Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
616/16.3PBSTR-A.E1
Relator: LAURA GOULART MAURÍCIO
Descritores: REVOGAÇÃO DA SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO
REGIME DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO
Data do Acordão: 02/08/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A obrigação de permanência na habitação assenta em pressupostos e requisitos, previstos no artigo 43.º do Código Penal, na sua nova redação, como a viabilidade de instalação de meios técnicos de controlo à distância e o consentimento do próprio condenado, que terão de ser obtidos e verificados pela 1ª instância, depois de devidamente equacionada a «adequação e suficiência» desta forma de execução ou de cumprimento da pena de prisão a cumprir pelo condenado, eventualmente subordinada ao cumprimento de regras de conduta previstas no n.º 4 do citado artigo 43.º.
Verificados os respetivos pressupostos formais de aplicabilidade, o juiz não pode deixar de indagar e justificar a razão porque aplica; ou o que impõe o afastamento desta forma de execução ou de cumprimento da pena de prisão.
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

Relatório
No Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Juízo Local Criminal de (…), no âmbito dos autos com o NUIPC nº: 616/16.3PBSTR foi, em 21.05.2021, proferido despacho com o seguinte teor (transcrição):
“O arguido XP, foi condenado nos presentes autos, em cúmulo jurídico de penas, na pena única de 01 (um) ano e 03 (três) meses de prisão suspensa pelo período de 2 (dois) anos, subordinada ao regime de prova no qual se inclua o acompanhamento médico e sujeição do arguido a tratamento regular ao consumo de produtos estupefacientes e abuso de consumo de bebidas alcoólicas, nos termos dos artigos 53.º e 54.º do Código Penal.
Ainda, no âmbito da suspensão e na vigência da mesma que foi imposta ao arguido XP nestes autos, constam Relatórios da DGRSP que reflectem o incumprimento das condições impostas ao arguido.
O arguido XP iniciou tratamento em programa de reabilitação de adição a substâncias psicoativas, em regime de internamento na Associação RY em 28/05/2019 (referência 6599407).
Em 14/01/2020 o arguido XP decidiu de forma unilateral interromper o programa de tratamento em que se encontrava inserido, alegando saudades da progenitora, pretendendo deslocar-se para casa desta para passar uns dias. Este tratou-se do segundo episódio de abandono unilateral do programa de tratamento imposto ao arguido XP, não sendo possível a sua reintegração no mesmo, pelo que desde essa data XP permaneceu na residência da mãe.
Seguidamente, resulta de Relatório da DGRSP (referência 6709061) que, após o abandono da comunidade de terapêutica e após o regresso do arguido XP a casa da progenitora, na morada supracitada, XP, compareceu a entrevista e mostrou-se disponível a colaborar com as Técnicas da Equipa de Tratamento. Contudo, por contactado com a mãe e irmão do arguido XP foi apurado que este estaria a exigir dinheiro, submetia a mãe à assinatura de créditos pessoais, tendo adquirido um carro, já passou várias noites fora de casa, e quando chega, vem alcoolizado, acabando por ter comportamentos agressivos no seio familiar, receando a mãe pela sua integridade física, uma vez que se encontra numa situação de saúde muito frágil. O arguido também estaria a recusar a toma da medicação, passando os dias descompensado, colocando em risco a bem estar social.
Seguidamente, o arguido XP deu entrada na Comunidade Terapêutica BV, (….), no dia 11 de Março de 2020, prevendo-se que o internamento tivesse duração de 18 meses. Sucede que, o arguido apresentou uma adaptação à instituição pouco pacífica, demonstrando um comportamento instável, colocando por vezes em causa as regras internas. O sucesso do processo terapêutico imposto revela-se fundamental à reinserção social do mesmo (referência 6802237), não tendo o arguido colaborado.
Ainda, de Relatório de referência 6822743, consta: O condenado mantém-se em tratamento na Comunidade Terapêutica BV, sita na (…), desde 11.03.2020, prevendo-se que o internamento tenha a duração de 18 meses. Para além da problemática aditiva, o condenado tem também uma problemática ao nível da saúde mental (distúrbio bipolar), tendo vindo ser acompanhado também nesta valência e medicado para o efeito.
No contexto destas problemáticas, o seu processo de integração na instituição tem revelado numerosas e constantes dificuldades, mantendo-se muito instável, tendo dificuldade em acatar as orientações terapêuticas e farmacológicas e formulando com frequência ameaças de abandono da Comunidade Terapêutica, cuja concretização tem sido afastada graças à intervenção dos respetivos técnicos.
Na presente data, voltou a verbalizar a intenção de abandonar a Comunidade Terapêutica e só depois de diversas diligências envolvendo os Técnicos e responsáveis da Comunidade Terapêutica, a progenitora e o técnico de reinserção social, XP reverteu a sua decisão.
O condenado, embora reconhecendo estas fragilidades e dificuldades, não demonstra ter mecanismos de controlo suficientes, cedendo aos seus impulsos e usando esta estratégia de manipulação quando é contrariado. Conta com o apoio da família, em especial da mãe. Esta valoriza o atual internamento e mostra-se apreensiva quanto à instabilidade do condenado, recenando que o mesmo abandone a Comunidade Terapêutica. Existe a perceção, por parte da progenitora, dos Técnicos e responsáveis da Comunidade Terapêutica e também do signatário de que a qualquer momento este pode concretizar o abandono da mesma, apresentando-se a gestão da presente situação particularmente complexa e delicada e não havendo disponível qualquer meio de contenção….
Ora, a 08.05.2020, o arguido abandonou a Comunidade Terapêutica, tendo regressado a casa da mãe - Relatório de referência 6829829.
Procedeu-se à Audição de condenado a 16 de Junho de 2020 (referência 84068154), não tendo o arguido comparecido por se encontrar internado no Serviço de Psiquiatria do Hospital Distrital de (…) desde o dia 08/06/2020.
Foi elaborado novo Relatório pela DGRSP, a pedido do Tribunal, de onde resulta (referência 6929598): “Desde que XP abandonou a Comunidade Terapêutica BV no dia 08-05-2020, tem continuado a apresentar comportamentos inadequados no seio familiar, exigindo à mãe a aquisição de bens supérfluos, contraindo vários créditos em seu nome e em nome da progenitora, usando o cartão de crédito da mesma.
Segundo as nossas fontes voltou a ingerir bebidas alcoólicas em excesso e aos consumos de produtos estupefacientes.
Efetivamente, o arguido deu entrada no serviço de psiquiatria do Hospital Distrital de (…) no dia 08-06-2020, contudo no dia 15-06-2020, o arguido saltou de uma janela do Hospital, tendo abandonado o mesmo sem ter alta médica.
Atendendo aos comportamentos apresentados pelo arguido, uma vez que continua a colocar em risco a vida dos familiares e a sua própria vida, a Equipa de Tratamento do CRI de (…) -antigo CAT, mais uma vez arranjou uma instituição para que o mesmo ingressasse e fizesse o tratamento adequado à problemática aditiva. Assim no dia 23-06-2020, XP deu entrada na situada na zona de (…), tendo abandonado a mesma passados dois dias (saiu por sua iniciativa no dia 25-06-2020). Durante este período em que permaneceu na instituição apresentou um comportamento muito instável…”
Foi elaborado novo Relatório pela DGRSP (referência 7123620), datado de 25 de Setembro de 2020, de onde resulta que: “No seguimento do relatório elaborado anteriormente, XP nos dois últimos dois meses tem-se recusado a tomar a medicação injetável. Continua a consumir em excesso bebidas alcoólicas e a consumir drogas, exigindo à mãe diariamente dinheiro para a aquisição dos produtos e continua a apresentar comportamentos agressivos no seio familiar, receando a mãe pela sua sua integridade física, uma vez que se encontra numa situação de saúde muito frágil…”
Procedeu-se à Audição de condenado, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 495.º, n.º 2, do CPP, no passado dia 29 de Outubro de 2020 (referência 85091727) de onde resulta que o arguido XP, traços gerais, admite cumprir o que o Tribunal determinar, desculpabilizando as suas condutas na doença bipolar, referindo ter, agora, um bom comportamento, tomando a medicação, não saindo de casa e obedecendo à sua progenitora.
Sucede que, tais declarações do arguido XP não correspondem à verdade. Como resulta do último Relatório da DGRSP (e, em abono da verdade, de todos os anteriores também), o arguido pauta o seu comportamento diário por uso de bebidas alcoólicas e estupefacientes, passando pela recusa no tratamento para a doença bipolar que padece, obrigando a sua progenitora a contrair empréstimos através de cartões, e, invariavelmente, fugindo de todas as Instituições onde é colocado com vista ao cumprimento das injunções impostas no âmbito da suspensão que beneficia nos presentes autos.
Assim, no tempo decorrido desde o trânsito em julgado da Sentença proferida, foram sendo juntos aos autos vários elementos que apontavam no sentido de que o arguido não estava a cumprir com o fixado.
Cumpre decidir:
Estatui o artigo 55.º do Código Penal que, se durante o período da suspensão, o condenado, culposamente, deixar de cumprir os deveres ou regras de conduta impostos, ou não responder ao plano de reinserção social, pode o tribunal lançar mão de uma das medidas elencadas, no mesmo normativo legal.
Por seu turno, preceitua o artigo 56.º, n.º1, alínea a), que a suspensão da execução da pena de prisão, é revogada, sempre que, no seu decurso, o condenado “infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ao plano de reinserção social”.
Conforme decorre, inequivocamente, da leitura dos normativos legais citados, o simples incumprimento dos deveres ou regras de conduta impostos ou do plano de reinserção social, não impõe, automaticamente, a aplicação de uma das consequências elencadas no artigo 55.º, nem gera a revogação automática da suspensão da execução da pena, antes, se exige que tal incumprimento seja culposo, nos casos do artigo 55.º do Código Penal, e grosseiro ou repetido, na previsão do artigo 56.º.
Assim, tendo como assente, que o recurso ao artigo 55.º e a revogação da suspensão da execução da pena nunca são consequências automáticas da conduta do condenado e sempre dependem da constatação de que as finalidades da punição se encontrem comprometidas, verifica-se que, in casu, que se pode concluir, que o arguido XP incumpriu de forma culposa, ostensiva, grosseira e injustificada, o plano de reinserção que lhe foi delineado.
Não se pode descurar que o arguido XP teve já vários comportamentos incumpridores, e verificando-se que o arguido de forma reiterada, não cumpriu o plano delineado pela DGRSP. As razões apontadas pelo arguido XP para o incumprimento, nomeadamente que fugiu da instituição por ter medo de ser contagiado com HIV, não são de todo relevantes para que o Tribunal as possa considerar justificativas do seu comportamento, pois tal não corresponde à verdade dos factos. Resulta dos vários Relatórios da DGRSP que o arguido sempre apresentou um comportamento muito instável, desafiador da autoridade, colocando em causa a integridade física no seio familiar e na sociedade em geral. Nunca quis colaborar com os vários serviços e instituições, não cumprindo a medida judicial que lhe foi aplicada, nomeadamente as injunções impostas no plano de reinserção social.
Só na comparência em Tribunal é que este demostra preocupação em cumprir, evidenciando no seu comportamento no decurso de meses, um comportamento de total desinteresse pela condenação que sofreu no presente processo e completa indiferença pela gravidade intrínseca do seu comportamento.
Decorre ainda que nos autos (…) transitou em julgado a decisão de revogação da suspensão da execução do internamento aplicada ao arguido XP nos termos dos artigos 98º, n.º 6, alínea b) e 95º, nºs 1, alínea a) e 2, do Código Penal.
A revogação da suspensão da pena de prisão tem carácter de ultima ratio. Todavia, e no caso vertente, trata-se de uma análise conjunta de todo o comportamento do arguido XP.
O comportamento do arguido XP que não cumpriu de forma culposa, reiterada, ostensiva e grosseira, a condição a que ficou subordinada a suspensão da execução da pena de prisão imposta, que não apresentou ao Tribunal motivos válidos e credíveis para o não cumprimento, revelando em suma, um alheamento absoluto pela condenação sofrida e indiferença pela gravidade intrínseca do seu comportamento, o que traduz um ostensivo e reiterado desrespeito pelos valores tutelados pelas normas jurídicas violadas.
Afigura-se-nos que, a esperança de, por meio da suspensão, manter o arguido afastado da criminalidade, foi totalmente gorada com o comportamento do arguido que infirmou o juízo de prognose que esteve subjacente à suspensão da execução da pena em que foi condenado. Trata-se de uma violação grosseira, ostensiva e injustificada da condição imposta.
Não olvidamos que o arguido XP sofre de doença psiquiátrica. No entanto, tal informação não deverá ser valorada nesta sede pois tal não resulta da sentença. Poderá sim ser tido em conta pelo TEP na execução da pena.
Face ao exposto, e em suma, concluímos que, com o seu comportamento o arguido XP infirmou o juízo de prognose que esteve subjacente à suspensão da execução da pena em que foi condenado.
Assim sendo, ao abrigo do disposto no artigo 56.º n.º 1 alíneas a) do Código Penal, decido revogar a suspensão da execução da pena em que o arguido XP foi condenado nestes autos, determinando-se o cumprimento da mesma.
Notifique.
Após trânsito, determino a emissão dos competentes mandados de detenção, a fim de o mesmo dar início ao cumprimento da pena de 1 ano e 3 meses de prisão.”
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Inconformado com a decisão, o arguido interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação, as seguintes conclusões:
1. No presente recurso o recorrente coloca à apreciação de V.Exas. a seguinte questão:
- a pena imposta ao recorrente pode ser cumprida em regime de permanência na habitação.
2. Considera o recorrente que a pena de prisão efetiva que terá de cumprir pode ser cumprida em regime de permanência na habitação, pelos motivos seguintes:
3. A Lei 94/2017 de 23 de agosto que alterou o Código Penal, o Código de Execução de Penas e Medidas Privativas da Liberdade, a Lei que regula a utilização de meios técnicos de controlo à distância (vigilância eletrónica) e a Lei da Organização do Sistema Judiciário veio, além do mais, permitir que uma pena de prisão efetiva não superior A 2 (dois) anos possa ser executada em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos do controlo à distância, sempre que o Tribunal concluir que por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades de execução de pena de prisão e o condenado nisso consentir.
4. Esta alteração legislativa tem como caraterística principal a criação de uma nova forma de cumprimento da pena de prisão efetiva não superior a dois anos – a permanência na habitação com vigilância eletrónica, com fim ressocializador, voltada para o reforço da prevenção do cometimento de novos crimes e para a integração do condenado no seu meio social de origem.
5. A nova opção legislativa resultou da análise das vantagens e desvantagens das penas em sede de prevenção da reincidência e reintegração social dos condenados e resultou na necessidade de revisão das penas curtas de prisão e das respetivas penas de substituição, alinhada com as modernas tendências da política criminal para o combate à pequena criminalidade.
6. Estando o recorrente condenado na pena única de prisão de 1 (um) ano e 3 (três meses), não há dúvida de que o pressuposto formal (pena de prisão efetiva não superior a 2 (dois) anos – artigo 43º, nº1, alínea a) do C.P.) se mostra preenchido.
7. Importa, então, ponderar se o cumprimento da pena em regime de permanência na habitação realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da execução da pena.
8. Entende o recorrente que é possível o cumprimento da pena de prisão em regime de permanência na habitação, pois que por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades visadas com a execução da pena.
9. Se for este o entendimento do Tribunal, o recorrente declara desde já nisso consentir.
10. A pena tem finalidades de prevenção geral e especial, mas há a considerar um outro objetivo visado pela punição: a reintegração do agente na sociedade.
11. Poderá, então, a pena, aplicada ao recorrente, ser cumprida em regime de permanência na habitação ou é necessário (artigo 18º, nº 2 do Constituição da República Portuguesa) para a sociedade e para o arguido que a pena seja cumprida em estabelecimento prisional?
12. Se é verdade que há exigências de prevenção geral e especial, designadamente as expressas nos antecedentes criminais do recorrente em crimes de idêntica natureza para não permitir o cumprimento da pena em regime de permanência na habitação, também é certo que outros fatores há que ponderar e que devem ser considerados por, alguns deles, até constarem da matéria de facto.
13. Desde logo a circunstância ter suporte familiar – reside com a mãe. Consta igualmente da matéria de facto que o recorrente apresenta perturbação afectiva bipolar tipo I, tem frequentado a consulta de psiquiatria do Hospital Distrital de (…) com regularidade e tem cumprido o tratamento médico estabelecido.
14. Há, por isso, que ter em conta os problemas de saúde do recorrente, que nos tempos que se vivem de pandemia e sendo do conhecimento público que os Estabelecimentos Prisionais são locais de forte propagação do vírus não seria benéfico o cumprimento da pena de prisão em estabelecimento prisional em virtude de poder colocar em risco a saúde do arguido.
15. E há, ainda, a afirmação do Prof. Figueiredo Dias no excerto acima transcrito em sede de motivação de que “já hoje mal haverá quem duvide de que ela acaba por constituir as mais das vezes um factor criminógeneo”
16. De facto a prisão é mais uma escola de crime para jovens delinquentes como o recorrente do que um factor de ressocialização do condenado.
17. Na ponderação de todos os fatores, neste período de pandemia que se vive, o ambiente prisional teria efeitos perniciosos e constituiria um retrocesso no esforço da reintegração social exigido pelo artigo 42º do Código Penal.
18. Por todo o exposto, considera-se que a pena de prisão imposta ao recorrente pode e deve ser cumprida em regime de permanência na habitação, nos termos da alínea a) do nº1 do artigo 43º do Código Penal.
19. Na decisão recorrida, face à opção de cumprimento da pena de prisão em estabelecimento prisional, foram violados os artigos 42º, 43º e 44º, todos do Código Penal e o artigo 18º, nº2 da Constituição da República Portuguesa.
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O recurso foi admitido e fixado o respetivo regime de subida e efeito.
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O Ministério Público respondeu ao recurso interposto, pugnando pela respetiva improcedência e formulando as seguintes conclusões:
1ª A questão da execução da pena em regime de permanência na habitação tem merecido arestos judiciais diferentes.
2ª Assim, verifica-se que se foi consolidando uma jurisprudência maioritária no sentido de que o regime de permanência na habitação é uma verdadeira pena de substituição de prisão e, por isso, a sua aplicação apenas pode ser decidida na sentença pelo Tribunal de julgamento, mas já não na fase de execução de sentença, não sendo um incidente da pena de prisão.
3ª Para esta corrente jurisprudencial, no caso da pena suspensa, havendo revogação da correspondente suspensão, já não é possível decretar a substituição prevista, anteriormente, no art. 44º do CP e, atualmente, no art. 43º do mesmo diploma legal.
4ª Neste sentido, vejam-se, por todos, o Acórdão da Relação do Porto, de 07.032012, o Acórdão da Relação de Coimbra, de 27.06.2012, o Acórdão da Relação do Porto, de 21.11.2012 e mais recentemente o Acórdão da Relação de Coimbra, de 18.03.20.
5ª Portanto, aplicada a referida tese jurisprudencial maioritária ao caso do recorrente, uma vez que a sua situação deriva da revogação da suspensão de execução da pena de 1 ano e 3 meses de prisão em que foi condenado, conclui-se que não é legalmente possível o cumprimento dessa pena de prisão em regime de permanência na habitação.
6ª Já para efeitos da mencionada posição jurisprudencial minoritária, verifica-se que durante o período de suspensão de execução da pena o arguido apresentou sempre uma postura de instabilidade comportamental, que quer fosse recondutível a um certo perfil ou atitude próprios, quer resultasse do estado de deterioração pessoal, a vários níveis, a que chegou devido aos consumos recorrentes de produtos estupefacientes e de bebidas alcoólicas, tornou inviável a execução do regime de prova, não obstante, os diversos esforços encetados no sentido inverso.
7ª Na verdade, o arguido foi integrado em vários programas de reabilitação de adição a substâncias psicoativas, em várias instituições, mas assumiu comportamento instável e de descontinuidade dos internamentos e tratamentos, interrompendo-os ou abandonando-os, por sua iniciativa, o que se verificou, por várias vezes, sendo que o sucesso do seu tratamento se mostra essencial à sua recuperação e ressocialização.
8ª Em suma, nem para efeitos da tese jurisprudencial minoritária sobre aplicação do regime de permanência na habitação o recorrente logrou reunir os pressupostos necessários.
9ª Não se mostra, pois, violado o art. 18º, nº2 da CRP, bem como, não o foram, igualmente, os arts. 40º, 42º e 43º, ambos do CP.
10º Seja, por se considerar que a execução da pena de prisão em regime de permanência na habitação é uma pena de substituição e, por isso, apenas pode ser aplicada na sentença, mas não numa fase subsequente e, no caso vertente, após revogação da suspensão de execução da pena, seja por se concluir que a execução da prisão nesse regime não assegura “(…) de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (…)” a pretensão do recorrente não pode legalmente proceder.
11ª Sucede que no âmbito do Processo nº (…), do Juízo Central Criminal de (…), por acórdão de 06.11.2017, foi determinada a aplicação ao recorrente de medida de segurança de internamento em estabelecimento psiquiátrico adequado pelo período de 5 anos, de execução suspensa, tendo essa suspensão sido revogada em 05.06.20 e determinado o internamento do arguido, o qual, nesse âmbito foi ligado a esses autos em 02.03.21, prevendo-se, de acordo com a liquidação, que aquele atingirá o máximo da medida de internamento em 01.04.25.
13ª Acresce, pois, na atualidade, que sendo a aplicação do regime de permanência na habitação admissível (ao abrigo da tese minoritária), colidiria a mesma com a execução da medida de segurança no âmbito do Processo nº (…), do Juízo Central Criminal de (…).
14ª Assim, por não violar qualquer preceito legal entende-se que o despacho recorrido deve ser mantido, improcedendo, por conseguinte, o recurso interposto pelo arguido.
No entanto, Vossas Excelências, melhor decidirão conforme for de JUSTIÇA!
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No Tribunal da Relação a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu Parecer no sentido da improcedência do recurso.
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Cumprido o disposto no art.417º, nº2, do C.P.P., não foi apresentada resposta ao Parecer.
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Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos à conferência.
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Cumpre decidir
Fundamentação
Delimitação do objeto do recurso
O âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, só sendo lícito ao Tribunal “ad quem” apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410º, nº2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr. Ac. do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19/10/1995, DR I-A Série, de 28/12/1995 e artigos 403º, nº1 e 412º, nºs 1 e 2, ambos do CPP).
No caso sub judice a questão suscitada pelo recorrente reconduz-se à forma de execução do tempo de prisão resultante da revogação da suspensão da execução da pena.
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Apreciando
Alega o recorrente que a pena imposta pode ser cumprida em regime de permanência na habitação.
Com as alterações introduzidas pela Lei nº 94/2017 de 23/08, o regime agora previsto no artigo 43º do Código Penal passou a constituir não só uma pena de substituição em sentido impróprio, mas também uma forma de execução ou de cumprimento da pena de prisão.
Por isso, admite-se agora expressamente que, revogada a pena não privativa da liberdade (em cuja tipologia se enquadra a pena de prisão suspensa na sua execução), a pena de prisão não superior a dois anos possa ser executada em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, se o tribunal concluir que por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da execução da pena de prisão e o condenado nisso consentir (artigo 43º nº 1 al. c) do Código Penal).
A nova lei traduz o entendimento generalizado de que as penas curtas de prisão devem ser evitadas por não contribuírem necessariamente para a ressocialização efetiva do condenado. Foi, inclusivamente, na senda desse pensamento, que se procedeu à abolição da prisão por dias livres e do regime de semidetenção, alterando-se (através da ampliação do respetivo campo de aplicação) o regime de permanência na habitação.
Diz-nos o atual artigo 43.º do Código Penal, no seu número 2, que o regime de permanência na habitação consiste na obrigação de o condenado permanecer na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, pelo tempo de duração da pena de prisão, sem prejuízo das ausências autorizadas.
São pressupostos da sua aplicação, nos termos do número um do mesmo preceito legal, para além dos requisitos gerais das penas substitutivas da prisão, a conclusão de que por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da execução da pena de prisão, o consentimento do próprio arguido/condenado e face à previsão das seguintes situações:
a)- A pena de prisão efetiva não superior a dois anos;
b)- A pena de prisão efetiva não superior a dois anos resultante do desconto previsto nos artigos 80.º a 82.º;
c)- A pena de prisão não superior a dois anos, em caso de revogação de pena não privativa da liberdade ou de não pagamento da multa previsto no n.º 2 do artigo 45.º.
Nos termos do n.º 4 desse mesmo artigo 43.º, diz-se que o tribunal pode subordinar o regime de permanência na habitação ao cumprimento de regras de conduta, suscetíveis de fiscalização pelos serviços de reinserção social e destinadas a promover a reintegração do condenado na sociedade, desde que representem obrigações cujo cumprimento seja razoavelmente de exigir, nomeadamente:
a)- Frequentar certos programas ou atividades;
b)- Cumprir determinadas obrigações;
c)- Sujeitar-se a tratamento médico ou a cura em instituição adequada, obtido o consentimento prévio do condenado;
d)- Não exercer determinadas profissões;
e)- Não contactar, receber ou alojar determinadas pessoas; e
f)- Não ter em seu poder objetos especialmente aptos à prática de crimes.
A obrigação de permanência na habitação assenta, assim, em pressupostos e requisitos, previstos no artigo 43º do Código Penal, na sua nova redação, como a viabilidade de instalação de meios técnicos de controlo à distância e o consentimento do próprio condenado, que terão de ser obtidos e verificados pela 1ª instância, depois de devidamente equacionada a “adequação e suficiência” desta forma de execução ou de cumprimento da pena de prisão a cumprir pelo condenado, eventualmente subordinada ao cumprimento de regras de conduta previstas no nº 4 do citado artigo 43º.
Está assim imposto ao juiz o dever de indagar e justificar a razão porque aplica ou o que impõe o afastamento desta forma de execução ou de cumprimento da pena desde que verificados os respetivos pressupostos formais de aplicabilidade.
Com efeito, o tribunal não é livre de aplicar ou deixar de aplicar tal forma de execução ou de cumprimento da pena, pois não detém uma faculdade discricionária; antes, o que está consagrado na lei é um poder/dever ou um poder vinculado; uma vez verificados os respetivos pressupostos formais, o tribunal não pode deixar de ponderar tal aplicação e fundamentar a razão porque a aplica ou a afasta.
Porém, esta ponderação não se mostra efetuada na decisão recorrida.
E ainda que os factos delituosos tenham ocorrido em data anterior à publicação da lei nova, certo é que o art. 2.º, n.º 4, do Código Penal obriga agora à ponderação do novo regime, no sentido de se determinar se este se apresenta como concretamente mais favorável ao condenado.
“ (…) Em abstracto, mostrar-se-á mais favorável a um condenado prosseguir o seu processo de ressocialização fora do estabelecimento prisional, mantendo-o assim mais ligado à sociedade onde se pretende reinseri-lo.
Mas cabe proceder à avaliação sobre as concretas exigências de prevenção, reavaliar as condições pessoais e as necessidades de ressocialização do arguido, e decidir se as finalidades da execução da pena de prisão se prosseguem melhor em concreto (se realizam de forma adequada e suficiente) sendo a prisão cumprida no regime de permanência na habitação.
Esta circunstância não pode assim deixar de entrar agora na ponderação que se impunha efectuar. E foi deixada à margem da apreciação aquando da prolação da decisão recorrida, desde logo porque o regime previsto no art. 43.º do CP nem foi ali mencionado
A ponderação – legal, obrigatória – que foi omitida, pressupunha (pressupõe) ainda a realização de diligências prévias que não foram também executadas. Diligências de ordem mais “formal” - como seja a auscultação do condenado sobre o seu consentimento (art. 43º, nº 1, do CP e 4º, n.ºs 1, 2 e 3 da Lei nº 33/2010), sempre a prestar pelo próprio, e a certificação das demais circunstâncias previstas no art. 7º, nº 2, da Lei nº 33/2010, a obter também nos autos.
A decisão recorrida enferma, assim, de um erro de direito ao ter determinado, na sequência da revogação da suspensão da pena de prisão (que realmente se justifica) o cumprimento efectivo da pena de prisão (em estabelecimento prisional), abstendo-se de ponderar depois a aplicação do art. 43.º, n.º 1, al. c) do CP. “ (cfr. Ac. TRE, de 21-01-2021).
Como é sabido a omissão de pronúncia decorre da violação da lei quanto ao exercício do poder jurisdicional. Há assim omissão de pronúncia quando o juiz deixa de pronunciar-se sobre questão que devia apreciar.
E dispõe o artigo 379º nº1, al.c), do Código de Processo Penal, que é nula a sentença quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar, sendo que tal nulidade pode ser arguida em recurso da sentença (nº2 do mesmo preceito).
Se o tribunal a quo deixa de equacionar a aplicabilidade do regime previsto no artigo 43.º do Código Penal, ocorre, pois, omissão de pronúncia, o que constitui nulidade da sentença, de conhecimento oficioso, nos termos do artigo 379º, nºs 1, alínea c) e 2, do Código de Processo Penal.
Foi assim cometida a nulidade prevista neste artigo 379º, nº1, al. c) do Código de Processo Penal, conduzindo a omissão ocorrida a que não possa manter-se a decisão recorrida na parte em que determina a emissão dos mandados de detenção a fim de o arguido dar início ao cumprimento da pena de 1 ano e 3 meses de prisão (artigos374º, nº2 e 379º, nº1, al. c), do Código de Processo Penal).
Com a expressa remissão do nº 2 do artigo 379º, para o nº 4 do artigo 414º, do Código de Processo Penal o suprimento das nulidades da sentença é feito pela 1ª instância, através da reparação da decisão.
Assim, revoga-se a decisão recorrida apenas na parte em que se determinou a emissão dos mandados de detenção a fim de o arguido dar início ao cumprimento da pena de 1 ano e 3 meses de prisão, devendo, nesta parte, ser substituída por outra que, uma vez obtidos os elementos necessários à ponderação da aplicação do regime previsto no artigo 43º, nº 1, al. c) do Código Penal, proceda a essa ponderação.
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Decisão
Por todo o exposto, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:
- revogar a decisão recorrida apenas na parte em que se determinou a emissão dos mandados de detenção a fim de o arguido dar início ao cumprimento da pena de 1 ano e 3 meses de prisão, devendo, nesta parte, ser substituída por outra que, uma vez obtidos os elementos necessários à ponderação da aplicação do regime previsto no artigo 43º, nº 1, al. c) do Código Penal, proceda a essa ponderação.
- Sem custas.
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Elaborado e revisto pela primeira signatária
Évora, 8 de fevereiro de 2022
Laura Goulart Maurício
Maria Filomena Soares