Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
21/06.0GBABF.E2
Relator: SÉRGIO CORVACHO
Descritores: ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
IN DUBIO PRO REO
MEDIDA DA PENA
Data do Acordão: 12/20/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO EM PARTE
Sumário: 1. Ao contrário do que muitas vezes se pretende fazer crer, não é a mera existência de declarações ou depoimentos contraditórios entre si sobre determinado facto, desfavorável ao arguido, que impõe ao julgador o dever de julgar tal facto não provado, em homenagem ao princípio “in dubio pro reo”. O que Tribunal tem que fazer, nessas circunstâncias, é proceder ao exame crítico da prova, separando os elementos que lhe merecem credibilidade daqueles que não são, em seu juízo, dignos dela, formando a sua convicção probatória em função do resultado desse exame.

2. O julgador só deve fazer apelo ao princípio «in dubio pro reo» quando, após o exame crítico da prova, prevaleça uma dúvida razoável e insanável sobre se o facto probando ocorreu ou não, devendo entender-se que tal dúvida se justifica, sempre que permaneça em aberto uma hipótese factual alternativa à probanda, que não seja repelida pelos critérios gerais de apreciação do material probatório, nomeadamente, os dados da experiência comum e as regras da lógica geralmente aceite.

3. Embora o recorrente não tenha questionado especificadamente a fixação da medida da sanção, sequer a título subsidiário, a sua eventual alteração em benefício do condenado sempre deverá ser considerada implicitamente englobada na pretensão recursiva, orientada para a absolvição do arguido, já que quem pede o «mais» (absolvição), não deixa de pretender o «menos» (redução da medida da pena). A isto acresce que, por força do princípio «jus novit curia», o Tribunal não está limitado, em matéria de interpretação e aplicação das normas jurídicas às alegações dos sujeitos processuais.
Decisão Texto Integral: ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NA 1ª SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

I. Relatório

No Processo Comum nº 21/06.0GBABF, que correu termos no 1º Juízo do Tribunal Judicial de Albufeira, por acórdão do Tribunal Colectivo proferido em 16/3/11, foi decidido:

a) Absolver o arguido JS da acusação contra ele deduzida relativamente a Dezembro de 2005, por via de aplicação do princípio in dubio pro reo;

b) Condenar o arguido JS por autoria material de um crime doloso consumado de abuso sexual de criança, previsto e punido pelo artigo 172º, nº 1, do Código Penal, na redacção anterior à publicação da Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, na pena de cinco anos de prisão, pena esta cuja execução é declarada suspensa, nos termos do artigo 50º do Código Penal;

c) Condenar o demandado JS a pagar à demandante SK a quantia de vinte e cinco mil euros, a título de indemnização por danos não patrimoniais;

Com base nos seguintes factos, que então se deram como provados:

1p. Durante alguns anos, o arguido foi vizinho da menor SK, nascida a 13 de Fevereiro de 1999, no ‘Condomínio ...’, sito em ....

2p. Atentas as aludidas relações de vizinhança, e o facto de ter o arguido um filho menor, colega e amigo de escola da menor S, esta frequentou algumas vezes a casa do arguido.

3p. No dia 2 de Janeiro de 2006, a hora não concretamente apurada, mas no período da tarde, e aproveitando que a menor S se encontrava sentada sozinha com ele num sofá existente na sala de estar da sua casa, o arguido pegou-lhe numa das mãos e colocou-a no seu pénis, coberto pelas calças, para que a menor o acariciasse.

4p. O arguido quis agir conforme provado para satisfazer os seus instintos sexuais, apesar de saber que a menor S tinha apenas seis anos de idade, e apesar de saber que atentava contra o desenvolvimento sexual da criança, visto que a sua idade não lhe permitia avaliar o acto sexual.

5p. O arguido agiu de modo livre, deliberado e consciente, bem sabendo a sua conduta punida por lei penal.

6p. O arguido é isento de passado criminal, é pai de família e vive da sua pensão de reforma.

7p. A menor era afável, educada, carinhosa e amiga dos animais, e tem passado a mostrar-se agressiva e mais reservada, evitando ir para o colo dos seus familiares mais próximos.

8p. A menor tem, desde os factos, sido submetida a tratamento psicológico, sendo certo que a experiência por que passou condiciona e condicionará o seu desenvolvimento emocional e psíquico.

9p. A menor tem mostrado, por vezes, receio de que os seus pais venham a morrer.

O mesmo acórdão julgou, com interesse para a decisão da causa, não provados os seguintes factos:

1NP. Que, em dia e hora não concretamente apurados de Dezembro de 2005, se encontrasse a menor SK sentada num sofá existente na sala de estar da casa do arguido, e que a dada altura o arguido se tenha sentado ao lado da menor.
2NP. Que de seguida, aproveitando a presença da menor SK e o facto de estar sozinho com ela na sala, o arguido lhe tenha pegado numa das mãos e a tenha colocado no seu pénis, coberto pelas calças, para que a menor o acariciasse.

3NP. Que, quando do provado em 3p, a menor S se encontrasse a brincar com um gatinho, e que o arguido tivesse desapertado o cinto das calças que vestia, abrindo o fecho das calças e exibindo o seu pénis erecto.

4NP. Que a menor tenha vindo a evidenciar sinais de pânico e tenha passado a evitar a comunicação com as outras pessoas, sobretudo as do sexo masculino.

Do acórdão proferido o arguido e demandado JS veio interpor recurso devidamente motivado, formulando as seguintes conclusões:

1° Vinha o Arguido, ora Recorrente, doutamente acusado de factualidade indiciariamente ocorrida em Dezembro de 2005, e em 03 de Janeiro de 2006, o que não resultou provado, conforme resulta claro do douto Acórdão de Fls, e , relativamente ao dia 02 de Janeiro de 2006, comprovou documentalmente que não poderia ter praticado a factualidade por que veio, novamente, a ser condenado, quando se impunha a absolvição, pelo menos, em obediência ao princípio "in dubio pro reo ".

2º Por não se ter provado a factualidade doutamente imputada relativamente a Dezembro de 2005, foi o ora Recorrente, bem, absolvido, e deveria ter sido igualmente absolvido da factualidade relativa a, também, 02 de Janeiro de 2006, por ser impossível que, estando no Alentejo, praticasse factos em Albufeira, nesse mesmo dia 02 de Janeiro, o que se mostra documentalmente comprovado nos autos, e que, necessariamente, determina a absolvição.

3º Com a apresentação do Recurso que, merecendo provimento, determinou a remessa dos autos à 1ª Instância, o Arguido apresentou prova da sua inocência, e estando os respectivos Documentos nos autos, não poderiam ter sido ignorados, havendo que dar por não provada qualquer factualidade em 02 de Janeiro, data em que o Recorrente se encontrava ausente de Albufeira.

4º Ao condenar o ora Recorrente, por factos relativos a data em que está comprovada a impossibilidade de ter ocorrido, por se encontrar o Arguido no Alentejo, decidiu o douto Tribunal "a quo" sem matéria de facto, o que constitui vício determinante do reenvio do Processo.

5° O Arguido presume-se inocente, a ele aproveitam as dúvidas, e, mesmo não tendo que comprovar a sua inocência, apresentou Documentação, nos autos, que impedem que o douto Tribunal considere que, quando o Arguido estava no Alentejo, praticou factos em Albufeira, só a absolvição se justificando.

6° Em Processo penal, os Arguidos presumem-se inocentes, não tendo que comprovar a sua presumida inocência, pelo que, nada tendo resultado provado relativamente às datas compreendidas na douta Acusação, ou a 02 de Janeiro de 2006 impunha-se a absolvição, o que agora se espera, merecendo o Recurso integral provimento.

7° Verificando-se os vícios do artigo 4º nº 2 do Código de Processo penal, deverá determinar-se o reenvio do Processo, merecendo provimento o presente Recurso, caso se não opte pela imediata revogação do douto Acórdão, com a consequente substituição por outro que absolva o Recorrente.

8° Sendo possível a renovação da prova, deverá esta ter lugar, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 430° do Código de Processo Penal, sendo inquiridas as Testemunhas indicadas supra.

9° Em face da completa ausência de prova relativamente à matéria concretamente apurada, a não absolvição do ora Recorrente constitui grave violação do constitucional princípio "in dubio pro reo ".

10º O cumprimento do disposto no artigo 358° do C. P. P. não dispensa o Tribunal "a quo" de considerar a documentação, entretanto, chegada aos autos, comprovativa da inocência do ora Recorrente.
11º Resulta evidente que, estando o ora Recorrente, comprovadamente, ausente, no Alentejo, jamais poderia ter praticado a factualidade por que veio, novamente, a ser condenado, impondo-se a revogação do douto Acórdão ora em crise.

12° Sabendo-se que, em Processo Penal, os Arguidos se presumem inocentes, não tendo que produzir prova da sua presumida inocência, sabe-se, nos autos, e está documentalmente comprovado, que o Arguido, no dia 02 de Janeiro, não praticou a factualidade por que vem condenado, pelo que é manifesta a procedência do presente Recurso, que merece integral provimento, havendo que, consequentemente, revogar o douto Acórdão em crise, a substituir por outro que absolva o ora Recorrente.

14° O presente Recurso merece integral provimento, havendo que, consequentemente, revogar o douto Acórdão de Fls., a substituir por outro que absolva o ora Recorrente, caso não se opte pelo reenvio do Processo, sendo embora possível a renovação da prova, como requerido.

15° Violou o douto Tribunal "a quo" o disposto nos artigos 127° e 410º nº 2 do Código de Processo Penal e 70° e seguintes do Código Penal, pelo que, a não se decidir pelo reenvio do Processo, ou renovação da prova, nos termos do disposto nos artigos 426° e 430º do Código de Processo Penal, cabe revogação do douto Acórdão, com substituição por outro que absolva o ora Recorrente, assim merecendo o presente integral provimento.

Nestes termos e nos demais que Vªs Exªs doutamente suprirão, a não se determinar o reenvio do Processo, para repetição do Julgamento, por via da verificação dos pressupostos nos artigos 4100 e 4260 do Código de Processo Penal, do conhecimento oficioso, ou a requerida renovação da prova, com inquirição das Testemunhas indicadas, deverá o douto Acórdão ora recorrido ser revogado e substituído por outro que absolva o Arguido ora Recorrente, por manifesta falta de matéria para concluir diferentemente, assim se dando integral provimento ao presente Recurso.

O MP respondeu à motivação do recorrente, tendo formulado as seguintes conclusões:

1ª) A discrepância entre a data dos factos que constam na acusação e na decisão condenatória - não terem sido praticados num dia, mas logo no outro – está, agora, devidamente explicado na decisão.

2ª) Não se verifica qualquer vício dos previstos no artigo 410°, n.° 2 do C.P.P. que, de resto, têm de resultar do texto da própria decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.

3ª) O ‘novo’ acórdão procedeu ao exame crítico das provas a que alude o art. 374º, n.º 2 do CPP, exame esse realizado conforme resulta da respectiva análise e da redacção exaustiva dos meios de prova e da fundamentação de facto e de direito.

4ª) O Tribunal da Relação admite a renovação da prova quando deva conhecer de facto e de direito e se se verificarem os vícios referidos nas alíneas do n.º 2 do art.º 410.° do CPP e houver razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo n.º 1 do art.º 430.°.

5ª) In casu, o recorrente não cuidou de cumprir com este ónus de modo a habilitar o Tribunal da Relação a poder conhecer da decisão proferida sobre a matéria de facto.

6ª) Como a deficiência apontada emerge, desde logo, do texto da motivação de recurso, que é insusceptível de modificação, mostra-se inviável o convite à correcção ou aperfeiçoamento das conclusões, que mais não são do que um resumo das razões do pedido – artºs 412º n.º 1 e 417º, nºs 3 e 4 ambos do CPP.

7ª) Assim sendo, não conhecendo de facto a Relação, desde logo, inviável se mostra a pretendida renovação da prova.

8ª) Igualmente, não se vislumbra fundamento nem para o reenvio do processo, nem tão pouco para a aplicação do princípio “in dubio pro reo”.

9ª) Assim, somos de entendimento, que não se verifica qualquer dos vícios apontados pelo recorrente, devendo o acórdão do Tribunal “a quo” ser globalmente confirmado e, consequentemente, negado provimento ao presente recurso.

AF, constituída assistente nos autos, respondeu igualmente à motivação do recurso, pugnando pela respectiva improcedência, sem formular conclusões.

O recurso interposto foi admitido com subida imediata, nos próprios autos, e efeito suspensivo.

Pelo Juiz relator foi proferido despacho preliminar, que indeferiu o pedido de renovação de prova formulado pelo recorrente.

Foram colhidos os vistos legais e procedeu-se à conferência.

II. Fundamentação

Nos recursos penais, o «thema decidendum» é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente, as quais deixámos enunciadas supra.

A sindicância do acórdão recorrido, expressa pelo recorrente nas suas conclusões, versa exclusivamente sobre matéria de facto e tem como finalidade a reversão do juízo probatório afirmativo emitido pelo Tribunal «a quo» sobre os factos ocorridos em 2/1/06, cuja prática lhe é atribuída.

No entanto, alega o recorrente que o acórdão impugnado se encontra inquinado dos vícios previstos no art. 410º nº 2 do CPP.

O nº 2 do art. 410º do CPP dispõe:

Mesmo nos casos em que a lei restringir a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.

Segundo o Acórdão do STJ de 13/5/98 (CJ, Acs. do STJ, VI, tomo 2, pág. 199), a locução «decisão» inserida no texto da al. a) do nº do art. 410º do CPP, deve ser entendida como a decisão justa que ao caso deveria caber e não como a decisão concretamente proferida e objecto do recurso, sendo, portanto, com referência à primeira e não à segunda que deverá ajuizar-se da suficiência da matéria de facto provada.

Assim, e sintetizando, poderemos dizer que o referenciado vício de decisão verifica-se sempre o Tribunal deixe de emitir juízo probatório sobre um facto relevante para a justa decisão da causa.

A contradição na fundamentação verifica-se sempre que a motivação da decisão contenha asserções logicamente incompatíveis entre si, como seja julgar o mesmo facto simultaneamente provado e não provado ou julgar provados factos que mutuamente se excluam.

Já a contradição entre a fundamentação e a decisão tem lugar quando estas se encontrem em oposição lógica entre si, como seja no caso em que, depois de julgar não provados os factos alegados na acusação, o Tribunal condene o arguido pela prática do crime por que vinha acusado.

Finalmente, erro notório na apreciação da prova é aquele que é perceptível aos olhos de toda e qualquer pessoa, mesmo não dotada de conhecimentos específicos e que ocorre quando se torna evidente que a conclusão a extrair pelo julgador de determinado meio de prova ou conjunto de meios de prova não podia ser aquela que ele efectivamente extraiu.

Nesta conformidade, o vício a que nos referimos configura-se como uma verdadeira oposição lógica entre a prova e a decisão, não podendo ser confundido com a mera discordância do exame crítico da prova feito pelo julgador, no processo de formação da sua livre convicção.

Na verdade, o erro notório na apreciação da prova situa-se aquém da respectiva análise crítica, pois verifica-se quando a conclusão probatória formulada seja repelida pelo conteúdo da prova, em qualquer apreciação crítica plausível.

Qualquer dos vícios tipificados no nº 2 do art. 410º do CPP terá de ser inferido do próprio texto da sentença, por si ou conjugado com as regras de experiência comum, não podendo ser tomados em consideração elementos exteriores, nomeadamente, meios de prova cujo conteúdo não esteja de alguma forma reflectido no texto da decisão.

Percorrendo as conclusões do recorrente, facilmente se conclui que a crítica que ele dirige ao acórdão sob recurso não se identifica com qualquer das patologias acima descritas, pois aquilo contra o que o arguido se insurge não é mais do que o resultado da valoração da prova que esteve na base do juízo probatório afirmativo que recaiu sobre os factos constitutivos da sua responsabilidade criminal e civil.
Nesta conformidade, a totalidade da pretensão recursiva releva da impugnação alargada da matéria de facto, prevista no art. 412º nºs 3 e 4 do CPP, e será objecto de apreciação enquanto tal.

Tem vindo a constituir jurisprudência constante dos Tribunais da Relação a asserção segundo a qual o recurso sobre a matéria de facto não envolve para o Tribunal «ad quem» a realização de um novo julgamento, com a reanálise de todo o complexo de elementos probatórios produzidos, mas antes tem por finalidade o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento, que tenham afectado a decisão recorrida e que o recorrente tenha indicado, e, bem assim, das provas que, no entender deste, impusessem, e não apenas sugerissem ou possibilitassem, uma decisão de conteúdo diferente.

A isto acresce que, tendo sido indeferida, em sede de despacho preliminar, a renovação da prova peticionada pelo recorrente, a apreciação da pretensão recursiva será efectuada com base no mesmo acervo probatório, que foi sujeito à apreciação do Tribunal «a quo».

Para fundamentar o juízo probatório emitido, o Tribunal «a quo» expendeu (transcrição com diferente tipo de letra):

1 - Foi ouvido o arguido JS, e bem assim: a menor SK; uma vizinha dos pais desta, de nome CB; a Assistente AF; o pai da menor, CF; o psicólogo que acompanha a menor, NE; um tio da menor, EL; LF, que é amiga dos pais da menor; RF, colega da mãe da menor; o avô paterno desta, EF; SA, amiga do arguido; a mulher do arguido, LL; um primo desta, LE; e CV, que durante algum tempo serviu no preenchimento dos tempos livres na escola frequentada pela menor SK.

2 - O arguido nega que tenha posto as mãos da menor em contacto com o seu pénis, reconhecendo embora que ela e o filho do próprio arguido brincavam frequentemente na sua casa, designadamente nas datas referidas nos autos.

3 - a - A menor Sasha Fernandes declarou aquilo que veio a dar-se agora como provado.

b - Insistentemente perguntada, a menor S. explica que “não se lembra” se sentiu o pénis nu ou através das calças, e que “não se lembra” de ter visto o pénis do arguido.

c - Insistentemente perguntada, ainda, a menor esclarece que percebeu que estava a tocar no pénis do arguido, porque “sentiu”.

d - As perguntas à menor S foram formuladas com o necessário tacto, mas de modo suficientemente directo para não lhe deixar dúvidas sobre o perguntado, e sobre a necessidade de obter uma resposta.

e - A menor S foi prestando as suas declarações com esforço, mas sem se esquivar a responder, o que fez mediante o uso de uma fraseologia própria de quem já falou sobre os factos repetidas vezes.

f - Não obstante, a menor S forneceu uma versão não totalmente coincidente com a de sua mãe (AF) e a do seu psicólogo (NE), o que o Tribunal encara como a revelação de factos efectivamente ocorridos, na perspectiva de se entender que aconteceu, pelo menos, o que a menor veio dizer em juízo.

g - E foi este minus que o Tribunal entendeu não poder deixar de acolher como plenamente provado.
h - É certo que as conclusivas notas agora deixadas nesta fundamentação decorrem de análise, de reflexão, de ponderação de conjunto, enfim, de cuidadoso e escrupuloso trabalho de comparação e estudo vertido sobre todos os aspectos respeitantes aos factos e ao direito - mas entende-se que é de razão deixar já aqui explícita, ao tratar do declarado pela vítima, qual a convicção que o Tribunal, finalmente, desenhou no seu espírito sobre a factualidade em apreço.

i - Resta notar um detalhe da maior importância: a menor afirmou que nenhum dos factos aconteceu no dia em que revelou a sua mãe aquilo que sucedera, pelo contrário, o último episódio acontecera no dia anterior a essa revelação, e reinquirida sobre este ponto concreto, comenta que esteve na casa do arguido no dia seguinte à última vez em que aconteceu, e que, realmente, se decidiu a contar num dia em que nada de anormal se tinha passado.

4 - a - A testemunha CB veio dizer que a menor S entrava sempre em sua casa e que era muito alegre, no entanto deixou a certa altura de visitá-la, ignorando a testemunha a razão disso.

b - Revelou a testemunha que a mãe da menor “lhe contou o que se passara” e que viu a menor, em ocasião que não sabe precisar, circular no chão do automóvel, em vez de fazê-lo sentada no seu lugar.

5 - a - A Assistente AF descreveu os primeiros momentos da revelação, pela menor S de factos não de todo coincidentes com a narrativa de sua filha na sala de audiências, factos que localizou no próprio dia da sua denúncia à GNR (3 de Janeiro de 2006).

b - A menor, afirma, disse-lhe que tinha uma coisa muito má para contar, e que estava com medo de que a mãe não gostasse mais dela, terminando por dizer que “o J tinha posto a mão dela na pilinha dele”.

c - A Assistente começara por pensar que se tratava do filho do arguido, também chamado J, mas da idade da menor, equívoco que esta desfez imediatamente.

d - Explicou a Assistente que ambas as crianças - a menor S e o filho do arguido - frequentavam a mesma escola e que sua filha costumava ficar em casa do arguido ao fim da tarde, a aguardar que os pais chegassem e lá a fossem buscar, tendo até jantado na casa do arguido no dia em que veio a contar o que acontecera.

e - O contexto, disse a Assistente, envolvia brincadeiras de criança com o filho do arguido e com animais domésticos que havia na casa deste, um cão, um gato e um criceto (‘hamster’), pelo menos.

f - As coincidências entre a narrativa da Assistente e a da menor acabam aqui - e a menor ainda aludiu ao cão, ao gato e ao ‘hamster’ somente no contexto de ir brincar com eles - porque a Assistente refere que a menor lhe contou que o arguido a fez agarrar-lhe o pénis e a fez manipular-lhe o pénis no movimento próprio da masturbação, após o que ela, enojada, foi lavar as mãos.

g - Ao Tribunal disse a menor que o arguido, por mais do que uma vez, fizera o que ela narrou - e mutatis mutandis disse o mesmo a sua mãe.

h - A Assistente explica ainda as alterações observadas no comportamento da menor, mormente a irritabilidade.

6 - a - A testemunha CF, como já dito pai da menor S, esclarece que tomou conhecimento dos factos por narrativa da testemunha AF, confirmando as alterações de humor verificadas em sua filha.

b - Explicou a testemunha que, em face da narrativa de sua filha, corrigiu a sua maneira de falar, de modo que ela deixasse de dizer “pilinha” e passasse a referir-se a “pénis”.

c - Também esta testemunha relata que a menor S reproduziu os movimentos próprios da masturbação e exprimiu repulsa e necessidade de lavar as mãos.

d - Disse ainda que a menor como que desenvolveu uma atitude “anti-homem”, passando a ser mais distante para com o pai, o avô, o tio e, em geral, todas as figuras masculinas.
7 - a - Segue-se a testemunha NE, psicólogo que acompanha a menor com regularidade desde Janeiro de 2006, e que se pronuncia sobre dois aspectos fundamentais: a genuinidade do relato da menor e os sintomas que ela denuncia no seu comportamento.

b - No tocante à genuinidade do relato da menor, explica a testemunha que a narrativa que esta lhe faz não pode resultar de “fabulação” ou ser fruto da imaginação, desde logo pela minúcia do detalhe, próprio somente de quem, naquela idade, realmente viveu a situação, mas ainda por outras razões, das quais avulta a repugnância da menor em falar do assunto.

c - Dito doutro modo, a versão saída da imaginação constitui uma espécie de manifestação do ego, que se esforça por sobressair através da repetida exposição daquela em busca de crédito, em busca, dir-se-ia, de reconhecimento.

d - A versão dimanada da experiência vivida, pelo contrário, enferma do axe inerente ao trauma, cuja vítima quer atenuá-lo, se possível apagá-lo de todo em todo, esquecendo-o, afastando-o, sobretudo guardando sobre ele o silêncio mais pertinaz.

e -1. Esta testemunha, cumpre salientar, é qualificada desde logo pela sua preparação profissional, mas é idónea, sobretudo e muito particularmente, porque não se limitou a ter com a vítima um contacto de breves horas e a sacar daí - como já se tem visto noutros casos - as roncantes e definitivas conclusões que seriam somente de esperar duma longa e aturada observação.

2. Pelo contrário, a testemunha NE exerce a profissão de psicólogo, e vem acompanhando a menor desde Janeiro de 2006 até ao presente, com regularidade, com atenção ao detalhe e com elaboração e aprofundamento dos dados da sua observação - e é daí, somente daí, que vem a sua especial idoneidade.

3. Por que não acolher então, sem mais, aquilo que nos é trazido por esta testemunha?

f - A questão não é assim tão simples:

1. Em primeiro lugar, a delicadeza da matéria sub iudice implica um especial exercício de enquadramento técnico-jurídico na apreciação da prova, por forma a suplantar as dificuldades inerentes a situações como a dos autos, acobertadas pela reserva e segredo em que tipicamente se verificam - e esse exercício centra-se, acima de tudo, na criteriosa e cuidadosa comparação entre o dito pelo arguido e o dito pela vítima.

2. Em segundo lugar, o declarado por terceiras pessoas só pode assumir algum peso na apreciação dos factos por via da sua adequação espontânea, dir-se-ia natural, ao delinear da acção tal como ela se apresenta ao julgador.

3. Em terceiro lugar, nada pode substituir, aqui, as declarações da vítima, nada se lhes pode sobrepor, nada se lhes pode antepor - e o que se ouve de terceiros só pode ter a virtualidade de servir como que de suporte ao que é dito pela vítima, enriquecendo-o com elementos que lhe reforçam a verosimilhança, que lhe robustecem a lógica e que lhe preenchem as lacunas ou esclarecem as dúvidas.

g - Ou seja: obtidas as declarações da vítima, não é honestamente possível admitir a prova de factos para além delas, salvo pelo que respeita aos efeitos dos factos provados, sobretudo aos seus efeitos danosos no presente e no futuro, e o declarado por esta testemunha, tal como pelas demais, nada permitirá senão aprofundar a prova nesse particular aspecto, havendo somente que dizer, desde já, que o declarado pela menor não foi infirmado por quaisquer outras declarações, como visto até aqui, e como se verá claramente mais adiante.

h - Pelo que respeita aos sintomas que a vítima denuncia no seu comportamento, isto é, aos efeitos danosos causados pelos factos agora provados, refere a testemunha que o acontecido operou no traçado evolutivo da formação da personalidade da menor S um desvio que, podendo certamente beneficiar das compensações que se procura proporcionar-lhe, ainda assim constitui um desvio, e é por isso de encarar com apreensão, exigindo atento acompanhamento - já que a linha orientadora da personalidade do comum das pessoas sofre influências, sofre pressões, sofre vicissitudes, mas sem desvios, consolidando-se num percurso isento de anomalias graves, e sobretudo isento de violências como a que está patente nos autos.

i -1. Uma nota, no entanto, se deve salientar no afirmado por esta testemunha enquanto psicólogo, e é a sua avaliação do declarado pela vítima como sendo digno de crédito.

2. A testemunha refere-se, evidentemente, ao que a vítima lhe disse em privado, e isso já antes ficou explícito, mas importa sobremaneira acolher e acentuar, porque fundada em longa observação, a afirmação da testemunha de que esta vítima não mente - o que, aliás, confirma a impressão já abundantemente colhida pelo Tribunal.

8 - O tio da menor, a testemunha EL, refere que tinha com a sua sobrinha uma intimidade que se perdeu, designadamente porque a menor deixou de fazer, com seu tio, coisas que gostava de fazer, como subir a árvores ou ser projectada no ar, preferindo à data actual brincar com a namorada da testemunha.

9 - A testemunha LP, amiga da família, depôs igualmente sobre o que a menor mostrava ser antes e depois dos factos ora provados, sendo antes alegre, “muito adulta”, sem qualquer “reserva em carícias e ternuras”, o que deixou de acontecer, passando a menor a mostrar-se nervosa e a gritar com as pessoas.

10 - A testemunha RF, colega da mãe da menor, ao passo que refere que a sua colega se manifestou muito chorosa, deixa dito, igualmente, que a menor S passou “bruscamente” a mostrar-se instável e irritável, deixando de brincar com a testemunha como brincava dantes.

11 - A testemunha EF, avô da menor S, diz igualmente que sua neta mudou totalmente de atitude, tornando-se, ao que disse, “muito agressiva”, sobretudo com a irmã, e isto depois de acontecidos os factos.

12 - a - A testemunha LL, mulher do arguido, veio tentar demonstrar duas coisas: a primeira é que a cadência a que decorreu o dia em que foi apresentada a queixa, e que é o dia em que a menor contou a seus pais o que se passara, não é compatível com a ocorrência dos factos, por não ter havido tempo; a segunda é que a menor não mostrou, de modo espontâneo, comportamento compatível com os factos por ela denunciados.

b -1. Quanto à falta de tempo, dir-se-á que (1) a situação em causa - e tal como se provou - não demanda senão alguns minutos para ocorrer, e por isso, temporalmente, pode ser encaixada em qualquer sucessão de tarefas, independentemente da sua cadência, que (2) as tarefas enumeradas pela testemunha não foram planeadas, e por isso, por muito apertados que fossem os tempos de acção, o arguido jamais poderia ficar inibido pela brevidade destes tempos, porque não os previu, e que (3) a situação em causa sucedeu no dia anterior àquele em que a menor revelou os factos, conforme ela própria disse.

2. Esclareça-se que as tarefas enumeradas são, em suma, levar o arguido para casa seu filho, da idade da menor, e a própria menor, levar depois seu filho a tratamento duma dentada do aludido ‘hamster’, fazendo-se acompanhar da menor, e regressar a casa do arguido para jantar, que a testemunha proporcionou também à menor S.

c -1. Sobre a compatibilidade, ou falta de compatibilidade, do comportamento da menor com acontecimentos tão graves como os dos autos, importa dizer que a mudança de atitude dela depois de contar aos pais, o início e o acentuar do seu afastamento relativamente aos vizinhos (o arguido e sua família), a plena entrada da menor num contexto de aversão, tudo isto decorre do passo, que a menor se decidiu a ousar, de finalmente contar aos pais o que se passava.

2. Que a menor tivesse jantado em casa do arguido depois dos factos que lhe atribui pode ser difícil de explicar - a menor não soube dizer porquê - mas não é difícil de entender, sobretudo se se pensar que, atenta a sua tenra idade, e ainda que achasse muito estranho o que acontecera, o seu receio de que seus pais ficassem porventura aborrecidos com ela tenderia a sobrepor-se à sua vontade de dizer de pronto o que se passara.

13 - A testemunha LE, primo da mulher do arguido, esforçou-se por demonstrar o mesmo que sua prima, e por isso lhe cabem os comentários que àquela competem.

14 - A testemunha CV, monitora de tempos livres a cujos cuidados ficou a menor algum tempo, não veio dizer nada de relevante, somente reconhecendo que, no período a que são atribuídos no processo os episódios com o arguido - e só dessa referência pode servir-se a testemunha - a menor chegava ao convívio com os demais “algo retraída”, mas depois “descontraía”, pelo que nada observou, realmente, digno de nota.

15 - Finalmente, a testemunha SA disse que lhe aconteceu estar em casa do arguido também na companhia da menor S e que nunca notou nada de anormal.

16 - Foram considerados ainda, sobretudo em confronto com o dito pelas testemunhas, o relatório de entrevista psicológica de folhas 41, o relatório de avaliação psicológica de folhas 49, o relatório de exame pericial e fotografias de folhas 142, os certificados do registo criminal de folhas 146 e 238, e ainda o relatório de avaliação psicológica de folhas 175.

17 -a - Resta deixar consignado que a prova aceite pelo Tribunal se refere somente ao acontecido no dia 2 - não dia 3 - de Janeiro de 2006, data sobre a qual não podem restar dúvidas quanto ao acontecido e narrado pela vítima, e ainda que, no tocante a Dezembro de 2006, e conquanto a menor S tenha explicitamente dito que “aquilo aconteceu quatro ou cinco vezes”, faltaram pormenores, designadamente a descrição do que sucedeu nas vezes restantes, isto é, nas vezes anteriores a 2 de Janeiro de 2006.

b - Repare-se, com efeito, que os especiais condicionamentos da prova em processos desta natureza, se por um lado parecem levar a que nos contentemos com o mero confronto entre o dito pelo arguido e o dito pela vítima, já por outro lado pressupõem o mais elevado grau de exigência na apreciação deste confronto.

c - Por isso, e fazendo fé embora em que a menor tenha sido inteiramente verídica naquela sua afirmação, impõe-se ao Tribunal que, por ausência de detalhes conducentes a uma análise mais profunda, ceda à dúvida do que possa ter acontecido, e não dê os restantes factos como provados: in dubio pro reo.”

Como normalmente sucede quando está em causa a demonstração de factos integradores de crimes contra liberdade e autodeterminação sexuais, o depoimento da vítima assume, no caso presente, uma relevância essencial no processo de formação da convicção do Tribunal, o que implica uma redobrada exigência na sua apreciação crítica e que faz sentir com maior intensidade quando se trata de uma pessoa menor de idade, como também acontece «in casu».

No trecho do acórdão recorrido dedicado à fundamentação do juízo probatório e que acabámos de reproduzir, o Tribunal «a quo» procede a um exame escrupuloso da prova produzida, concentrado em primeira linha, como não podia deixar de ser, no depoimento testemunhal da menor S.

Em consequência dessa análise crítica, o Tribunal não hesitou em julgar não provados determinados pontos da factualidade alegada na acusação, por não terem sido confirmados de forma inequívoca pelo testemunho da menor, sem pôr em causa, todavia, a credibilidade fundamental deste.

Nesta ordem de ideias, os factos, que o acórdão recorrido julgou provados, correspondem àquele mínimo que aparece incontornavelmente sustentado pelo depoimento da menor ofendida cujo poder de convicção se funda também naqueles meios probatórios que permitem reforçar a sua credibilidade, designadamente as declarações da mãe da menor, constituída assistente nos autos, e o depoimento testemunhal do psicólogo que a tem acompanhado.

Por fim, a convicção formada pelo Tribunal «a quo» beneficia ainda do apoio coadjuvante da prova circunstancial emergente dos depoimentos de familiares e de outras pessoas próximas da menor que puderam dar conta das alterações registadas na atitude desta e no seu relacionamento com as demais pessoas.

O acórdão recorrido desvalorizou no processo de formação da sua livre convicção os depoimentos testemunhais que poderiam de alguma forma confortar as teses da defesa do recorrente, designadamente, os da mulher deste e de um primo dela.

As razões, que levaram o Tribunal «a quo» a não atribuir poder de convicção aos mencionados depoimentos, encontram-se expressas no trecho do acórdão impugnado e nada têm de irracional, arbitrário ou irrazoável, afigurando-se a nós inteiramente compatíveis com os critérios que devem presidir à apreciação da prova, mormente, a experiência comum e a lógica geralmente aceite.

Uma vez indeferida a produção de prova testemunhal, pretendida em sede de renovação da prova, a impugnação do juízo probatório afirmativo feita pelo recorrente assenta essencialmente na alegação de que, em 2/1/06, data em que, segundo foi dado como provado, ocorreram os factos constitutivos da responsabilidade criminal do arguido, este encontrava-se ausente da sua residência, para o Alentejo, em companhia da sua família, o que diz ter comprovado documentalmente.

Se bem entendemos a tese do recorrente, este estar-se-á referindo ao documento, com que ele fez acompanhar a motivação do recurso que interpôs do primeiro acórdão condenatório, que viria a merecer uma decisão de reenvio por parte desta Relação, e do qual juntou cópia com a motivação do recurso agora em apreço.

Em tese geral, os recursos ordinários (não assim os recursos extraordinários de revisão) consistem na reapreciação por uma entidade hierarquicamente superior de uma questão decidida por uma entidade hierarquicamente inferior, com base nos mesmos pressupostos que enquadraram a decisão questionada, não sendo, portanto, o momento processual próprio para alegar factos ou oferecer meios de prova que não tenham sido levados ao conhecimento da entidade «a quo», ressalvados os casos em que é admitida a renovação de prova (art. 430º do CPP), que não é aquilo que o recorrente pretende, pois trata-se da produção de um meio de prova «ex novo».

O nº 1 do art. 335º do CPP estatui que não são válidas as provas que não tenham sido produzidas ou examinadas em audiência.

Por seu turno, o nº 3 do art. 430º do CPP estipula que, em sede de recurso perante as Relações, a renovação da prova se realiza em audiência.

Da conjugação destas disposições legais pensamos poder inferir, com segurança, que a consideração de elementos de prova pelo Tribunal de recurso que não foram objecto de apreciação pelo Tribunal recorrido só é admissível em caso de renovação de prova, que o recorrente requereu e lhe foi denegada em despacho próprio.

Nesse sentido, o documento oferecido pelo arguido com a motivação recursiva não poderá ser considerado na apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria, por ele levada a efeito.

Contudo, caso assim se não entendesse, sempre poderia dizer-se que o documento em causa, pelo seu conteúdo, seria inócuo para a finalidade pretendida pelo recorrente, pois seria idóneo a demonstrar, quando muito que, no dia da ocorrência dos factos incriminados, o filho menor do arguido não compareceu na escola que frequenta.

Invoca o recorrente que o Tribunal «a quo», ao ter decidido como decidiu, em matéria de facto, violou o princípio «in dubio pro reo».

Tal princípio, como é sabido, constitui um afloramento, ao nível da apreciação da prova, do postulado constitucional da presunção de inocência, consagrado pelo art. 32º nº 2 da CRP.

A este propósito interessará dizer que, ao contrário do que muitas vezes se pretende fazer crer, não é a mera existência de declarações ou depoimentos contraditórios entre si sobre determinado facto, desfavorável ao arguido, que impõe ao julgador o dever de julgar tal facto não provado, em homenagem ao princípio cuja preterição se invocou.

O que Tribunal tem que fazer, nessas circunstâncias, é proceder ao exame crítico da prova, separando os elementos que lhe merecem credibilidade daqueles que não são, em seu juízo, dignos dela, formando a sua convicção probatória em função do resultado desse exame.

O julgador só deve fazer apelo ao princípio «in dubio pro reo» quando, após o exame crítico da prova, prevaleça uma dúvida razoável e insanável sobre se o facto probando ocorreu ou não, devendo entender-se que tal dúvida se justifica, sempre que permaneça em aberto uma hipótese factual alternativa à probanda, que não seja repelida pelos critérios gerais de apreciação do material probatório, nomeadamente, os dados da experiência comum e as regras da lógica geralmente aceite.

Em face da análise da prova efectuada na decisão recorrida e que o presente acórdão corroborou, inexiste, a nosso ver, espaço lógico para semelhante hipótese alternativa, pelo que não nos encontramos perante uma dúvida susceptível de justificar o funcionamento do princípio «in dubio pro reo».

Como tal, o Tribunal «a quo» não poderia ter deixado de decidir nos termos em que decidiu, julgando provados os factos constitutivos da responsabilidade criminal e civil do arguido e demandado.

Consequentemente, terá de soçobrar a impugnação da decisão sobre a matéria de facto deduzida pelo recorrente.

A motivação do recurso não envolveu a impugnação da parte jurídica da decisão, quer ao nível do enquadramento jurídico dos factos, quer no plano da escolha e determinação da medida da pena.

Não vislumbramos razões para oficiosamente pôr em causa o juízo de subsunção jurídica feito no acórdão recorrido da apurada conduta do arguido no tipo de crime de abuso sexual de criança p. e p., ao tempo dos factos incriminados, pelo art. 172º nº 1 do CP, na redacção anterior à reforma consagrada pela Lei nº 59/07 de 4/9, e, actualmente, pelo art. 171º nº 1 do CP, na versão introduzida por esse diploma, ao qual é cominada em ambos os regimes pena de 1 a 8 anos de prisão.

Mais problemática, porém, se nos afigura a decisão sob recurso, na parte respeitante à determinação da medida concreta da pena em que o arguido recorrente foi condenado pela prática do aludido crime.

Embora o recorrente não tenha, como já se aludiu, questionado especificadamente a fixação da medida da sanção, sequer a título subsidiário, a sua eventual alteração em benefício do condenado sempre deverá ser considerada implicitamente englobada na pretensão recursiva, orientada para a absolvição do arguido, já que quem pede o «mais» (absolvição), não deixa de pretender o «menos» (redução da medida da pena).

A isto acresce que, por força do princípio «jus novit curia», o Tribunal não está limitado, em matéria de interpretação e aplicação das normas jurídicas às alegações dos sujeitos processuais.

Nesta conformidade, afigura-se-nos que nada obsta a que este Tribunal da Relação possa sindicar o bem fundado da decisão da primeira instância em matéria de fixação da medida da pena, independentemente de impugnação expressa por parte do recorrente, desde sejam respeitados os limites absolutos impostos ao poder de cognição do Tribunal «ad quem», mormente, a proibição da «refformatio in pejus» (art. 409º do CPP).

O acórdão recorrido fundamentou a determinação da medida da pena em que o recorrente foi condenado, nos termos seguintes (transcrição cm diferente tipo de letra):

a - O arguido agiu com dolo directo, porque efectivamente quis cometer os factos que lhe são imputados, pois designadamente quis pegar na mão da menor e colocá-la sobre o seu pénis, para desse facto recolher prazer sexual.

b - Assim fazendo, o arguido estava consciente da gravidade da sua conduta, o que não o dissuadiu.

c - O arguido não tem antecedentes criminais e é pai de família, mas não assumiu a responsabilidade pelos seus actos, negando os factos que lhe são atribuídos, e nem sequer o fazendo no tempo, no modo e com a veemência próprias de quem, colhido na sua boa fé por um contexto de tamanha gravidade, faz absoluta questão de impor a sua inocência, no Tribunal e fora dele.

d - Que pugna, realmente, a favor do arguido? Nada, na verdade.

e - 1. O crime dos autos, para lá da repugnância que suscita, é de tão difícil reparação como um crime de homicídio, salvas sempre as devidas proporções.

2. No homicídio, com efeito, destrói-se uma vida causando a morte - no caso vertente, coloca-se em risco de destruição o todo de alguém que vive e que tem de suplantar, se isso vier a ser possível, toda a extensão do dano causado no processo de formação da sua personalidade.

3. Ou seja, a virtual irreparabilidade dos danos encontra-se muito próxima da actual (e total) irreparabilidade do dano no caso do homicídio.

f - O arguido, pai de família, mostrou que não reúne as condições necessárias para prevalecer-se do que há de nobre nesse estatuto - dando com isso, quem sabe, uma prova também de como é difícil, e de como é importante saber assumir essa responsabilidade, que é tão grande e tão olhada como se fosse uma coisa banal.

g - Que garantias oferece, pois, o arguido? Atraiçoada por ele a sua mesma condição de pai de família, saberá cair em si, terá forças para fazer a censura dos seus actos, atingindo plenamente a sua gravidade, deles fazendo íntima e completa abjuração?

h - Não tem o Tribunal motivos para negar ao arguido, atento o seu passado, um resquício de confiança em que saberá tomar as medidas que dissipem a sua presente imagem de pessoa perigosa.

i - Por outras palavras, e apesar da enorme preocupação decorrente de ter o arguido cometido um crime que dificulta um juízo favorável no tocante a prevenção especial, ainda assim se lhe concederá, in extremis, o benefício duma dúvida, residual é certo, mas suficiente para não o submeter de imediato a uma pena efectivamente privativa da liberdade.

j - Paradoxalmente, são as razões que acentuam algum pessimismo no tocante a prevenção especial que, por outro lado, atenuam as preocupações de prevenção geral, já que o arguido, homem marcado hoje em dia, dificilmente virá, ao que tudo indica, a ver-se de novo numa situação em que possa repetir factos de igual natureza.

l - Tudo considerado, pois, entende o Tribunal impor ao arguido JS a pena de cinco anos de prisão, pena esta cuja execução se declara suspensa nos termos do artigo 50º do Código Penal, por haver ainda razões para acreditar que a simples censura do facto e a ameaça da prisão preenchem adequadamente as finalidades da punição.

Os critérios, que devem presidir à quantificação da pena concreta, são os estabelecidos pelo art. 71º do CP, o qual, sob a epígrafe «Determinação da medida da pena», estatui:

1 – A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos pela lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.

2 – Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do arguido ou contra ele, considerando, nomeadamente:

a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) A intensidade do dolo ou da negligência;
c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.

3 – Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena.
O nº 1 do art. 40º do CP estabelece como finalidade da aplicação de penas a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade e o nº 2 do mesmo normativo prescreve que em caso algum a pena ultrapasse a medida da culpa.

Se é verdade que os crimes sexuais e, em particular, aqueles que são praticados em detrimento de pessoas menores de idade suscitam fortíssimas exigências de prevenção geral, a determinação da medida da sanção terá de levar igualmente em consideração as necessidades de prevenção especial e o grau de culpa do arguido.

Ora, a equação de tais parâmetros, no procedimento de determinação da medida da pena em que o recorrente foi condenado levado a efeito no acórdão impugnado, não terá sido inteiramente feliz, à luz dos «tópicos» do nº 2 do art. 71º do CP.

Assim, no que se refere ao grau de ilicitude do facto, importa ter presente que este será sempre função da maior ou menos intensidade da violação do bem jurídico protegido, que, no caso, é a autodeterminação sexual da pessoa ofendida.

Sem pretender de modo algum minimizar o carácter repugnante e reprovável da conduta do arguido, haverá que reconhecer, em face dos factos concretamente provados, que existem formas mais frontais e gritantes de atentar contra a autodeterminação sexual de outrem do que aquela que o arguido concretizou, dentro do tipo criminal em referência.

Tanto quanto se provou, não houve contacto entre o corpo do arguido e os órgãos sexuais da ofendida.

A única parte do corpo da ofendida a entrar em contacto com o órgão sexual do arguido foi uma das mãos e o contacto havido verificou-se com interposição das calças que o arguido manteve vestidas.

Não se provou que o arguido tivesse ejaculado na presença da menor.

Além dos factos ocorridos em 2/1/06, não ficou provado qualquer outro contacto de conotação sexual entre o arguido e a ofendida.

Em face das características concretas da conduta apurada, teremos de concluir que o grau de ilicitude dos factos se situa num nível intermédio.

A conduta incriminada teve consequências concretas para ofendida, que se encontram expressas nos pontos 7p e 8p da matéria de facto e que o arguido não reparou minimamente que seja.

Contudo, nesta parte, o acórdão recorrido incorre em manifesto exagero ao traçar um paralelo entre as consequências do crime que o arguido preencheu e as do crime de homicídio.

Como parece óbvio, por muito graves que tenham sido, e foram, as marcas deixadas na pessoa da menor ofendida pela conduta do arguido sob censura, nada é comparável, sob que prisma for, à perda injustificada de uma vida humana.

O dolo com que o arguido agiu é intenso porque directo, ainda que, dentro desse patamar, não se apresente especialmente exacerbado.

Milita a favor do arguido a falta de antecedentes criminais, contando ele 53 anos de idade, ao tempo dos factos por que responde.

O arguido goza de um enquadramento social satisfatório, o que não será muito relevante, no contexto, já que o crime por que foi condenado é frequentemente cometido por pessoas socialmente integradas.

Não beneficia das atenuantes da confissão ou do arrependimento.

Consequentemente, diremos que o grau de culpa do arguido é mediano, sendo relativamente pouco elevadas as exigências de prevenção especial.

O Tribunal «a quo» fixou a medida da pena aplicada ao recorrente em 5 anos de prisão, no âmbito de uma moldura punitiva de 1 a 8 anos de prisão, o que se situa 6 meses acima do respectivo ponto médio.

Tomados em consideração os factores relevantes para o efeito, que acabámos de equacionar, verifica-se que o ponto de equilíbrio entre as exigências comunitárias de vigência da norma penal e as necessidades de integração social do arguido, que a medida concreta da pena deve traduzir, se situa a um nível sensivelmente inferior àquele que foi encontrado pelo acórdão recorrido.

Assim, entendemos por justo e adequado alterar para 3 anos de prisão o «quantum» da pena cominada ao recorrente.

O acórdão sob recurso determinou a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido.

A diminuição da medida da pena aplicada ao recorrente em nada colide com a possibilidade da suspensão da sua execução.

Não tendo sido interposto pelo MP ou pela assistente recurso tendente a reverter a decisão de suspender a execução da pena em que o arguido foi condenado, tal questão encontra-se subtraída ao poder de cognição deste Tribunal por força da já referida proibição da «refformatio in pejus».

No entanto, tendo em atenção que o acórdão recorrido não explicitou o período de suspensão da execução da pena, diremos que, na redacção vigente ao tempo dos factos incriminados do nº 5 do art. 50º do CP, tal período era fixado pelo Tribunal entre 1 e 5 anos e, na versão actualmente em vigor, é sempre igual à medida da pena, embora nunca inferior a um ano.

Nesta conformidade, é a lei nova que se mostra em concreto mais favorável ao arguido, pelo que este Tribunal irá proceder à sua aplicação, conforme determina o nº 4 do art. 2º do CP.

III. Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:

a) Conceder provimento parcial ao recurso e revogar a decisão recorrida, condenando o arguido como autor de um crime de abuso sexual de criança, mas reduzindo a medida da pena para 3 anos de prisão, cuja execução se suspende por igual período;

b) Negar provimento ao recurso quanto ao mais e confirmar a decisão recorrida.

Sem custas.

Notifique.

Évora 20/12/11 (processado e revisto pelo relator)

(Sérgio Bruno Póvoas Corvacho)

(Maria de Fátima Mata-Mouros)