Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
351/08.6TAPTG.E1
Relator: FERNANDO PINA
Descritores: ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
CONVICÇÃO DO TRIBUNAL
MEDIDA DA PENA
Data do Acordão: 11/13/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSOS PENAIS
Decisão: NÃO PROVIDOS
Sumário:
I - Já na anterior previsão do crime de abuso sexual de crianças, do art. 172.º do CP na versão de 1995, se devia entender que, pese embora a redacção do seu n.º 2, esse crime não se classificava como de “mão própria” no sentido de que não se admitisse formas de participação para além da autoria imediata.
II – Era-lhe, por isso, inteiramente aplicável o regime de ilicitude na comparticipação previsto no art. 28.º, n.º 1, do CP.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES, EM CONFERÊNCIA, NA 1ª SUBSECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÂO DE ÉVORA:



I. RELATÓRIO


A –
Nos presentes autos de Processo Comum Colectivo, com o nº 351/08.6TAPTG, do 2º Juízo do Tribunal Judicial de Portalegre, foram pronunciados os arguidos A e B, pela prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso sexual de crianças agravado, previsto e punido à data da prática dos factos, pelos artigos 28, nº 1, 172º, nº 2 e 177º, nº 1, alínea a), do Código Penal e, actualmente pelos artigos 28º, nº 1, 171º, nº 2 e, 177º, nº 1, alínea a), do Código Penal.
Realizado o julgamento, veio a ser proferido pertinente acórdão, no qual se decidiu condenar os arguidos pela prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso sexual de crianças agravado, previsto pelas disposições conjugadas dos artigos 26º, 28º, nº 1, 29º, 172º, nº 1 e, nº 2, e, 177º, nº 1, alínea a), do Código Penal, (na redacção vigente à data da prática dos factos), na pena de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão e de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão, respectivamente.
Relativamente a este acórdão nos termos do disposto nos artigos 365º, nº 3 e, 372º, nº 2, 2ª parte, ambos do Código de Processo Penal, um dos elementos integrantes do tribunal colectivo, assinou vencido e, lavrou a competente exposição de motivos.

Inconformado com este acórdão condenatório, o Ministério Público do mesmo interpôs recurso, extraindo da respectiva motivação as seguintes (transcritas) conclusões:
1 - Vem o recurso interposto do acórdão condenatório do Tribunal Colectivo proferido pelo Tribunal Judicial da Comarca de Portalegre no âmbito do Processo N.º 351/08.6TAPTG – 2.º JUÍZO, que condenou os arguidos A e B pela prática, em co – autoria e na forma consumada, de um crime de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. à data da prática dos factos, pelo artigo 28.º, n.º 1 do Código Penal, artigo 172.º, n.º 2, do Código Penal, art.º 177.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal e actualmente pelos artigo 28.º, n.º 1, do Código Penal, art.º 171.º, n.º 2, do Código Penal e art.º 177.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal.
Decisão condenatória com a qual não se concorda.
2 - Compulsada a douta decisão recorrida, e atento o facto de aos arguidos ter sido aplicada uma pena de prisão efectiva superior a (3) três anos, denota-se que o Tribunal recorrido não procedeu ao juízo de ponderação (do ponto de vista da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito – art.º 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa) respeitante à extracção e recolha do ADN dos arguidos e da posterior inserção do perfil genético dos arguidos na base de dados de ADN.
3 - A doutrina mais recente tem considerado que a decisão de recolha e extracção de ADN é dotada de uma “quase automaticidade”, na medida em que a mesma só pode ser excepcionalmente derrogada ou dispensada, quando seja entendida como desnecessária (casos em que o arguido foi anteriormente sujeito a recolha noutros processos) ou inadequada e desproporcionada (v. g. em caso de doente em estado terminal) e noutras situações virtualmente violadoras do art.º 18.º, da CRP.
4 - Por isso, tratando-se de um caso que se contenha no regime – regra da “quase automaticidade” da ordem de recolha de ADN dos arguidos, mas em que o tribunal se decida pela dispensa de ordenar a recolha (oficiosamente ou mediante requerimento do arguido em tal sentido), pode também, o Ministério Público interpor recurso da decisão de não ordenar a recolha, no sentido de assegurar a validade do regime – regra.
5 - No caso concreto, não foi ponderada na sentença recorrida a recolha de ADN dos arguidos, derrogando, assim, a determinação legal (art.º 8.º, n.º 2, da Lei N.º 5/2008, de 12 de Fevereiro), a qual fixa como critério para a decisão recolha de ADN dos arguidos a condenação transitada em julgado em pena superior a 3 (três) anos de prisão. Os crimes foram graves e atingiram na ilicitude e dolo, um patamar que chegou a um nível elevado. Porém, a decisão omitiu a determinação legal da recolha de ADN dos arguidos (Sobre a questão da ponderação e fundamentação mínima das restrições aos direitos fundamentais, ainda que enquadrada do ponto de vista da misure cautelare, o Acórdão do Tribunal Constitucional Italiano (CORTE CONSTITUZIONALE ITALIANO), de 05/10/2011, disponível em http://www.cortecostituzionale.it/actionIndiciAnnuali.do).
6 - Cremos e vislumbramos aqui em concreto um perigo grave de continuação criminosa que justifica a proporcionalidade da decisão de recolha. Não sendo esta recolha, em si mesma, o problema, sobretudo quando efectuada por métodos não invasivos do corpo dos arguidos, já o será a sua conservação para futura utilização consoante os fins que visem e os limites daqueles direitos de reserva íntima e de privacidade (Sobre o direito à autodeterminação informacional, do ponto da intervenção corporal, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 155/2007, relatado pelo Exmo. Senhor Conselheiro Gil Galvão, disponível em www.dgsi.pt).
7 - Por tudo o que se referiu, e não obstante a dita referência ao cuidado a ter-se, face à questão da (não) automaticidade da imposição de recolha de ADN só por força de uma condenação transitada, afigura – se – nos que a decisão recorrida deve ser revogada na parte em que não impõe nem fundamenta a recolha de ADN dos arguidos, sem o respectivo consentimento, por falta de fundamento inequívoco, ligado à defesa dos princípios da necessidade e da proporcionalidade (Sobre o teste de proporcionalidade em sentido estrito (VerhältnismöglichKeitsprüfung) que deve presidir à restrição de direitos fundamentais, o Acórdão do Supremo Tribunal Federal Alemão (BGH), de 13/10/2011, disponível em http://juris.bundesgerichtshof.de/cgibin/rechtsprechung/document.py?Gericht=bgh&Art=en&Datum=Aktuell&Sort=12288&nr=58300&pos=0&anz=562).
8 - É que, como bem acentua o Prof. Benjamim Silva Rodrigues, a decisão judicial, necessária à intervenção corporal com vista à recolha de substância biológica para a realização da perícia de ADN, não é uma decisão de mero expediente e contende, em alto grau, restringindo ou limitando, vários direitos fundamentais envolvidos.
9 - O que significa que a decisão de extracção e recolha de ADN deveria ter sido devidamente ponderada e fundamentada na decisão recorrida na forma como a Constituição (art.º 205.º, n.º 1 da CRP) e a lei (art.º 97.º, n.º 2 e 5, do CPP, art.º 374.º, n.º 2, da CRP) o exigem (Aludindo, neste âmbito, a um princípio de fundamentação diferenciada consoante o grau de afectação dos direitos fundamentais dos cidadãos, o Acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Taxquet Vs Bélgica, de 13 de Janeiro de 2009, disponível em http://cmiskp.echr.coe.int/tkp197/; Acórdão do Tribunal Constitucional N.º 27/2007, disponível em www.dgsi.pt; na doutrina, citando em texto este mesmo aresto do TEDH, José António Mouraz Lopes, A fundamentação da Sentença no Sistema Penal Português, Legitimar, Diferenciar, Simplificar, Tese de Doutoramento, Coimbra, Almedina, 2011, pp. 417).
10 - Assim, o Tribunal recorrido ao silenciar a referência expressa à necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito (art.º 18.º, n.º 2, da CRP) da decisão de recolha e extracção de ADN dos arguidos para posterior inserção do perfil na base de dados genéticos, incorreu na nulidade por omissão de pronúncia (art.º 379.º, n.º 1, alínea c), e n.º 2 do CPP) (Neste sentido, no âmbito problemático da inserção do perfil genético do denominado “sex offender” na base de dados do Federal Sex Offender Registration and Notification Act (Act), o Acórdão do Supremo Tribunal dos Estados Unidos (US SUPREME COURT) Reynolds vs United States, de 23/01/2012, disponível em http://www.supremecourt.gov/opinions/11pdf/10-6549.pdf).
11 - Transcritos os passos mais marcantes da douta decisão recorrida, afigura-se-nos que o Tribunal recorrido olvidou o essencial: por um lado, a (correcta) aplicação do regime jurídico contido no art.º 28.º, n.º 1,do Código Penal, principalmente, no que tange aos crimes de mão própria, excepção, em vista da qual, foi erigida a parte final do art.º 28.º, n.º 1, do Código Penal, e, por outro lado, incorreu no vício de insuficiência da decisão para a matéria de facto provada (art.º 410.º. n.º 2, alínea a), do CPP).
Senão vejamos.
12 - A execução conjunta de intranei e extranei em crimes especiais está também incluída no âmbito de aplicação do artigo 28º, nº 1, do Código Penal», visto que «a co-autoria é também uma modalidade de “comparticipação”, bastando, em consequência, que um dos co-autores seja intraneus para tornar aplicável a disciplina jurídica constante do artigo 28º, nº 1, do Código Penal» (Neste sentido, Prof. HENRIQUE SALINAS MONTEIRO “A Comparticipação em Crimes Especiais no Código Penal”, Universidade Católica Editora, Porto, Tese de Mestrado, 1999, p. 201 e 215).
13 - «Assim, nos termos deste preceito, basta que um dos co-autores seja intraneus para que todos respondam pelo crime especial» [HENRIQUE SALINAS MONTEIRO, ibidem.].
14 - Aliás, que assim é, isto é, que o cit. art. 28º-1 é aplicável à co-autoria em crimes especiais, é algo que é defendido mesmo pelos autores – como CAVALEIRO DE FERREIRA e FIGUEIREDO DIAS - que interpretam aquele preceito no sentido de ele só ser invocável quando um executor é intraneus. «Com efeito, estas situações representariam mesmo, nesta interpretação, as únicas hipóteses de aplicação do artigo 28º, nº 1, do Código Penal, já que as restantes situações de comparticipação em crimes especiais ou seriam resolvidas por aplicação do princípio da acessoriedade, ou ficariam sem resolução legal expressa» [HENRIQUE SALINAS MONTEIRO, ibidem].
15 - Mais recentemente tem sido acenado pela doutrina alemã que os crimes específicos próprios (que fundamentam a ilicitude) e os crimes específicos impróprios (que agravam a ilicitude) devem ser incluídos nos delitos de dever, relevando, assim, para a responsabilidade jurídico – penal do intraneus (o titular das qualidades especiais) a violação do dever típico especial.
16 - Por outro lado, tentando suprir as lacunas de punibilidade emergentes da aplicação irrestrita da teoria da violação do dever típico especial, a doutrina portuguesa tem afirmado que para a definição da autoria nos crimes específicos, deve atender-se à violação do dever típico especial por quem dele é titular, à qual deve acrescer o domínio do fact.
17 - Este preceito não procura estabelecer um novo critério de autoria para os crimes específicos, antes parte do critério de autoria e das situações de comparticipação delimitados nos artigos 26.º e 27.º do Código Penal, que imediatamente o antecedem, para os complementar.
18 - Porquanto, o art.º 28.º, do Código Penal estabelece como princípio que, nas situações de comparticipação em crimes específicos, basta a qualidade ou relação especial relativa à ilicitude ou ao grau de ilicitude verificar-se num dos comparticipantes para que todos sejam punidos com a pena respectiva.
19 - O primeiro problema que este artigo coloca é o de saber se é possível a partir dele retirar um critério de autoria especial nos casos de comparticipação em crimes específicos, ou se permanece válido o critério comum de autoria estabelecido pelos artigos 26.º e 27.º do CP. Da análise destes dois artigos pode concluir-se que autor é somente aquele que tem o domínio do facto. Por outro lado, de acordo com os tipos incriminadores da Parte Especial só pode ser autor de um crime específico quem detém a qualidade ou a relação especial típica.
20 - Da conjugação das normas comuns e dos tipos incriminadores especiais resulta que só pode ser autor de um crime específico quem detenha, além do domínio do facto, o elemento pessoal exigido pelo tipo objectivo de ilícito.
21 - No caso do extraneus pode ser suficiente que o mesmo tenha o domínio do facto para ser considerado autor, ou seja, que se verifique o critério comum da autoria estabelecido no art.º 26.º em qualquer uma das suas modalidades (domínio da acção, domínio da vontade do intraneus, domínio funcional do facto, ou domínio da decisão do intraneus).
22 - Ora, o caso dos autos reconduz-se precisamente a uma hipótese de execução conjunta de intranei (que é o titular do dever típico especial de mãe da ofendida C) e extranei (que não é o titular do dever típico especial em relação à ofendida C) num crime específico impróprio – o tipo legal de crime de abuso sexual de crianças agravado, art.º 171.º, n.º 1 e 2, do Código Penal, com referência o art.º 177.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal.
23 - Se é certo e indiscutível que a intraneus não executora violou o dever típico especial em relação a C – emergente do laço familiar que as une -, e por aí a sua responsabilidade jurídico – penal estaria (alegadamente) afirmada, o mesmo não se pode dizer do extraneus executor.
24 - Porquanto, se, como acima se acenou, é necessário, em sede do art.º 28.º, n.º 1, do Código Penal, o estabelecimento de uma ligação estreita entre a violação do dever típico especial por parte do intraneus não executor e o efectivo condomínio funcional do facto com o extraneus executor, em qualquer das modalidades de autoria constantes do art.º 26.º, do CP, não se vislumbra na douta decisão recorrida uma qualquer menção ao elemento intelectual do condomínio funcional do facto entre o intraneus não executor e o extraneus executor: a decisão conjunta de praticar o tipo legal de crime de abuso sexual de C.
25 - Atento tudo o que acima se deixou antecipado, é patente que a douta decisão recorrida está enfermada do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (art.º 410.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal).
26 - Porquanto, analisada a matéria de facto provada não se vislumbra, como se disse, a existência de uma decisão conjunta, um acordo prévio entre o intraneus e o extraneus no sentido de abusar sexualmente de C.
27 - A este respeito, apenas se diz na matéria de facto provada que “Em data não concretamente apurada do referido ano, no período do Verão, a arguida B pediu à filha C para dormir com ela num quarto existente no andar superior do prédio onde funcionava o estabelecimento comercial, vulgo “ Café” que a arguida explorava na Aldeia da Mata, Crato – andar ao qual tinha acesso -, dizendo-lhe para estar à vontade que não se encontrava ali mais ninguém.
28 - Quando C já se encontrava deitada, o arguido A introduziu-se na cama, deitou-se junto dela, e começou a acariciá-la, dizendo que ia “brincar” com ela, que era uma pessoa de confiança e por isso lhe ia tirar a virgindade porque já tinha doze anos”.
29 - Só mais à frente, em sede do tipo subjectivo de ilícito – o dolo directo -, é que o tribunal recorrido se refere a um acordo prévio entre o intraneus (a arguida) e o extraneus, como se aquela (a execução conjunta) pudesse lógica e cronologicamente preceder o acordo prévio de execução conjunta do facto ilícito – típico de abuso sexual de crianças, e como se desta (da execução conjunta) fosse possível inferir lógica e presuntivamente a existência de um acordo prévio entre os comparticipantes…..
30 - A este propósito, cabe perguntar: Será que se tratou de uma co-autoria inicial? Na afirmativa, onde está o acordo prévio entre o intraneus e o extraneus executor, no sentido de abusarem sexualmente da C? A intraneus não executora aderiu mais tarde – conforme “sugere” a douta decisão recorrida - aos propósitos do extraneus executor no sentido de abusar sexualmente de C? Na afirmativa, onde é que se encontra consignada na douta decisão recorrida a alusão à co – autoria sucessiva? O facto de a intraneus não executora ter segurado o braço da C depois de o extraneus executor ter iniciado a cópula completa é expressão disso mesmo, ou seja, de que aderiu posteriormente ao propósito do extraneus executor de abusar sexualmente de C?
31 - Nada consta, pois, como se disse, na douta decisão recorrida acerca do elemento intelectual (a decisão conjunta) do condomínio funcional do facto – a co–autoria.
32 - Razão pela qual, salvo o devido respeito, consideramos que a douta decisão recorrida enferma do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (art.º 410.º, n.º 2, alínea a), do CPP), devendo ser determinado o reenvio do processo para novo julgamento quanto à totalidade do objecto do processo, nos termos dos artigos 410º, nº2-a) e 426º do CPP.
33 - Porquanto, é sabido que tem de haver (sempre!) “uma narração adequada dos factos relativos ao dolo respeitante ao tipo legal de crime respectivo”, e é “errado pensar que tais factos (subjectivos) possam resultar logicamente dos factos objectivos narrados, não sendo, pois, possível estabelecer os factos referentes ao tipo subjectivo de ilícito a partir de presunções ou inferências lógicas”.
34 - Por outro lado, a disciplina resultante do art. 28º-1 do Código Penal encontra limites, um dos quais consta da parte final do mesmo preceito, onde se determina que a consequência jurídica estabelecida na sua 1ª parte (ser suficiente, nos casos de comparticipação em crimes especiais, que um dos comparticipantes seja intraneus para que a pena do crime especial seja aplicável a todos) não se desencadeia “se outra for a intenção da norma incriminadora”.
35 - Esta ressalva da parte final do nº 1 do art. 28º do Código Penal à aplicabilidade da consequência jurídica estatuída na primeira parte do mesmo preceito teve a sua origem nos casos de comparticipação em crimes de mão própria, embora tivesse sido admitida a possibilidade de a ela se recorrer noutras hipóteses.
36 - «O ponto de partida para a exclusão da aplicação da consequência jurídica do artigo 28º, nº 1, 1ª parte, do Código Penal, aos casos de comparticipação em “crimes de mão própria”, parece residir na circunstância de estes crimes apenas poderem ser cometidos mediante uma execução corporal de certas pessoas» [HENRIQUE SALINAS MONTEIRO in “A Comparticipação…” cit., p. 245.]. «O tipo exige, assim, não apenas a violação de um dever especial, mas também que essa violação seja realizada corporalmente pelo intraneus» [HENRIQUE SALINAS MONTEIRO, ibidem].
37 - Segundo o Prof. FIGUEIREDO DIAS, crimes de mão própria são «os tipos de ilícito em que o preceito legal quer abranger como autores apenas aqueles que levam a cabo a acção através da sua própria pessoa, não através de outrem; quer abranger apenas pois, em princípio, os autores imediatos, ficando excluída a possibilidade da autoria mediata; e mesmo da co-autoria relativamente àqueles comparticipantes que não tenham chegado a executar por próprias mãos a conduta típica, não podendo, por isso, nestes casos, verificar-se a “comunicabilidade” a que se refere o art. 28º (cf. a parte final do nº 1: “excepto se outra for a intenção da norma incriminadora”)». «É o caso dos crimes sexuais: só quem pratica, por si mesmo, o acto sexual incriminado pode ser considerado autor; como é o caso, noutro âmbito, do art. 295º, do Código Penal relativo à auto-colocação em estado de inimputabilidade através da ingestão ou consumo de bebidas alcoólicas ou de substância tóxica» [FIGUEIREDO DIAS, ibidem.].
38 - Revisitando a matéria de facto provada temos que a douta decisão recorrida considerou provado que “A tudo isto assistiu a arguida B, a qual constatando que C se debatia, procurando repelir A, tentava convencê-la a ter relações de cópula com ele dizendo “deixa fazer, é a primeira vez é melhor ser com ele porque é uma pessoa de confiança e “não sei porque é que não deixas, assim não vês como é bom ter sexo”, “ és tão complicadinha porquê?”.
39 - “Chegando até a agarrá-la, por um braço, para facilitar o relacionamento sexual que o arguido procurava e que conseguiu levar a cabo”.
40 - Aqui chegados, é patente que a intraneus não executou corporalmente o tipo objectivo de ilícito de abuso sexual de crianças, na pessoa da sua filha, C, razão pela qual não pode a mesma ser jurídico – penalmente punida, pelo menos a título de co – autora, pela prática do tipo legal de crime pelo qual vem pronunciada e, bem assim, não pode comunicar ao extraneus executor o dever típico especial da intraneus não executora, porque a intraneus não executora não executou corporalmente o tipo legal de crime de abuso sexual de crianças, e, por isso mesmo, o extraneus executor só deverá ser jurídico – penalmente punido pela prática, em autoria imediata, de um crime de abuso sexual de crianças simples (art.º 171.º, n.º 1 e 2, do Código Penal).
41 - Assim, o tribunal recorrido violou o art.º 154.º, n.º 2 do CPP, o art.º 156.º, do CPP, o art.º 172.º, n.º 2 do CPP, o art.º 8.º, n.º 1 e 2, da Lei N.º 5/2008, de 12 de Fevereiro, o art.º 205.º, n.º 1 da CRP, art.º 97.º, n.º 5, do CPP art.º 374.º, n.º 2, do CPP, art.º 379.º, n.º 1, alínea c), e n.º 2 do CPP, o art.º 28.º, n.º 1, do CP, o art.º 26.º, do CP, o art.º 27.º, do CP, o art.º 171.º, n.º 1 e 2, do CP, o art.º 177.º, n.º 1, alínea a), do CP, o art.º 18.º, n.º 2, da CRP, e o art.º 410.º, n.º 2, alínea a), do CPP.
42 - Termos em que deve o recurso interposto ser julgado totalmente procedente, com a consequente revogação da douta decisão condenatória recorrida, substituindo-a por outra que determine o reenvio do processo para novo julgamento quanto à totalidade do objecto do processo, nos termos dos artigos 410º, nº2, a) e, 426º do CPP, e para a ponderação e fundamentação de decisão de recolha e extracção de ADN dos arguidos.
Assim decidindo, farão V. Exa. a costumada Justiça!

Igualmente inconformados com o acórdão condenatório, os arguidos A e B do mesmo interpuseram recurso, extraindo das respectivas motivações as seguintes (transcritas) conclusões:

1. Aderimos incondicionalmente à posição assumida na 1ª parte da declaração de voto do Mmo. Juiz que votou de vencido tal acórdão, este manifestamente violador do princípio da presunção de inocência, e alicerçado em “provas” que, devida e criteriosamente analisadas, sempre deixariam, no mínimo, uma dúvida séria sobre a efectiva verificação da prática de qualquer crime. Apenas o reparo de que constitui lapso evidente a referência “aos pontos 2 e 15 dos factos provados”, já que resulta inequívoco que pretendia dizer “aos pontos 2 a 15 dos factos provados”. Assim,
2. A justificação para a absolvição dos arguidos, resulta de uma análise criteriosa das declarações das testemunhas, entre elas se incluindo, naturalmente, a alegada vitima, que se encontram registadas em suporte informático, retro identificado.
3. Da apreciação de tais depoimentos, todos de testemunhas da acusação, facilmente extrairá esse Venerando Tribunal a conclusão de que não é possível imputar aos arguidos a prática do crime de que foram acusados, e pelo qual foram condenados.
4. Afinal, como é possível formar a convicção da prática de um crime com base em meras deduções, com base em juízos que nada têm a ver com regras da experiencia?
5. Na matéria de facto provada, omitiram-se factos relevantes para a boa decisão da causa. Com efeito,
6. Resulta dos depoimentos da alegada vitima e dos de suas tias, cujas gravações retro se identificaram, que a invocação perante as autoridades dos factos imputados aos arguidos ocorreu em circunstâncias especiais.
7. Na verdade, de tais declarações, parte das quais retro se transcreveram, resulta que a avó da alegada vítima escreveu a sua filha, e aqui arguida, uma carta com conteúdo ofensivo da sua honra, o que a levou a apresentar queixa contra sua mãe.
8. E foi na sequência dessa queixa que a alegada vítima foi chamada a fazer a prova da verdade dos factos imputados por sua avó a sua mãe.
9. Então não é de desconfiar?
10. A alegada vítima diz-se vítima de violação em 2002, alegadamente conta o caso às tias em 2005 ou 2006, e nenhuma delas vai apresentar queixa…
11. E só em 2007 ou 2008 é que se juntam todas para defender a mãe e avó contra uma queixa da irmã “tresmalhada”., conforme resulta da parte do seu depoimento que se transcreveu:
12. Perante tal depoimento, cabe perguntar quando, afinal é que a alegada vítima perdeu a virgindade.
13. Quando alegadamente esteve com o arguido, para esse fim, ou afinal foi só com o namorado?
14. Ainda que se desse “como boa” a desculpa esfarrapada da alegada vitima sobre o facto de entender que só perdeu a virgindade quando teve relações consentidas, sempre temos de perguntar qual seria o entendimento de sua mãe para, vários anos depois da alegada ocorrência dos factos que levaram à injusta condenação dos arguidos, ter com ela uma conversa sobre essa questão, alertando-a para o facto de que “quando perdesse a virgindade porque doía muito”.
15. Então a alegada vitima não perdeu a virgindade aos 12 anos, na presença da mãe? Em que ficamos?
16. Certamente que com todas estas contradições não é possível adquirir a plena convicção de ter havido qualquer prática delituosa por parte dos arguidos.
17. Não se poderia, nem pode, pelo exposto, dar como provada a matéria constante dos nºs 2 a 18 dos factos provados.
18. Ao fazer-se tal, violou-se o princípio da presunção de inocência
19. De qualquer forma, admitindo sem conceder, também andou mal o tribunal ao condenar ambos os arguidos, e pelo crime na sua forma agravada.
20. Desde logo, e em primeiro lugar, na subsunção progressiva que se deve efectuar para concluirmos estar perante uma acção típica, ilícita, culposa e punível, parece-nos que o tribunal se esqueceu do elemento subjectivo no que à arguida B se refere, já que, na matéria de facto que foi dada como provada nada nos permite, dentro dos limites da possibilidade de interpretar os comportamentos humanos, concluir pela intenção (dolo) no comportamento da mesma, ainda mais que esta só teria comparecido no local em causa já em momento avançado da alegada perpetração do alegado crime.
21. E se ela não praticou o crime, então a agravação do mesmo não pode ser imputada ao arguido A.
22. O crime de abuso sexual de crianças agravado, artº 171º, nºs 1 e 2, do Código Penal, com referência ao artº 177º, nº 1, alínea a), do Código Penal, é um crime específico impróprio.
23. Daí que sempre haveria que resultar de forma inequívoca da matéria de facto a quem pertencia o domínio do facto, o momento de resolução na prática criminosa…
24. Inexistindo tal, não se poderia, em primeiro lugar condenar a arguida e, em segundo lugar aplicar a norma do artº 28º do CP.
25. É que, tratando-se do aludido tipo de crime, fundamental seria determinar qual o “papel” da mãe da alegada vitima para se poder estender ao alegado co-autor, a especial qualidade daquela.
26. É que a parte final do nº 1 artº 28º ressalva a sua inaplicabilidade “se outra for a intenção da norma incriminadora”.
27. E em crimes específicos impróprios, há uniformidade na nossa jurisprudência no sentido de que a estes se não aplica a “extensão” das especiais qualidades do agente. Assim,
28. Estamos perante o vício previsto na alínea a) do nº 2 do artº 410º do CPP, ou seja, a matéria de facto provada é manifestamente insuficiente para sustentar a decisão condenatória da arguida e, consequentemente para permitir condenar o arguido pelo crime agravado.
29. Nestes termos, e sempre sem prejuízo de entendermos deverem ambos os arguidos ser absolvidos, pelo menos se deveria ter absolvido a arguida e aplicado ao arguido uma pena perto do mínimo legal, sendo esta sempre suspensa na sua execução, considerando o tempo decorrido sem qualquer desvio comportamental, a idade, as condições de vida, inserção social e a personalidade do arguido, apuradas em sede de julgamento.
30. Caso ainda assim se não entenda, e por força dos vícios apontados, dever-se-á determinar o reenvio do processo para novo julgamento quanto à totalidade do objecto do processo, nos termos dos artigos 410º nº 2 alíneas a) e c) e 426º do CPP.
31. E nunca os arguidos deveriam ter sido “brindados” com a pena que lhes foi aplicada. Na verdade,
32. Ao aplicar-se tal pena, violaram-se as mais elementares regras e princípios subjacentes à determinação da medida da pena, aos princípios da adequação e proporcionalidade
33. Sempre a pena a aplicar deveria ser no seu limite mínimo, para assim se respeitar também o princípio, aqui nitidamente violado, da ressocialização dos arguidos, e levando em conta, como deveria ter acontecido, a sua inserção social, o facto de terem bom comportamento anterior e posterior à data dos factos que lhes são imputados.
34. A pena concreta será achada tendo em atenção aquilo que é exigido pela prevenção especial, desde que tal não vá abaixo da medida de pena necessária para que a validade da norma infringida não seja posta em causa pelos seus destinatários, não podendo por outro lado ultrapassar a medida da culpa do agente.
35. A jurisprudência é unânime ao considerar que a aplicação da pena de suspensão da execução da prisão não constitui uma faculdade para o tribunal, antes um poder-dever.
36. “A prognose, como pressuposto da suspensão da execução da pena, deve entender-se num sentido puramente preventivo especial, não tendo em conta critérios de prevenção geral (Jescheck, Tratado de Direito Penal, Parte Geral, pág. 1155, tradução espanhola) ”.
37. “Como resulta do disposto na parte final do n.º 1 do art. 50.º do CP, as considerações de prevenção geral só actuam como obstáculo à suspensão, sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico (Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 344) ”.
38. “Assim, deve atender-se essencialmente aos mesmos elementos que são tomados em consideração para a formulação de um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento do delinquente – personalidade do agente, condições de vida, conduta anterior e posterior ao crime e circunstâncias deste.”
39. As penas aplicadas aos arguidos são manifestamente exageradas, não tendo sido respeitados os princípios da adequação, da proporcionalidade e da ressocialização que norteiam a nossa política criminal.
40. Queremos com isto dizer que, mesmo numa perspectiva de ressocialização do indivíduo, a pena aplicada aos arguidos, sempre sem conceder no que à sua inocência se refere, deveria situar-se no limite mínimo ou pouco acima, já que se não verificam necessidades de prevenção especial, atenta a sua boa inserção social e o seu bom comportamento anterior e posterior aos alegados factos.
41. Ao aplicar-se as penas que se aplicaram, violaram-se as mais elementares regras e princípios subjacentes à determinação da medida da pena, aos princípios da adequação e proporcionalidade.
42. Sempre a pena a aplicar deveria ser no seu limite mínimo, para assim se respeitar também o princípio, aqui nitidamente violado, da ressocialização dos arguidos.
43. Acresce ainda que o cumprimento das penas de prisão na nossa sociedade não é feito de acordo com a lei vigente, que determina, por exemplo, que o recluso tem direito a cela individual.
44. Não podem os tribunais fechar os olhos ou olhar para o lado e fingir que não sabem que os reclusos são “amontoados” em grupos por vezes de mais de 10 indivíduos, que passam os dias e as noites juntos, nas mais que duvidosas condições de higiene,
45. Em ambientes onde, toda a gente sabe, há uma percentagem superior a 50% de reclusos com SIDA ou Hepatite B, doenças altamente contagiosas e que podem levar à morte de um indivíduo. Assim,
46. Quando se manda uma pessoa para um meio com estas características, poderá estar-se a condená-la à morte.
47. Mas Portugal até foi o 1º país a abolir a pena de morte… Ou já a repôs em vigor?
48. E quanto mais tempo se sujeitar quem quer que seja a estas condições de reclusão, maior é o risco da pessoa contrair uma daquelas doenças e morrer.
49. Fazer Justiça não é aplicar as leis de modo cego, mas adequar as penas às pessoas e dentro de uma medida justa.
50. Também no preambulo da proposta de lei de alteração ao CP, que veio a ser aprovada e entrou em vigor em 15 de Setembro de 2007, se fez constar a preocupação primeira com a ressocialização dos indivíduos, ao invés da brutal punição para cumprimento de penas em condições degradantes e de perigo de vida, como acontece nas prisões portuguesas, de tal preambulo se salientando:
51. “A revisão procura fortalecer a defesa dos bens jurídicos, sem nunca esquecer que o direito penal constitui a ultima ratio da política criminal do Estado. Assim, de entre as suas principais orientações, destacam-se: a consagração da responsabilidade penal das pessoas colectivas, tida como indispensável para prevenir actividades especialmente danosas; a diversificação das sanções não privativas da liberdade, para adequar as penas aos crimes, promover a reintegração social dos condenados e evitar a reincidência;”
52. “No Título III, que versa sobre as consequências jurídicas do crime, para tornar as sanções mais eficazes e promover a reintegração social dos condenados, prevêem-se novas penas substitutivas da pena de prisão e alarga-se o âmbito de aplicação das já existentes. Assim, a prisão passa a poder ser executada em regime de permanência na habitação quando não exceder um ano e, em casos excepcionais (gravidez, idade, doença, deficiência, menor a cargo ou familiar ao cuidado), dois anos. A proibição de exercício de profissão, função ou actividade poderá substituir penas de prisão até três anos. O trabalho a favor da comunidade pode substituir doravante penas de prisão até dois anos e não apenas até um ano. Os restantes institutos – substituição por pena de multa, prisão por dias livres e regime de semidetenção - passam a referir-se a penas de prisão até um ano. Procurando ainda adequar a execução das sanções penais às correspondentes infracções e às necessidades de prevenção criminal, contempla-se a possibilidade de suspender penas de prisão até cinco anos. Todavia, será obrigatório aplicar o regime de prova quando a pena de prisão suspensa exceder três anos.”
53. O tribunal, perante os elementos constantes dos autos, mesmo atendendo ao comportamento dos arguidos após a data dos factos que lhes são imputados, só pode ter a expectativa fundada de que a simples ameaça do cumprimento efectivo da pena de prisão será suficiente para que os arguidos mantenham no futuro uma conduta lícita, sendo certo que saberão que, a não ser assim, o cumprimento da pena de prisão é incontornável, com as consequências desastrosas que isso implicará para si e para a sua família.
54. Os antecedentes criminais dos arguidos não são, de forma alguma, de molde a alterar tal juízo de prognose favorável à plena inserção do arguido no mundo que nós entendemos como socialmente correcto.
55. Ao aplicar-se as penas que se aplicaram, e ao não se suspendê-las na sua execução, violaram-se as mais elementares regras e princípios subjacentes à determinação da medida da pena, aos princípios da adequação e proporcionalidade.
56. Foram violadas as seguintes normas: artigos 374º, 379º e 410º (nº 2 al. a) e c) do CPP, artigos 26º, 27º, 28º, 171º, 177º do CP e artigos 32º e 205º da Constituição da República Portuguesa;
Pelo exposto, deve o presente recurso merecer provimento, revogando-se o douto acórdão recorrido, absolvendo-se os arguidos, ou, casos assim se não entenda, e sem conceder, absolver-se a arguida e condenar-se o arguido em pena próxima do limite mínimo do crime na sua forma não agravada, suspensa na sua execução, ou, e sempre sem conceder, determinar-se o reenvio do processo para novo julgamento quanto à totalidade do seu objecto.
Absolvendo os arguidos, farão V. Exias., certamente, JUSTIÇA !

O Ministério Público apresentou resposta a este recurso concluindo da seguinte forma:
1º – Bem andou o Tribunal a quo em dar credibilidade ao depoimento da assistente, tendo sido o mesmo credível, despejado de qualquer sentimento de vingança.
2º - Pelo que deve improceder, nesta parte, o recurso apresentado pelos arguidos recorrentes.
3º - No mais, mantém-se a posição já assumida nas conclusões do recurso em tempo apresentado pelo Ministério Público.

Os arguidos interpuseram um outro recurso apenas relativo ao agravamento das medidas de coacção a que se encontravam sujeitos, concluindo relativamente:
1 - O despacho que decidiu pela aplicação de medida de coacção mais grave aos arguidos deveria ter sido antecedido de prévia audição destes.
2 - Ao não se fazer tal, violou-se o disposto no artº 61º nº 1 al. b) do CPP.
3 - Não se verificou, em concreto, a alteração de qualquer circunstancia que pudesse determinar a agravação das medidas de coacção,
4 - Carecendo o douto despacho sob recurso de fundamento sobre tal matéria.
5 - O despacho recorrido viola o disposto no artº 204º do CPP, bem como princípio da presunção de inocência ínsito no artº 32º da CRP.
6 - Por não ter sido devidamente fundamentado, nomeadamente no que aos fundamentos concretos de aplicação de nova medida de coacção, o despacho sob recurso é nulo, nos termos das disposições conjugadas dos artºs 97º e 120º do CPP e 205º da CRP.
7 - Foram violadas as seguintes normas: artigos 97º, nºs 4 e 5, 192º, nº2, 193º, nº1 e 204º, alíneas a), b), c) do Código de Processo Penal e artigos 27º e 32º da Constituição da República Portuguesa;
Pelo exposto, deve o presente recurso merecer provimento, reparando-se a decisão, determinando-se que os arguidos apenas deverão continuar sujeitos ao TIR já prestado, assim se fazendo a necessária e costumada JUSTIÇA!

O Ministério Público pronunciou-se no sentido da improcedência deste recurso, concluindo por seu turno:
1 - O Ministério Público vem responder ao recurso que os recorrentes interpuseram do acórdão condenatório que decretou o agravamento da medida de coacção anteriormente aplicada aos arguidos A e B.
Decisão com a qual se concorda inteiramente.
2 - Comece por dizer -se que os arguidos têm um historial de fuga, documentado nos presentes autos, às suas responsabilidades jurídico - penais, espelhado numa fuga para o Brasil, nas vésperas da realização do primeiro julgamento a que aludem os presentes autos.
3 - A aplicação da presente medida de coacção aos arguidos surge, a esta luz, por um lado, como facticamente circunstanciada, e, por outro lado, como jurídico - processualmente caucionada, do ponto de vista do seu confronto analógico com os princípios constitucionais que norteiam e irisam todo o regime jurídico da aplicação das medidas de coacção, mormente a medida de coacção adstringente da liberdade de locomoção, como é o caso da proibição de se ausentarem para o estrangeiro.
4 - Os arguidos estavam presentes na audiência de discussão e julgamento, pelo que poderiam (e deveriam) pronunciar-se sobre a aplicação da referida medida de coacção.
Não o tendo feito, mesmo dispondo de oportunidade processual para o fazer, sibi imputet (Na doutrina portuguesa, Sobre O princípio da auto - responsabilidade, nos quadros do direito penal do agente, Prof. Helena Moniz, Agravação pelo Resultado, Contributo para uma Autonomização Dogmática do Crime Agravado pelo Resultado, Tese de Doutoramento, Coimbra, Coimbra Editora, 2009, pp. 553-555; Neste sentido, na doutrina alemã, sobre o princípio da auto - responsabilidade, ainda que nos quadros do direito penal do inimigo, Prof. Gunther Jakobs, An den Grenzen rechtlicher Orientierung: Feindstrafrecht, Bonn, 2008, 1. Auflage, pp. 12-43, e, principalmente, pp. 76-89).
5 - Na verdade, os princípios constitucionais acima aludidos têm tradução e desenvolvimento na lei adjectiva penal. Desde logo no nº 1 do art. 191º do C.P.P., que estabelece os princípios da legalidade e tipicidade das medidas de coacção e de garantia patrimonial nos seguintes termos: "a liberdade das pessoas só pode ser limitada, total ou parcialmente, em função de exigências processuais de natureza cautelar, pelas medidas de coacção e de garantia patrimonial previstas na lei".
9 - Em seguida, o nº 2 do art. 192º do mesmo diploma (do qual serão os preceitos adiante citados sem menção especial) afasta a aplicação de qualquer medida de coacção ou de garantia patrimonial sempre que haja "fundados motivos para crer na existência de causas de isenção da responsabilidade ou de extinção do procedimento criminal". Pflichtfach) [Taschenbuch], Baden - Baden, Nomos, 2011, pp. 234-256.
10 - Por seu turno, o nº 1 do art. 193º, do CPP, estabelece o princípio da proporcionalidade" (que se desdobra nos sub - princípios da necessidade, adequação e proporciona/idade em sentido estrito", ou ponderação razoável entre meios e fins) de tais medidas, em função das exigências processuais de natureza cautelar e da gravidade do crime e das sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas no caso concreto.
11 - Dando expressão, justamente, à própria proporcionalidade em sentido amplo (ex vi do n.º 2, do art.º 18.º da CRP), que compreende, em primeiro lugar, a congruência, adequação, ou idoneidade do meio ou da medida para lograr o fim proposto, e em segundo lugar, engloba a proporciona/idade em sentido estrito, a proibição do excesso.
12 - Com efeito, a expressão visível do mandamento constitucional de proporcionalidade em sentido amplo (art.º 18.º, n.º 2, da CRP) encontra guarida legal no art.º 212., n.º1, alínea a), do CPP, sob a forma do princípio da precariedade da aplicação das medidas de coacção: sempre que deixem de subsistir as exigências cautelares de natureza processual que fundaram a aplicação da medida de coacção, deve a mesma ser revogado e substituída por essoutra menos gravosa para o arguido".
13 - Em rectas contas, é a expressão prática da ideia de que o "Direito Processual Penal é Direito Constitucional Aplicado".
14 - Volvendo ao caso concreto, somos de parecer que, atento o acima referido historial de fuga para o estrangeiro protagonizado pelos arguidos nos presentes autos, a medida de coacção aplicada no acórdão condenatório foi factualmente circunstanciada, pelo que não existem alterações supervenientes ao momento de aplicação daquela medida de coacção, que sejam de molde a repensar a sua adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrit034lsl6 (art.º 18.º, n.º 2, da CRP).
15 - Não se nos afigura, pois, avisado fazer perigar o efeito útil que esta medida de coacção visa tutelar (art. 204.º, alíneas a), b), e c), do CPP) - e que foi amplamente referenciado e, ao contrário do que afirmam os recorrentes, devidamente fundamentado pelo douto acórdão recorrido - o que seria ocasionado pela (injustificada) alteração da mesma.
16 - Decorrentemente, somos de parecer que a medida de coacção aplicada aos arguidos deve ser mantida, nos precisos termos em que foi prolatada, por mor da plena vigência dos pressupostos jurídico - factuais em que aquele douto despacho se escorou.
17 -Termos em que deve o presente recurso ser julgado totalmente improcedente, com a sua consequente manutenção da decisão recorrida nos precisos termos em que foi prolatada.
Assim decidindo, farão V. Exa. a costumada Justiça!

Por sua vez a assistente respondeu aos recursos interpostos, extraindo as seguintes conclusões:
1 - Não estão cumpridos os requisitos de forma quanto à impugnação da matéria de facto, nos termos do art.º 412.º, n.º 3 do CPP;
2 - Devem ser especificados os concretos pontos de facto, o que só é possível com a indicação do facto individualizado que consta na sentença recorrida;
3 - Quanto à exigência legal da especificação das provas, só é possível com a indicação do conteúdo específico do meio de prova, quando se trate de prova gravada, deve o recorrente individualizar as passagens da gravação desde o seu início ao seu término;
4 - O Ac. TRP de 15/11/2006 concretiza que este ónus de impugnação “(…) só se cumpre com a indicação do número de “voltas” do contador em que se encontrem as passagens dos depoimentos gravados, não bastando a indicação das rotações correspondentes ao início e ao fim de cada depoimento(…)”;
5 - O ónus de impugnação que cade aos recorrentes visa facilitar o trabalho do Tribunal ad quem, e foi um dos corolários da reforma introduzida pela Lei 48/2007, uma vez que o Tribunal de recurso irá sempre proceder à audição da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento;
6 - Nos termos do art.º 145.º, n.º 3 do CPP às declarações da Assistente aplicam-se as disposições aplicáveis ao regime da prova testemunhal;
7 - Como qualquer meio de prova, está adstrito ao princípio da livre apreciação da prova, logo pode ser livremente valorada pelo Tribunal, nos termos do art.º 127.º do CPP;
8 - Acresce a este ponto a circunstância de as declarações da Assistente terem sido verdadeiras, livres e espontâneas, pois foram analisadas e conferiu-lhes o Tribunal a quo total credibilidade;
9 - Apesar de todo o sofrimento de que foi vítima, pelos factos provados e face à gravidade da conduta dos arguidos, presume a lei iuris et iure que a prática de actos sexuais com menor prejudica o seu desenvolvimento global; no entanto a Assistente conseguiu prestar declarações com detalhe que permitiram chegar à descoberta da verdade material;
10 - Além da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, também foi a Assistente sujeita a exame pericial quanto à sua personalidade, o que não revelou nenhuma patologia quanto à personalidade da mesma; bem pelo contrário, trouxe a credibilidade dela aos autos;
11 - A prova pericial é valorada livremente pelo Tribunal, nos termos do art.º 163.º do CPP; no entanto, não podemos deixar de referir que foi a personalidade da Assistente analisada por quem tem conhecimentos específicos especiais;
12 - A pena aplicada aos arguidos visa acautelar o direito violado;
13 - Os arguidos alegam o seu direito à reintegração social e negam a existência de alarme social face aos factos provados, no entanto não é o que se verifica, tal como se demonstra no relatório social junto aos autos;
14 - Ao crime é aplicada a pena que cabe dentro da moldura penal, e tal pena nunca pode ser aplicada abaixo do limite inferior, que são as exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico;
15 - Assim, face à situação de alarme social, é de acolher a pena aplicada pelo Tribunal a quo;
16 - Alegam perante V.Exªs as condições das prisões portuguesas, no entanto parecem esquecer os factos provados, e bem sabiam os arguidos que tais factos consubstanciavam um crime, punido pela sua gravidade com pena de prisão;
17 - Nestes termos, V.Exªs devem negar provimento ao recurso, e consequentemente manter a decisão recorrida.

Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência de todos os recursos.

Cumpriu-se o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal.
Procedeu-se a exame preliminar.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

B -
No acórdão recorrido e em termos de matéria de facto, consta o seguinte:
1- Em data não concretamente apurada, mas seguramente após Março de 2002, o arguido A iniciou relacionamento amoroso com a arguida B, mãe de C, nascida 12 de Maio de 1990.
2- Em data não concretamente apurada do referido ano, no período do Verão, a arguida B pediu à filha C para dormir com ela num quarto existente no andar superior do prédio onde funcionava o estabelecimento comercial, vulgo “Café”, que a arguida explorava na Aldeia da Mata, Crato – andar ao qual tinha acesso -, dizendo-lhe para estar à vontade que não se encontrava ali mais ninguém.
3- Quando C já se encontrava deitada, o arguido A introduziu-se na cama, deitou-se junto dela, e começou a acariciá-la, dizendo que ia “brincar” com ela, que era uma pessoa de confiança e por isso lhe ia tirar a virgindade porque já tinha doze anos.
4- Dizia-lhe também “se tu deixares acontecer, dou-te o que quiseres e podes ir para onde quiseres”.
5- Depois começou a beijar a C, a mexer-lhe nos seios, retirando-lhe de seguida o pijama e as cuecas, metendo-lhe os dedos na vagina.
6- Colocando-se, depois, completamente nu, sobre a C, conseguindo não obstante esta se esforçar por afastar o arguido e chorar, exclamando que não acreditava no que lhe estava a acontecer, introduzir o pénis erecto na vagina dela, onde veio a ejacular.
7- A tudo isto assistiu a arguida B, a qual constatando que C se debatia, procurando repelir A, tentava convence-la a ter relações de cópula com ele dizendo: “deixa fazer, é a primeira vez e é melhor ser com ele porque é uma pessoa de confiança” e “não sei porque é que não deixas, assim não vês como é bom ter sexo”, “és tão complicadinha porquê?”.
8- Chegando até a agarrá-la, por um braço, para facilitar o relacionamento sexual que o arguido A procurava e que conseguiu levar a cabo.
9- Quando conseguiu libertar-se, C saiu do quarto, lavou-se, nomeadamente do sangue que saía da vagina e refugiou-se num outro quarto da casa, onde se encontrava a irmã.
10- Agiu a arguida B livre e conscientemente no intuito de, por acordo prévio com o arguido A conduzir C para o falado quarto a fim de possibilitar que, aí, este mantivesse relações de cópula completa com C.
11- Também livre e conscientemente agiu o arguido A, no intuito de manter relações de cópula com C, sabendo, tal como a mãe, que ela era menor de doze anos de idade.
12- Sabiam que a sua conduta era proibida e punida por lei.
13- Em consequência das descritas condutas, C passou por momentos de agitação, angústia e instabilidade emocional, com perda de confiança em si própria e nos outros.
14- Sentiu-se envergonhada e constrangida, sentimentos que a impediram de reagir e contar o sucedido.
15- Ficou magoada e ainda hoje sente vergonha.
16- Depois dum período em que não esteve matriculada em qualquer estabelecimento de ensino, ingressou num curso técnico-profissional, tendo repetido as equivalências ao 7º, 8º e 9º ano de escolaridade, trabalhando, a par disso, como ajudante de cabeleireira.
17- Os arguidos/requeridos sabiam que as suas condutas eram adequadas a causarem vergonha, angústia, mal-estar físico, psicológico e emocional na assistente, como efectivamente causaram.
18- Sabiam e conheciam o significado e alcance dos seus actos, nomeadamente a contrariedade daqueles à moral social e à ordem jurídica, bem como a aptidão dos mesmos para provocar os sobreditos estados/sentimentos.
19- B foi casada com D, do qual se divorciou a 15 de Outubro de 2002.
20- Para além da Andreia, B e D tiveram outros três filhos: E, F e G.
21- B e o seu marido tinham casa de morada de família na Aldeia da Mata.
22- Aquando da dissolução do seu casamento por divórcio, B e D acordaram que E, então com quinze anos e G, ainda bebé, ficariam entregues à guarda e cuidados da mãe, e que os outros dois filhos, a C e o seu irmão F ficariam entregues à guarda e aos cuidados do pai, o qual havia regressado a casa de seus pais, sita em Chança, para com eles viver, tendo aqueles acordado, ainda, o regime de visitas, nomeadamente, os fins-de-semana e período de férias que a C passaria na companhia da mãe e demais irmãos.
23- À data, o arguido A era casado.
24- O arguido tinha uma herdade na freguesia da Aldeia da Mata, onde passou a trabalhar.
25- Em data não apurada, mas depois de decretado o divórcio de B e de D, os arguidos começaram a fazer vida em comum, como se marido e mulher fossem.
26- A partir do final do ano lectivo de 2003/2004 a C passou a viver com a mãe e o companheiro desta, o arguido A, passando a frequentar estabelecimento de ensino, no Crato.
27- Em 2006, a C foi viver para Almada, para casa da tia paterna H. Começou a trabalhar como ajudante de cabeleireira e retomou posteriormente os estudos.
28- Iniciou uma relação de namoro com um indivíduo de Aldeia da Mata. A sua mãe sabia de tal namoro e aprovava-o por gostar bastante do rapaz. Tal namoro veio a terminar em momento e por forma não concretamente apurados.
29- Depois de tomar conhecimento que tal situação de namoro tinha terminado, a arguida telefonou à filha e de forma exaltada, descompondo-a, chamou-lhe entre outros nomes não concretamente apurados, “ordinária” e “cabeça de esfregão”, e disse-lhe que a ia buscar com a polícia, de volta para a Aldeia da Mata.
30- O arguido divorciou-se em Dezembro de 2010.
Mais se provou que:
31- A arguida B iniciou a escolaridade em idade própria, vindo a abandonar o percurso escolar aos catorze anos, por sua iniciativa, após a conclusão do segundo ciclo. Nessa idade iniciou, então, actividade profissional como trabalhadora rural por conta de outrem, situação que manteve ao longo da vida activa.
32- Aos catorze anos engravidou do relacionamento que mantinha, vindo aos quinze a iniciar a união de facto com o companheiro e pai dos seus quatro filhos, com quem veio a casar.
33- O relacionamento conjugal ao longo do tempo foi marcado pelo consumo abusivo do álcool por parte do seu marido, situação que potenciou os maus-tratos de que era vítima.
34- A arguida vive maritalmente com o arguido e com a filha mais nova na Aldeia da Mata, sendo que no meio social e residencial os arguidos têm uma imagem negativa, associada a atitudes e sentimentos de alarme, mantendo-se as opiniões negativas sobre a atitude educativa de B.
35- A arguida não desenvolve actividade profissional, beneficiando desde os trinta e oito anos duma reforma por invalidez, resultante de um problema oncológico.
36- O agregado subsiste da reforma de B, do abono de família da filha menor desta, bem como dos rendimentos provenientes da exploração agro-pecuária da herdade que o companheiro possui, o que lhes permite ter uma vida desafogada do ponto de vista económico.
37- A arguida ocupa os seus tempos livres na quinta, onde colabora nas actividades relacionadas com a agricultura.
38- A sociabilidade do agregado familiar tem-se mantido dentro do espaço doméstico tendo o presente processo interferido na imagem que a comunidade tem da família.
39- O arguido A iniciou a escolaridade em idade própria, vindo a abandonar o percurso após a conclusão do 1º ciclo. A primeira experiência profissional que teve foi na agricultura, área em que laborou até aos dezassete anos, idade em que iniciou actividade como cortador de carne, profissão que manteve durante o resto da vida como profissional.
40- Contraiu matrimónio aos dezanove anos, tendo duas filhas do casamento, entretanto já dissolvido por divórcio.
41- O arguido possui um terreno no Brasil, na cidade de Ariquemes, Estado da Rondónia, cidade onde já residiu com a arguida por período não inferior a quatro meses e na pendência deste processo.
42- Os arguidos não têm antecedentes criminais.
Não se lograram provar quaisquer outros factos com interesse para a decisão da causa, designadamente:
A) A C estava já a dormir quando o arguido A se deitou junto dela.
B) O arguido disse à C que tinha sido a mãe, B, que lhe havia pedido para tirar a virgindade à filha.
C) O arguido A possuía, em sociedade, um estabelecimento comercial de talho na localidade de Batalha, que foi trespassado em Fevereiro de 2003.
D) A partir de 1994 o arguido passou a deslocar-se à herdade que possuía na Aldeia da Mata uma a duas vezes por semana, com o fim de desenvolver a propriedade rústica de modo a submetê-la através do estatuto associativo ao regime cinegético especial, o qual veio a ser conferido no início de 1999.
E) Contratou entretanto para tarefas agrícolas, entre outros trabalhadores, o marido da arguida, D, a quem oferecia trabalho e de quem se veio a tornar mais íntimo, uma vez que passou a ser o confidente deste.
F) Absolutamente feliz com a região alentejana e com o empreendimento a que se dedicara, acordou com a família, que quando fizesse meio século de vida, abandonaria definitivamente a actividade comercial do estabelecimento na Batalha e viria para a herdade no Alentejo, o que veio a cumprir escrupulosamente, como havia perspectivado, em Março de 1993.
G) No decurso das relações que se estabeleceram entre o arguido e o seu empregado D, este último veio a desabafar-lhe o mau estar e as pretensões da mulher, relativamente ao divórcio. É neste contexto que o arguido convida o D para consigo e com a sua família passarem o Natal de 2001, o que aquele aceitou. Nesse dia, em conversa mais íntima, o D veio então a desabafar mais pormenorizadamente o facto de a mulher B pretender obter o divórcio, uma vez que o casamento deles não estava a correr bem, e que os factos se tinham agravado, principalmente desde o início da gravidez da filha G.
H) Como qualquer pessoa, condoído com os factos narrados, o arguido além dos conselhos normais que ofereceu a D, solicitando-lhe a calma necessária, dispôs-se a ajudá-lo, aceitando para tanto vir a falar com a respectiva mulher, a qual não conhecia, de modo a demovê-la da intenção de se vir a divorciar.
I) É pois neste contexto factual que a ora co-arguida lhe foi apresentada pelo D e que o arguido Silvino a veio a conhecer e com a mesma conversar em Março de 2002, no café “Ponto de Encontro”, onde tentou demovê-la, também, do perspectivado divorciado que esta já há muito tinha em mente, por entender que a relação do casal se encontrava esgotada.
J) A argumentação do arguido A não conseguiu, no entanto, demover a mulher de D das intenções que esta tinha relativamente ao divórcio, tendo sido o ora arguido que passa a ficar seduzido com a personalidade, a luta, a força e a determinação da B.
K) Em Abril de 2002 a proprietária do imóvel, I, residente em Londres, veio a Portugal, à Aldeia da Mata, por motivo de falecimento de um tio, tendo então sido contactada pelo D e pela ora arguida B no sentido desta poder vir a arrendar o espaço do café.
L) Em face da perspectiva do arrendamento do café, o D e a mulher vêm, então, junto do arguido a solicitar-lhe um empréstimo no montante de € 10.000,00, com o objectivo de poderem arrendar e rechear o estabelecimento comercial, o que este vem a aceitar, sem qualquer remuneração a título de juros, sob o compromisso de pagarem mensalmente, no primeiro ano, uma quantia de € 100,00 para abater no montante mutuado.
M) Em Agosto de 2002, I regressa de Londres, para a Aldeia da Mata, para passar como era seu hábito o mês inteiro de férias, ficando a viver no primeiro andar da residência por cima do café.
N) É antes do seu regresso a Inglaterra, no final de Agosto, princípio de Setembro de 2002, que com compaixão pela bebé, G, filha da arguida, que a proprietária do prédio disponibiliza a chave da entrada na casa do 1º andar, deixando aberta a porta do quarto do lado esquerdo de quem entra e a casa de banho, tendo deixado as restantes portas das outras assoalhadas fechadas, para que a bebé não tivesse de estar a dormir/descansar no café.
O) A C ficou desde o dia 1 de Setembro de 2002 até ao primeiro fim de semana de Novembro/2002, sem estar com a mãe, e com a irmã G, uma vez que só após a formalização do divórcio, a arguida foi buscar a C para com a mesma estar, conjuntamente com o irmão F e com a irmã G.
P) Após o final do ano lectivo de 2004/2005, a C foi pressionada pela mãe para desenvolver as suas aptidões escolares, sob pena de ser colocada a trabalhar no campo, uma vez que a mesma não se esforçava o necessário para poder vir a ter uma profissão que lhe pudesse granjear melhores proveitos económicos, tendo então sido contrariada nos caprichos próprios de qualquer adolescente, proibindo-lhe a mãe, sempre, saídas ou quaisquer outras formas de liberdade quando não acompanhada por si, pelo irmão mais velho ou por alguém conhecido em quem depositasse inteira confiança.
Q) O arguido pernoitou de Março de 2003 a Maio de 2003 na casa por cima do café “Milton”.
R) Em Novembro de 2006 a assistente C telefonou para mãe, ora arguida, e solicitou de modo muito meigo a opinião sobre se deveria ou não aceitar um pedido de namoro feito por um indivíduo de Aldeia da Mata - J – tendo a arguida salientado que tal namoro seria positivo para a ora assistente, uma vez que o homem se encontrava a frequentar um curso na Marinha de Guerra Portuguesa, no Alfeite.
S) A véspera do dia de Natal de 2006 foi passada pelos arguidos na Rua (…), com a ora assistente, na companhia de todos os irmãos, tendo até a C trazido prendas para todos, de Almada, demonstrando encontrar-se perfeitamente contente e feliz com a sua vida em casa da tia e no trabalho.
T) No dia de Natal de 2006, os ora arguidos conduziram os quatro filhos da arguida B a Chança para que estes passassem o Natal com os avós e com o pai e a companheira deste, tendo após o almoço de Natal o filho da ora arguida, F, ficado com o pai na casa deste, enquanto a irmã G e a ora assistente regressaram com o namorado desta, para casa dos ora arguidos.
U) Chegados, o J e a C disseram que iam jantar a Marvão, à Pousada, onde trabalha a mãe do primeiro, o que foi perfeitamente aceite pelos arguidos.
W) À noite, a C, após regressada do referido jantar com o namorado, disse que no dia seguinte teria de regressar a Almada com a tia H, explicando que já não regressaria no fim do ano, mas apenas no fim-de-semana do Carnaval.
V) Na segunda quinzena do mês de Janeiro de 2007, o namorado da C apareceu em casa dos arguidos referindo que ia para Almada encontrar-se com aquela pelo que se houvesse alguma coisa para levar ele faria tal favor. Foi-lhe entregue pelos arguidos um saco com carne e souberam que a mãe do J enviava também um pijama para oferecer de prenda à C. Vieram depois os arguidos a saber que o J, chegado ao pé da C, esta recebeu as encomendas e enquanto as foi depositar em casa, deixou-o à porta da rua da casa onde residia.
X) Já na terceira semana de Janeiro de 2007, o namorado da C, antes de ir para o Alfeite, voltou a passar por casa dos arguidos para ir buscar algum dinheiro para entregar à C, uma vez que esta em telefonema para a mãe, lho tinha solicitado, com o objectivo de comprar uma prenda para o namorado que estaria prestes a festejar o respectivo aniversário.
Y) J no dia do aniversário ter-se-á encontrado para almoçar com a C em Almada, não tendo o almoço decorrido com a maior alegria, uma vez que a C terá referido a este que se encontrava indisposta.
Z) Após o almoço J terá então regressado ao Crato, para casa dos pais, sendo certo que quando se encontrava à mesa a jantar, terá recebido um SMS no telemóvel, onde a C expressava o seu desinteresse na continuação da relação de namoro.
AA) Com tal facto e absolutamente desiludido, o J ter-se-á levantado da mesa, não festejando sequer o aniversário, nem partido o bolo de aniversário e tendo-se refugiado no respectivo quarto.
AB) No dia imediatamente a seguir àquele em que se verificaram os factos descritos em 22), a arguida B, já mais calma, decidiu telefonar de novo à filha para saber o que em concreto se havia passado e como é que ela se encontrava. Cada tentativa de chamada telefónica ou era deixado tocar o telemóvel, sem ser atendido, ou cada chamada era rejeitada, até que ao fim de inúmeras insistências, uma voz feminina atende o telemóvel tendo-lhe sido referido que a C não falaria mais com a mãe, uma vez que «…a senhora é uma ordinária e escusa de vir cá buscá-la, porque sabe muito bem o que é que fez, o meu marido é polícia e isto não vai ficar assim» tendo de seguida desligado o telefone.
AC) Indignada com a conversa e preocupada com o que se estaria a passar com a sua filha C, a ora arguida, decidiu telefonar à sua cunhada H, contando-lhe o sucedido, ao que esta referiu que não sabia o que se passava e que «…iria falar com a C…».
AD) Mediante insistência da ora arguida com a sua cunhada H, esta veio então a referir-lhe, ainda que muito sumariamente, que «…a C estava a ter conversas no salão de cabeleireiro que o A tinha abusado dela e que ela também sabia».
AE) Que em consequência dos factos descritos, C tenha andado apática e desconcentrada.
AF) Que a C tenha ficado retida no 9º ano de escolaridade como consequência directa e necessária dos factos supra descritos; que também como consequência desses factos tenha tido de mudar de escola e de curso e tenha ficado sem estudar durante dois anos.

Na fundamentação desta matéria de facto na decisão do tribunal, consta o seguinte (transcrição):

O tribunal fundou a sua convicção com base na análise crítica e conjunta da prova produzida e/ou analisada em audiência, nos termos que se passam a expor.
Como é do conhecimento comum, na maioria das situações de abuso sexual que são julgadas nos nossos tribunais – senão mesmo na sua totalidade -, é à semelhança do que se verifica com outro tipo de crimes, habitualmente praticados no recato do lar, longe da presença e do testemunho de terceiros, a convicção do tribunal tem que ser alicerçada tão só, na análise crítica e conjunta das posições antagónicas apresentadas em audiência, isto é, nas posições sustentadas, respectivamente, pelo pretenso agente e pela vítima.
O presente caso não foge à regra.
Assim, os acontecimentos relatados pela assistente C foram negados peremptoriamente por ambos os arguidos e inexistem, ou pelo menos não se conhecem, testemunhas presenciais dos mesmos. Foram, no entanto, inquiridas testemunhas que relataram o modo como vieram a ter conhecimento dos factos em discussão, e cujos depoimentos, ainda que constituindo prova indirecta, podem ser atendidos – e não deixarão de o ser – para sustentar a nossa convicção.
Inexistem elementos objectivos de prova, pois o resultado do exame laboratorial a que foram sujeitos os leves vestígios hemáticos recolhidos no colchão da cama do quarto de casal da habitação em causa, relativamente aos quais a análise de DNA não permitiu obter resultados conclusivos, inviabilizou o estudo comparativo com a zaragatoa bucal recolhida a C (cfr. fls. 209 e 218-221 dos autos).
Por isso, e no caso vertente, a convicção do tribunal fundar-se-á na análise conjugada e crítica das declarações antagónicas da assistente e dos arguidos, apreciadas à luz das regras da experiência comum, bem como na prova indirecta produzida em audiência, constituída pelos testemunhos das tias da assistente, que reforçam a nossa convicção quanto à veracidade dos factos apurados.
Os autos contêm, ainda, prova documental, que deve ser atendida.
Assim, a certidão de registo de nascimento de C, junta a fls. 66-67, comprova a sua filiação (é filha da arguida B e de D), a data do seu nascimento, e por conseguinte, a sua idade à data dos factos em discussão.
A certidão da decisão proferida pela Srª Conservadora do Registo Civil de Portalegre, que também se encontra nos autos, comprova que a arguida B e D foram casados, e que o casamento foi dissolvido por divórcio a 15 de Outubro de 2002.
Do relacionamento de ambos nasceram quatro filhos, como foi salientado em audiência não só pela arguida, pela assistente, como também pela generalidade das testemunhas (que conheciam a família), razão pela qual, e independentemente de não terem sido juntas as certidões de nascimento referentes aos irmãos da C, o tribunal deu como provado o facto descrito sob o nº 20. Do mesmo modo, e pese embora não tenha sido junta certidão de qualquer decisão judicial referente à regulação do exercício do poder paternal referente à C e seus irmãos, tendo por base as declarações daquela, e bem assim, da própria arguida, ficou demonstrada a factualidade descrita no ponto nº 22.
Os arguidos B e A confessaram ter iniciado um relacionamento amoroso em 2002, tendo resultado das declarações que tal se verificou em data não concretamente apurada, mas sempre depois de Março de 2002, tendo ambos declarado, ainda a esse propósito, que só começaram a viver maritalmente depois de decretado o divórcio de B e D.
O arguido A confessou que à data ainda era casado, tendo referido ainda, no que foi corroborado pela arguida B, que se divorciou em Dezembro de 2010, facto que o tribunal deu como provado, ainda que não tenha sido apresentada prova documental, porquanto nos mereceram credibilidade as declarações dos arguidos e se trate de matéria que não assume particular relevância para a discussão.
As considerações tecidas por escrito em sede de contestação, pelos arguidos, a propósito do modo como se conheceram e das razões por que se envolveram sentimentalmente mostram-se inócuas para a decisão, sendo que, de todo o modo, também não foram objecto de discussão em audiência, motivo pelo qual resultaram como não provados os factos descritos sob as als. G) a J).
A identificação dos elementos da família de cada um dos arguidos, feita nessa mesma processual, também não tem qualquer relevância para a discussão, razão pela qual nem sequer se incluíram na matéria de facto não provada os factos alegados a esse propósito, relativamente aos quais não foi apresentada/produzida qualquer prova, nomeadamente, documental.
O arguido A confessou ser proprietário duma herdade em Aldeia da Mata e da prova genericamente produzida, e bem assim, do relatório social elaborado pelos serviços de reinserção social, resulta que o mesmo ali desenvolve actividade agro-pecuária. Quanto aos aspectos relacionados com a aquisição de tal herdade e com a actividade profissional do arguido anterior à sua vinda para Aldeia da Mata, para além da inocuidade de tal matéria para a discussão, não foi apresentada prova susceptível de provar os factos que a esse propósito foram concretamente descritos na contestação, e por isso resultaram como não provados os factos contidos na als. C) a F).
Tendo por base as declarações concertadas da assistente e dos arguidos, apurou-se que no Verão de 2002 a arguida B explorava um estabelecimento comercial, vulgo “café”, na morada indicada em 2.
No que tange à exploração desse estabelecimento comercial não foi apresentada qualquer prova susceptível de demonstrar os factos alegados pelos arguidos em sede de contestação (nem os próprios declararam em audiência qualquer situação próxima da que deixaram relatada por escrito), motivo pelo qual resultaram como não provados os factos descritos nas als. K) e L).
Como resultou das declarações prestadas em audiência pela assistente e pelos arguidos, no primeiro andar do prédio onde a arguida explorava o estabelecimento comercial, tinha a proprietária do mesmo instalada a sua habitação, a qual não habitava com carácter de permanência, por residir no estrangeiro.
A C disse que a mãe tinha acesso a tal casa, que arejava, e que utilizava, nomeadamente, para a sesta da sua irmã G, à data ainda bebé. A arguida B confirmou que tinha acesso à casa, e o arguido A produziu declarações idênticas. Um e outro negaram, porém, que a tivessem utilizado para nela pernoitarem ou viverem no decurso do segundo semestre de 2002, tendo o arguido admitido que nela pernoitou algum tempo, com a arguida, mas só a partir de Março de 2003, facto que não ficou cabalmente demonstrado por inexistência de qualquer outro elemento probatório capaz de o sustentar.
As circunstâncias e razões pelas quais foi facultado à arguida o acesso a tal casa não foram cabalmente esclarecidas em audiência e por isso resultaram como não provados os factos que os arguidos alegaram em sede de contestação – cfr. Als. M) e N) da matéria de facto não aprovada -, sendo que, e contrariamente ao que então escreveram, resultou dos seus depoimentos em audiência, que a arguida tinha acesso a toda a casa.
Na decisão de pronúncia não se refere que a arguida, ou os arguidos habitavam a referida casa. Simplesmente, que a ela, a arguida tinha acesso e isso ficou sobejamente demonstrado, como vimos.
C descreveu a dita habitação (número e tipo de divisões e bem assim a respectiva distribuição), tendo o seu relato coincidido com o de K, inspector da Polícia Judiciária, mostrando-se os depoimentos dum e doutro conformes com o que resulta dos registos fotográficos de fls. 188-193 e 200 dos autos.
De acordo com C, foi num dos quartos dessa habitação - no que dispunha de cama de casal - que vivenciou os factos que descreveu em audiência.
No que tange ao enquadramento temporal desses acontecimentos, esclareceu que ocorreram após a separação de facto dos seus pais, no período de férias do Verão, numa altura em que se encontrava em Aldeia da Mata, com a mãe, na casa que tinha sido a casa de morada de família, e já depois da sua mãe lhe ter comunicado que tinha um namorado, o ora arguido A, que já conhecia.
A arguida confessou que a filha teve conhecimento da sua relação de namoro com o A, em data que não logrou indicar, mas sempre depois do momento em que se separou do seu marido (no Verão de 2002 já estava confessadamente separada de facto), e o arguido A confessou que a C, sabia do seu namoro com a mãe, tendo resultado das suas declarações, quando conjugadas com as da arguida e da assistente, que pelo menos no Verão de 2002 a C já tinha conhecimento do relacionamento amoroso de ambos.
O arguido A declarou, por seu turno, em audiência, que a C deixou a casa da mãe no final do Verão de 2002, confirmando, assim, que no período de Verão a então menor esteve na companhia da ora arguida.
Relativamente aos factos propriamente ditos, C explicou em audiência como em data daquele Verão de 2002 a mãe, B, a convidou para ir dormir consigo para a habitação já referida, no quarto mobilado com cama de casal; explicou como e porque razão ficou surpreendida com tal convite (fez referência à relação fria e distante com que a mãe sempre a havia tratado e à ausência de qualquer intimidade entre ambas); a razão pela qual aceitou tal convite (a mãe disse que iam estar juntas, que iam falar, o que a levou a pensar que a mãe estava a mudar o seu comportamento, que queria estabelecer com ela uma relação diferente, mais próxima, como sempre imaginou seria uma relação mãe – filha); disse que a mãe lhe sugeriu para vestir um pijama leve (era Verão, estava calor); explicou como se deitaram; deu conta da ansiedade que sentia, motivada pelo convite inesperado e pelo próprio comportamento da mãe que lhe parecia estranho, tanto mais que acabaram por não falar uma com a outra e a mãe não adormeceu, tendo-se inclusivamente levantado da cama (explicou que estava deitada de lado, com os olhos semicerrados, acordada, ainda que ensonada e sentiu a mãe levantar-se). Descreveu como se apercebeu da presença de terceira pessoa no quarto e de como a mesma se aproximou da cama onde estava deitada (a porta do quarto estava meio encostada e a cama estava posicionada de frente para a mesma); referiu em que momento se apercebeu que essa terceira pessoa era o ora arguido A (virou-se na cama e deparou-se com o arguido à sua frente, completamente nu). C descreveu então tudo quanto o arguido lhe disse; as carícias que o mesmo lhe fez em várias zonas do corpo; a forma como a mãe apareceu de novo da cama; reproduziu as palavras que a mesma lhe dirigiu; a forma como a agarrou por um dos braços (tinha as mãos no ar e debatia-se para sair da cama); o modo como o arguido A lhe retirou as cuecas; de como colocou o corpo sobre o dela; como a penetrou e ejaculou, enquanto permanecia agarrada pela mãe; e finalmente como se conseguiu libertar (após a ejaculação os arguidos deixaram-na sair da cama, tendo a mãe dito: “vês não custou nada”). Descreveu como saiu do quarto e de como lhes disse que ia contar o sucedido; como se encaminhou para a casa de banho, onde se lavou, porque sangrava, e porque a par do sangue saía da vagina “algo branco” que à data não sabia do que se tratava; como se apercebeu – depois de sair da casa de banho e de se encaminhar para o outro quarto, onde se deitou – que a mãe e o A estavam a relacionar-se sexualmente. Disse que chorou durante a noite; que o A se acercou dela, e que lhe disse que ninguém acreditaria nela caso contasse o que havia sucedido.
C descreveu o comportamento dos arguidos no dia imediatamente a seguir aos factos (disse que olharam para ela de forma completamente normal) e de como se sentiu envergonhada perante eles, vergonha da qual disse ainda não se ter libertado, continuando a ter vergonha de contar o que lhe sucedeu, nomeadamente, e em particular, o que a mãe lhe fez.
Esclareceu que depois destes acontecimentos esteve muito tempo sem voltar a casa da mãe (cerca de um ano), mas que o pai consumia bebidas alcoólicas em excesso, era desligado da família e que por isso, depois de ter voltado a passar um fim-de-semana com a mãe, depois desta lhe ter dito que sentia saudades, de ter pensado que tudo poderia ser diferente e porque a sua mãe também aparentava estar diferente, decidiu regressar à Aldeia da Mata, para viver com a mãe e a irmã mais nova, e com o arguido A (a mãe e o A já viviam em união de facto), evidenciando a informação de fls. 506 dos autos, que C no ano lectivo de 2004/2005 reingressou na EB1/J1 do Crato (escola da área da residência da mãe), donde se pode concluir que pelos menos a partir de Setembro/Outubro de 2004, a C voltou a viver com os arguidos, com eles tendo permanecido até ao final do ano lectivo de 2005/2006 - facto que aqueles confirmaram - tendo posteriormente passado a viver com uma tia paterna, em Almada, por opção pessoal e com a concordância da mãe, como esclareceu em audiência, tendo também os arguidos corroborado, nesta parte, as suas declarações.
C manifestou ao longo de todo o julgamento desilusão por ter uma família desestruturada, desunida. Mostrou ressentimento por tudo quanto se passou, em particular, pelo comportamento da mãe, com quem não fala há cerca de seis anos (facto que a arguida confirmou), nomeadamente desde os seus dezasseis anos, e depois da realização do telefonema a que infra nos reportaremos. Afirmou e reiterou ao longo do julgamento que nunca gostou do arguido A.
O relato de C foi, no essencial, objectivo. A assistente não escondeu as suas emoções, os seus ressentimentos, e a emoção que deixou transparecer foi real, tendo expressado de forma intensa, ainda que por vezes, contida, o seu sofrimento.
Por isso, estamos totalmente convictos que não fabulou, que não relatou uma história fruto de qualquer maquinação individual ou orquestrada e/ou fomentada por terceiros, e que por isso o “papel” de vítima nesta história é verídico, e não fruto de qualquer encenação, não sendo minimamente credível que a assistente, hoje uma mulher com vinte e dois anos, notoriamente inteligente, se prestasse a relatar/manter factos de natureza íntima, que não correspondessem à verdade, expondo-se da forma como o fez, perante uma comunidade pequena e rural como a Aldeia da Mata (onde os factos são conhecidos, como resulta, desde logo, do teor dos relatórios sociais concernentes aos arguidos), onde mantém família e amigos (como decorreu das suas declarações e também das declarações dos arguidos), com o objectivo de destruir a relação de união de facto dos arguidos – estável, e que já o era quando houve conhecimento publico dos factos, volvidos mais de quatro anos sobre a respectiva ocorrência -, sendo certo que se se movesse com tal propósito, bastaria ter imputado ao arguido A - de quem confessadamente nunca gostou – a prática da referida factualidade, sendo de salientar que a assistente ao longo do seu depoimento nunca manifestou não gostar da mãe. Simplesmente, revelou não conseguir compreender o seu comportamento, a sua frieza, o seu distanciamento e, após os factos, o seu silêncio, a ausência de explicações, a ausência dum pedido de perdão….Acresce que se fosse motivada por quaisquer outras razões, nomeadamente de cariz patrimonial, também não faria qualquer sentido envolver a mãe nos acontecimentos, pois como é do seu próprio conhecimento, aquela é de modesta condição social, não tendo bens ou rendimentos próprios que lhe permitam pagar uma indemnização.
Como se disse anteriormente, os arguidos negaram a prática dos factos que lhes foram imputados.
O arguido A declarou inicialmente que a C inventou a história com todos os detalhes relatados com o mero intuito de o prejudicar, de fazer cessar a relação marital que o liga à arguida, e porque quer dinheiro. Posteriormente, acabou por referir que se não é a C que o quer afastar da arguida, alguém o quer fazer e está a utilizar esta via para conseguir os seus objectivos. Instado a esclarecer esta situação, e depois de alguma insistência, o arguido acabou por dizer que existe uma mulher em Aldeia da Mata, chamada L, que sempre gostou de si, sempre se quis relacionar amorosamente consigo e que por não o ter conseguido, se quer vingar. Disse que L, apesar de ser mais velha, é muito amiga da arguida e tem-na acompanhado nas deslocações a este tribunal, pelo que não tem dúvidas que ela, conjuntamente com a assistente, maquinou toda esta história.
Esta justificação do arguido não nos mereceu, no entanto, a mínima credibilidade, considerando, por um lado, tudo quanto anteriormente se deixou dito a propósito de não ser verosímil que a arguida se expusesse para sustentar uma história como a dos autos caso a mesma não fosse verdadeira (a arguida poderia ter recusado depoimento, por ser filha da co-arguida, nos termos e ao abrigo do disposto no art. 134º, nº 1, al. a), do Código de Processo Penal), sendo ainda menos verosímil que o fizesse para vingar terceiros. Para além deste aspecto, e tendo em conta o modo como os factos em questão foram conhecidos (na sequência de telefonema mantido entra a arguida e a filha quando esta contava já dezasseis anos), está totalmente afastada a possibilidade de terem sido objecto de qualquer tipo de maquinação, como oportunamente demonstraremos.
O arguido A disse, ainda, que a arguida mantinha um bom relacionamento com a filha.
Mas se assim era, efectivamente, porque é que a C teria envolvido a mãe em toda esta situação? Qual o seu objectivo? E se queria dinheiro, e a mãe não o tinha, como é que se justifica tal envolvimento?
Ao arguido foram formuladas estas questões, mas a elas não soube responder (não deu qualquer resposta).
Apoiados nas regras da lógica, da experiência comum de vida, temos de concluir que as sobreditas declarações do arguido são, no conjunto, não só contraditórias como destituídas de qualquer sentido, pois alguém que mantenha uma boa relação com a mãe não inventaria em circunstância alguma, uma situação como a descrita pela assistente, considerando as consequências graves e nefastas que daí adviriam necessariamente para a vida da progenitora.
Por outro lado, e no que tange ao relacionamento da arguida com a filha C, as declarações desta mostram-se corroboradas pelas declarações da testemunha M (tia paterna da assistente), que de forma espontânea declarou em audiência que não considera a arguida boa mãe, porquanto o seu filho mais velho teve de ser criado/educado pela avó, e quanto ao outro rapaz, teve de ser ela própria (testemunha) a cuidar dele, por a arguida não o fazer. M revelou não ter qualquer ressentimento para com a arguida e o seu depoimento foi corroborado pelo de N, irmã da arguida, que salientou que a C não cresceu num ambiente familiar propício e que nunca lhe foi dada atenção por parte da família, nomeadamente da mãe; e também pelo testemunho de O que de forma espontânea disse que a arguida sempre foi “uma fraca mãe porque nunca quis saber dos filhos”.
Se estes testemunhos permitem sustentar as declarações da assistente quando esta classificou como distante, o relacionamento que a sua mãe mantinha para consigo, foram as declarações da própria arguida que nos permitiram formular a convicção, firme, que a relação de amor incondicional, de carinho e protecção, típica de qualquer relação mãe - filho, era no caso inexistente, ou pelo menos muito ténue, como passamos a demonstrar.
A C disse que aos dezasseis anos namorou um rapaz de Aldeia da Mata; que a mãe sabia do namoro e que o aprovava, por gostar muito do rapaz. Disse, ainda, a assistente, que em determinado momento – por razões não apuradas, mas sem interesse para a discussão – o namoro terminou e que em conversa estabelecida ao telefone com a mãe esta foi agressiva e mostrou o seu desagrado perante a situação. A arguida (que confirmou as sobreditas declarações da assistente) disse a propósito do telefonema, que quando soube que o namoro da filha tinha acabado, “lhe chamou todos os nomes”. Instada a enumerá-los, disse que lhe chamou “ordinária”, “cabeça de esfregão” e outros que acabou por não referir (aparentemente não os quis indicar), confessando que estava muito exaltada, que “se passou com ela” e que lhe disse que ia buscá-la para a Aldeia da Mata, com a polícia. Trata-se dum comportamento totalmente desadequado, incompreensível, revelando-nos a experiência comum que uma mãe com uma relação próxima da sua filha (a mãe comum), que por ela saiba demonstrar o seu carinho, o seu amor, nunca adoptaria perante uma situação como a descrita, uma conduta idêntica à da arguida, sendo consabido que a fase da adolescência é uma fase conturbada do desenvolvimento e crescimento global, em que as questões da sexualidade têm de ser acompanhadas com atenção, compreensão, e que os jovens desta idade precisam de ser compreendidos, não repreendidos e/ou agredidos psicologicamente desta forma.
Para além desta situação, e perante alguma insistência do tribunal, a arguida acabou por referir que no decurso da conversa telefónica com a filha e depois de lhe ter chamado vários nomes e de ter ameaçado que a ia buscar com a polícia, ela lhe disse que “o padrasto a tinha violado”.
Perante uma declaração como esta, uma mãe atenta, carinhosa, protectora, teria de imediato procurado inteirar-se da veracidade de tais declarações e teria seguramente, para tanto, procurado pessoalmente a filha, falado com ela… Mas não foi isso que a arguida fez.
Disse que posteriormente ainda lhe telefonou (o que a C não confirmou), mas que ela não atendeu e que por isso, até hoje, e porque o A lhe disse que C não tinha falado a verdade, nunca mais falou com a filha.
Quem tem um comportamento destes não pode ter uma relação de proximidade com uma filha e por isso, neste tocante, as declarações dos arguidos (a arguida também disse que mantinha uma relação boa com a filha) não puderam merecer a credibilidade do tribunal, resultando de tudo quanto se deixou expendido o reforço da nossa convicção quanto à credibilidade da assistente na parte em que se reportou e caracterizou o seu relacionamento com a mãe.
A arguida B também negou os factos que lhe são imputados, e à semelhança do arguido A, afirma que o tribunal está perante uma história inventada pela C, que se moveu e move pelos seguintes propósitos:
a) Intenção de destruir a vida da arguida, por não a querer ver feliz ao lado do arguido A;
b) Nessa “tarefa” – invenção - foi ajudada pela sua irmã N, que também tem vontade de lhe destruir a vida, uma vez que iniciado o relacionamento marital com o A, a arguida deixou de ser a “criada” - para todo o serviço doméstico - como acontecia anteriormente, sempre que aquela se deslocava à Aldeia da Mata;
c) Que na mesma invenção foi ajudada por L, que odeia o A por este nunca lhe ter dado atenção e porque nunca lhe emprestou dinheiro;
d) Finalmente, que agiu por vingança, por a arguida a ter tratado mal ao telefone por causa do namorado.
Já se referiu que a assistente não escondeu os seus sentimentos relativamente aos arguidos. Pelo contrário, expô-los com sinceridade e espontaneidade (se estivesse preocupada em não suscitar dúvidas sobre a sua credibilidade facilmente poderia ter sido contida no seu discurso, o que manifestamente não aconteceu), assim como expôs a sua mágoa e sofrimento, sem que das suas declarações resultasse qualquer vontade de vingança ou destruição da vida marital da mãe.
Recorde-se, aliás, que a C, no ano de 2004, depois da ocorrência dos factos em discussão, regressou à casa da mãe e do A. Fê-lo, como disse, voluntariamente, porque o pai consumia bebidas alcoólicas em excesso (o relatório social refere que sempre o fez, ao longo do casamento com a arguida); porque também não lhe dava atenção; porque estava afastada da irmã G de quem gostava bastante (C revelou diversas vezes tristeza por todos os irmãos estarem afastados uns dos outros); porque entretanto a mãe parecia ter mudado (durante um fim de semana que passou com a mãe, esta disse-lhe que sentia saudades dela); porque apesar de continuar a não gostar do A, a ter medo dele e a odiá-lo, como expressamente declarou, sentia-se mais forte para o denunciar, nomeadamente, à polícia, caso sucedesse algo idêntico ao verificado no passado. Ora, se a C quisesse destruir a relação da mãe, não deixaria de ter inventado a “história” quando tinha doze anos, quando o relacionamento amoroso dos arguidos estava no início, ou pelo menos quando regressou a casa da mãe em 2004. E se queria destruir a relação da mãe, e para tanto inventar uma história, bastava-lhe ter envolvido o arguido, e não a mãe, com quem aparentemente queria viver, pois não estava feliz em casa do pai… No decurso do seu depoimento, e com referência ao período que então viveu com a mãe e com o arguido A, a C descreveu situações e comportamentos deste último, com conotação sexual, que a poderiam ter levado a denunciá-lo. No entanto, mais uma vez, remeteu-se ao silêncio…. Em face do exposto e analisando todos os descritos elementos à luz das regras da lógica, da experiência de vida comum, temos de concluir que a assistente nunca se moveu com a referida intenção.
Aliás, as declarações da arguida, é que nos suscitam dúvidas. Afinal, quem é que queria destruir a sua vida? A filha, a tia materna, a dita L?
Parecem-nos autores e argumentos a mais para uma história só…
No que diz respeito ao alegado envolvimento da referida L já dissemos porque é que o mesmo é totalmente inverosímil.
O invocado envolvimento da irmã da arguida na fabricação da história não tem também qualquer sustentabilidade.
N, professora universitária, revelou ser uma pessoa culta, atenta e respeitadora. Tem acompanhado a sobrinha C desde o conhecimento dos factos em questão, desempenhando um papel importante no desenvolvimento daquela, nomeadamente ao nível da sua formação (tem sido com a sua orientação que a C tem prosseguido os estudos), sendo que o seu perfil e personalidade evidenciados ao longo do seu depoimento afastam em definitivo a possibilidade de inventar uma situação como a descrita e de expor publicamente a jovem sobrinha, só porque a arguida teria deixado de lhe lavar a loiça, quando esporadicamente se dirigia à Aldeia da Mata !!! Enfim, teria de ser uma pessoa totalmente desequilibrada, desprovida de qualquer discernimento e sentimentos, para tomar tal atitude, o que não é manifestamente o caso e por isso, e sem mais delongas, urge concluir pela completa insustentabilidade das declarações da arguida, na parte em referência, e por isso, pela incapacidade das mesmas gerarem qualquer tipo de dúvida no que diz respeito à credibilidade do depoimento da C.
Finalmente, urge averiguar da possibilidade da C ter inventado toda esta situação para se vingar dos insultos que a mãe lhe dirigiu, ao telefone, quando soube que a relação de namoro a que já aludimos, havia cessado.
Sobre a realização de tal telefonema, as declarações da arguida (e bem assim do arguido A) não foram, desde logo, totalmente espontâneas. Foram-no na parte atrás referenciada, isto é, no relato do que a arguida disse à filha e das razões por que o fez, tendo sido a instâncias do tribunal e depois de alguma insistência, que a arguida referiu que a C lhe disse, já na parte final da conversa, que o A a tinha “violado”.
Ainda assim, não reproduziu, minimamente, a frase então concretamente pronunciada pela C.
Acresce que a arguida, e bem assim o arguido A, fizeram questão de frisar (porventura para afastar a credibilidade dos depoimentos das tias da C a que infra nos reportaremos) que aquando do estabelecimento dessa conversa telefónica, a C se encontrava no salão de cabeleireiro, o que não corresponde à verdade, pois a esse respeito os depoimentos de O e H – que pela espontaneidade, isenção e objectividade evidenciadas mereceram a total credibilidade do tribunal – permitem sustentar, sem margem para qualquer dúvida, que aquando da realização desse telefonema, a C estava em casa da tia (como a própria assistente, aliás, referiu). O e H disseram em audiência que se encontravam na cozinha, perto da sobrinha no momento em que esta travou conversação com a mãe, aparentando então estar zangada (nunca ouviram a voz da arguida e/ou o que ela disse), tendo sido no decurso dessa discussão que a C proferiu a seguinte frase “Quando o meu padrasto me violou não fizeste nada”. O disse, ainda, que imediatamente depois de ter proferido esta frase, a C desligou o telefone e saiu da cozinha, para a sala, onde se agarrou à prima, a chorar.
Ainda a propósito do telefonema, e tendo por base as declarações daquelas duas testemunhas, não é verdade que a arguida tenha posteriormente entrado em contacto telefónico com qualquer delas, como declarou em audiência.
Foi depois de ter proferido a sobredita frase que a C contou às tias H, N e também ao seu tio paterno, o que havia sucedido (a testemunha O disse que ficou transtornada e que nunca teve coragem para falar com a sobrinha), sendo que, e no que diz respeito à participação da sua mãe nos factos em discussão, só posteriormente falou com a tia N, irmã da mãe, que em tribunal relatou as circunstâncias e o modo como a sobrinha lhe relatou tal situação.
A dita frase da C surge espontaneamente, no calor duma discussão, no decurso da qual foi injuriada, insultada, pela mãe, e aparentemente responsabilizada por ter cessado a relação de namoro. É, deste modo, perfeitamente natural, que a C, então com dezasseis anos, perante uma atitude totalmente desadequada e desproporcionada, tendo em conta o assunto em discussão, e perante a ameaça de retornar à Aldeia da Mata, acompanhada da polícia, não tenha resistido a confrontar a mãe com o facto desta, perante a situação grave que havia vivenciado (“violação”, nas suas palavras), não ter feito nada, não ter reagido, não ter tomado qualquer atitude para com o responsável desse acto (como agora queria aparentemente fazer com a filha, a quem responsabilizava pela cessação do namoro).
Em sede de alegações, foi suscitada a questão da falta de credibilidade das declarações da C, dado o período de tempo decorrido entra a data dos factos em discussão e o momento em que aquela falou primeira vez da situação. No entender da defesa, caso os factos tivessem efectivamente ocorrido, a ofendida não deixaria de os ter desde logo denunciado.
A C disse em audiência que sentia vergonha da situação vivenciada e que por isso não contou o sucedido a qualquer dos seus familiares. Se sentia vergonha perante os familiares também a sentiria perante terceiros e com doze anos não teria discernimento ou capacidade para, por si só, se deslocar à Polícia ou procurar um Magistrado do Ministério Público para denunciar a situação, que porventura não sabia, então, ser crime. A C disse que contou a uma amiga o que lhe havia sucedido, mas este tipo de situações, contadas entre amigos, porventura com idades próximas das da própria vítima (como aparentemente foi o caso) não têm, vulgarmente, quaisquer consequências.
Como é do conhecimento comum, não são raros os casos em que os abusos sexuais são denunciados muito depois da sua ocorrência, sem que aparentemente exista razão para que não tivessem sido atempadamente denunciados (na perspectiva dos adultos, claro!). E o silêncio pode, inclusivamente, ser eterno.
Também como é sabido, situações como as discutidas nos autos tocam muito a intimidade das crianças e estas sabem guardar segredos para si. O silêncio pode estar associado ao medo, à vergonha, a qualquer sentimento de culpabilização, ao facto das situações abusivas ocorrerem no seio familiar e a vítima não ter, por isso, capacidade ou ânimo para denunciar, até por receio de não lhe ser dada credibilidade (recorde-se que a C referiu que o arguido lhe disse que se quisesse contar o sucedido ninguém acreditaria nela, sendo que facilmente uma criança de doze anos e perante um assunto desta gravidade e natureza facilmente acredita que tal corresponda à verdade), ou a quaisquer outras razões, nem sempre descortinadas. E também com frequência, o silêncio é quebrado, espontaneamente, sem que nada o fizesse esperar, como aconteceu inquestionavelmente no caso, e em circunstâncias perfeitamente compreensíveis.
Por isso, as declarações da assistente não deixam de ser credíveis só porque os factos foram conhecidos volvidos quatro anos sobre a sua ocorrência, tanto mais que a assistente não denunciou propriamente o caso. Falou nele, inesperada e espontaneamente, e só o facto de não estar sozinha no momento em que dele falou, é que se despoletou toda esta situação, pois a assistente, pese embora já tivesse dezasseis anos à data do telefonema, não tomou, ainda assim, qualquer atitude de denúncia pública.
Poderão as palavras então proferidas pela C e/ou a circunstância desta não ter relatado imediatamente às tias, o envolvimento da mãe nos factos, suscitar qualquer dúvida, insuperável, sobre a veracidade do comportamento imputado à arguida B?
Não é essa a nossa convicção.
Aquando da prolação da referida frase ao telefone, a C não excluiu a mãe dos acontecimentos. Simplesmente, não a incluiu neles, revelando através dessa frase que a mãe tinha conhecimento da dita “violação” e ela, C sabia, que ela, sua mãe, tinha conhecimento da mesma e que nada tinha feito.
Isto coaduna-se com o teor das declarações da C em julgamento e com a forma como ela avalia a intervenção da mãe nos factos.
De acordo com o seu depoimento, o tribunal não teve dúvidas sobre a acção da arguida, sobre a sua participação activa nos factos e sobre o inequívoco acordo traçado com o arguido A visando a concretização dos seus intentos (assim, é a arguida que convida a filha para ir dormir com ela, numa casa que não habita; é a arguida que se levanta da cama para pouco tempo depois nela se introduzir o arguido A – apelando às regras da experiência comum, tudo indica que a arguida ter-se-á levantado para chamar o A, que seguramente já se encontrava no interior da casa -; é a arguida que tenta convencer a filha a deixar o arguido concretizar o acto sexual, dizendo-lhe que ia ser bom para ela; é a arguida que agarra a filha por um braço para que o arguido consiga mais facilmente concretizar o acto; é a arguida que só a larga quando o acto está consumado).
No entanto, e pese embora tenha descrito as ditas acções com clareza e objectividade, ao longo de todo o seu discurso a C refere sempre, espontânea e reiteradamente, a omissão da arguida B, a sua falta de acção perante o que lhe estava a acontecer e a sua incapacidade para perceber tal atitude da mãe. Por isso, não é de estranhar que no que concerne à mãe, a arguida tenha simplesmente dito “não fizeste nada”, pois é essa a mágoa que a C ainda hoje tem. Acresce que o cidadão comum, nomeadamente com a mesma idade da assistente à data da realização do telefonema - dezasseis anos -, não terá conhecimentos suficientes, nomeadamente de natureza jurídica, para qualificar como de “violação” ou “abuso” o referido comportamento da arguida, já que tal comportamento é habitualmente atribuído a quem em concreto pratica o acto sexual, donde não é de estranhar que a C não tenha então feito alusão a uma situação de “violação” perpetrada por ambos.
O relato da C evidenciou ainda uma mágoa intensa para com a mãe. Raiva, mesmo. Mais do que para com o arguido A, que é deixado inequivocamente para segundo plano no relato de C.
Será isto anormal, de molde a por em causa a credibilidade do depoimento da C?
Apoiados nas regras da experiência comum, não temos dúvidas em considerar que não só não é estranho tal comportamento, como é perfeitamente compreensível e normal.
Duma mãe espera-se, no mínimo, amor incondicional e protecção. Principalmente em situações de agressão, de violência. Como pode uma criança de doze anos compreender que uma mãe não a proteja de terceiros? Que fique impávida perante uma agressão, nomeadamente de cariz sexual, e que ajude um terceiro a concretizá-la? Tal acto é incompreensível para uma criança, como o é para um adolescente e para um adulto… Não ter mágoa, raiva, tristeza, vergonha, é que seria estranho perante uma situação como a descrita. E dada a relação de filiação, e o que dela se espera, não é de estranhar, é aliás compreensível, que a assistente sinta mais revolta perante o comportamento da mãe - pessoa de quem gostava, porque precisamente era mãe (como explicitou em audiência) – do que perante o comportamento dum indivíduo que lhe era estranho – não era da sua família, nomeadamente da família restrita –, de quem nunca gostou e relativamente ao qual nunca teve qualquer expectativa legítima de protecção.
Aliás, o testemunho de N, que pelas suas qualidades já referenciadas pode constituir no caso, a referência do cidadão comum, permite-nos sedimentar esta nossa convicção. N explicou que falou com a C por diversas vezes sobre o assunto e que a deixou sempre falar e chorar à vontade, por achar que ela precisava de tempo para falar, para desabafar. Explicou, no entanto, que no dia em que a sobrinha lhe disse que ainda tinha mais uma coisa para lhe contar sobre a alegada “violação” e depois de se ter disposto a ouvi-la como habitualmente, admitiu que não estava preparada psicologicamente para ouvir o que a C então lhe contou, ou seja, a intervenção da mãe nos factos.
Pela referida reacção podemos compreender perfeitamente os sentimentos da C e compatibilizá-los com a normalidade das regras da vida.
Por último, a credibilidade da assistente não fica minimamente beliscada pela circunstância de não ter desde logo contado às tias o envolvimento da mãe. Até poderia nunca o ter feito, por ter vergonha ou por qualquer outra razão. Quando contou, e como decorreu do testemunho de N, fê-lo espontânea e livremente, perante uma pessoa que evidenciou saber escutar, respeitar os silêncios, o choro… Até porque a C ao contar o que lhe havia sucedido não estava a denunciar nada às autoridades, mas a desabafar, a libertar-se do que a envergonhava e a oprimia.
Não foi a C, efectivamente, que tomou a iniciativa de denunciar publicamente os factos tendo em vista o desencadear do processo penal. As suas tias não o fizeram, como resultou da conjugação dos respectivos depoimentos, porque entendiam que devia ser o pai da C a assumir tal responsabilidade (o que não fez), e a C, por seu turno, também não apresentou queixa, desconhecendo-se se sabia que o poderia fazer sozinha.
O modo como ocorreu a denúncia acabou por ser algo inédito.
A notícia dos factos foi veiculada no circuito familiar da C. Nessa sequência, e por isso, a sua avó materna escreveu uma carta à filha, ora arguida, na qual lhe dirigiu expressões que a arguida reputou como injuriosas e que a motivou a apresentar queixa contra a mãe (lida a queixa cuja cópia consta dos autos verificamos, porém, que na mesma não é feita referência a qualquer situação de abusos sexuais ou “violação”, pelo que a arguida não se expôs, então, publica e corajosamente como alegadamente quis fazer crer em julgamento). No âmbito desse processo-crime, em que a sua avó era arguida, a ora assistente foi chamada a depor. Tudo isto se passou depois da assistente ter contado às tias o que havia sucedido e, por isso, a sua presença em julgamento na qualidade de testemunha, para relatar os acontecimentos e assim justificar a conduta da avó, é perfeitamente compreensível, sendo inverosímil, perante tudo quanto se deixou dito, que tenha sido nesse momento que a assistente tenha inventado os factos. Aliás, se analisarmos a transcrição das suas declarações prestadas nessa audiência, que constam dos autos, por terem servido como denúncia, verificamos que a C não fez um relato automático e distanciado dos factos, tendo sido instada, convidada a relatá-los.
Já em sede de alegações, foram ainda referidas outras debilidades do depoimento da assistente que no entendimento da defesa comprometem definitivamente a sua credibilidade. Assim, e para além da questão do tempo que mediou entre os factos e a sua denúncia – que já foi objecto de análise e apreciação – refere a defesa que a C relatou factos que não se compatibilizam com a normalidade das coisas, nomeadamente, por ter decorrido do depoimento da assistente que o arguido quando se aproximou dela já estava preparado para o acto sexual (entenda-se, com o pénis erecto), o que no entendimento da defesa não é plausível; que a assistente não fez qualquer referência à existência de dor física, mas apenas à dor psicológica, o que também não é normal, por a dor psicológica não ser seguramente superior àquela; e finalmente, que ninguém aceitaria viver no mesmo espaço do violador, como fez a assistente, estranhando também a defesa que ninguém tenha notado nada na assistente, nomeadamente na escola.
Quanto a este último aspecto, não entendemos a estranheza da defesa. Basta pensar, como já dissemos, que muitas situações de abuso ficam silenciadas durante anos, e as vítimas não deixaram, entretanto, de frequentar a escola, conviver socialmente, ter uma vida idêntica à do cidadão comum…
A descrição dos factos efectuada pela C em audiência de julgamento retrata, à evidência, que previamente ao acto sexual de cópula, o arguido fez carícias em diversas partes do seu corpo, nomeadamente nos seios, e dirigiu-lhe expressões com conotação sexual, tudo apto a provocar o estado de erecção do órgão sexual masculino. Por isso, não entendemos a sobredita referência da defesa, tanto mais que as regras da experiência comum também nos permitem afirmar que a ausência daqueles actos prévios ou preliminares também não obstavam à verificação do estado de erecção do órgão sexual masculino, porquanto para muitos homens – e seguramente também para o arguido – é suficiente a antecipação mental da consumação do acto de cópula com uma mulher ainda virgem, e/ou o contacto visual com o seu corpo para atingirem o referido estado.
No que tange à ausência de referência a dor física, a assistente não fez efectivamente qualquer referência a esse tipo de dor, sendo que também nada lhe foi perguntado nesse sentido, porquanto se trata de facto não essencial, tendo em atenção a natureza do crime em discussão. No que tange à mencionada “dor psicológica”, remetemos para tudo quanto anteriormente deixamos dito, a propósito dos sentimentos manifestados pela assistente relativamente ao acto de que foi vítima, e pese embora nos mereça respeito a opinião da defesa quanto ao grau de superioridade da dor física, com a qual não concordamos inteiramente, cremos já ter explicado a razão pela qual compreendemos a “dor psicológica” da assistente e o motivo pelo qual as suas declarações foram totalmente credíveis.
Finalmente, resta apreciar a circunstância da assistente ter decidido passar a viver com a mãe e com o arguido cerca de dois anos após a data dos factos. A assistente explicou as razões que a determinaram a tomar tal decisão, subjacente às quais encontramos a esperança ou expectativa de que tudo poderia correr bem. Não esqueçamos que a C tinha catorze anos e o agregado familiar do pai não estava minimamente estruturado, pelo que neste enquadramento não estranhamos o seu comportamento, considerando a ausência de alternativas momentâneas para a sua vida, e sobretudo, as suas expectativas, apesar de tudo legítimas, pois a capacidade de mudança é uma das características do ser humano…, a que acresce a circunstância de ser comum a coabitação de vítimas e agressores mesmo após a verificação da agressão, situação que ocorre mesmo quando as vítimas já são adultas, isto é, com capacidade para orientarem as suas próprias vidas, sendo comum apresentarem, precisamente, como justificação para a coabitação, a expectativa de mudança de atitude por parte do agressor.
Em face do exposto, e porque nada logrou abalar a credibilidade que nos mereceram as declarações da assistente C, resultaram como provados os factos imputados aos arguidos, sendo que no que diz respeito ao plano por eles gizado e às respectivas motivações e intenções, os elementos objectivos apurados, analisados à luz das regras de experiência comum, permitiram sustentar os factos de índole subjectiva que lhes foram imputados.
A factualidade contida nas als. A) e B) resultou como não provada por não ter sido expressa e espontaneamente referenciada pela assistente ao longo do seu depoimento, e inexistir outra prova capaz de sustentar a sua veracidade.
Por ausência de prova concreta ou por estarem em contradição com os factos apurados, resultaram como não provados os factos descritos nas als. O) a AD).
Com base no testemunho de N (que tem acompanhado e orientado a sobrinha Andreia, nomeadamente ao nível das suas opções escolares), tendo por referência a matéria factual de índole objectiva apurada nos autos e bem assim as regras da experiência comum, resultaram como provados os factos nºs 13 a 18.
O testemunho de N foi, só por si, insuficiente para ter como demonstrada a factualidade a que se reportam as als. AE) e AF).
Os factos atinentes ao modo de vida e à situação social e económica dos arguidos encontram o seu fundamento nos relatórios sociais que lhes dizem, respectivamente, respeito, e nas declarações que os mesmos prestaram em audiência.
O tribunal deu como provado o facto nº 41 com base nas declarações de ambos os arguidos.
Finalmente, os certificados de registo criminal que se encontram nos autos atestam a respectiva primodelinquência

II – FUNDAMENTAÇÃO

1 - Âmbito do Recurso

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso, mormente os vícios enunciados no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, as cominadas como nulidade da sentença, artigo 379º, nº 1 e, nº 2, do mesmo Código e, as nulidades que não devam considerar-se sanadas, artigos 410º, nº 3 e, 119º, nº 1, do mesmo diploma legal, a este propósito cfr. ainda o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de 19.10.1995, publicado no D.R. I-A Série, de 28.12.1995 e, entre muitos outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 25.06.1998, in B.M.J. nº 478, pág. 242 e de 03.02.1999, in B.M.J. nº 484, pág. 271 e bem assim Simas Santos e Leal-Henriques, em “Recursos em Processo Penal”, Rei dos Livros, 7ª edição, pág. 71 a 82).

No caso em apreço, atendendo às conclusões, as questões que se suscitam são as seguintes:

- Do recurso do Ministério Público:
- Da nulidade da decisão recorrida por omissão de pronúncia, relativamente à extracção e recolha de amostra de ADN dos arguidos para inserção na base de dados;
- Impugnação da decisão recorrida por insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (artigo 410º, nº 2, alínea a), do Código de Processo Penal), por inobservância do regime jurídico constante da parte final do artigo 28º, nº 1, do Código Penal;
- Da inaplicabilidade aos crimes de mão própria das qualificativas que constituem crimes específicos impróprios.

- Do recurso dos arguidos:
- Da nulidade do despacho que efectuou a alteração e agravação da medida de coacção aplicada aos arguidos;
- Da impugnação da matéria de facto constante dos pontos 2 a 15, dos factos provados;
- Da impugnação da matéria de direito, relativamente à condenação da arguida, pela prática de um crime específico impróprio e da comunicabilidade da qualificativa agravante ao arguido;
- Da impugnação das medidas das penas aplicadas e da sua suspensão.

Da nulidade da decisão recorrida por omissão de pronúncia, relativamente à extracção e recolha de amostra de ADN dos arguidos para inserção na base de dados, nos termos do disposto no artigo 379º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Penal.
Decorre do artigo 8º, da Lei nº 5/2008, de 12 de Fevereiro:
“1 - A recolha de amostras em processo-crime é realizada a pedido do arguido ou ordenada, oficiosamente ou a requerimento, por despacho do juiz, a partir da constituição de arguido, ao abrigo do disposto no artigo 172º, do Código de Processo Penal.
2 - Quando não se tenha procedido à recolha da amostra nos termos do número anterior, é ordenada, mediante despacho do juiz de julgamento, e após trânsito em julgado, a recolha de amostras em condenado por crime doloso com pena concreta de prisão igual ou superior a 3 anos, ainda que esta tenha sido substituída.”
Destes dipositivos legais resulta manifesto que a recolha de amostras em processo-crime é realizada a pedido do arguido ou ordenada por despacho judicial, oficioso ou a requerimento, ao abrigo do disposto no artigo 172º, do Código de Processo Penal, ou seja, realização de exame, para recolha da amostra como meio de prova.
Fora destes citados circunstancialismos, a pedido do arguido ou meio de obtenção de prova, a recolha de amostra é ordenada por despacho do juiz de julgamento, após o trânsito em julgado, de condenação por crime doloso, com pena superior ou igual a 3 (três) anos de prisão, ainda que substituída.
Assim, parece claro, que uma vez que no decurso do inquérito e da instrução, não se tendo procedido à recolha da amostra de ADN dos arguidos, como meio de prova nos presentes autos, só após o trânsito em julgado de acórdão condenatório, por prática de crime doloso punido com pena de prisão igual ou superior a três anos, é que se poderá determinar a recolha, por despacho fundamentado e, com respeito pelo contraditório.
Por tal, andou bem o tribunal “a quo”, em não se ter pronunciado no acórdão proferido, apenas o devendo fazer após o trânsito em julgado do acórdão proferido e, em caso de o crime e a sentença virem a ser confirmados na sua integralidade.
Improcede por isso, nesta parte o recurso interposto pelo Ministério Público, não se verificando existir omissão de pronúncia no acórdão proferido, relativamente à recolha de amostras de ADN dos arguidos, por tal invocada obrigatoriedade de pronúncia não resultar de qualquer preceito legal e, consequentemente, não enferma o mesmo acórdão da nulidade prevista no artigo 379º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Penal.

Da impugnação da decisão recorrida por insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (artigo 410º, nº 2, alínea a), do Código de Processo Penal), por inobservância do regime jurídico constante da parte final do artigo 28º, nº 1, do Código Penal.
Decorre do artigo 28º, nº 1, do Código Penal, que:
“Se a ilicitude ou o grau de ilicitude do facto dependerem de certas qualidades ou relações especiais do agente, basta, para tornar aplicável a todos os comparticipantes a pena respectiva, que essas qualidades ou relações se verifiquem em qualquer deles, excepto se outra for a intenção da norma incriminadora.”
Desde já cumpre de imediato afirmar, que não resulta expresso ou implícito na norma incriminadora, artigo 172º, nº 1 e, nº 2 e, artigo 177º, nº 1, alínea a), do Código Penal, nem sequer tal hipótese é excluída pela doutrina ou jurisprudência conhecidas, que não sejam comunicáveis entre comparticipantes, as relações especiais de um deles ou de certas qualidades de um deles, aos demais, no sentido de agravar a ilicitude do facto praticado por todos, ou beneficiarem todos os comparticipantes de um regime mais favorável.
De tal forma as agravantes constantes do artigo 177º, do Código Penal, em caso de comparticipação, a verificarem-se relativamente a um dos comparticipantes a qualquer título, serão comunicáveis e extensíveis aos restantes, aquando da prática dos factos típicos a que tais agravantes se reportam, nos termos do disposto no artigo 28º, nº 1, do Código Penal.
Nos autos resultaram provados os factos relativos à co-autoria da mãe da assistente na prática dos mesmos, nomeadamente, que a mesma convenceu a assistente a dormir naquela residência, com o menos roupa possível, dizendo-lhe para estar à vontade que não se encontrava mais ninguém, o que bem sabia não corresponder à vontade, saindo do quarto para o arguido A entrar no mesmo e abordar a ofendida, entrando em seguida, para ajudar a segurar a ofendida e convence-la a não se opor à prática do acto sexual que o arguido estava a praticar ou a pretender praticar.
Logo resultou provada nos autos a actividade da mãe da menor, na consumação dos factos ilícitos, desde logo na facilitação do acesso do arguido à vítima, ao permitir o acesso do mesmo à residência onde se encontravam, o acesso ao quarto onde a vítima se encontrava a dormir e, até, na determinação da vítima a alguma descontracção e utilização de menos roupa e, na colaboração prestada na consumação dos factos, segurando a vítima para permitir o acto sexual e, no convencimento da vítima a suportar a agressão.
Todo este circunstancialismo permite concluir pela existência de um plano prévio conjunto, para melhor prosseguimento da actividade criminosa, o que aliás resultou expressamente provado no acórdão recorrido (Ponto 10. Agiu a arguida B livre e conscientemente no intuito de, por acordo prévio com o arguido A conduzir C para o falado quarto a fim de possibilitar que, aí, este mantivesse relações de cópula completa com C).
Pelo exposto, não resulta do acórdão recorrido, qualquer insuficiência da matéria de facto, de forma a não permitir a aplicação aos arguidos do disposto no artigo 28º, nº 1, do Código Penal.

Por fim, relativamente, à inaplicabilidade aos crimes de mão própria das qualificativas constantes dos crimes específicos impróprios.
Os crimes específicos impróprios ou impuros são aqueles em que a qualidade, estatuto ou dever especial apenas agravam a ilicitude e a responsabilidade penal, como seja no caso dos presentes autos, a qualidade de ascendente, constante do artigo 177º, nº 1, alínea a), do Código Penal, como agravante do tipo de abuso sexual de crianças e, considerando-se este como um crime de “mão própria”, ou seja, que só pode ser praticado por quem pratica a cópula, o coito anal ou o coito oral, com o menor de 14 anos, tal qualificativa não respeitando ao autor imediato dos factos, seria inaplicável ao mesmo.
Quanto aos crimes de mão própria, Teresa Beleza dá a seguinte definição “são aqueles cuja definição legal torna impensáveis em qualquer forma de autoria que não seja a directa, imediata, material, dado que a acção descrita só é susceptível de ser praticada por “mão própria”, isto é, com o próprio corpo”. Teresa Beleza, “Ilicitamente comparticipando”, AAFD, 1988, pág. 63 e sgs.
Para Figueiredo Dias, crimes de mão própria, “são os tipos de ilícito em que o preceito legal quer abranger como autores apenas aqueles que levam a cabo a acção através da sua própria pessoa, não através de outrem; quer abranger apenas pois, em princípio, os autores imediatos, ficando excluída a possibilidade da autoria mediata; e mesmo da co-autoria relativamente àqueles comparticipantes que não tendo chegado a executar por próprias mãos a conduta típica, não podendo por isso, nestes casos, verificar-se a “comunicabilidade” a que se refere o artigo 28º.” - Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2004, pág. 288.
Resulta do disposto no artigo 172º, nº 1 e, nº 2, do Código Penal, vigente à data da prática dos factos, que:
“1 - Quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos ou o levar a praticá-lo consigo ou com outra pessoa, é punido com prisão de 1 a 8 anos.
2 - Se o agente tiver cópula, coito anal ou coito oral, com menor de 14 anos é punido com pena de 3 a 10 anos”.
Assim, relativamente ao constante do nº 1, deste preceito legal, nenhuma questão suscita, sobre a sua impossibilidade de classificação como crime de mão própria, no sentido, que apenas poderá ser praticado por agentes que levam a cabo a acção através da sua própria pessoa, pois a conduta ilícita poderá ser praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou levar a praticar consigo ou com outra pessoa, resultando que o tipo de ilícito poderá ser praticado por agente que não pratique o acto sexual de relevo com o menor de 14 anos, mas sim, ser apenas o agente que leva o menor de 14 anos a praticar acto sexual de relevo com outra pessoa.
Já relativamente ao nº 2, do mesmo preceito legal, se o agente tiver cópula, coito anal ou coito oral, com menor de 14 anos, é este tipo legal de crime susceptível de ser considerado um crime de “mão própria”, isto é que apenas admite a autoria imediata, que não admite como no caso dos autos a co-autoria, a instigação ou a autoria mediata?
A doutrina que conhecemos, não é unânime nesta classificação, dos crimes de mão própria, parecendo considerar tal classificação como pouco relevante e talvez, até ultrapassada, considerando que “se se pretende centrar a essência e a gravidade destes “crimes de mão própria” na atitude defeituosa ou desvaliosa do agente, em vez de a centrar no facto praticado e lesivo de determinados bens jurídicos-penais, é caso para dizer que, nestes crimes, há uma perigosa rejeitável excepção ao princípio do “direito penal do facto”, princípio que é uma das traves-mestras do direito penal moderno, que veio recusar, definitivamente, um direito penal do agente ou direito penal da atitude interior”. Taipa de Carvalho, Direito Penal – Parte Geral, 2ª edição, Coimbra Editora, pág. 286.
Mais acrescenta esta autor, “considero que esta figura dos “crimes de mão própria”, com as consequências dogmáticas e jurídico-práticas, que lhe associam, é, no mínimo, questionável e, em minha opinião, político-criminalmente inaceitável”. Taipa de Carvalho, obra citada, pág. 288.
Concluindo, “os chamados “crimes de mão própria” não constituem uma categoria autónoma de crimes; se no passado, houve razões para autonomizar e atribuir um regime específico, em matéria de comparticipação, a determinados “crimes de dever”, hoje, a partir da centralização do direito penal no facto e na tutela de concretos bens jurídicos, deixa de haver razão para tratar esses tradicionais “crimes de mão própria” com um regime diferente dos normais crimes específicos; assim, a comunicabilidade das “qualidades ou relações especiais do agente” referida no artigo 28º, nº 1, também é defensável e aplicável aos tradicionais crimes de “mão própria”, desde que, obviamente, estes sejam específicos; pode suceder, embora raramente, que a estrutura típica de determinado crime, que tanto pode ser comum como específico, não permita a comparticipação por autoria mediata ou co-autoria; mas esta impossibilidade resultará da estrutura formal do tipo legal, e não da natureza material da própria acção típica", Taipa de Carvalho, obra citada, pág. 294 e 295.
Aqui chegados temos que no caso concreto dos autos, o tipo legal de crime de abuso sexual de crianças, previsto no artigo 172º nº 1 e, nº 2, do Código Penal, vigente à data da prática dos factos, pois apesar de se poder classificar doutrinalmente o tipo legal de crime constante do nº 2, deste preceito legal, como um tipo de “crime de mão própria”, a sua estrutura típica não exclui todas as formas de comparticipação, admitindo e sendo facilmente configuráreis diversas hipóteses de comparticipação, desde a instigação à co-autoria, como no caso dos presentes autos, em que a arguida de comum acordo e, em execução de um plano conjunto, determina a vítima a permanecer em determinado local, facilita o acesso do outro arguido à vítima e, subjuga psicológica e fisicamente, a vítima a suportar a ofensa, portanto, tem igualmente o domínio do facto, (embora não seja ela que tem o revólver para efectuar o disparo).
Efectivamente, o intraneus não praticou corporalmente o tipo objectivo de ilícito de abuso sexual de crianças, na pessoa da sua filha, mas também nos casos de homicídio apenas um dos comparticipantes é que efectua o disparo, mas não é por tal, que se exclui a comparticipação dos restantes no tipo de ilícito.
Pelo exposto, entendemos que o tipo de crime previsto no nº 2, do artigo 172º, do Código Penal vigente na altura da prática dos factos, não consubstancia um crime doutrinalmente classificado como de “mão própria”, no sentido de não admitir outras formas de participação para além da autoria imediata, bem como é susceptível de, nos termos do disposto no artigo 28º, nº 1, do Código Penal, comunicar a todos os comparticipantes as agravantes previstas no artigo 177º, do mesmo diploma legal.
Assim, improcede também nesta parte e, no todo, o recurso interposto pelo Ministério Público

Quanto aos recursos interpostos pelos arguidos A e B, começando pela impugnação da matéria de facto constante dos pontos 2 a 15, dos factos provados.
Começam os arguidos/recorrentes por impugnar a matéria de facto provada nos pontos 2 a 18, do acórdão proferido pelo tribunal “a quo”, por erro na apreciação da prova produzida em sede de audiência de julgamento, nomeadamente face aos depoimentos da assistente e das suas tias, as testemunhas N e M impunha-se decisão diversa relativamente a estes pontos 2 a 18, passando os factos integradores destes pontos para os factos não provados por dúvidas sobre os mesmos e aplicação do princípio “in dúbio pro Reo” e, em consequência deveriam os arguidos ser absolvidos da prática do crime de abuso sexual de crianças.
Portanto, erro de julgamento e não erro-vício da sentença previsto no nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal.
A base desta parte do recurso relativo à matéria de facto é a incorrecta e deficiente apreciação da prova, declarações da assistente e testemunhal, produzida na audiência de julgamento, pelo tribunal recorrido, porque valorizou as declarações da assistente e os depoimentos destas testemunhas e, pelas contradições existentes nas declarações e nos depoimentos, valoradas através das regras da experiência comum, as mesmas não mereciam tal credibilidade e, na perspectiva dos arguidos, existiria um erro nesta apreciação e os factos constantes dos pontos 2 a 18 dos factos provados do acórdão, não deveriam ter resultado como provados nos termos em que o foram e, deveriam passar a integrar os factos não provados e, os arguidos por tal, serem absolvidos do crime de abuso sexual de crianças, previsto e punido pelo artigo 172º, nº 1 e nº 2, e, 177º, nº 1, alínea a), do Código Penal.
Assim, cabe a este tribunal “ad quem” proceder não só à audição das passagens transcritas na motivação do recurso, como também à audição de todas as outras que sejam relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa, conforme disposto no artigo 412º, nº 6, do Código de Processo Penal.
Do mesmo modo, não está afastada a possibilidade de nos socorrermos do princípio da livre convicção na apreciação/valoração das provas.
Perante o que vem alegado no recurso, e após audição integral dos suportes/registos técnicos relativos à prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, relativos ao NUIPC 351/08.6TAPTG, concluímos que a nossa convicção acerca dos factos sob julgamento não diverge daquela que o tribunal a quo alcançou por maioria e, exprimiu no acórdão recorrido.
Há que concretizar, após a audição de toda a prova produzida em audiência de julgamento e, como resulta bem claro do texto do acórdão recorrido, o tribunal “a quo”, não teve quaisquer dúvidas quanto aos factos que considerou provados, nomeadamente, que em data não concretamente apurada, mas seguramente após Março de 2002, o arguido A iniciou relacionamento amoroso com a arguida B, mãe de C, nascida 12 de Maio de 1990, em data não concretamente apurada do referido ano, no período do Verão, a arguida B pediu à filha C para dormir com ela num quarto existente no andar superior do prédio onde funcionava o estabelecimento comercial, vulgo “Café”, que a arguida explorava na Aldeia da Mata, Crato – andar ao qual tinha acesso -, dizendo-lhe para estar à vontade que não se encontrava ali mais ninguém.
Quando C já se encontrava deitada, o arguido A introduziu-se na cama, deitou-se junto dela, e começou a acariciá-la, dizendo que ia “brincar” com ela, que era uma pessoa de confiança e por isso lhe ia tirar a virgindade porque já tinha doze anos, dizia-lhe também “se tu deixares acontecer, dou-te o que quiseres e podes ir para onde quiseres”, depois começou a beijar a C, a mexer-lhe nos seios, retirando-lhe de seguida o pijama e as cuecas, metendo-lhe os dedos na vagina, colocando-se, depois, completamente nu, sobre a C, conseguindo não obstante esta se esforçar por afastar o arguido e chorar, exclamando que não acreditava no que lhe estava a acontecer, introduzir o pénis erecto na vagina dela, onde veio a ejacular.
A tudo isto assistiu a arguida B, a qual constatando que C se debatia, procurando repelir A, tentava convence-la a ter relações de cópula com ele dizendo: “deixa fazer, é a primeira vez e é melhor ser com ele porque é uma pessoa de confiança” e “não sei porque é que não deixas, assim não vês como é bom ter sexo”, “és tão complicadinha porquê?”, chegando até a agarrá-la, por um braço, para facilitar o relacionamento sexual que o arguido A procurava e que conseguiu levar a cabo.
Quando conseguiu libertar-se, C saiu do quarto, lavou-se, nomeadamente do sangue que saía da vagina e refugiou-se num outro quarto da casa, onde se encontrava a irmã.
Agiu a arguida B livre e conscientemente no intuito de, por acordo prévio com o arguido A conduzir C para o falado quarto a fim de possibilitar que, aí, este mantivesse relações de cópula completa com C.
Também livre e conscientemente agiu o arguido A, no intuito de manter relações de cópula com C, sabendo, tal como a mãe, que ela era menor de doze anos de idade.
Sabiam que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Em consequência das descritas condutas, C passou por momentos de agitação, angústia e instabilidade emocional, com perda de confiança em si própria e nos outros, sentiu-se envergonhada e constrangida, sentimentos que a impediram de reagir e contar o sucedido, ficou magoada e ainda hoje sente vergonha.
Depois dum período em que não esteve matriculada em qualquer estabelecimento de ensino, ingressou num curso técnico-profissional, tendo repetido as equivalências ao 7º, 8º e 9º ano de escolaridade, trabalhando, a par disso, como ajudante de cabeleireira.
Os arguidos sabiam que as suas condutas eram adequadas a causarem vergonha, angústia, mal-estar físico, psicológico e emocional na assistente, como efectivamente causaram, sabiam e conheciam o significado e alcance dos seus actos, nomeadamente a contrariedade daqueles à moral social e à ordem jurídica, bem como a aptidão dos mesmos para provocar os sobreditos estados/sentimentos.
Foi assim sólida a convicção do tribunal que formou a maioria e, não o assaltou a dúvida quanto a estes factos constantes dos pontos 1 a 18 e, portanto, não se pode falar em violação do “in dúbio pro Reo”, conforme resulta da fundamentação da decisão de facto constante do acórdão recorrido.
Também nós, que estamos privados da imediação (importante para formular perguntas que como julgador tivéssemos por convenientes ou fundamentais para esclarecer um qualquer pormenor, para captar pormenores de expressão, de olhar, de maneira de estar, e outros que ajudam a credibilizar ou não determinadas declarações ou um determinado depoimento), procedendo à audição integral da prova produzida na audiência de julgamento, tal como o tribunal “a quo”, ficamos seguros dos factos dados por provados nos pontos 1 a 18 do acórdão recorrido.
Aliás, o acórdão recorrido, ao nível da fundamentação da decisão fáctica, deixa transparecer, por forma conseguida, os motivos da decisão que tomou, que nós, tribunal de recurso, privados da oralidade e da imediação e limitados ao constante dos autos, mas após audição integral dos depoimentos das testemunhas relevantes para os factos sindicados, subscrevemos na íntegra.
Ou seja da audição das declarações da assistente C e dos depoimentos das testemunhas N e M, ficamos sem qualquer dúvida sobre os arguidos de comum acordo e em obediência a um plano previamente delineado, obrigarem a assistente, filha da arguida B e com 12 anos de idade, a manter relações de cópula com o arguido A.
As declarações da assistente são fortes e coerentes pese ligeiras imprecisões, facilmente explicáveis e compreensíveis, pelo período de tempo entretanto decorrido e, pela natureza dos factos, em que as vítimas se esforçam para os esquecer da forma mais rápida se possível, contudo tais imprecisões não são de molde a de alguma forma afectar a globalidade dos factos relatados.
As testemunhas inquiridas sobre estes factos, são unânimes e coerentes sobre os mesmos factos, embora apenas tenham conhecimento indirecto dos mesmos, mas que ajudam a credibilizar as declarações da assistente.
Ou seja, procedendo a ponderação e convicção autónomas, e autonomamente formuladas nesta instância de recurso e, sem embargo dos inultrapassáveis limites de apreciação nesta mesma instância, ditados pela natureza (de remédio), pelo momento de apreciação (de segunda linha e em suporte estático, não sendo caso de renovação de provas), e pelos termos, modelo e modo de impugnação inerentes ao recurso em análise, constatamos, sem dificuldade, que a prova produzida em audiência impõe uma decisão inteiramente conforme com a que foi tomada pelo tribunal “a quo”.
Acresce, e salvo o devido respeito, que os recorrentes, na motivação do recurso, fazem uma apreciação parcelar e selectiva da prova produzida na audiência de discussão e julgamento, descontextualizando-a e não a relacionando e valorando naquilo que é essencial, mas sim naquilo que lhes convém.
Dúvidas, têm os recorrentes, que mais não pretendem que contrapor as suas próprias convicções e as suas versões sobre os factos à convicção que o tribunal de 1ª instância formou sobre os mesmos factos, com base na prova produzida e livremente apreciada segundo as regras da lógica, da razão e da experiência, que se mostram devidamente respeitadas.
Assim, e ao contrário do que invocam os recorrentes, não ocorre in casu qualquer erro na apreciação da prova, nos termos do disposto no artigo 412º, nº 3, 4 e, 6, do Código de Processo Penal.
Por outro lado, dos vícios referidos no artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal, analisado o texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, nenhum dos mesmos vícios se vislumbra, existir.
Pelo exposto, improcede nesta parte, o recurso interposto pelos arguidos A e B.

Da impugnação da matéria de facto e de direito, relativamente à condenação da arguida, pela prática de um crime específico impróprio e da comunicabilidade da qualificativa agravante ao arguido, face a tudo o supra exposto relativamente ao recurso também interposto pelo Ministério Público, com os mesmos fundamentos, relativamente aos crimes específicos impróprios, crimes de mão própria e, âmbito de aplicação do artigo 28º, nº 1, do Código Penal, damos aqui por integralmente tudo o quanto o supra expusemos e, nestas circunstâncias, também nesta parte e com os fundamentos constantes supra, improcede o recurso interposto pelos arguidos A Silvino Monteiro Lucas e B.

Relativamente à deduzida impugnação das penas aplicadas e da sua suspensão, resulta a tal respeito do acórdão recorrido:
“Segundo a previsão do art. 40º, do Código Penal, a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração social do agente (nº 1), não podendo a pena em caso algum ultrapassar a medida da culpa (cfr. nº 2).
A função primordial da pena consiste na protecção de bens jurídicos, ou seja, na prevenção de comportamentos que ponham em causa os bens jurídicos, sem prejuízo da prevenção especial positiva e, sempre, com o limite imposto pelo princípio da culpa – nulla poena sine culpa.
Os dois termos do binómio, com auxílio do qual há-de ser construído o modelo de determinação concreta da pena, são, assim, a culpa e a prevenção.
Escreve a este propósito Jorge de Figueiredo Dias, que “a exigência legal de que a medida da pena seja encontrada pelo juiz em função da culpa e da prevenção é absolutamente compreensível e justificável. Através do requisito de que sejam levadas em conta as exigências de prevenção, dá-se lugar à necessidade comunitária da punição do caso concreto e, consequentemente, à realização in casu das finalidades da pena. Através do requisito de que seja tomada em consideração a culpa do agente, dá-se tradução à exigência de que a vertente pessoal do crime – ligada ao mandamento incondicional de respeito pela eminente dignidade da pessoa do agente – limita de forma inultrapassável as exigências de prevenção”.
A pena adequada à culpabilidade do agente deve corresponder à sanção que ele merece, isto é, deve corresponder à gravidade do crime. Só assim se consegue a finalidade politico-social de restabelecimento da paz jurídica perturbada pelo crime e o fortalecimento da consciência jurídica da comunidade.
Conforme decisão do Supremo Tribunal de Justiça de 1 de Março de 2000, “a culpa, salvaguarda da dignidade humana do agente, não sendo o fundamento último da pena, define, em concreto, os seus limite mínimo e máximo absolutamente intransponível, por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que se façam sentir. A prevenção especial positiva, porém, subordinada que está à finalidade da protecção dos bens jurídicos, já não tem virtualidade para determinar o limite mínimo, este logicamente não pode ser outro que não o mínimo da pena que, em concreto, ainda realiza, eficazmente, aquela protecção”.
No que tange às exigências de prevenção geral de integração, e tendo em consideração que a prevenção geral positiva é a finalidade primordial da pena, e que esta nunca pode ultrapassar a medida da culpa, então “(…) a moldura da pena legal aplicável ao caso concreto (moldura de prevenção) há-de definir-se entre o mínimo imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias e o máximo que a culpa do agente consente; entre tais limites, encontra-se o espaço possível de resposta às necessidades da sua reintegração social”.
A determinação da medida da pena é feita segundo as regras estabelecidas no art. 71º, do Código Penal, devendo o juiz atender a todas as circunstâncias, que não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o agente, designadamente:
- O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
- A intensidade do dolo ou da negligência;
- As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
- A conduta anterior e posterior aos factos.
Ainda nos termos do art. 29º, e porque os arguidos agiram em co-autoria, urge atentar na regra ali contida, nos termos da qual, “Cada comparticipante é punido segundo a sua culpa, independentemente da punição ou do grau de culpa dos outros comparticipantes”.
O crime de abuso sexual de crianças previsto no nº 2, do art. 172º, agravado pela al. a), do nº 1, do art. 177º, todos do Código Penal, é punido com pena de 4 anos a 13 anos e 4 meses de prisão.
No caso concreto, cabe ter em atenção as seguintes circunstâncias:
a) O grau de ilicitude muito elevado, expresso nas circunstâncias que rodearam a acção, a natureza da agressão e o modo como esta foi concretizada;
b) O grau de culpa muito elevado - os arguidos agiram com dolo, no seu patamar mais elevado (dolo directo) - destacando-se a particular energia criminosa do arguido Silvino, evidenciada pela diversidade dos actos por si concretamente levados a cabo;
c) As exigências de prevenção geral são muito elevadas. Estamos, de facto, perante crimes graves, que repugnam à consciência colectiva, sendo que o aumento significativo deste tipo de crimes que se vem registando, ou pelo menos conhecendo, impõe que se desmotive os demais indivíduos da prática de condutas desta natureza, assim se repondo, também, a confiança da comunidade na eficácia do ordenamento jurídico;
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica: os arguidos são de condição social modesta, vivem maritalmente, e têm uma situação económica desafogada, fruto, essencialmente, da actividade agro-pecuária levada a cabo pelo arguido A, que é também proprietário duma herdade no Brasil, Estado da Rondonia;
e) A conduta anterior aos factos: os arguidos são primodelinquentes;
f) A conduta posterior aos factos: passaram mais de nove anos e há mais de cinco anos que agressores e vítima, hoje já com vinte e dois anos de idade, não têm qualquer relacionamento entre si.
Sopesando as circunstâncias indicadas, e norteados pelos princípios atrás enunciados, entende-se como justa a equilibrada, a condenação do arguido A na pena de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão, e a condenação da arguida B, na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão.

Os critérios, que devem presidir à quantificação da pena concreta, são os estabelecidos pelo artigo 71º do Código Penal, o qual, sob a epígrafe «Determinação da medida da pena», estatui:
1 – A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos pela lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
2 – Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do arguido ou contra ele, considerando, nomeadamente:
a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) A intensidade do dolo ou da negligência;
c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
3 – Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena.
O nº 1 do artigo 40º do Código Penal estabelece como finalidade da aplicação de penas a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade e, o nº 2 do mesmo normativo prescreve que em caso algum a pena ultrapasse a medida da culpa.
O momento inicial, irrenunciável e decisivo da fundamentação da pena repousa numa ideia de prevenção geral, uma vez que ela (pena) só ganha justificação a partir da necessidade de protecção de bens jurídico-penais.
Por outro lado, há que ter presente que um dos princípios a que obedece o Código Penal é o princípio da culpa, segundo o qual não pode haver pena sem culpa, nem pena superior à medida da culpa.

Relevantes para avaliar da medida da pena necessária para satisfazer as exigências de culpa verificada no caso concreto são os factores elencados no citado artigo 71º, nº 2, do Código Penal e que, basicamente, têm a ver, quer com os factos praticados, quer com a personalidade do agente que os cometeu.
Aproveitando, o ensinamento do Professor Figueiredo Dias (Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Editorial Notícias, 1993, pág. 239), porque a culpa jurídico-penal é “censura dirigida ao agente em virtude da atitude desvaliosa documentada num certo facto e, assim, num concreto tipo-de-ilícito”, há que tomar em consideração todas as circunstâncias que caracterizam a gravidade da violação jurídica cometida (o dano, material ou moral, causado pela conduta e as suas consequência típicas, o grau de perigo criado nos casos de tentativa e de crimes de perigo, o modo de execução do facto, o grau de conhecimento e a intensidade da vontade nos crimes dolosos, a reparação do dano pelo agente, o comportamento da vítima, etc.) e a personalidade do agente (condições pessoais e situação económica, capacidade para se deixar influenciar pela pena (sensibilidade à pena), falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, e conduta anterior e posterior ao facto).
Postas estas considerações gerais, perante os pressupostos já enunciados, ao nível da ilicitude deparamo-nos com um muito relevante desvalor das acções traduzido no tipo de crime praticado e na forma como foi praticado, uma relação sexual de cópula, com uma menor de 12 anos de idade, filha da arguida e “enteada” do arguido.
Também a intensidade do dolo se mostra o mais elevada, desde logo porque se trata de dolo directo e nas circunstâncias acima referidas.
A circunstância de serem delinquentes primários e as condições pessoais dos arguidos, igualmente avaliadas na decisão recorrida, têm, manifestamente, diminuto valor atenuante em confronto com a já afirmada gravidade da culpa, gravidade do ilícito e, intensidade do dolo.
Logo, evidente se torna que todo o circunstancialismo em causa aponte para um limite mínimo ditado pela prevenção geral de integração muito acima do limite mínimo previsto na norma incriminadora, sob pena de insuficiente defesa do ordenamento jurídico. E, à luz da prevenção especial que no caso não pode deixar de ter conteúdo negativo de intimidação individual, temos também um quadro que aponta para a necessidade de uma pena muito acima do limite mínimo legalmente previsto, sendo certo que tal distanciamento do limite mínimo não pode nunca ultrapassar o limite da culpa.
Pelo exposto e considerando que no caso concreto, parece-nos patente que o Tribunal a quo no seu doseamento ponderou devidamente as circunstâncias apuradas e as aludidas finalidades das penas e que, se é certo que a prevenção geral impõe um muito relevante distanciamento do limite mínimo previsto na lei, este (distanciamento) como estabelecido no acórdão recorrido, à luz das exigências de prevenção especial, mostra-se plenamente justificado in casu face às concretas e enunciadas circunstâncias que conduziram à fixação na instância das penas de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão e, de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão, respectivamente, ao arguido A e B.
Nestes termos, entendemos que é de manter a medida das penas aplicadas aos arguidos, as quais não afrontam os princípios da necessidade, proibição de excesso ou proporcionalidade das penas – cfr. artigo 18º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa –, antes são adequadas e proporcionais à defesa do ordenamento jurídico e não ultrapassam a medida da culpa dos arguidos.
Face à medida das penas aplicadas aos arguidos despiciendo se torna qualquer análise sobre a invocada suspensão da execução de tais penas de prisão, nos termos do disposto no artigo 50º, do Código Penal.
Também, nesta parte improcede o recurso interposto pelos arguidos.

Por fim, relativamente, à nulidade do despacho que efectuou a alteração e agravação da medida de coacção a aplicada aos arguidos.
A ponderação a fazer para a aplicação de qualquer medida de coacção tem por base um juízo sobre os elementos que os autos então forneçam e que indiciem uma actuação do arguido que integre a prática de crime.
As medidas de coacção, limitando a liberdade processual e visando acautelar os fins do processo, através do seu regular desenvolvimento e da garantia de execução da decisão final condenatória, estão subordinadas ao princípio da legalidade.
Neste domínio, interessa o disposto no artigo 191º, nº 1, do Código de Processo Penal, de onde decorre que a liberdade das pessoas só pode ser limitada, total ou parcialmente em função de exigências processuais de natureza cautelar, pelas medidas de coacção e de garantia patrimonial previstas na lei.
A aplicação das medidas de coacção e de garantia patrimonial está condicionada aos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade, definidos no artigo 193º do Código de Processo Penal.
De onde resulta – na parte que aqui nos interessa – que as medidas de coacção a aplicar em concreto devem ser necessárias e adequadas às exigências cautelares que o caso requerer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas.
Nos termos do artigo 18º, da Constituição da República Portuguesa, a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, as leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo, nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais.
No caso concreto o tribunal a quo, fundamentou o despacho nestes termos:
“Nos termos do disposto no art. 375º, nº 4, do Código de Processo Penal, “Sempre que necessário, o tribunal procede ao reexame da situação do arguido, sujeitando-o às medidas do coacção admissíveis e adequadas às exigências cautelares que o caso requerer”.
Na pendência do presente processo e como decorre da análise dos autos, os arguidos ausentaram-se da sua residência, em Aldeia da Mata, para local desconhecido.
Durante o julgamento e na sequência das declarações prestadas pelos próprios arguidos, apurou-se que o arguido A é proprietário duma herdade no Brasil, no Estado da Rondonia, e que para ali se deslocaram e ali permaneceram durante período não inferior a quatro meses, na pendência deste processo, sendo certo que na data inicialmente aprazada para o julgamento não estiveram presentes e não foi possível apurar, então, onde se encontravam efectivamente, não tendo qualquer deles cumprido a obrigação decorrente da al. b), do nº 3, do art. 196º, do Código de Processo Penal, posto que foram sujeitos a Termo de Identidade de Residência.
Considerando a decisão ora proferida, bem como a pena a que foram respectivamente condenados, e dada a facilidade com que se podem deslocar para fora de Portugal, designadamente para o Brasil, existe o risco, sério, de os arguidos se ausentarem do nosso país, sem observarem as regras a que estão vinculados na sequência da medida de coacção a que foram oportunamente sujeitos.
Por isto, urge reforçar neste momento as medidas cautelares, de molde a impedir que os arguidos saiam do país e assim se eximam ao cumprimento da pena a que foram condenados, pelo que, a par da sujeição dos arguidos à medida de coacção Termo de Identidade e Residência – cfr. art. 196º do Código de Processo Penal – , determina-se que o arguidos aguardem os ulteriores termos processuais em liberdade, mas sem se poderem ausentar para o estrangeiro (cfr. art. 200º, nº 1, al. b), do Código de Processo Penal).
Consequentemente, determina-se que os arguidos entreguem os seus passaportes neste tribunal, no prazo máximo de 12H, à ordem do qual ficarão guardados até ao momento em que se julguem extintas as medidas de coacção a que foram sujeitos.
Comunique o teor desta decisão sobre a alteração da medida de coacção, e dada a sua natureza, ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, ao Ministério da Administração Interna e à Conservatória do Registo Civil de Portalegre”.
O legislador consagrou o princípio da presunção de inocência do arguido e o direito da liberdade individual, nos artigos 32º, nº 2, e 27º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, sem prejuízo de admitir a imposição de medidas de coacção, nomeadamente a prisão preventiva, quando existam fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos, conforme artigo 27º, nº 3, alínea b), da Constituição.
Assim, a proibição de permanência, de ausência e de contactos, sendo uma das medidas de coacção mais gravosas previstas na lei processual penal – porque colide com o direito constitucionalmente garantido da liberdade individual – está sujeita a controlo, designadamente quanto aos seus pressupostos.
Só deverá ser aplicada se e quando estiverem reunidos os pressupostos concretos enunciados na lei, uns específicos - artigo 200º, nº 1, do Código de Processo Penal e, outros de aplicação à generalidade das medidas de coacção - artigo 204º do mesmo diploma legal.
São pressupostos de carácter geral e de aplicação alternativa, nos termos desta última norma, a ocorrência de fuga ou perigo de fuga, a existência de perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova ou a verificação de perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e tranquilidade públicas.
Quanto aos pressupostos de carácter específico, previstos no artigo 200º, nº 1, e de aplicação cumulativa, a existência de indícios fortes da prática de um crime, de natureza dolosa e a punição deste com pena de prisão de máximo superior a três anos.
As medidas de coacção mais gravosas consentidas pela lei processual penal – proibição de permanência, de ausência e de contactos artigo 200º, obrigação de permanência na habitação - artigo 201º e, prisão preventiva - artigo 202º, só são aplicáveis se houver fortes indícios de prática de crime doloso. Dito de outra forma, as medidas coactivas que impliquem restrições da liberdade exigem a verificação de fortes indícios.
E assim deve ser porque não é admissível que se possa arriscar a imposição de medidas de coacção tão gravosas em relação a alguém que pode estar inocente ou sobre o qual não haja indícios seguros de que com toda a probabilidade venha a ser condenado pelo crime imputado.
O significado dos “indícios suficientes” tem no Código uma extensão precisa e incontornável – consideram-se tais os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança, nº 2, do artigo 283º, do Código de Processo Penal. Daqui se pode concluir que os “fortes indícios” terão que corresponder a uma probabilidade elevada de ao sujeito, por força deles, vir a ser aplicada uma pena.
Ou seja, os "fortes indícios" que permitem ao juiz a aplicação de medida de coacção de proibição de permanência, de ausência e de contactos, de obrigação de permanência na habitação ou de prisão preventiva, têm que ser capazes de lhe criar a convicção de que existe uma possibilidade séria de que em julgamento poderá ser imposta ao arguido uma pena ou uma medida segurança.
Há fortes indícios da prática de uma infracção quando se encontra comprovada a sua existência e ocorrem suficientes suspeitas da sua imputação ao arguido. Suspeitas graves, precisas e concordantes, a que correspondem indícios sólidos e inequívocos.
Regressemos ao processo e aos fundamentos do recurso em análise.
Olhando para os elementos probatórios recolhidos nos autos, nomeadamente que os arguidos se encontram por acórdão não transitado em julgado, condenados em penas superiores a 3 (três) anos de prisão e, que o arguido A, possui a qualquer título uma propriedade no Brasil, para onde se poderá facilmente deslocar, conjuntamente ou sem a arguida, justificadamente se afigura a necessidade de reapreciar as medidas de coacção a aplicar aos mesmos arguidos, no sentido de acautelar o cumprimento efectivo das penas de prisão a que se mostram condenados.
Perante estes elementos, afigura-se-nos evidente não ser possível que os arguidos continuem, apenas sujeitos à medida de coacção de termo de identidade e residência, quando objectivamente se encontra subjacente e fortemente indiciado o perigo da sua fuga para o Brasil.
Assim, o requisito a que alude a alínea a), do artigo 204º, do Código de Processo Penal, que se traduz no perigo de fuga que o recorrente também contesta, contudo tal requisito encontra-se fortemente indiciado nos autos.
Logo o revelam os períodos de tempo passado pelos arguidos no Brasil e a inexistência de actividade profissional regular dos mesmos em território nacional, que determine a obrigatoriedade da sua permanência para assegurar a subsistência.
São todas estas circunstâncias que potenciam que os arguidos se furtem à acção da justiça e que legitimam a afirmação de que não será legítimo esperar que os arguidos aguardem serenamente o decurso de um processo quando paira no seu espírito a ameaça de cumprimento de uma elevada pena de prisão.
Vale o que se deixa exposto por dizer que fundado é o perigo de fuga e elevadas e intensas as exigências que tal requisito visa acautelar, de presença dos arguidos no decurso do processo e de execução de uma decisão final.
A existência de perigo de fuga é efectivamente real, pelas condições de vida dos arguidos em confronto com as consequências penais previsíveis do crime imputado.
Em face do que se deixa expendido, resulta que a medida de coacção de proibição de se ausentarem para o estrangeiro aplicada aos arguidos se mostra necessária, adequada e proporcional e, as finalidades que pela mesma se visam acautelar não se alcançam através da aplicação de qualquer outra medida de coacção não privativa de liberdade, nomeadamente o prestado termo de identidade e residência.
Do exposto resulta que a medida de coacção aplicada aos arguidos se mostra necessária, adequada e proporcional, não ocorrendo qualquer violação dos preceitos legais invocados.
Relativamente à falta de audição dos arguidos, desde logo tal não resulta dos autos, pois a alteração da medida de coacção, foi produzida após a realização da audiência de julgamento, momento do processo penal onde os arguidos usam ou poderão usar da palavra sempre que o entendam por conveniente, o que foi efectivamente exercido pelos arguidos, dando-se por isso integral cumprimento ao disposto no artigo 61º, nº b), do Código de Processo Penal, a que acresce, que analisada a decisão recorrida não se verifica, qualquer insuficiência de fundamentação, encontrando-se a mesma correcta, adequada, suficiente e, devidamente fundamentada de forma a qualquer destinatário compreender na sua integralidade o sentido do pronunciamento e o seu concreto fundamento jurídico, não verificando ao invocada nulidade, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 97º e 120º, do Código de Processo Penal e, 205º, da Constituição da República Portuguesa.
E sem que se vislumbre a violação de algum outro preceito legal, nomeadamente os artigos 97º, nº 4 e, nº5, 192º, nº 2, 193º, nº 1 e, 204º, do Código de Processo Penal e, 27º e, 32º, da Constituição da República Portuguesa, a medida de coacção imposta – proibição ausência para o estrangeiro – reputa-se como a única concretamente adequada e proporcional às exigências processuais de natureza cautelar que, relativamente aos recorrentes, os autos requerem.
Nestes termos improcede, portanto, a pretensão constante da motivação dos recursos interpostos pelos arguidos Silvino Monteiro Lucas e Maria de Fátima Sernache Caetano, confirmando-se consequentemente na íntegra o acórdão recorrido.

Em vista do decaimento total nos recursos interpostos pelos arguidos, ao abrigo do disposto nos artigos 513º, nº 1 e 514º, nº 1, do Código de Processo Penal, 8º, nº 5, com referência à Tabela III anexa, do Regulamento das Custas Processuais, impõe-se a condenação de cada um dos recorrentes nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) unidades de conta, por cada um dos recursos interpostos, sem prejuízo do eventual benefício de apoio judiciário de que gozem.



III - DISPOSITIVO

Face ao exposto, acordam os juízes da 1ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:

- Julgar totalmente improcedentes os recursos interpostos pelo Ministério Público e pelos arguidos A e B, confirmando-se na íntegra o acórdão recorrido.

Custas por cada um dos recorrentes (com óbvia excepção do Ministério Público) e, por cada um dos recursos interpostos, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) unidades de conta, sem prejuízo do eventual benefício de apoio judiciário de que gozem.


Certifica-se, para os efeitos do disposto no artigo 94º, nº 2, do Código do Processo Penal, que o presente acórdão foi pelo relator elaborado em processador de texto informático, tendo sido integralmente revisto.

Évora, 13-11-2012


Fernando Paiva Gomes M. Pina
Renato Amorim Damas Barroso