Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
318/12.0GEBNV.E1
Relator: ALBERTO BORGES
Descritores: VEÍCULO AUTOMÓVEL
MEIO PARTICULARMENTE PERIGOSO
CRIME DE OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA
Data do Acordão: 05/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Decisão: PROVIDO
Sumário: I – Um veículo automóvel, quando utilizado numa agressão, é um meio particularmente perigoso, face à enorme supremacia que confere um veículo automóvel e da sua exponencial perigosidade, o que dificulta a defesa da vítima.
II – Comete um crime de ofensa à integridade física qualificada, na forma tentada, p. e p. pelos art.ºs 22, 23, 145 n.ºs 1 al.ª a) e 2, 132 n.º 2 al.ª h) do CP, o arguido que, após, juntamente com outros, ter subtraído bens com intenção de apropriação de uma residência, ao iniciar a marcha do veículo em ordem a abandonar o local, tendo sido surpreendido pelo ofendido – que, a dada altura, arremessou uma pedra contra o veículo, em ordem a evitar que este se pusesse em fuga – , conduziu o mesmo veículo contra o ofendido, só não o logrando atingir porquanto este se conseguiu desviar, evitando dessa forma ser colhido pelo referido veículo.
Decisão Texto Integral: Proc. 318/12.0GEBNV.E1

Acordam, em conferência, os Juízes que compõem a 1.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

1. No Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Juízo Central Criminal, J2, correu termos o Proc. Comum Coletivo n.º 318/12.0GEBNV, no qual foram julgados os arguidos BB - filho de (…) - CC - filho de (…) - e DD - filho de (…) - pela prática, em co-autoria material, na forma consumada e em concurso efectivo:
1) Todos os arguidos:
- de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelos artigos 203 e 204 n.º 2 alínea e), por referência ao artigo 202 alínea d), todos do Código Penal;
- de um crime de falsificação, previsto e punido pelos artigos 255 alínea a) e 256 n.ºs 1, alíneas a) e e), e 3 do Código Penal;
2) O arguido BB, ainda, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelos artigos 2 n.º 1 alínea av), artigo 3 n.º 2 alínea e) e 86 n.º 1 alínea d), todos da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, na redação vigente;
3) O arguido CC, ainda, pela prática, em autoria material, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, na forma tentada, previsto e punido pelo artigo 145 n.ºs 1 alínea a) 2, com referência aos artigos 22, 23 e 132 n.º 2 alínea h), todos do Código Penal;
4) O arguido DD, ainda, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3 n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de janeiro.
A final veio a decidir-se:
1) Absolver os arguidos
- BB, da prática, em co-autorial material e na forma consumada, de um crime de falsificação, previsto e punido pelos artigos 255 alínea a) e 256 n.ºs 1 alíneas a) e e), e 3 do Código Penal;
- CC, da prática, em co-autorial material e na forma consumada, de um crime de falsificação, previsto e punido pelos artigos 255 alínea a) e 256 n.ºs 1 alíneas a) e e), e 3 do Código Penal, e - em autoria material - de um crime de ofensa à integridade física qualificada, na forma tentada, previsto e punido pelo artigo 145 n.ºs 1 alínea a) e 2, com referência aos artigos 22, 23 e 132 n.º 2 alínea h), todos do Código Penal;
- DD, da prática, em em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de falsificação, previsto e punido pelo artigo 256 n.º 1 alínea a) do Código Penal, e - em autoria material e na forma consumada - de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3 n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de janeiro;
2) Condenar o arguido BB:
- Pela prática, em co-autoria material, na forma consumada, de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelos artigos 203 e 204 n.º 2 alínea e), por referência ao artigo 202 alínea d), todos do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão;
- Pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelos artigos 2 n.º 1 alínea av), 3 n.º 2, alínea e) e 86 n.º 1 alínea d), todos do Regime Jurídico das Armas e Munições (Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, na redação introduzida pela Lei n.º 12/2011, de 27 de abril), na pena de 1 (um) ano de prisão;
- E, em cúmulo jurídico, na pena única de 3 (três) anos e 2 (dois) meses de prisão.
Determinar a suspensão da execução da pena de prisão aplicada a BB pelo período de 3 (três) anos e 2 (dois) meses, sujeita a regime de prova, assente em plano social de recuperação a elaborar pelo Instituto de Reinserção Social.
3) Condenar CC, pela prática, em co-autoria material, na forma consumada, de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelos artigos 203 e 204 n.º 2 alínea e), por referência ao artigo 202 alínea d), todos do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão.
Determinar a suspensão da execução da pena de prisão aplicada a CC pelo período de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses, sujeita a regime de prova, assente em plano social de recuperação a elaborar pelo Instituto de Reinserção Social.
4) Condenar DD:
- Pela prática, em co-autoria material, na forma consumada, de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelos artigos 203 e 204 n.º 2 alínea e), por referência ao artigo 202 alínea d), todos do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão;
- Pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de falsificação, previsto e punido pelos artigos 255 alínea a) e 256 n.ºs 1, alínea e), e 3 do Código Penal, na pena de 18 (dezoito) meses de prisão;
- E, em cúmulo jurídico, na pena única de 3 (três) anos e 10 (dez) meses de prisão.
Determinar a suspensão da execução da pena de prisão aplicada a DD pelo período de 3 (três) anos e 10 (dez) meses, sujeita a regime de prova, assente em plano social de recuperação a elaborar pelo Instituto de Reinserção Social.
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2. Recorreu o Ministério Público desse acórdão, concluindo a motivação do recurso com as seguintes conclusões:
1 - O recurso restringe-se apenas à decisão absolutória, no que concerne ao crime de ofensa à integridade física qualificada, na forma tentada, imputado ao arguido CC.
2 - O arguido CC foi submetido a julgamento, imputando-se-lhe, então, entre outros crimes, a prática, em autoria material, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, na forma tentada p. e p. pelos art.ºs 22, 23, 145 n.ºs 1 al.ª a) e 2, com referência ao art.º 132 n.º 2 al.ª h) do C. Penal.
3 - Realizado o julgamento, o tribunal veio a absolver o arguido da prática deste crime, alegando não se verificar, no caso dos autos, a qualificativa da alínea h) do n.º 2 do art.º 132 do C. Penal, em virtude de apenas este arguido ter praticado atos de execução do crime de ofensa à integridade física, uma vez que só ele tinha o domínio dos factos e o domínio da vontade, pelo que a circunstância de ter atuado de forma isolada não podia ser considerada indiciadora da especial censurabilidade ou perversidade do autor do crime.
4 - Resultaram provados, para além do mais, os seguintes factos:
“8) Após saírem da residência de EE, trazendo consigo os objetos acima descritos, BB e DD dirigiram-se ao veículo Honda Civic, onde no seu interior, e ao volante do mesmo, os aguardava CC, o qual iniciou a marcha do veículo em ordem a abandonar o local.
9) Foram nesta altura surpreendidos por FF, pai de EE, que, por estranhar ver um carro parado em frente à residência da mesma, observou o que se passava, caminhou em direção ao veículo e, a dada altura, arremessou uma pedra contra o mesmo, em ordem a evitar que este se pusesse em fuga.
10) Nesta altura, CC, que estava ao volante daquele veículo, conduziu o mesmo em direção a FF, só não o logrando atingir porquanto este se conseguiu desviar, evitando dessa forma ser colhido pela referida viatura.
19) Ao conduzir o veículo Honda Civic, nos moldes sobreditos, na direção de FF, agiu CC com o propósito de molestar o corpo e a saúde daquele, através da utilização de um meio particularmente perigoso, cuja perigosidade conhecia, realidade que quis e representou, só não o logrando atingir, porquanto aquele conseguiu desviar-se do referido veículo.
21) Agiram sempre BB, CC e DD de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei”.
5 - Justificou o tribunal que se impunha a absolvição do arguido, por estarmos perante uma ofensa à integridade física simples, na forma tentada, não punível, em virtude de o arguido CC ter agido de forma isolada, sem a comparticipação dos demais arguidos que o acompanhavam, pois só ele tinha o domínio do facto e da vontade, já que era ele quem conduzia o veículo.
6 - Parece esquecer o tribunal que o art.º 145 do C. Penal prevê: “1 - Se as ofensas à integridade física forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, este é punido:
a) Com pena de prisão até quatro anos no caso do artigo 143;
b) Com pena de prisão de 1 a 5 anos no caso do n.º 2 do artigo 144-A;
c) Com pena de prisão de 3 a 12 anos no caso do artigo 144 e do n.º 1 do artigo 144A”.
2 - São susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, entre outras, as circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 132”.
7 - E que, de acordo com o disposto na alínea h) do n.º 2 do artigo 132 do Código Penal, além do mais, “é susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância do agente praticar o facto juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas ou utilizar meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime de perigo comum”.
8 - Face à factualidade dada como provada nos artigos 9, 10, 19 e 21 do douto acórdão condenatório, ou seja, em resumo, que os arguidos foram surpreendidos pelo ofendido FF, pai da proprietária da residência assaltada, que, por estranhar ver ali um veículo automóvel imobilizado em frente ao aludido imóvel, caminhou na direção do veículo e arremessou pedras contra o mesmo para impedir a sua fuga, momento em que o arguido CC, que estava ao volante do veículo, conduziu o mesmo na direção do ofendido, só não o logrando atingir porquanto ele se conseguiu desviar, evitando ser colhido pelo veículo e que ao conduzir o veículo nesses moldes, na direção do ofendido com o propósito de molestar o seu corpo e a sua saúde, através da utilização de um meio particularmente perigoso, cuja perigosidade conhecia, realidade que quis e representou, só não o logrando atingir por ele se ter desviado do veículo, tendo agido de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, não poderia o tribunal ter absolvido o arguido da prática de tal ilícito, tendo sido feita uma incorreta subsunção da factualidade dada como provada ao direito.
9 - O tribunal errou, desta forma, ao considerar que não se verificava a qualificativa prevista na alínea h) do n.º 2 do art.º 132 do C. Penal, pelo simples facto de não ter existido comparticipação dos outros dois arguidos no que concerne à utilização do veículo automóvel pelo arguido CC na tentativa da ofensa à integridade física, concluindo que a circunstância deste arguido ter agido de forma isolada não pode ser indiciadora da especial censurabilidade ou perversidade exigida pela citada norma legal.
10 - Pois, como se disse, a alínea h) do n.º 2 do art.º 132 do C. Penal não prevê apenas a circunstância de o agente praticar o facto juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas como sendo suscetível de revelar especial censurabilidade ou perversidade.
11 - É igualmente suscetível de revelar essa especial censurabilidade ou perversidade a circunstância dada como provada no douto acórdão condenatório, no ponto 19 dos factos dados como provados: a utilização de um meio particularmente perigoso, cuja perigosidade, aliás, o arguido conhecia.
12 - A simples verificação de qualquer uma dessas circunstâncias não implica, por si só, a qualificação do crime, já que as circunstâncias descritas nas várias alíneas do n.º 2 do artigo 132 não são de funcionamento automático.
13 - Acontece que a jurisprudência tem vindo a decidir que um veículo automóvel, quando utilizado numa agressão, é um meio particularmente perigoso, face à enorme supremacia que confere um veículo automóvel e da sua exponencial perigosidade, o que dificulta a defesa da vítima, o que permite concluir pela especial censurabilidade (a título de exemplo o acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, proferido a 06/02/2017, no Processo n.º 1802/14.6TAGMR, e acórdão de 20/10/2015 do Venerando Tribunal da Relação de Évora, in www.dgsi.pt).
14 - Face às circunstâncias em que ocorreram os factos, o meio escolhido pelo arguido e o desvalor da sua conduta, verificam-se os elementos objetivos e subjetivos do crime de ofensa à integridade física qualificada, na forma tentada, p. e p. pelos art.ºs 22, 23, 145 n.ºs 1 al.ª a) e 2, 132 n.º 2 al.ª h) do C. Penal, razão pela qual o arguido não deveria ter sido absolvido da prática do aludido crime.
15 - Ao absolver o arguido da prática do crime, o douto acórdão recorrido violou os art.ºs 22, 23,145 n.ºs1 al.ª a) e 2, e 132 n.º 2 al.ª h) do C. Penal.
16 - Deverá, por isso, o douto acórdão recorrido ser revogado na parte em que absolveu o arguido CC e, consequentemente, substituído por outro que o condene, pela prática do crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos art.ºs 22, 23, 145 n.ºs 1 al.ª a) e 2, e 132 n.º 2 al.ª h) do C. Penal, numa pena de prisão, suspensa na sua execução.
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3. Não houve resposta e o Ministério Público junto deste tribunal emitiu parecer no sentido da procedência do recurso (fol.ªs 983 e 984).
5. Cumprido o disposto no art.º 417 n.º 2 do CPP e colhidos os vistos legais, cumpre decidir, em conferência (art.º 419 n.º 3 al.ª c) do CPP).
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6. Foram dados como provados, na decisão recorrida, os seguintes factos:
1. No dia 6 de julho de 2012, em hora não concretamente determinada, mas no período da manhã, antes das 12 horas, BB, CC e DD, em comunhão de esforços e num plano previamente traçado entre si, dirigiram-se à residência de EE, sita na rua ….
2. BB, CC e DD faziam-se transportar no veículo de marca Honda, modelo Civic, de cor vermelha, no qual se encontrava aposta a chapa de matrícula …
3. A mencionada matrícula não corresponde ao veículo onde BB, CC e DD se faziam transportar, porquanto, a correspondente ao mesmo veículo é a matrícula ….
4. O veículo com a matrícula está registado em nome de …, tendo-lhe sido subtraído por sujeito de identidade desconhecida e em circunstâncias igualmente não apuradas, no período compreendido entre as 17h40m e as 22h20m do dia 23 de abril de 2012, do parque de estacionamento de barcos da Transtejo.
5. Ao chegarem junto da residência de EE, BB, CC e DD estacionaram o veículo onde se faziam transportar e, enquanto um permaneceu no interior do veículo, à espera, sentado no lugar do condutor, os demais saíram e dirigiram-se à residência daquela.
6. Aí chegados, e de modo não concretamente determinado, BB e um dos outros dois partiram o vidro de uma das janelas daquela residência, com o propósito de ali entrarem, localizarem e trazerem consigo objetos de valor que pudessem encontrar.
7. Em ato contínuo, e após procederem do modo sobredito, BB e um dos outros dois entraram na residência de EE e dali retiraram e levaram consigo os seguintes objetos, propriedade da mesma:
(…)
8. Após saírem da residência de EE, trazendo consigo os objetos acima descritos, BB e DD dirigiram-se ao veículo Honda Civic, onde no seu interior e ao volante do mesmo os aguardava CC, o qual iniciou a marcha do veículo em ordem a abandonar o local.
9. Foram nesta altura surpreendidos por FF, pai de EE, que, por estranhar ver um carro parado em frente à residência da mesma, observou o que se passava, caminhou em direção ao veículo e, a dada altura, arremessou uma pedra contra o mesmo, em ordem a evitar que este se pusesse em fuga.
10. Nesta altura, CC, que estava ao volante daquele veículo, conduziu o mesmo em direção a FF, só não o logrando atingir porquanto este se conseguiu desviar, evitando dessa forma ser colhido pela referida viatura.
11. BB, CC e DD vieram a ser interceptados, cerca das 12 horas daquele mesmo dia, pela Guarda Nacional Republicana, que havia sido, entretanto, alertada, quando saíam da Auto-Estrada n.º 1 e se dirigiam para a localidade de …
12. Na sua posse, no interior do ténis, marca Nike, com riscas vermelhas, calçado no pé esquerdo, BB trazia os objetos acima descritos, que haviam sido subtraídos do interior da residência da ofendida EE.
13. Nesta sequência, tais objetos foram recuperados e entregues EE.
14. No dia 6 de julho de 2012, BB transportava no interior do veículo marca Rover, matrícula …, propriedade do mesmo, uma navalha tipo borboleta, com abertura automática, com o comprimento total de 18 cm e com o comprimento de lâmina de 8,5 cm, com punho de metal dourado e preto, com círculos, e constituída a sua lâmina por um metal desconhecido, com o valor comercial de €5,00 (cinco euros).
15. Ao agir da forma descrita, mediante tal plano previamente traçado e em comunhão de esforços, quiseram BB, CC e DD fazer seus, como fizeram, os objetos que retiraram do interior da residência da ofendida EE, muito embora soubessem que os mesmos não lhes pertenciam e que atuavam contra a vontade da respetiva proprietária.
16. DD sabia que não podia conduzir e fazer-se transportar no veículo Honda Civic, no qual havia sido aposta uma chapa de matrícula que não correspondia ao mesmo, facto de que tinha pleno conhecimento, mas quis ainda assim fazê-lo.
17. Mais sabia DD que, ao assim proceder, abalava a credibilidade pública que as matrículas de veículos automóveis, enquanto seu elemento identificativo, devem merecer perante a generalidade das pessoas e, em especial, perante as autoridades públicas de fiscalização.
18. DD não é detentor, nem nunca foi, de qualquer licença que o habilite a conduzir veículos automóveis.
19. Ao conduzir o veículo Honda Civic, nos moldes sobreditos, na direção de FF, agiu CC com o propósito de molestar o corpo e a saúde daquele, através da utilização de um meio particularmente perigoso, cuja perigosidade conhecia, realidade que quis e representou, só não o logrando atingir, porquanto, aquele conseguiu desviar-se do referido veículo.
20. Por sua vez, BB bem sabia que não era possuidor de licença de uso e porte de arma, mas quis, ainda assim, deter a faca borboleta, acima descrita, no veículo marca Rover, matrícula …, que lhe pertencia e onde se fazia habitualmente transportar, bem sabendo que a posse de tal arma lhe estava vedada por lei.
21. Agiram sempre BB, CC e DD de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
(…)
79. BB foi condenado:
(…)
80. CC foi condenado:
(…)
81. DD foi condenado:
(…)
7. E não se provou:
(…)
8. O tribunal formou a sua convicção (…)
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9. A motivação do recurso enuncia especificamente os fundamentos do mesmo e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido (art.º 412 do Código de Processo Penal).
Tais conclusões destinam-se a habilitar o tribunal superior a conhecer das pessoais razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida, seja no plano de facto, seja no plano de direito.
Elas devem conter, por isso, um resumo claro e preciso das razões do pedido, sendo estas que delimitam o âmbito do recurso (ver art.ºs 412 n.ºs 1 e 2 e 410 n.ºs 1 a 3, ambos do CPP, e, entre outros, o acórdão do STJ de 19.06.96, in BMJ, 458, 98).
Feitas estas considerações, e atentas as conclusões da motivação do recurso, assim consideradas, uma única questão vem colocada pelo recorrente à apreciação deste tribunal: é a de saber se, em face da factualidade dada como provada, deve entender-se que se verifica a qualificativa prevista na alínea h) do n.º 2 do art.º 132 do C. Penal e, consequentemente, deve o arguido CC ser condenado pela prática do crime de ofensa à integridade física qualificada, na forma tentada, p. e p. pelos art.ºs 22, 23, 145 n.ºs 1 al.ª a) e 2, 132 n.º 2 al.ª h) do C. Penal.
Esta é, pois, a questão a decidir.
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Ao arguido CC vinha imputada, além do mais, a prática, em autoria material, na forma tentada, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelo artigo 145 n.ºs 1 alínea a) 2, com referência aos artigos 22, 23 e 132 n.º 2 alínea h), todos do Código Penal.
E foi absolvido da prática deste crime, em síntese, porque - escreveu-se - “… somente o arguido CC, por si, sem a comparticipação dos demais arguidos que o acompanhavam, praticou atos de execução do crime de ofensa à integridade física simples de FF, uma vez que somente o mesmo tinha o domínio dos factos e o domínio da vontade.
… a circunstância do arguido CC ter atuado de forma isolada não pode ser considerada indiciadora da especial censurabilidade ou perversidade do autor do crime de ofensa à integridade física simples, nem encerrar o fundamento da agravação… não deve a personalidade do arguido CC, tal como ela emerge deste crime, ser objeto de um acrescido juízo de censura, fundado no especial desvalor.
Tal circunstância, bem documentada nos factos provados, não integra a dimensão qualificativa da alínea h) do n.º 2 do artigo 132 do Código Penal”.
E - concluiu-se - não se verificando aquela qualificativa, o crime é punível com pena de prisão até três anos, não sendo punível a tentativa (art.ºs 143 n.º 1 e 23 n.º 1, ambos do CP).
Pretende o recorrente que assim não é.
E isto porque - em síntese - de acordo com o alegado, é igualmente suscetível de revelar essa especial censurabilidade ou perversidade a circunstância dada como provada no douto acórdão condenatório, no ponto 19 dos factos dados como provados: a utilização de um meio particularmente perigoso, cuja perigosidade, aliás, o arguido conhecia.
A simples verificação de qualquer uma dessas circunstâncias não implica, por si só, a qualificação do crime, já que as circunstâncias descritas nas várias alíneas do n.º 2 do artigo 132 não são de funcionamento automático.
… a jurisprudência tem vindo a decidir que um veículo automóvel, quando utilizado numa agressão, é um meio particularmente perigoso, face à enorme supremacia que confere um veículo automóvel e da sua exponencial perigosidade, o que dificulta a defesa da vítima, o que permite concluir pela especial censurabilidade (a título de exemplo o acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, proferido a 06/02/2017, no Processo n.º 1802/14.6TAGMR, e acórdão de 20/10/2015 do Venerando Tribunal da Relação de Évora, in www.dgsi.pt)” - escreve-se na motivação do recurso.
Vejamos.
Dispõe o art.º 132 n.º 2 al.ª h) do CP que “é susceptível de revelar especial censurabilidade ou perversidade… entre outras, a circunstância do agente:

h) Praticar o facto juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas ou utilizar meio particularmente perigoso…”.
E o art.º 145 n.º 1 al.ª a) e 2 que, “se as ofensas à integridade física forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, este é punido:

a) Com pena de prisão até 4 anos no caso do art.º 143” (no caso de ofensa à integridade física simples), sendo susceptível de “revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, entre outras, as circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 132” (n.º 2 do art.º 145 do CP).
Concorda-se com os fundamentos da decisão recorrida, concretamente, quando aí se escreve que:
Este preceito consagra… o crime de ofensa à integridade física qualificada, que se traduz numa forma agravada de ofensa, em que a qualificação decorre da verificação de um tipo de culpa agravado, definido pela orientação de um critério generalizador enunciado no n.º 1 do artigo 145 do Código Penal, moldado pelos vários exemplos-padrão constantes das diversas alíneas do n.º 2 do artigo 132 do mesmo diploma.
O critério generalizador está traduzido na cláusula geral com a utilização de conceitos indeterminados – a especial censurabilidade ou perversidade do agente.
As circunstâncias relativas ao modo de execução do facto ou ao agente são suscetíveis de indiciar a especial censurabilidade ou perversidade e, por esta mediação de referência, preencher e reduzir a indeterminação dos conceitos da cláusula geral.
Sendo elementos constitutivos do tipo de culpa, a verificação de alguma das circunstâncias que definem os exemplos-padrão não significa, por imediata consequência, a realização do tipo especial de culpa e a direta qualificação do crime, como, também por isso mesmo, a não verificação de qualquer dos modelos definidos do tipo de culpa não impede que existam outros elementos e situações que devam ser considerados no mesmo plano de valoração que está pressuposto no crime qualificado e na densificação dos conceitos bem marcados que a lei utiliza.
… bem pode suceder que a verificação de qualquer uma dessas circunstâncias não implique, por si só, a qualificação do crime pelo que, então, o juiz deixará de operar tal qualificação – e isto porque as circunstâncias descritas nas várias alíneas do n.º 2 do artigo 132 não são de funcionamento automático (neste sentido, entre outros, Maia Gonçalves, em anotação ao artigo 132 do Código Penal, Atas das Sessões da Comissão Revisora do Código Penal, Parte Especial, pág. 21 a 24, também acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de maio de 1983, in BMJ n.º 327, pág. 458, de 8 de fevereiro de 1984, in BMJ nº 334, pág. 258, de 5 de janeiro de 1983, in BMJ nº 323, pág. 121, de 26 de abril de 1989, in BMJ n.º 386, pág. 273 e de 5 de dezembro de 1990, in BMJ n.º 402, pág.195).
Constituindo a enumeração das circunstâncias previstas no n.º 2 meramente exemplificativa, sempre poderão existir outras circunstâncias não descritas no tipo legal, mas reveladoras da especial censurabilidade ou perversidade – o que é fundamental é que se trate de um crime praticado em circunstâncias que possam desencadear o efeito de indício de uma maior culpa (cfr. Teresa Serra, in Homicídio Qualificado - Tipo de Culpa e Medida da Pena, págs. 70).
Face ao seu funcionamento não automático e à sua não taxatividade, tais circunstâncias só podem ser compreendidas enquanto elementos da culpa, exigindo-se, por isso, que, no caso concreto, elas exprimam insofismavelmente, uma especial perversidade ou censurabilidade do agente.
Deste modo, verificando-se algumas das circunstâncias enunciadas no mencionado n.º 2, embora exista um efeito de indício de uma especial censurabilidade ou perversidade, tal efeito tem de ser demonstrado, posteriormente, na situação em concreto, através de uma análise das circunstâncias do caso (cfr. Atas das Sessões da Comissão Revisora do Código Penal, Parte Especial, pág. 21 e 22 e acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de ulho de 1989, in BMJ n.º 389, pág. 310).
Assim, seja mediada pelas circunstâncias referidas nos exemplos-padrão, seja por outros elementos de idêntica dimensão quanto ao desvalor da conduta do agente, o que releva e está pressuposto na qualificação é sempre a manifestação de um especial e acentuado «desvalor de atitude», que se traduz na especial censurabilidade ou perversidade e que conforma o especial tipo de culpa na ofensa à integridade física qualificada.
A qualificação da ofensa à integridade física do artigo 145 do Código Penal supõe, pois, a imputação de um especial e qualificado tipo de culpa, refletido, no plano da atitude do agente, por uma conduta em que se revelam «formas de realização do facto especialmente desvaliosas (especial censurabilidade), ou aquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas» (cfr. Figueiredo Dias, in Comentário Conimbricense do Código Penal, vol. I, págs. 27).
O modelo de construção do tipo qualificado – qualificado pelo especial tipo de culpa – através da enunciação do critério geral, moldado pela densificação através dos exemplos-padrão, não permitirá, como se disse, salvo afetação do princípio da legalidade, «fazer um apelo direto à cláusula de especial censurabilidade ou perversidade, sem primeiramente a fazer passar pelo crivo dos exemplos-padrão e de, por isso, comprovar a existência de um caso expressamente previsto [...] ou de uma situação valorativamente análoga» (cfr. Figueiredo Dias, in ob. cit., págs. 28).
Acompanhando Teresa Serra, in Homicídio Qualificado - Tipo de Culpa e Medida da Pena, págs. 63, referindo-se ao crime de homicídio qualificado, pode dizer-se que existe especial censurabilidade quando «as circunstâncias em que a morte foi causada são de tal modo graves que refletem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal com os valores»; por seu turno, a especial perversidade supõe «uma atitude profundamente rejeitável no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade».
Por conseguinte, a agravação da culpa tem, afinal, a ver com a «maior desconformidade que a personalidade manifestada no facto possui, face à suposta e querida pela ordem jurídica, em relação à desconformidade, já de si grande, da personalidade subjacente à prática de um homicídio simples» (cfr. Figueiredo Dias, in C.J., ano XII, pág. 52).
… para aquilatar da especial censurabilidade ou perversidade do agente na prática do crime, por forma a que este seja considerado como qualificado e, por via disso, punido com pena agravada, se impõem duas operações: a primeira consiste em saber se existe alguma circunstância das enunciadas no n.º 2 do artigo 132 do Código Penal, enquanto indício daquela censurabilidade e perversidade, e a segunda em averiguar se, perante as circunstâncias concretas do caso dos autos, e vista a estrutura valorativa em tal grau de gravidade dos factos em julgamento, o aumento da culpa é em grau tão elevado que justifica a agravação subjacente à qualificada (neste sentido, Teresa Serra, in Homicídio Qualificado - Tipo de Culpa e Medida da Pena, pág. 7).
De acordo com o disposto na alínea h) do n.º 2 do artigo 132 do Código Penal, além do mais, «é susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância do agente praticar o facto juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas ou utilizar meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime de perigo comum»”.
Não se concorda, porém, com a conclusão a que se chegou de que - pelo facto de “somente o arguido CC, por si, sem a comparticipação dos demais arguidos que o acompanhavam”, ter praticado “atos de execução do crime de ofensa à integridade física simples de FF, uma vez que somente o mesmo tinha o domínio dos factos e o domínio da vontade” - não se considere que a conduta do CC não revela especial censurabilidade ou perversidade, pois que é suscetível de revelar especial censurabilidade ou perversidade, para além daquela circunstância, a circunstância do agente praticar o facto utilizando “meio particularmente perigoso”, como no caso aconteceu.
De facto, foi dado como provado:
8. Após saírem da residência de EE, trazendo consigo os objetos acima descritos, BB e DD dirigiram-se ao veículo Honda Civic, onde no seu interior e ao volante do mesmo os aguardava CC, o qual iniciou a marcha do veículo em ordem a abandonar o local.
9. Foram nesta altura surpreendidos por FF, pai de EE, que, por estranhar ver um carro parado em frente à residência da mesma, observou o que se passava, caminhou em direção ao veículo e, a dada altura, arremessou uma pedra contra o mesmo, em ordem a evitar que este se pusesse em fuga.
10. Nesta altura, CC, que estava ao volante daquele veículo, conduziu o mesmo em direção a FF, só não o logrando atingir porquanto este se conseguiu desviar, evitando dessa forma ser colhido pela referida viatura.

19. Ao conduzir o veículo Honda Civic, nos moldes sobreditos, na direção de FF, agiu CC com o propósito de molestar o corpo e a saúde daquele, através da utilização de um meio particularmente perigoso, cuja perigosidade conhecia, realidade que quis e representou, só não o logrando atingir, porquanto, aquele conseguiu desviar-se do referido veículo.

21. Agiram… CC... de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei”.
Esta conduta do arguido, nas circunstâncias em que ocorre - conduzindo o veículo em direção FF, “com o propósito de molestar o corpo e a saúde daquele”, o que não conseguiu por circunstâncias alheias à sua vontade, uma vez que aquele “conseguiu desviar-se do referido veículo” - e fazendo apelo aos fundamentos que do acórdão constam, reflete uma atitude altamente censurável do agente, especialmente desvaliosa, que se aproveita daquele meio e da superioridade que este lhe confere para agredir a vítima (e isto, deve anotar-se, para, na sequência do furto em que acabava de participar, levar a cabo, com êxito, a fuga), e profundamente rejeitável, pois que tal conduta, nessas circunstâncias - e pelas razões que a motivaram - constitui “indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade”, para usar a expressão utilizada por Teresa Serra, in Homicídio Qualificado - Tipo de Culpa e Medida da Pena, pág. 63, pois que dificulta significativamente a defesa da vítima, que se encontra, objetivamente, numa situação de especial vulnerabilidade.
De facto, como se escreveu no acórdão da RG de 6.02.2017, Proc. 1802/14.6TAGMR, em excerto transcrito pelo recorrente, “a utilização de um meio ou instrumento - veículo automóvel - que, pelas suas características, além de dificultar de modo exponencial a defesa da vítima, revela uma perigosidade muito superior ao normal, marcadamente diverso e excecional em relação aos meios ou instrumentos mais comuns de agressão, com aptidão para provocar danos físicos e já de si perigosos ou muito perigosos (cfr. neste sentido o ac. do STJ de 23-02-2012 (Proc. 123/11.0JAAVR.S1- Rodrigues Costa), referenciando também os acs. do STJ de 02-03-2006, Proc. n.º 472/06-5.ª, e de 05-09-2007, Proc. n.º 2430/07-3.ª). Com efeito, o uso do veículo em aceleração, numa descida, dificultou a defesa do ofendido, apenas lhe tendo valido a sua prontidão e destreza para saltar sob pena de mais graves consequências”.
Do mesmo modo se decidiu neste tribunal, no ac. deste tribunal de 20.10.2015, Proc. 89/11.7TARMR.E1, in www.dgsi.pt, onde se concluiu - embora nesse caso estivesse em causa a utilização de um veículo pesado porta-camiões - que a utilização desse veículo constitui uma “particular perigosidade… e a consequente maior dificuldade de defesa em que se encontra a vítima. Independentemente da velocidade no arranque que se consiga imprimir ao veículo, trata-se sempre da utilização de um meio com uma perigosidade muito superior à da normalidade dos meios utilizados para agredir…”; a reforçar este entendimento poderá argumentar-se que, enquanto relativamente à utilização de outros instrumentos de agressão o agente poderá normalmente controlar o seu uso e respetivas consequências - o resultado querido - quanto está em causa a utilização de um veículo em aceleração as consequências, por mais destreza que possa ter o condutor, são sempre imprevisíveis, pois que muitos fatores podem influir no seu controlo.
Consequentemente, a conduta do arguido CC, nas circunstâncias dadas como provadas, integra a prática do crime de ofensa à integridade física qualificada, na forma tentada, p. e p. pelos art.ºs 22, 23, 145 n.ºs 1 al.ª a) e 2, 132 n.º 2 al.ª h) do C. Penal, crime esse punível com pena de prisão de um mês a 2 anos e oito meses, ex vi art.ºs 23 n.º 2 e 73 n.º 1 al.ªs a) e b) do CP.
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É sabido, mas não será demais recordar, que a aplicação das penas e medidas de segurança “visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” (art.º 40 do CP), não podendo em caso algum ultrapassar a medida da culpa (art.º 40 n.º 2 do CP).
A proteção dos bens jurídicos implica, pois, que a pena, sem ultrapassar a medida da culpa, seja adequada e suficiente para dissuadir a prática de crimes pelos outros cidadãos, incentivar a convicção que as normas penais são válidas e eficazes e aprofundar a consciência dos valores jurídicos por parte da comunidade (acórdão do STJ de 14.03.2001, Col. Jur., Ano IX, t. 1, 245). A medida da pena será encontrada dentro da moldura de prevenção – cujo limite nos é dado pela medida óptima de tutela dos bens jurídicos (dentro do que é consentido pela culpa) e o mínimo das exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico – e em função da necessidade de socialização do agente, através da sua adesão aos valores da comunidade, dissuadindo-o da prática de novos crimes.
É dentro deste quadro que a pena deve ser determinada, tomando em consideração o disposto no art.º 71 n.º 2 do CP, ou seja, todas as circunstâncias – as apuradas – que militem contra o agente e a seu favor.
No caso em apreço há a considerar:
Por um lado, as exigências de prevenção geral que no caso se fazem sentir - não sendo muito elevadas, não pode deixar de se anotar que esta é uma conduta que ocorre com alguma frequência, muitas vezes associada a outro tipo de criminalidade, como no caso aconteceu - e as elevadas exigências de prevenção especial, sendo que este arguido, para além de não revelar qualquer atitude crítica perante os factos, “denota uma frágil interiorização de valores pró sociais… apresenta vulnerabilidades relacionadas com o autrocontrolo…” e já foi anteriormente condenado pela prática de um crime de furto, dois crimes de roubo, e dois crimes de consumo de estupefaciente, em penas de multa e numa pena de prisão substituída por 150 horas de trabalho a favor da comunidade, que interrompeu em 26.11.2014, depois de cumprir 36 (note-se que estes factos ocorreram em 6.07.2012).
Por outro lado:
- o elevado grau da ilicitude do facto, atentas as circunstâncias do mesmo (dirigindo o veículo que conduzia contra a vítima);
- o dolo com que atuou (dolo direto), “com o propósito de molestar o corpo e a saúde” da vítima;
- o grau elevado da culpa do agente, que atuou com vontade livremente determinada, bem sabendo o perigo que a sua conduta representava, face ao meio que utilizava, e os motivos que o determinaram (obstar a que fossem interceptados e conseguir a fuga, depois da prática do crime de furto que, com os demais arguidos, acabava de levar a cabo);
- as condições pessoais do arguido e a sua personalidade (tendo 28 anos de idade, apresenta uma situação económica precária, consome regularmente haxixe - aspeto que não perceciona como problema e manifesta pouca recetividade para ser avaliado em consulta da especialidade - revela dificuldades para lidar de forma ajustada com situações percecionadas como adversas e à pressão de pares associais, denota frágil interiorização de valores pró sociais e vulnerabilidades relacionadas com o auto controlo, a resolução de problemas e com o pensamento causal e sequencial).
Ora, em face destas circunstâncias, e sem perder de vista que a pena em caso algum pode ultrapassar a medida da culpa, tem-se como justa e adequada a satisfazer as exigências de prevenção que no caso se fazem sentir a pena de um ano de prisão.
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Tendo o arguido sido condenado, no acórdão recorrido, na pena de 2 anos e oito meses de prisão, pela prática, em co-autoria material, na forma consumada, de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelos artigos 203 e 204 n.º 2 alínea e), por referência ao artigo 202 alínea d), todos do Código Penal, crime que está em concurso com o crime de ofensa à integridade física qualificada, na forma tentada, p. e p. pelos art.ºs 22, 23, 145 n.ºs 1 al.ª a) e 2, 132 n.º 2 al.ª h) do C. Penal, impõe-se a condenação numa única pena, ex vi art.º 77 n.º 1 do CP, dentro da moldura de 2 anos e oito meses (pena mínima) a 3 anos e oito meses (pena máxima), considerando o conjunto dos factos e a personalidade do agente.

E tendo em conta a personalidade do arguido, supra destacada - ausência de atitude crítica perante os factos, dificuldades para lidar de forma ajustada com situações percecionadas como adversas e à pressão de pares associais, frágil interiorização de valores pró sociais e vulnerabilidades relacionadas com o auto controlo, para além da insensibilidade que revela, no que respeita ao crime de ofensa à integridade física, face às consequências sempre imprevisíveis da utilização do veículo como instrumento de agressão - e o conjunto dos factos (as circunstâncias em que ocorreram, a gravidade dos mesmos e a conexão que existe entre eles, sendo que o arguido sofreu já anteriormente outras condenações, a que acima se fez referência, bem evidenciando que estas condutas não aparecem como comportamentos isolados na sua vida).
Por outro lado, continuam a verificar-se vários fatores de risco do cometimento de novos ilícitos, como acima se deu conta.
Nestes termos, tem-se como adequada apena única de três anos e dois meses de prisão.
O tribunal da 1.ª instância suspendeu a execução da pena de prisão aplicada ao arguido (de dois anos e oito meses), em síntese, por entender que - “apesar do que se deixou dito quanto às necessidades de prevenção especial…”, a personalidade do arguido, o lapso de tempo decorrido desde a prática dos factos, o facto das antecedentes criminais “respeitarem a condutas ilícitas contemporâneas” com as que estão em causa nestes autos e o “esforço sério manifestado… no sentido da concretização da sua adequada inserção social e profissional” - “a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam já de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, desde que sujeita à imposição de um controlo efetivo por parte dos serviços da DGRSP”.
A condenação do arguido pela prática, na mesma ocasião, de um outro crime, numa relação de concurso, e a condenação na pena única supra mencionada, não é, por si, motivo para não manter a suspensão da pena única aplicada, seja porque formalmente a pena única aplicada se mantém dentro dos limites da admissibilidade da suspensão (art.º 50 n.º 1 do CP), seja porque não foram postos em causa pelo recorrente os fundamentos da suspensão, a qual, por isso, se mantém, embora pelo prazo de três anos e dois meses, ex vi art.ºs 403 n.º 3 do CPP e 50 n.º 5 do CP, sujeita a regime de prova, nos termos decididos na 1.ª instância.

10. Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 1.ª Subsecção Criminal deste tribunal em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente:
1) Condenar o arguido CC, pela prática, em autoria material, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, na forma tentada, p. e p. pelos art.ºs 22, 23, 145 n.ºs 1 al.ª a) e 2, 132 n.º 2 al.ª h) do C. Penal, na pena de um ano de prisão, e - em cúmulo jurídico com a pena de 2 anos e oito meses aplicada na 1.ª instância - na pena única de três anos e dois meses de prisão;
2) Manter a suspensão da execução da pena de prisão - agora aplicada - pelo período de três anos e dois meses, sujeita a regime de prova, nos termos decididos na 1.ª instância.
Sem tributação.
Not.
Boletins à DSIC (Direção dos Serviços de Identificação Criminal), a cumprir na 1.ª instância, após baixa do processo (após trânsito), assim como a comunicação a efetuar à DGRSP (Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais/Equipa de Santarém); mais se determina a recolha de amostras do ADN do arguido, caso ainda não conste da base de dados de perfis de ADN, para fins de investigação (art.ºs 8 n.º 2 da Lei 5/2008, de 12.02), devendo na 1.ª instância proceder-se à necessária comunicação ao INML.
(Este texto foi por mim, relator, integralmente revisto antes de assinado)

Évora, 08/05/2018
Alberto João Borges (relator)
Maria Fernanda Pereira Palma