –, designadamente, atribuindo credibilidade às declarações dos demandantes, tendo os demandantes DD e GG, assegurado que, durante a vivência em comum do casal, o arguido dirigiu à mãe dos demandantes, as expressões já referenciadas, fica afastada a possibilidade de a prova produzida determinar que o Tribunal a quo, devesse ter sido confrontado com dúvida razoável e fundada, em termos de valoração da prova, que devesse resolver em sentido favorável ao arguido/recorrente.

Nesta conformidade, impõe-se concluir que não existir violação, por parte do Tribunal a quo, do princípio in dúbio pro reo.

Improcede, assim, também este fundamento do recurso.
*
Mantém-se, assim, inalterada a matéria de facto dada como provada no acórdão recorrido, designadamente, a factualidade vertida no ponto 3, que foi objeto de impugnação no recurso.

2.3.5. Do erro de subsunção dos factos ao crime de violência doméstica agravado

O recorrente pretende ver arredada a agravação do crime de violência doméstica prevista no n.º 2 do artigo 152º do Código Penal, no segmento que se refere à prática dos factos «no domicílio comum ou no domicílio da vítima», defendendo que apenas pode ser condenado pelo crime de violência doméstica simples (cf. Conclusão 44 da motivação do recurso).

O Ministério Público defende que se mostra correta a subsunção da conduta do arguido agora em referência, ao crime de violência doméstica agravado, mostrando-se preenchida a circunstância agravante prevista no n.º 2 do artigo 152º do CP.

Vejamos:
A agravação do crime de violência doméstica, nos termos previstos no n.º 2 do artigo 152º do Código Penal e que, no caso concreto, releva é a de o agente praticar os factos enunciados no n.º 1 do mesmo artigo «no domicílio comum ou no domicílio da vítima».

Ora, confrontando a matéria factual provada, dela não resulta, que as condutas assumidas pelo arguido, ora recorrente, para com a ofendida que se mostram assentes e que integram o crime de violência doméstica, tiveram lugar «no domicílio comum ou no domicílio da vítima», sendo que, com referência à matéria factual dada como provada no ponto 3 – concretamente que «Durante o período em que viveram juntos, em várias ocasiões, RR dirigiu-se a BB apelidando-a de “cabra”, “vaca” e “puta” e acusou-a de “ter muitos amantes» – dela não resulta que a descrita atuação do arguido, ora recorrente, aconteceu «no domicílio comum» do, então, casal, constituído pelo arguido e pela ofendida.

Salvo o devido respeito pela posição contrária, da circunstância de ter sido dado como provado que o arguido dirigiu a BB os epítetos referidos no ponto 3., «durante o período que viveram juntos, em várias ocasiões», não permite concluir que tais factos ocorreram no «domicílio comum».

Assim sendo, nesta parte, assiste razão ao recorrente, quando defende não poder concluir-se pelo preenchimento da circunstância agravante prevista no n.º 2 do artigo 152º do Código Penal, por que foi condenado na 1ª instância.

Por conseguinte, a conduta do arguido/recorrente em apreço, é subsumível ao crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, n.º 1, al. b), do Código Penal.

2.3.6. Da violação do princípio da dupla valoração relativamente à circunstância qualificativa prevista no artigo 132º, n.º 2, al. b), do Código Penal

Sustenta o recorrente ter existido «dupla valoração da conjugalidade», ao qualificar-se o crime de violência doméstica, por as injúrias terem sido proferidas no domicílio comum do casal e ao qualificar-se o homicídio, pela al. b) do n.º 2 do artigo 132º do Código Penal.

O Ministério Público defende que não ocorre a invocada dupla valoração.

Vejamos:
Tendo-se concluído pelo não preenchimento da circunstância agravante do crime de violência doméstica prevista no n.º 2 do artigo 152º do C.P. e ainda que se mostre, de certo modo prejudicada, a apreciação da questão em apreço, dada a fundamentação aduzida pelo recorrente para defender a existência de «dupla valoração da conjugalidade», sempre se dirá que o fundamento da agravação do crime de violência doméstica, que se refere à prática dos factos no «domicílio comum», prevista no n.º 2 do artigo 152º do C.P., é totalmente distinto do fundamento da qualificação do homicídio prevista na al. b) do n.º 2 do artigo 132º do Código Penal, sendo que a qualidade do sujeito passivo prevista nesta última disposição legal, qual seja, na parte que, tem aplicação no caso concreto, pessoa com quem o agente tenha mantido «uma relação análoga à dos cônjuges» constitui elemento típico do crime de violência doméstica, que leva a que seja caraterizado como um crime específico.

A proibição da dupla valoração apenas ocorre quando as circunstâncias agravantes correspondam a uma mesma dimensão da ilicitude, ou da culpa[7].

Efetivamente, é hoje consensual na doutrina e jurisprudência, que a proibição da dupla valoração, se coloca quer no caso da concorrência de qualificativas de elementos constitutivos de mais de um exemplo padrão de entre os previstos no n.º 2 do artigo 132º do CP, qualquer um deles determinante de uma moldura penal agravada, quer na ponderação da circunstância qualificativa ao nível da medida concreta da pena, em termos globais.

Casos em que, precisamente para evitar a dupla valoração, se impõe “a eleição de uma das circunstâncias como decisiva para a determinação da moldura penal aplicável, enquanto a outra será tomada em consideração, como agravante, na fixação da medida concreta da pena” (cfr. Prof. Figueiredo Dias, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, § 42, pág. 45).

Ora, não é esse o caso dos autos.

Inexiste, pois, dupla valoração da enunciada circunstância, pelo que, improcede, esta vertente, do recurso.

2.3.7. Da inconstitucionalidade do artigo 132º, n.º 2, al. b), do Código Penal

Invoca o recorrente a inconstitucionalidade do artigo 132º, n.º 2, alínea a), do Código Penal, por violação dos artigos 18º, n.º 2 e 29º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa – princípios da necessidade da pena e da proporcionalidade e princípio da tipicidade –, interpretado no sentido de que a qualificativa nele prevista pode ser aplicada ao crime de homicídio, quando exista uma relação de concurso efetivo com o crime de violência doméstica, mormente qualificado.

O Ministério Público pronuncia-se no sentido da inexistência da invocada inconstitucionalidade.

Apreciando:
O principio da proporcionalidade, consagrado no artigo 18º, n.º 2, da CRP – que dispõe: «A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.» –, desdobra-se em três subprincípios, quais sejam:

a) o princípio da necessidade (ou exigibilidade),
b) o princípio da adequação;
c) o princípio da proporcionalidade em sentido restrito (ou da racionalidade).

Resumidamente diremos que, a necessidade supõe a existência de um bem juridicamente protegido e de uma circunstância que imponha intervenção ou decisão.

A adequação significa que a providência se mostra adequada ao objetivo almejado, se destina ao fim da norma e não a outro.

E a proporcionalidade em sentido estrito, implica que “os meios legais restritivos e os fins obtidos devem situar-se numa «justa medida», impedindo-se a adopção de medidas legais restritivas desproporcionadas, excessivas, em relação aos fins obtidos.[8]

O princípio da tipicidade ou da legalidade (expresso no conhecido brocado “nullum crimen nula poena sine lege”), consagrado no artigo 29º, n.º 1, da CRP – que dispõe que «Ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a ação ou a omissão, nem sofrer medida de segurança cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior.» –, abrange os seguintes requisitos:

a) A suficiente especificação do tipo de crime, tornando ilegítimas as definições vagas, incertas, insuscetíveis de delimitação;
b) A proibição da analogia na definição de crimes;
c) A exigência de qual o tipo de pena que cabe a cada crime, sendo necessário que essa conexão decorra diretamente da lei.[9]

O Tribunal Constitucional tem entendido que, gozando o legislador ordinário de uma ampla liberdade na definição de crimes e na fixação de penas, apenas é de considerar violado o princípio de proporcionalidade, consagrado no artigo 18º, n.º 2, da CRP, em casos de inquestionável e evidente excesso.

Baixando ao caso concreto:

Desde logo, importa salientar que sendo distintos os atos que materializam o crime de homicídio, na forma consumada, dos atos que integram a prática do crime de violência doméstica, perpetrados pelo arguido, ora recorrente, contra a vítima BB, descortinando-se diferentes sentidos de ilicitude, com pluralidade de bens jurídicos violados e pluralidade de resoluções criminosas, há concurso efetivo entre o crime de violência doméstica e o crime de homicídio[10], como se decidiu no acórdão recorrido e o recorrente também não põe em causa.

E, nessa situação, a condenação do arguido pelo crime de violência doméstica, contra a pessoa com quem o agente mantenha ou tenha mantido «uma relação análoga à dos cônjuges» (al. b) do n.º 1 do artigo 152º do CP), não obsta a que, relativamente ao crime de homicídio praticado pelo agente contra a mesma pessoa, possa funcionar a circunstância qualificativa do homicídio, prevista na al. b) do n.º 2 do artigo 132º do CP.

Estamos perante atuações distintas, empreendidas em execução de resoluções criminosas diversas e que violam bens jurídicos distintos, pelo que, a circunstância qualificativa prevista na al. b) do n.º 2 do artigo 132º do CP, pode ser aplicada existindo relação de concurso efetivo entre o crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152º, n.º 1, al. a), do CP (mesmo que agravado, nos termos do n.º 2 do artigo 152º, ainda que não seja o caso dos autos, como supra se concluiu) e o crime de homicídio.

Não existe, assim, qualquer impedimento legal ou imperativo constitucional que fundamente o afastamento do funcionamento da circunstância qualificativa prevista na al. b) do n.º 2 do artigo 132º do Código Penal, existindo relação de concurso efetivo entre o crime de homicídio e o crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152º, n.º 1, al. a), do CP.

Por conseguinte, não é inconstitucional, designadamente, por violação dos artigos 18º, n.º 2 e 29º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, a interpretação normativa do artigo 132º, n.º 2, al. b), do CP, no sentido referido e que foi acolhido pelo Tribunal a quo, no acórdão recorrido.

2.3.8. Da violação do principio ne bis in idem
Sustenta o recorrente existir violação do principio ne bis in idem, consagrado no artigo 29º, n.º 5, da CRP, por ter sido valorada a circunstância agravante, prevista no artigo 86º, n.º 3, da Lei nº 5/2006, de 23 de fevereiro, relativamente ao homicídio qualificado, na forma consumada e, simultaneamente, em relação ao crime de homicídio simples, na forma tentada, estando em causa a «mesma unidade fáctica e, não perante crimes de homicídio com resoluções autónomas e/ou uso de armas diferentes e/ou momentos temporais e espaciais diferentes».

O Ministério Público pronuncia-se no sentido de não existir qualquer violação do princípio ne bis in idem, estando-se perante a prática de dois crimes de homicídio, um na forma consumada e outro na forma tentada, pelo que a atuação do arguido, violadora de bens jurídicos pessoais, terá de fazer-se por referência a cada uma das vítimas da sua conduta, sendo que a proibição da dupla valoração apenas se verifica quando os fatores agravantes são também eles considerados na culpa do agente, o que não ocorre no caso vertente.

Apreciando:
De harmonia com o disposto no artigo 29º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo crime.

O principio ne bis in idem, na faceta da proibição da dupla valoração, com referência à medida da pena – sendo discutível a aplicação daquele princípio nesse âmbito – e considerando a perspetiva em que a questão é colocada pelo recorrente, será violado se existir ponderação de circunstâncias agravantes que correspondam a uma mesma dimensão da ilicitude, ou da culpa, obviamente, que em relação ao mesmo crime.

Ora, no caso vertente, é manifesto que a invocação pelo recorrente da violação do princípio ne bis in idem, carece de fundamento, não ocorrendo.

Na verdade, a circunstância agravante, prevista no artigo 86º, n.º 3, da Lei nº 5/2006, de 23 de fevereiro, não podia deixar de ser valorada, como o foi, pelo Tribunal a quo, no acórdão recorrido, em relação a cada um dos dois crimes de homicídio, um na forma consumada e outro na forma tentada, perpetrados pelo arguido, ora recorrente, contra duas vítimas, sendo para tanto, irrelevante que os dois crimes hajam sido cometidos nas mesmas circunstâncias espácio temporais e que exista unidade da ação, pois que, o que releva, neste domínio, estando em causa a violação de bens jurídicos pessoais e individuais (concretamente o direito à vida), é o número de vitimas da atuação do arguido/recorrente.

O recurso é, pois, também nesta vertente, improcedente.

2.3.9. Da inconstitucionalidade do artigo 86º, n.º 3, da Lei nº 5/2006, de 23/02

Defende o recorrente que o artigo 86º, n.º 3, da Lei nº 5/2006, de 23 de fevereiro, quando interpretado no sentido de que tem aplicação a agravação nele prevista, existindo uma relação de concurso efetivo, de crimes que ofendendo o mesmo bem jurídico, se reconduzem à mesma “unidade fáctica”, sendo o concurso efetivo dos crimes-base apenas consequência do número de ofendidos, por violação do disposto nos artigos 18º, n.º 2 e 29º, n.º 1, da CRP.

O Ministério Público pronuncia-se no sentido de não assistir razão ao recorrente, sendo a interpretação da norma extraída do n.º 3 do artigo 86º da Lei nº 5/2006, feita pelo Tribunal a quo, ao aplicar a agravação nela prevista aos dois crimes de homicídios perpetrados pelo arguido/recorrente, conforme à Constituição.

Vejamos:
A razão de ser da agravação prevista no n.º 3 do artigo 86º da Lei n.º 5/2006que dispõe que: «As penas aplicáveis a crimes cometidos com arma são agravadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo, exceto se o porte ou uso de arma for elemento do respetivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de armaprende-se com razões de prevenção geral, que se fundam na necessidade de limitar o recurso às armas na prática de qualquer tipo de crime, pela sua aptidão para causar danos relevantes, em bens jurídicos penalmente tutelados.

Embora a agravação prevista no artigo 86º, n.º 3, da Lei nº 5/2006, tenha o seu fundamento num maior grau de ilicitude do(s) facto(s), quando os crimes cometidos com a utilização de arma, estão em concurso efetivo, estando em causa, na situação a que respeitam os autos, dois crimes de homicídio, sendo um qualificado, na forma consumada, p. e p. pelos artigos 131º, n.º 1 e 132º, nºs. 1 e 2, al. b), ambos do Código Penal e outro simples, na forma tentada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 22º, 23º e 131º, todos do Código Penal, ainda que praticados, nas mesmas circunstâncias espácio-temporais e existindo unidade da ação, entendemos que, contrariamente ao que defende o recorrente, aquele maior grau de ilicitude não se esgota ao fazer-se funcionar a agravação apenas em relação a um dos crimes.

Tendo a conduta do arguido, ora recorrente, violado bens jurídicos pessoais, sendo duas as vítimas existindo concurso efetivo de dois crimes de homicídio, sendo um qualificado, na forma consumada e outro simples, na forma tentada, previstos e puníveis respetivamente, pelas disposições supra referenciadas, sendo na prática dos mesmos utilizada uma arma de fogo, concretamente, uma espingarda caçadeira calibre 12, pelo arguido, a agravação prevista no artigo 86º, n.º 3, da Lei nº 5/2006, tem de funcionar em relação aos dois crimes de homicídio perpetrados pelo arguido, ora recorrente[11], como decidiu o Tribunal a quo.

Neste é, pois, inconstitucional, designadamente, por violação do principio da legalidade e tipicidade expresso no artigo 29º, n.º 1, da CRP, nem do principio da proporcionalidade consagrado no artigo 18º, n.º 2, da CRP, a norma do artigo 86º, n.º 3, da Lei nº 5/2006, quando interpretada no sentido referido e que foi acolhido pelo Tribunal a quo, no acórdão recorrido.

2.3.10. Das penas
2.3.10.1. Da medida da pena a aplicar pelo crime de violência doméstica

Atenta a alteração da qualificação jurídica supra decidida, em 2.3.5., tendo-se convolando o crime de violência doméstica agravado, nos termos do n.º 2 do artigo 152º do CP, por que o arguido foi condenado na 1ª instância, para o crime de violência doméstica simples, p. e p. pelo artigo 152º, n.º 1, a que corresponde uma moldura penal abstrata menor, cumpre apreciar e decidir sobre a medida concreta da pena a aplicar ao arguido pela prática de tal crime.

Assim:
O crime de violência doméstica praticado pelo arguido é punível com pena de prisão de 1 (um) a 5 (cinco) anos (cf. artigo 152º, n.º 1, do C.P.).

Na determinação da medida concreta da pena a aplicar ao arguido, dentro dos limites abstratos definidos na lei, há que ponderar todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime deponham a favor ou contra o arguido, sendo aquela pena limitada pela culpa destes revelada nos factos e tendo a mesma de se mostrar adequada a assegurar as exigências de prevenção geral e especial (cf. artigos 40º, nºs. 1 e 2 e 71º, ambos do C.P.).

Culpa e prevenção são, pois, os dois termos do binómio com o auxílio do qual se há-de construir a medida da pena.

A culpa jurídico-penal vem traduzir-se num juízo de censura, que funciona, ao mesmo tempo, como um fundamento e limite inultrapassável da medida da pena (cf. Prof. Figueiredo Dias, Direito Penal Português – Das Consequências Jurídicas do Crime, pág. 215), sendo tal principio expressamente afirmado no n.º 2 do artigo 40º do C.P.

Com recurso à prevenção geral procurou dar-se satisfação à necessidade comunitária da punição do caso concreto, tendo-se em consideração, de igual modo a premência da tutela dos respetivos bens jurídicos.

Com o recurso à vertente da prevenção especial almeja-se responder às exigências de socialização do agente, com vista à sua integração na comunidade.

E de harmonia com o disposto no artigo 71º, nº 2, do C.P., na determinação concreta da pena o tribunal deverá atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, nomeadamente: a) O grau de ilicitude do facto, modo de execução deste, gravidade das suas consequências, grau de violação dos deveres impostos ao agente; b) A intensidade do dolo ou da negligência; c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e fins ou motivos que o determinaram; d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica; e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este; f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando esta deva ser censurada através da aplicação da pena.

Assim, há que ponderar:
O grau de ilicitude dos factos, que se revela medianamente acentuado, tendo em conta, o modo de execução dos factos, que se traduziram em agressões psicológicas e também físicas, tendo estas últimas se verificado após a separação, que ocorreu por decisão da vítima, recusando-se o arguido aceitar a rutura do relacionamento;

O dolo do arguido, que reveste a forma de dolo direto, intenso;

As condições pessoais do arguido que resultaram provadas e que aqui se dão por reproduzidas, revelando o arguido, desde cedo, hábitos de trabalho, tendo quatro filhos, de relações mantidas com outras tantas mulheres, não tendo qualquer contato com os dois filhos mais velhos, contrariamente ao se verifica relativamente às duas filhas, estando, à data da sua prisão à ordem dos presentes autos, a pagar pensão de alimentos à filha mais nova.

A favor do arguido milita a circunstância de não ter antecedentes criminais.

Há, ainda, que ter em conta as exigências de prevenção, ligadas à necessidade de evitar a multiplicação de crimes desta natureza, sendo que as exigências de prevenção geral mostram-se prementes, já que como se sabe, o tipo de crime em causa nos autos vem proliferando na nossa sociedade, sendo por todos conhecidas as consequências trágicas que, muitas vezes, lhe andam associadas; e as exigências de prevenção especial, revelam-se algo acentuadas, já que, não obstante o arguido ser primário, a personalidade pelo mesmo revelada, quer durante a relação que manteve com a vítima BB, quer após a separação, refletida nos atos praticados – evidenciando sentimentos de posse para com a mesma e uma atitude de desconfiança e de ciúme exacerbado, não aceitando a rutura do relacionamento, demonstrando uma postura de instabilidade emocional e reagindo de forma violenta à recusa da vítima em reatar a relação –, constitui um fator de risco, para que possa vir a reiterar tal tipo de comportamento, em relacionamento que, no futuro, possa vir a manter com outra pessoa.

Tudo visto e ponderado considera-se adequada a aplicar ao arguido a pena de 2 (dois) anos de prisão, pela prática do crime de violência doméstica.

2.3.10.2. Da aplicação de pena de multa, em vez na pena de prisão, pelo crime de detenção de arma proibida

Defende o recorrente que o Tribunal a quo devia ter optado pela aplicação de pena de multa, ao invés da pena de prisão, no que ao crime de detenção de arma proibida se refere, tendo em conta o critério estabelecido no artigo 70º do Código Penal e considerando que o arguido se encontra inserido no meio social, sendo o comportamento irrepreensível após os factos, não sendo as necessidades de prevenção especial que se fazem sentido, no caso concreto, de molde a justificar a opção pela pena de prisão, em detrimento da pena de multa.

O Ministério Público pronuncia-se no sentido de que a opção do Tribunal a quo pela aplicação de pena de prisão, no caso vertente, se mostra correta.

Vejamos:
O Tribunal a quo fundamentou do seguinte modo a opção pela pena de prisão:

«(…) tratando-se de crime punido, em alternativa, com pena de prisão ou pena de multa, importa desde logo proceder à escolha da sanção a aplicar, em obediência ao disposto no artigo 70.º do Código Penal, nos termos do qual “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.

Sucede que, no caso vertente, avultam essencialmente factores que depõem contra o arguido, designadamente o elevado grau de ilicitude da sua conduta, a intensidade do dolo dessa conduta – que é directo –, o modo particularmente censurável de execução dos factos, a gravidade das consequências da conduta ilícita e, “the last, but not the least”, razões de prevenção geral, porquanto, crimes como o dos autos geram grande sentimento de insegurança na população impondo restabelecer a confiança da sociedade no restabelecimento da normatividade jurídica.

Ponderando os factores concretos de determinação da pena supra referidos, afigura-se que, não obstante a pena de prisão esteja sujeita ao princípio de ultima ratio, a pena de multa não se mostra suficiente e adequada a prevenir a prática de novos crimes de detenção de arma proibida, quer por parte do arguido, quer por parte da comunidade em geral.»

E merece-nos concordância o assim decidido pelo Tribunal a quo.

Explicitando:
De harmonia com o disposto no artigo 70º do C.P., o Tribunal deverá dar preferência à pena não privativa da liberdade "sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição" (exigências de reprovação e de prevenção do crime).

A propósito das finalidades da pena, escreveu o Prof. Figueiredo Dias (in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia, pág. 815): «prevenção geral assume o primeiro lugar como finalidade da pena. Prevenção geral, não como prevenção negativa, de intimidação do delinquente e de outros potenciais criminosos, mas como prevenção positiva, de integração e de reforço da consciência jurídica comunitária e do sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida».

Significa isso que, uma pena alternativa ou de substituição, ainda que, no caso, possa satisfazer plenamente as necessidades de prevenção especial de ressocialização, não poderá ser aplicada se com ela sofrer inapelavelmente, “o sentimento de reprovação social do crime” (Prof. Figueiredo Dias, in As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 334), ou a confiança da comunidade na validade da norma jurídica violada.

E como vem sendo entendimento consolidado na jurisprudência, a escolha da espécie da pena a aplicar, nos casos em que sejam objeto do julgamento outros factos/crimes, «deve ter na base elementos, que sendo exógenos em relação à concreta e singular conduta apreciada para o tema em causa (mesmo que representando um minus no contexto global), se prendem com o conjunto das circunstâncias que enformam o facto total submetido a julgamento.»[12]

Ora, no caso concreto, entendemos que, no contexto da conduta ilícita global assumida pelo arguido, tendo em conta que a espingarda caçadeira detida pelo arguido (tendo este sido praticante de caça, durante anos), foi pelo mesmo utilizada no cometimento de dois crimes de homicídio, um na forma consumada e outro na forma tentada, agindo o arguido motivado por ciúme da sua ex-companheira, revelando uma personalidade com traços de violência, perpetrando também um crime de violência doméstica contra a vítima mortal da sua atuação, sendo acentuadas as necessidades de prevenção especial, ante o descrito quadro global de atuação e considerando as prementes necessidades de prevenção geral que se fazem sentir relativamente ao crime de detenção de arma proibida (sendo as armas detidas, nessas condições, amiúde utilizadas, para o cometimento de crimes, como aconteceu, no caso concreto), entendemos ser manifesto que, a pena de multa não satisfaria, as finalidades de punição, não se revelando suficiente nem adequada a assegurar as necessidades, desde logo, de prevenção especial, mas também as de prevenção geral, pelo que, se considera como correta a opção do Tribunal a quo pela pena de prisão.

Improcede, pois, também esta vertente do recurso.

2.3.10.3. Da medida das penas parcelares referentes aos crimes de homicídio e ao crime de detenção de arma proibida

Na 1ª instância o arguido/recorrente foi condenado:
- Na pena de 19 (dezanove) anos de prisão, pela prática do crime de homicídio qualificado, na forma consumada, agravado pela utilização de arma, nos termos do disposto no artigo 86º, n.º 3, da Lei nº 5/2006, de 6 de maio, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 17/2009, de 6 de maio;

- Na pena de 9 (nove) anos de prisão, pela prática do crime de homicídio simples, na forma tentada, agravado pela utilização de arma, nos termos do disposto no artigo 86º, n.º 3, da enunciada Lei nº 5/2006;

- Na pena de 2 (dois) anos, pela prática do crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86º, nº. 1, alíneas c) e d), da Lei nº 5/2006, de 6 de maio, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 12/2011, de 27 de abril e pela Lei n.º 50/2013, de 24 de julho.

O arguido/recorrente, insurge-se contra a medida concreta das enunciadas penas parcelares, que entende serem excessivas, pugnando pela aplicação de pena mais próximas do limite mínimo, com a consequente redução da pena única resultante do cúmulo jurídico de penas.

Para fundamentar a sua pretensão sustenta o arguido/recorrente que não foram sopesadas pelo Tribunal a quo, na determinação da medida concreta da pena, todas as circunstâncias que depõem a seu favor, designadamente, o facto de não ter antecedentes criminais, a sua idade – 63 anos – e o tempo de vida que lhe resta, a sua condição humilde, a sua baixa cultura, a sua inserção social, familiar e profissional, a sua frágil condição económica, o ser bom pai para as suas filhas, o ser trabalhador e o “não ter qualquer plano gizado, tendo agido por ciúme passional”.

Apreciando:
Ao crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131º e 132º n.ºs 1 e 2 alínea b), do CP, agravado nos termos do artigo 86º n.º 3 da Lei 5/2006 de 23 de fevereiro, na redação da Lei n.º 17/2009, de 6 de maio, corresponde a pena abstrata de 16 (dezasseis) a 25 (vinte cinco) anos de prisão;

O crime de homicídio simples, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 22º, n.ºs 1 e 2, al. b), 23º, n.ºs 1 e 2, 73º, n.º 1, alíneas a) e b) e 131º, todos do CP, agravado nos termos do artigo 86º n.º 3 da Lei 5/2006 de 23 de fevereiro, é punível com pena de prisão cujo limite mínimo é de 2 (dois) anos, 1 (um) mês e 18 (dezoito) dias, sendo o limite máximo de 14 (catorze) anos, 2 (dois) meses e 20 (vinte) dias[13], existindo erro do Tribunal a quo, quando, no acórdão recorrido considerou uma moldura penal abstrata de 8 (oito) a 16 (dezasseis) anos de prisão - a qual corresponde ao crime de homicídio simples, na forma consumada -.

Por último, ao crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86º, n.º 1, alínea c) da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, tendo-se optado pela aplicação de pena de prisão, corresponde a moldura penal abstrata de 1 (um) a 5 (cinco) anos.

Cumpre, pois, apreciar se a medida concreta das penas aplicadas ao arguido, no acórdão sob recurso, pela prática de cada um dos enunciados crimes, se mostra excessiva ou desproporcional.

Para fundamentar a medida concreta das penas parcelares aplicadas ao arguido/recorrente, o tribunal “a quo” aduziu os seguintes fundamentos:

«No caso sub judice, o Tribunal ponderou o elevado grau de ilicitude dos factos (vertido nos meios empregues pelo arguido para alcançar o resultado típico), bem como a intensidade do dolo com que o arguido agiu, que foi directo, pois que o arguido sabia e quis agir do modo descrito. Também foram ponderadas as qualidades da sua personalidade manifestadas no facto, que revelam uma marcada desconformação com o direito, atenta a gravidade dos ilícitos praticados, o motivo altamente censurável para a prática do crime, a preparação do acto lesivo (a espera pelas vítimas depois de ir buscar a arma à sua residência) e o modo de execução dos factos (pautado por uma ostensiva persistência em consumar os crimes de homicídio).

Saliente-se que a circunstância de concomitantemente o arguido ter matado a companheira na presença de FF, agrava o sofrimento desta vítima, o que eleva o gau de ilicitude, já por si intenso, para um patamar muito elevado.

Acresce que o arguido demonstrou uma manifesta falta de respeito pela vida humana e uma total ausência de sentido crítico, mostrando-se incapaz de interiorizar o desvalor jurídico da sua conduta.

Avulta ainda contra o arguido a relevância das consequências danosas dos seus actos ilícitos, sobretudo no que concerne à vítima mortal; sendo, contudo muito relevante os efeitos psicológicos causadores de perturbação de desajustamento à vítima FF.

No que concerne às necessidades de prevenção geral, diremos que as mesmas são se fixam num grau muito alto, merecendo, no caso em apreço, um especial cuidado, não só porque têm frequentemente sido levadas a cabo na nossa sociedade, como também pelo modo próprio e motivos subjacentes, sendo necessário repor a confiança nas normas jurídicas violadas de tal forma que se evitem situações de insegurança.

Por último, e no que diz respeito à prevenção especial, teremos que atender ao modo particularmente reprovável com que o crime foi cometido, à intensidade do dolo que presidiu às suas resoluções, à inserção sócio-profissional do arguido, à existência de um suporte familiar e social do mesmo e à inexistência de antecedentes criminais.

Entende-se, assim, que é simultaneamente adequado às exigências de prevenção geral e especial e respeitador do limite imposto pela culpa a aplicação ao arguido de uma pena de 19 (dezanove) anos de prisão pela prática de um crime de homicídio agravado, na forma consumada (perpetrado na pessoa de BB); de uma pena de 9 (nove) anos de prisão pela prática de um crime de homicídio simples agravado, na forma tentada, (perpetrado na pessoa de FF); (…); e de uma pena de 2 (dois) anos de prisão pela prática de um crime de detenção de arma proibida.»

Alega o recorrente que não foram sopesadas pelo Tribunal a quo, na determinação todas as circunstâncias que depõem a seu favor, designadamente, o facto de não ter antecedentes criminais, a sua idade – 63 anos – e o tempo de vida que lhe resta, a sua condição humilde, a sua baixa cultura, a sua inserção social, familiar e profissional, a sua frágil condição económica, o ser bom pai para as suas filhas, o ser trabalhador e o “não ter qualquer plano gizado, tendo agido por ciúme passional”.

Que dizer?
A ilicitude dos factos cometidos pelo arguido, em relação aos dois crimes de homicídio, respetivamente, tentado e consumado, é, tal como considerou o Tribunal a quo, elevado, o mesmo se verificando no atinente ao crime de detenção de arma proibida, tendo o arguido, movido pelo ciúme que nutria em relação à sua ex-companheira BB, ao constatar que a mesma estava acompanhada e a dançar com FF, no estabelecimento de diversão noturna onde se encontravam, se deslocado à sua residência, para se munir da espingarda caçadeira, com que viria a disparar contra as vítimas, guardando-a na bagageira do automóvel em que se fez transportar e que estacionou no parque do dito estabelecimento, voltando a entrar neste e, mais tarde, quando se apercebeu que BB e FF estavam a sair do local, tendo ido no seu encalço e dirigindo-se ao seu veículo, munindo-se da espingarda caçadeira e cartuchos que ai tinha deixado, empunhou-a efetuou dois disparos, direcionados ao corpo das vítimas, tendo estas, após o primeiro disparo, procurado fugir, correndo em direção ao interior do referido estabelecimento, efetuando o arguido, um segundo disparo, na direção das vítimas, atingindo-as com os projéteis deflagrados, sendo a vítima Ana Silva, com particular incidência na zona do tórax, de que resultaram lesões que lhe provocaram a morte e sendo a vítima FF atingida no ombro, na mão esquerda e nas pernas, tendo, em consequência da descrita atuação do arguido sofrido lesões naquelas zonas do corpo e desenvolvido um quadro de natureza funcional, que envolve um certo sofrimento, isolamento e inadaptação ao meio social circundante.

O arguido agiu com dolo direto, intenso, tendo em conta, nomeadamente, a energia criminosa revelada, ao atuar da forma como atuou, vivenciando um quadro de instabilidade emocional, motivado pelo ciúme que sentia relativamente à sua ex-companheira BB, de que estava separado há cinco meses, não aceitando que pudesse relacionar-se com outro homem, sendo esse quadro emocional exponenciado/exacerbado, nas circunstâncias em que praticou os factos, ao constatar que a ex-companheira estava acompanhada por FF;

As exigências de prevenção geral são, tal como se refere no acórdão recorrido, elevadas, dada a frequência com que vêm ocorrendo os crimes de detenção de arma proibida e os crimes de homicídio, consumado ou tentado, tendo como vítimas o cônjuge, companheiro(a), namorado(a), progenitor(a) de filho(s) comum e/ou pessoa(s) que com aquele(s) se relaciona(m) de modo próximo, e a necessidade de defesa da sociedade perante este tipo de criminalidade, que regista atualmente um aumento significativo, sendo enorme o alarme social que provoca, tornando premente a necessidade de, através da pena aplicada, repor a confiança dos cidadãos na norma violada e nos valores que lhe estão subjacentes.

A ausência de antecedentes criminais do arguido/recorrente - que tinha, à data dos factos, 63 anos de idade - e os factos provados relativos à sua inserção profissional e social, foram devidamente ponderados a favor do arguido, no acórdão recorrido.

No referente aos demais aspetos convocados pelo recorrente, quais sejam, “a condição humilde, a baixa cultura e a frágil situação económica” e o “ser bom pai para as filhas”, tendo em conta os crimes que estão em causa nos autos, afigura-se-nos não constituírem fatores atenuantes, com reflexo na culpa e na medida concreta da pena a aplicar ao arguido.

Sopesando todas as circunstâncias e considerando a moldura penal abstrata correspondente ao crime de homicídio qualificado agravado, nos termos do artigo 86º n.º 3 da Lei 5/2006 de 23 de fevereiro (de 16 a 25 anos de prisão), e a respeitante ao crime de detenção de arma proibida (de 1 a cinco anos de prisão), entendemos que se mostram adequadas e justas, por satisfazerem as exigências de prevenção que, no caso de fazem sentir e não excedendo a culpa do arguido, ora recorrente, as penas de 19 (dezanove) anos de prisão e de 2 (dois) anos de prisão aplicadas pelo Tribunal a quo, penas essas que, por isso, se mantêm.

Já no que diz respeito ao crime de homicídio simples, na forma tentada, agravado nos termos do artigo 86º n.º 3 da Lei 5/2006 de 23 de fevereiro, considerando a moldura penal abstrata aplicável, que é de 2 anos, 1 mês e 18 dias a 14 anos, 2 meses e 20 dias, ao invés da de 8 a 16 anos, que, erradamente, foi considerada pelo Tribunal a quo, o que, obviamente, não poderá deixar de ter relevado na determinação da medida concreta da pena aplicada pela prática de tal crime, fixada no acórdão recorrido, entende-se que deve haver redução dessa pena parcelar.

Assim e ponderando todas as circunstâncias a atender na determinação da medida concreta da pena que se deixaram enunciadas supra, existindo uma estreita conexão entre o crime de homicídio na forma tentada e o crime de homicídio qualificado consumado, sendo que as lesões físicas sofridas pelo ofendido FF, em consequência da atuação do arguido, não revestiram gravidade acentuada, entendemos que a pena que se mostra ajustada à culpa do arguido/recorrente e se revela adequada a assegurar as exigências de prevenção geral que, no caso, se fazem sentir, a pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão, sendo, portanto, esta a pena a aplicar ao arguido/recorrente, pela prática do mesmo crime.

2.3.10.3. Do cúmulo jurídico
O artigo 77º do Código Penal, estabelecendo as regras da punição do concurso de crimes, dispõe:

1. Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.

2. A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos, tratando-se de pena de prisão e 900 dias, tratando-se depena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.

Sobre o modo como devem operar os critérios definidos no citado n.º 1 do artigo 77º do C.P., diz o Prof. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Parte Geral, 1993, Aequitas-Editorial Notícias, páginas 291 e 292:

«Tudo deve passar-se, por conseguinte, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)».

Será, assim, o conjunto dos factos que fornece a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão ou o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique.

Na avaliação da personalidade expressa nos factos é todo um processo de socialização ou de inserção, ou de repúdio pelas normas de identificação social e de vivência em comunidade que deve ser ponderado (cf. Ac. do STJ de 09/01/2008, proc. 3177/07).

A moldura penal abstrata correspondente ao concurso de crimes é a de 19 (dezanove) anos a 25 (vinte cinco) anos[14] de prisão.

Na ponderação, em conjunto, dos factos e personalidade do arguido/recorrente neles revelada, sendo elevada a ilicitude global dos factos e refletindo os factos praticados, uma personalidade violenta, com descontrolo emocional, centrando-se no eu, revelando, pela forma como autuou, um profundo desrespeito pelo bem jurídico vida e sem deixar de ponderar os elementos conexionados com as condições de vida do ora recorrente, tem-se como adequada a pena única de 21 (vinte e um) anos de prisão, a aplicar-lhe.

O recurso é, pois, parcialmente procedente.

3. DECISÃO
Nestes termos, acordam os Juízes que compõem esta Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso parcialmente procedente e, em consequência:

a) Determinar, ao abrigo do disposto no artigo 380º, n.º 1, al. b) e n.º 2, do CPP, a correção do lapso de escrita existente, na al. b) do dispositivo do acórdão recorrido, em termos de a menção nele feita à al. a) do n.º 2 do artigo 132º do Código penal, passar a fazer-se à al. b) do mesmo número e artigo.

b) Revogar o acórdão recorrido, na parte em que condenou o arguido RR pela prática de um crime de violência doméstica agravado, p. e p. pelo artigo 152º, n.º 1, al. al. b) e n.º 2, al. a), do Código Penal – na pena de 3 anos de prisão – e, em substituição, pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, n.º 1, al. b), do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão;

c) Mantendo-se a condenação do arguido/recorrente pela prática de um crime de homicídio qualificado, na forma consumada, agravado pela utilização de arma proibida, previsto e punível pelos artigos 131º e 132º n.ºs 1 e 2 alínea b), ambos do Código Penal, agravado nos termos do artigo 86º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, na pena de 19 (dezanove) anos de prisão; de um crime de detenção de arma proibida p. e p. pelo artigo 86.º n.º 1, alíneas c) e d), da Lei n.º 5/2006, de 23/02, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 12/2011, de 27 de abril e pela Lei n.º 50/2013, de 24 de julho, na pena de 2 (dois) anos de prisão; e de um crime de homicídio simples, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 22º, nºs. 1 e 2, al. b), 23º, n.ºs 1 e 2, 73º, n.º 1, alíneas a) e b) e 131º, todos do CP, agravado nos termos do artigo 86º n.º 3 da Lei 5/2006 de 23 de fevereiro, reduz-se a pena aplicada na 1ª instância a este último crime, para 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses;

c) Em cúmulo jurídico das penas parcelares mencionadas nas alíneas b) e c), condena-se o arguido/recorrente RR, na pena única de 21 (vinte e um) anos de prisão.

d) No mais, confirma-se o acórdão recorrido.

Sem tributação, em face da procedência parcial do recurso (cfr. artigo 513º, n.º 1, do C.P.P.).
Notifique.

Évora, 28 de abril de 2020

MARIA DE FÁTIMA BERNARDES

FERNANDO PINA
_________________________________________________
[1] Que se realizou através de meios de comunicação à distância, atentas as medidas de contingência implementadas no contexto da pandemia da COVID-19

[2] Cfr., entre outros, Ac.s da RC de 18/01/2017 e de 17/05/2017, respetivamente, proferidos nos procs. 112/15.6GAPNC.C1 e 430/15.3PAPNI.C1 e Ac. da R.L. de 18/01/2017, proc. 1050/14.5PFCSC.L1-3, todos acessíveis no endereço www.dgsi.pt.

[3] Cfr., entre outros, Ac.s do STJ de 27/10/2010, proferido no proc. 70/07.0JBLSB.L1.S1 e de 15/12/2011, proferido no proc. 17/09.0TELSB.L1.S1 e Ac. da RC de 14/01/2015, proferido no proc. 38/13.8JACBR.C1, todos acessíveis no endereço www.dgsi.pt.

[4] Cfr., entre outros, Acórdãos da RC de 18/01/2017 e de 17/05/2017, respetivamente, proferidos nos procs. 112/15.6GAPNC.C1 e 430/15.3PAPNI.C1 e Ac. da R.L. de 18/01/2017, proc. 1050/14.5PFCSC.L1-3, todos acessíveis no endereço www.dgsi.pt.

[5] Cf., entre outros, Ac. da RE de 02/02/2016, proc. 114/13.7TARMR.E1, Ac. da RG de 16/11/2015, proc. 599/14.4GAFAF.G1 e Ac. da R.C. de 03/06/2015, proc. 12/14.7GBRST.C1, todos acessíveis no endereço www.dgsi.pt.

[6] Que é citado pelo agora Cons. Vinício Ribeiro, in Código de Processo Penal, Notas e Comentários, Coimbra Editora, 2ª edição, pág. 349 -

[7] Cfr., entre outros, Acs. do STJ de 18/01/2012, proc. n.º 306/10.0JAPRT.P1.S1, de 13/11/2013, proc. n.º 2032/11.4JAPRT.P1.S1 e de 18/09/2018, proc. n.º 359/16.8JAFAR.S1, acessíveis em www.dgsi.pt.

[8] J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, in CRP – Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4ª Edição, Coimbra Editora, páginas 392 e 393

[9] Idem, pág. 495.

[10] Neste sentido, cfr., por todos, Ac. da RL de 18/10/2016, proc. n.º 1316/12.9PFLRS.L2-5 e Ac. do STJ de 20/04/2017, proc. n.º 2263/15.8JAPRT. P1.S1, ambos acessíveis em www.dgsi.pt.

[11] Constitui atualmente entendimento largamente maioritário na jurisprudência – e que se sufraga – o de que a agravação geral prevista no artigo 86º, n.º 3, da Lei nº 5/2006 é aplicável ao homicídio qualificado, só sendo afastada se o homicídio for qualificado em razão do uso de arma (al. h) do n.º 2 do artigo 132.º do CP) – neste sentido, cf., entre outros, Ac.s do STJ de 27/03/2019, proc. n.º 316/17JAFUN.L1.S1, de 15/01/2019, proc. n.º 4123/16.6JAPRT.G1.S1 e de 24/10/2018, proc. n.º 1019/15.2PJPRT.S1; Ac. da RL de 28/10/2015, proc. n.º 13/14.5GCMTJ.L1-3 e Ac. da RP de 8/11/2017, proc. n.º 604/13.1JAPRT.P1RP, todos acessíveis em www.dgsi.pt. – o que não acontece no caso dos autos.

[12] Neste sentido, cf., entre outros, Ac.s do STJ de 12/09/2012, proc. n.º 1221/11.6JAPRT.S1 e de 21/11/2018, proc. n.º 574/16.4PBAGH.S1, ambos acessíveis no endereço www.dgsi.pt.

[13] O homicídio simples, na forma tentada, é punível com pena de 8 a 16 anos de prisão (cf. artigo 131.º, do CP).

Sendo tentado é punível com pena de 1 ano, 7 meses e 6 dias a 10 anos e 4 meses de prisão (cf. artigos 22.º, 23.º n.º 1 e 2, 73.º n.º 1 al. a) e b), do CP).
Nos termos do artigo 86.º, n.º 3 e 4, do RJAM, as penas aplicáveis a crimes cometidos com arma são agravadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo, não podendo em caso algum exceder o limite máximo de 25 anos da pena de prisão.
Assim, o crime de homicídio simples tentado, agravado pelo uso de arma de fogo, é punível com pena de 2 anos, 1 mês e 18 dias a 14 anos, 2 meses e 20 dias de prisão.

[14] Limite máximo nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 177º, sendo que a soma material das penas parcelares em que o arguido é cominado perfaz o total de 28 anos e 6 meses.