Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
675/16.9T8MMN-A.E2
Relator: ANA MARGARIDA LEITE
Descritores: PROVA TESTEMUNHAL
CONTRADITA
NULIDADE DA SENTENÇA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS A CARGO DO RECORRENTE
Data do Acordão: 11/22/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário:
I – Não tendo sido deduzido o incidente de impugnação da testemunha no momento processual previsto no artigo 515.º, n.º 1, do CPC – quando terminar o interrogatório preliminar –, fica precludida a possibilidade de ser suscitada, em sede de apelação da sentença, a questão da admissibilidade do depoimento em causa;
II – Eventuais contradições na fundamentação da decisão de facto, bem como entre tal fundamentação e factos instrumentais considerados assentes, não configuram, por si sós, causa de nulidade da sentença, constituindo fundamento de impugnação da decisão relativa à matéria de facto;
III - A eventual falta de apreciação pelo tribunal de requerimentos anteriormente apresentados não determina, por si só, a nulidade da sentença por omissão de pronúncia;
IV – Se os recorrentes põem em causa a decisão sobre a matéria de facto, tecendo diversos considerandos sobre a prova produzida e sobre a fundamentação de tal decisão, mas não especificam nas conclusões, nem sequer no corpo da alegação, os concretos pontos de facto que consideram incorretamente julgados, cumpre rejeitar o recurso, na parte respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto, por incumprimento do ónus previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC.
Decisão Texto Integral:

Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

1. Relatório
Os executados BB e CC deduziram oposição à execução para pagamento de quantia certa que lhes move DD, na qual é apresentada, como título executivo, sentença homologatória de transação.
Os embargantes fundamentam a oposição invocando a inexistência de título executivo, sustentando que a transação é inválida, pelos motivos que expõem.
Recebida a oposição à execução, o embargado contestou, defendendo que não foi apresentado fundamento legal de oposição à execução baseada em sentença, sustentando a improcedência dos embargos e pedindo a condenação dos embargantes como litigantes de má fé, como tudo melhor consta do articulado apresentado.
Notificados da contestação, os embargantes pronunciaram-se no sentido da não verificação da invocada litigância de má fé.
Realizada audiência prévia, foi proferido despacho saneador, após o que se identificou o objeto do litígio e enunciou os temas da prova. O embargado apresentou reclamação do despacho que identificou o objeto do litígio e enunciou os temas da prova, invocando a desnecessidade da delimitação de temas da prova e sustentando, pelos motivos que expôs, que a matéria relevante para a apreciação do objeto do litígio se encontra assente e permite conhecer imediatamente do mérito da causa, o que deveria ter sido efetuado no despacho saneador. De seguida, foi proferido despacho que julgou improcedente a reclamação apresentada, após o que foi designada data para a audiência final.
Previamente à realização da audiência final, foi proferida decisão que considerou verificada a exceção de inexequibilidade do título executivo e prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas, em consequência do que foram julgados procedentes os embargos de executado e determinada a extinção da execução, bem como o cancelamento de eventuais penhoras.
Inconformado, o embargado interpôs recurso desta decisão, no qual impugnou igualmente a decisão que indeferiu a reclamação do despacho que identificou o objeto do litígio e enunciou os temas da prova, pugnando para que ambas sejam revogadas.
Os embargantes contra-alegaram, pronunciando-se no sentido da manutenção do decidido.
Por acórdão de 26-10-2017 desta Relação, foi revogada a sentença recorrida, sendo determinado o prosseguimento da oposição à execução, e confirmado o despacho recorrido.
Realizada a audiência final, foi proferida sentença que julgou improcedente a oposição à execução, determinando o prosseguimento da execução, absolveu os embargantes do pedido condenação como litigantes de má fé e condenou-os nas custas.
Inconformados, os embargantes interpuseram recurso desta decisão, pugnando para que seja anulada a audiência final e declarada nula a sentença proferida, terminando as alegações com a formulação das conclusões que a seguir se transcrevem:
«1.ª – Estes embargos de executado foram propostos em 25 de Maio de 2016. A execução de cujo processo são apenso foi proposta no dia 20 de Abril de 2016. O título da execução é uma transacção homologada em 09 de Março de 2016 na acção declarativa a que corresponde o processo n.º 115/12.2TBMMN-J1. Apesar da diferente numeração, trata-se de uma execução nos próprios autos, como dispõe o artigo 626.º do CPC.
2.ª – Os réus, na acção declarativa, eram os agora embargantes e a sua filha EE. Eram todos representados pelos advogados FF e GG. No momento da transacção, os agora embargantes estiveram presentes, se bem que o embargante marido tenha sido mandado chamar pelo Meritíssimo Juiz, pois ter-se-á apercebido da sua ausência. De acordo com as declarações da embargante – e não só – o seu advogado tê-lo-á dispensado, por não ser necessário.
Esteve também presente e aceitou a transacção a interveniente principal HH, que era representada pelo advogado II. A interveniente explorava um salão de cabeleireira, na fracção de que a ré JJ é usufrutuária e a sua filha proprietária.
3.ª – A ré EE não esteve presente. Foi notificada nos termos do artigo 291.º, n.º 3 e não ratificou a transacção, por ser altamente lesiva dos seus interesses.
O processo prosseguiria contra esta ré que seria absolvida por sentença de 09 de Março de 2017.
4.ª – No início da audiência, os embargantes fizeram saber da inadmissibilidade dos depoimentos dos ex-mandatários e requereram que não fossem admitidos. A Meritíssima Juíza despachou indeferindo, visto não saber sobre que factos iriam ser inquiridos e se estaria ou não em causa o segredo profissional.
5.ª – No que diz respeito ao depoimento do Senhor Dr. Juiz LL, os embargantes sumariaram a sua participação no processo, relevando a audiência preparatória, a transacção e até o julgamento e a sentença da ré EE e emitiram a opinião de que o Senhor Dr. Juiz deveria escusar-se a depor. A Senhora Dr.ª Juíza despachou mas nada decidiu por nada ter sido requerido, mas sempre disse que a ponderação da prova seria feita em sede própria. Não era a prova, evidentemente, que estava em questão, mas sim os meios de prova.
6.ª – Curiosamente, o embargado foi tomando posições “interessantes” a respeito dos requerimentos. Começou por afirmar que não sabia nem tinha de saber se os advogados tinham pedido autorização à Ordem dos Advogados. Mas sempre requereu a suspensão da audiência para que as suas testemunhas pudessem efectuar esse pedido, caso quisessem. Este requerimento, curiosamente, não teve sequer resposta. Mas o embargado não se incomodou. Tratava-se, obviamente, de um mero faz de conta.
7.ª – O embargado disse ainda na sua resposta que não sabia sobre o que as testemunhas iriam depor, visto não as ter contactado antes. De qualquer forma, não iria interrogá-las sobre o objecto do processo nem sobre a transacção.
Extraordinário, como pode ver-se. Os depoimentos nada teriam a ver como processo, nas palavras do exequente e embargante. Ainda assim, os depoimentos que se sabia serem impertinentes, à partida, foram admitidos e a Senhora Juíza viria a apoiar-se neles para lavrar a sentença.
(Os requerimentos constam, obviamente, da acta e estão, naquilo que interessa, transcritos no texto destas alegações.)
8.ª – A audiência de Julgamento deve ser anulada, visto terem sido admitidos depoimentos que deveriam ter sido impedidos e a sentença é nula porque se apoiou em prova proibida, há contradição entre os fundamentos e a decisão e também omissão de pronúncia (artigo 615.º, n.º1, al. c) e d) do CPC).
9.ª – Transcreveremos o parágrafo da sentença que é a sua coluna vertebral:
Como tal, em face de todo o exposto, não só não foi produzida qualquer prova relevante que sustentasse a alegação de que os Embargantes não compreenderam os termos da transacção, como resulta claro do relato factual efectuado pelo Embargante (?) e pelas testemunhas arroladas pelo Exequente (únicas relevantes por terem tido efectivamente participação nos factos) que o que sucedeu foi que os Embargantes recearam ir para julgamento, tendo assentido num acordo que, na sequência da não ratificação do mesmo por parte da filha e da absolvição desta, acabaram por considerar que lhes era prejudicial. A verdade é que, provavelmente, se a sua filha tivesse sido condenada na totalidade do pedido no âmbito da ação declarativa, estes embargos de Executado não teriam, sequer, sido intentados.”(sublinhado nosso.)
10.ª – Este parágrafo resume toda a sentença e até a atitude e as razões da decisão que se impugna. As testemunhas dos embargantes são desconsideradas por não terem estado presentes na altura em que foi lida a transacção. Naturalmente que não estavam presentes. As declarações da embargante são inteiramente desconsideradas, por ser parte, como pode ver-se na sentença, apesar delas terem sido confirmadas pelas testemunhas, incluindo aquelas cujos depoimentos não deveriam ter sido admitidos. As declarações da embargante são confirmadas pelas testemunhas, pelo procedimento factual e pelo bom senso, pela razoabilidade e pela experiência.
11.ª – Mas do mencionado parágrafo acima transcrito resulta um gritante erro de facto que inquina toda a sentença, como é bom de ver. Lê-se a sentença e entende-se. Tudo é coligido e arrumado para realçar que se a filha (ré que não aceitou a transacção) tivesse sido condenada na totalidade do pedido no âmbito da acção declarativa, estes embargos não teriam sequer sido intentados.
12.ª – Como já se disse, os embargos foram intentados no dia 25 de Maio de 2016. A sentença que absolveu a ré EE é de 09 de Março de 2017. Ou seja, os embargos foram intentados 10 meses antes da sentença que absolveu a ré EE. Os embargos foram intentados no prazo para serem deduzidos, sendo que a execução foi proposta dois dias após ter transitado em julgado a transacção.
Não era possível aos embargantes saber então o desfecho da acção declarativa quanto à sua filha.
Mas não poderemos deixar de levantar aqui uma questão: será que a afirmação comporta uma crítica à sentença que absolveu a ré EE?
13.ª - Já o dissemos. Os depoimentos das testemunhas arroladas pelo embargado não deveriam ter sido admitidos.
O depoimento do Senhor Dr. Juiz LL é correctíssimo, rigoroso e até pedagógico. Que fique bem claro: face às perguntas que lhe foram feitas, o Sr. Dr. Juiz respondeu com toda a propriedade (parte do depoimento está acima transcrito).
Mas o depoimento não deveria ter sido admitido porque a lei entende que nunca devem ser susceptíveis de confusão, mesmo em abstracto, as diferentes funções na administração da Justiça. O artigo 115.º do CPC deve ser teleologicamente interpretado nesse sentido. É verdade que o artigo trata dos impedimentos do Juiz, como julgador e não como testemunha. Mas das suas diferentes alíneas resulta com clareza que a finalidade legislativa é enumerar os caos em que, mesmo em abstracto, poderia pôr-se em causa a imparcialidade do julgador e o seu desejável afastamento de qualquer interesse na decisão. Lendo particularmente as alíneas c), e) e h), mais próximas da situação concreta, esta conclusão torna-se evidente. Da alínea h) resulta que não é possível ser Juiz e testemunha no mesmo processo, seja ele de jurisdição voluntária ou contenciosa. A alínea deve ser relacionada com o disposto no artigo 499º do CPC. Aí se dispõe que, sendo designado o juiz como testemunha, este deve declarar no processo, e sob juramento, se conhece ou não factos que possam influir na decisão. Caso declare que sim, fica impedido de exercer a função de julgador; caso declare que não, a designação como testemunha fica sem efeito.
13.ª - Também desta norma resulta claramente que o papel de testemunha é, obviamente inconciliável com o de juiz. E mais. Da sua ratio resulta que o estatuto de testemunha (art.os 495.º e ss do CPC) é tão importante que pode levar ao impedimento do Juiz. Em qualquer caso, não temos conhecimento de que o Senhor Dr. Juiz LL tenha feito qualquer declaração no processo, sob juramento. Por isso, o depoimento não deveria ter sido autorizado. Lembramos que esta é uma execução nos próprios autos (art.º 626º do CPC).
14.ª - Os depoimentos dos advogados, enquanto ex-mandatários dos embargantes, configuram uma situação inaceitável, que atenta contra a dignidade na administração da Justiça e a dignidade do exercício da profissão forense.
Todas os pareceres dos diferentes Conselhos Distritais da Ordem dos Advogados afirmam essa incompatibilidade, sem excepções. Apenas a título exemplificativo reproduziremos aqui um só resumo dos que transcrevemos no texto o qual, por sua vez, é uma citação do acórdão do TRP de 07-10-2019 (proc. 874/08.TAVCD-A P1) Segundo doutrina que inteiramente acolhemos e que encontrou tradução na Jurisprudência da Ordem dos Advogados, “é inaceitável autorizar um advogado para prestar depoimento em processo no qual esteja ou tenha estado constituído, pois que seria a subversão do próprio sistema processual em que o advogado, entre nós, se não pode nunca confundir com simultânea testemunha. E seria, outrossim, desprestigiante para a advocacia. Augusto Lopes Cardoso, Do Segredo Profissional na Advocacia, ed. CELOA, 1997, pg. 82.
15.ª – O Estatuto da Ordem dos Advogados tem várias normas de onde se pode extrair essa incompatibilidade. O n.º 1 do artigo 81.º do actual Estatuto dispõe que o exercício da advocacia é inconciliável com qualquer cargo, função ou actividade que possa afectar a isenção, a independência e a dignidade da profissão.
O art.º 88.º dispõe sobre os princípios deontológicos que enquadram a profissão de advogado, onde se insere o segredo profissional (artº 92º). O artigo 97.º, por sua vez, é claríssimo em afirmar que o mandato forense assente numa relação de confiança recíproca entre o advogado e o cliente.
Se, por desventura do nosso sistema judiciário, viesse a generalizar-se aquilo que sucedeu neste julgamento, que confiança poderiam os cidadãos nacionais depositar na advocacia? Que confiança depositarão agora os embargantes nestes seus ex-mandatários? Quem poderá julgar como inapropriados ou injustificados os sentimentos de revolta, pesar e injustiça que a embargante transmitiu tão afincadamente nas suas declarações?
16.ª – As considerações que acabamos de fazer a respeito dos ex-mandatários dos embargantes, aplica-se igualmente ao mandatário da interveniente, naturalmente, apesar de ser menos chocante. Os mandatários são a voz dos seus clientes. Em boa verdade, eles assumem e agem como se fossem parte no processo. Vê-los arrolados pela parte contrária e a depor é uma situação verdadeiramente inconcebível e que, a admitir-se, arrastaria o sistema judiciário para uma situação caótica.
17.ª - Já anteriormente mencionámos e transcrevemos o parágrafo da sentença onde se comete um erro de facto em função do qual é elaborado todo o percurso discursivo: o de considerar que a atitude dos embargantes resulta do facto de a filha, que não aceitou a transacção, ter sido absolvida. Segundo a sentença, teria sido então que os embargantes se arrependeram de ter transigido. Ora, os embargos foram intentados nos dois meses depois da transacção e a sentença que absolveu a ré EE é 10 meses posterior. Nesse parágrafo, desconsideram-se completamente as testemunhas dos embargantes, em confronto com os depoimentos das testemunhas do embargado que nem deveriam ter sido admitidos, como defendemos.
18.ª – As declarações da embargante BB, inquirida pela M. Juíza estão transcritas acima. São relativamente longas. Mas não vimos outra forma senão transcrevê-las para demonstrar a sua sinceridade e naturalidade. A embargante afirma:
- que o Senhor advogado FF dispensou o seu marido, por não ser necessário;
- que seguidamente a levou para a sala de audiências e a sós, a pressionou de tal forma a aceitar o acordo que ela acabaria por dizer que sim, pese embora sempre tenha dito que não e considerar o acordo uma injustiça até porque ela nada tinha a ver com “a inundação”.
- que mal disse que sim o Senhor advogado saiu desabridamente da sala;
- que, posteriormente, e já depois de entrar na sala o Senhor Dr. Juiz, este se apercebeu da ausência do marido e que teve de lhe telefonar ele vir;
- (O Meritíssimo Juiz e as restantes testemunhas confirmam que foi necessário esperar para que o embargante regressasse ao Tribunal, por decisão do Senhor Juiz.) -
- que o seu marido não percebeu sequer o que se passara na sala de audiências, e só já no exterior a embargante lhe explicou que houvera um acordo, para grande espanto e indignação deste.
19.ª – Estas declarações são confirmadas pelas testemunhas no que diz respeito à vontade sempre manifestada pelos embargantes de não fazerem qualquer acordo e ao arrependimento e até tristeza e “vergonha” posterior da embargante. O depoimento da testemunha Natércia …, que trabalha com a embargante, desce mesmo a pormenores interessantes. Por isso, este depoimento é também parcialmente transcrito acima. Mas a Senhora Juíza, também resume este depoimento, na sentença referindo:…”que a executada lhe contou, passados cerca de 3 dias do acordo, que foi pressionada pelo advogado para aceitar o acordo e que o Executado nem percebeu o que se passou.”
20.ª – Não há razão para se desconsiderarem as declarações da embargante. Como já dissemos, o depoimento do Senhor Dr. Juiz LL confirma que se apercebeu da ausência do embargante quando entrou na sala de audiências e que o mandou chamar, tendo esperado algum tempo pela sua comparência. E quando questionado: “…o Sr. Dr. não tem dúvida em que se fez a audiência e que as partes manifestaram o acordo?
A resposta:
- “Tenho a certeza que se fez a audiência.”
Por isto -e não só - afirmámos que o depoimento é correctíssimo. O que está em questão é apenas a sua admissibilidade, como já ficou exposto.
21.ª – Como é bom de ver, defendendo nós a inadmissibilidade do depoimento dos Senhores advogados, seria incoerente valermo-nos deles. Mas sempre será interessante ouvi-los, porque é simplesmente confrangedor verificar o que pretendem dizer e o que pretendem omitir. Em bom rigor, quer as perguntas, quer as respostas são confrangedoras. É uma espécie de faz de conta; uma tentativa para passar entre os pingos da chuva. Também transcrevemos um pequeno excerto do depoimento do Dr. FF, para realçar a tentativa de se desresponsabilizar com os colegas, quando refere que estes só diziam: estou farto disto, eu quero é acabar com isto, etc.
22.ª – A verdade, no entanto, é que a sentença qualifica os depoimentos de criveis e verossímeis, espontâneos, naturais e plausíveis. São adjectivos que constam da sentença.
23.ª – D atestado médico, junto ao processo consta o seguinte: “O Senhor CC sofre de surdez bilateral irreversível, sensorialmente à esquerda, de grau ligeiro-médio e à direita apresenta uma surdez mista, de gau profundo.”
A sentença reconhece que os “problemas auditivos” existem. Contudo, desconhece-se se, em 9 de março de 2016, data da diligência, também os teria (e com a mesma intensidade) e, bem ainda, não resulta de tal documento que o Executado tenha uma surdez absoluta. Da mesma forma, algumas testemunhas mencionaram a circunstância de o mesmo usar aparelho auditivo.
É interessante verificar como pode ser minimizada uma questão que começa por se reconhecer como indiscutível. O tempo é sempre um factor a ter em conta.
24.ª- Mas, curiosamente, a M. Juíza que apoia a sua decisão no facto de a embargante ter perfeito conhecimento do acordo, nunca se interroga se também o teria quando aquiesceu na sala de audiências (em 19 de Março de 2016) ou se esse conhecimento tão perfeito sobreveio depois ao tentar informar-se sobre o que poderia fazer. Efectivamente passaram-se dois anos entre a transacção e esta audiência de julgamento. E não se interroga se o embargante compreendeu o acordo. A mulher e embargante disse que ele manifestou logo em seguida não ter compreendido e a testemunha Natércia … disse que a embargante lhe transmitiu, 3 dias depois, essa circunstância. De resto, isso consta da sentença, como o que Senhora Dr.ª Juíza reteve do depoimento desta testemunha.
25.ª – Escreve-se no último parágrafo da pg. 8 da sentença: ”Por outro lado, também não se logrou provar que nunca foi explicado aos Executados o sentido e as implicações do acordo em causa, desconhecendo os mesmos em que consistiam obrigações solidárias.”
Em seguida, passa a demonstrar-se que a embargante, nas suas declarações, revelou conhecer bem os termos do acordo. Mas, repetimos, nunca se diz se essa compreensão já existia no dia 9 de Março de 2016, ou resultou de indagações posteriores. E não se compreende que as circunstâncias relativas ao embargante não tenham sido ponderadas, quando é nas mesmas declarações da embargante que se afirma que o marido não tinha sequer compreendido o que havia sucedido, aquando da transacção. Isto foi objecto da inquirição efectuada pela Mma. Juíza, como pode ver-se na transcrição que reproduzimos no texto acima.
26.ª – Em transacções, o M. Juiz não tem, propriamente, que cuidar conteúdo, mas sim de assegurar a regularidade formal. Mas não deixaremos de colocar aqui algumas questões fundamentais:
a) O pedido na acção declarativa foi de €40.000,00 (aproximadamente) por prejuízos causados na roupa para criança existente na loja que o autor e exequente explorava. (É de espantar, efectivamente!). Nem em boas lojas de Lisboa existe um stock semelhante).
A água que terá causado o prejuízo proveio de um lavatório entupido com papéis usados nas permanentes, no 1.º andar, sendo que o salão de cabeleireiro era explorado pela Interveniente HH, representada pelo Dr. GG.
(i) Porque é que nada se diz na transacção sobre as peças de vestuário? Para quem ficaram os salvados? Para o autor e exequente, como se afirmou no julgamento. Ou seja: o autor e exequente recebeu de dois carrinhos.
(ii) A origem da “inundação” foi um lavatório da cozinha da fracção utilizada pela interveniente: que critério foi utilizado para responsabilizar os réus (proprietária e usufrutuária) pelo montante de €19.000,00 em solidariedade, e a interveniente em apenas em €1.000,00 a pagar ano e meio depois (Outubro de 2017)?
27.ª – Os embargantes invocaram, na oposição, o litisconsórcio necessário entre os réus, e a consequente ilegitimidade, visto nem todos haverem consentido. Não mantemos tal pressuposto. O litisconsórcio é voluntário e não necessário. Mas não deixa de ser um pouco paradoxal que, em virtude da solidariedade ter sido estabelecida entre os réus e não também para a interveniente. Quer pela solidariedade, quer pelos termos do acordo, a verdade é que os réus e embargantes veem a sua posição extremamente fragilizada. Mas enfim. O litisconsórcio é um instituto processual e o regime das obrigações solidários um instituto substantivo.
28.ª – Em todo o caso, não entendemos o que se pretende dizer na sentença a este respeito: é evidente que haveria ilegitimidade, caso estivéssemos perante um litisconsórcio necessário e não vemos como a questão estaria já resolvida anteriormente, como se afirma na sentença.
29.ª – Os embargantes invocaram erro na declaração (art.º 247.º do CC). A sentença faz correcta anotação disto, mas cita um texto do Prof. Mota Pinto que, se bem julgamos, se refere ao erro sobre os motivos: “…traduz-se numa representação inexacta ou na ignorância de uma qualquer circunstância de facto ou de direito que foi determinante na decisão de efectuar o negócio. (…). Trata-se de um erro nos motivos determinantes da vontade.”
O erro sobre os motivos só é causa de anulação se as partes houverem reconhecido, por acordo, a essencialidade do motivo.
30.ª – No erro na declaração, a vontade declarada não corresponde à vontade real do autor. Este erro é assim definido no acórdão do TRC de 16-02-2017:
– “O erro na declaração, ou erro obstáculo, existe quando, não intencionalmente - v.g., por inadvertência, engano ou equívoco -, a vontade declarada não corresponde a uma vontade real do autor, existente, mas de sentido diverso.”
Entendemos que são os requisitos deste erro que se verificam, no caso concreto.
31.ª- Agora, e apurados os factos e circunstâncias relevantes, parece-nos até que será correcto falar-se de coacção moral, tal como é configurada pelos artigos 255.º e 256.º do CC.
Por tudo quanto ficou exposto, deve anular-se o julgamento por terem sido autorizados depoimentos em violação da Lei e da dignidade do nosso sistema judiciário, como anteriormente ficou demonstrado. A sentença, ao apoiar-se em tais depoimentos é nula. E é nula ainda por violação das alíneas c) e d) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC.»
O embargado apresentou contra-alegações, pronunciando-se no sentido da manutenção do decidido.
Face às conclusões das alegações dos recorrentes e sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso, cumpre apreciar as questões seguintes:
i) da anulação da audiência final;
ii) da nulidade da decisão recorrida;
iii) da impugnação da decisão relativa à matéria de facto;
iv) do efeito pretendido com a apelação.
Corridos os vistos, cumpre decidir.

2. Fundamentos

2.1. Decisão de facto

2.1.1. Factos considerados provados em 1.ª instância:
1. No processo n.º 115/12.2TBMMN, que correu termos na Secção Genérica de Montemor-o-Novo, J1, do Tribunal Judicial da Comarca de Évora, era Autor DD, Réus CC, BB e EE e Interveniente Principal HH;
2. No dia 9 de março de 2016, data em que se encontrava agendada a realização de audiência final no âmbito do referido processo, foi celebrada uma transação, nos termos seguintes:
“O Autor reduz o pedido para a quantia de 20.000€ (vinte mil euros), montante que os Réus e a Chamada se obrigam a pagar nos seguintes termos:
a) Os Réus pagarão, solidariamente, o montante de 19.000€ (dezanove mil euros), em 19 prestações mensais, iguais e sucessivas, vencendo-se a primeira no final do corrente mês de Março de 2016 e as demais no final de cada um dos meses imediatamente subsequentes, até integral pagamento;
b) A Chamada por seu turno pagará a quantia de 1000€ (mil euros) no final do mês de Outubro de 2017; (….)”
3. Tal acordo foi homologado, por sentença, nessa data;
4. Não foi interposto recurso da mesma;
5. Nesse processo, os Mandatários dos Réus só tinham poderes forenses gerais;
6. Os Executados CC e BB encontravam-se presentes na referida diligência;
7. A Ré EE não se encontrava presente;
8. Em face disso, foi determinada a sua notificação, nos termos do artigo 291.º, n.º 3 do Código de Processo Civil;
9. Nessa sequência, a Ré EE declarou não ratificar o ato do seu mandatário;
10. No final de março de 2016, a prestação mencionada em 2. não foi paga, nem naquela data, nem posteriormente;
11. O Executado CC foi chamado pelo Meritíssimo Juiz para estar presente no momento referido em 2..

2.1.2. Factos considerados não provados em 1.ª instância:
1. O mandatário do Réu CC, no momento referido em 2., entendeu que a sua presença era dispensável;
2. O Executado CC não entendeu o teor do acordo em virtude das suas dificuldades auditivas;
3. Nunca foi explicado aos Executados, nem pelos seus mandatários, nem por qualquer outra pessoa, o sentido e as implicações do acordo em causa, desconhecendo os mesmos em que consistiam “obrigações solidárias”.

2.2. Apreciação do objeto do recurso

2.2.1. Anulação da audiência final
Peticionam os apelantes se determine a anulação da audiência final, com fundamento na prestação de depoimento por testemunhas que deveriam ter sido impedidas de depor, a saber: o juiz que proferiu a sentença homologatória de transação apresentada como título executivo, bem como dois advogados que representaram os réus ora embargantes e um advogado que representou determinada interveniente na ação declarativa no âmbito da qual foi proferida a aludida sentença.
Sustentam os apelantes que não deveria ter sido admitido o depoimento, na qualidade de testemunha, do juiz que proferiu a sentença homologatória da transação, por falta de cumprimento do disposto no artigo 499.º do Código de Processo Civil, bem como para evitar a verificação das causas de impedimento do juiz previstas nas alíneas c), e) e h) do n.º 1 do artigo 115.º do mesmo código; quanto aos advogados que representaram os ora apelantes e a aludida interveniente na ação declarativa no âmbito da qual foi proferida a sentença homologatória da transação, alegam não deveriam ter sido admitidos os respetivos depoimentos por terem sido mandatários de partes no âmbito desse processo e não lhes ter sido concedida autorização para revelarem factos abrangidos pelo segredo profissional, encontrando-se vinculados a guardar segredo relativamente aos factos sobre os quais depuseram.
Vejamos se lhes assiste razão.
Dispõe o artigo 513.º, n.º 2, do CPC, que o juiz deve obstar ao depoimento de testemunha quando verifique, pelas respostas ao interrogatório preliminar, alguma das situações seguintes: a) o declarante é inábil para ser testemunha, isto é, não tem aptidão física e mental para depor sobre os factos que constituam objeto da prova ou pode depor como parte (artigos 495.º, n.ºs 1 e 2, e 496.º do citado código); b) o declarante não é a pessoa que fora arrolada como testemunha.
Com os mesmos fundamentos pelos quais deverá o juiz obstar ao depoimento da testemunha, pode a parte, contra a qual for produzida, impugnar a sua admissão, conforme dispõe o artigo 514.º do CPC. Assim, poderiam os embargantes, no caso presente, ter deduzido o incidente de impugnação de cada uma das indicadas testemunhas, com a finalidade de impedir que fossem admitidas a depor, caso entendessem que deveria o juiz obstar ao respetivo depoimento. Não tendo sido deduzido o incidente de impugnação no momento processual previsto no artigo 515.º, n.º 1 – quando terminar o interrogatório preliminar –, fica precludida a possibilidade de ser suscitada, em sede de apelação da sentença, a questão da admissibilidade do depoimento das testemunhas.[1][2]
Porém, sempre se dirá que os motivos apresentados pelos recorrentes, para a não admissão das indicadas testemunhas a depor, não integram qualquer dos fundamentos, supra elencados, pelos quais deve o juiz obstar ao depoimento, considerando que não está em causa a respetiva inabilidade para depor ou qualquer falta de correspondência relativamente às pessoas que haviam sido arroladas.
Quanto à designação do juiz como testemunha, verifica-se que o artigo 499.º, invocado pelos recorrentes, respeita ao juiz da causa no âmbito da qual é indicada a testemunha, o que não se verifica no caso presente, em que não foi arrolado como testemunha o juiz do processo de execução, mas sim o magistrado judicial que tramitou a ação declarativa e proferiu a sentença homologatória da transação apresentada como título executivo; acresce que, ainda que o tivesse sido, isto é, se se tratasse efetivamente do juiz da causa, o impedimento a que respeita o preceito reporta-se ao processo, não à prestação de depoimento na qualidade de testemunha. Do mesmo modo, as causas de impedimento do juiz previstas nas invocadas alíneas c), e) e h) do n.º 1 do artigo 115.º não configuram qualquer impedimento a depor como testemunha, mas sim ao exercício das respetivas funções, o que não está em causa nos presentes autos.
No que respeita aos advogados que representaram os réus ora embargantes e a citada interveniente na ação declarativa no âmbito da qual foi proferida a aludida sentença, igualmente se não vislumbra que, não existindo escusa a depor, devesse o juiz ter obstado à prestação dos respetivos depoimentos na qualidade de testemunhas, dado que o respeito pelo sigilo profissional dos advogados se encontra regulamentado de forma diversa.
O artigo 92.º do Estatuto da Ordem dos Advogados (aprovado pela Lei n.º 145/2015 de 09-09), com a epígrafe Segredo profissional, dispõe, na alínea a) do n.º 1, que o advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente a factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste. Esclarece o n.º 2 do preceito que a obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, direta ou indiretamente, tenham qualquer intervenção no serviço. Permite o n.º 4 do citado artigo, ao advogado, revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respetivo, com recurso para o bastonário, nos termos previstos no respetivo regulamento. O n.º 5 do preceito, por seu turno, dispõe que os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo.
Considerando que as testemunhas em causa são advogados e representaram os embargantes e a citada interveniente na ação declarativa no âmbito da qual foi lavrada a transação homologada pela sentença exequenda, encontram-se vinculados, quanto a tal matéria, a guardar segredo profissional, conforme decorre da supra citada alínea a) do n.º 1 do artigo 92.º do EOA. Na hipótese de não lhes ter sido concedida autorização para revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, nos termos previstos no n.º 4 do citado preceito do EOA, deveriam as testemunhas ter-se escusado a depor, conforme dispõe o artigo 497.º, n.º 4, do CPC. Não o tendo feito, caso se verifique que o respetivo depoimento configura violação de tal segredo profissional, decorre do disposto no artigo 92.º, n.º 5, do EOA, que não deverão ser tidos em conta os depoimentos em causa, o que não configura o impedimento à prestação dos depoimentos invocado pelos recorrentes.
Em conclusão, não tendo os apelantes deduzido incidentes de impugnação das aludidas testemunhas, sendo certo que, de todo o modo, não se verifica a invocada inadmissibilidade dos depoimentos em causa, improcede a questão suscitada, como fundamento da peticionada anulação da audiência final, consignando-se que a impugnação da decisão da matéria de facto configura o local próprio para a apreciação da questão da relevância dos indicados meios de prova, designadamente da verificação da violação do segredo profissional e respetivas consequências.

2.2.2. Nulidade da decisão recorrida
Na apelação interposta, os recorrentes arguiram as nulidades previstas no artigo 615.º, n.º 1, als. c) e d), do CPC, imputando, à sentença recorrida, os vícios de contradição entre os fundamentos e a decisão e de omissão de pronúncia, acrescentando que a decisão recorrida enferma de nulidade também “porque se apoiou em prova proibida”.
As causas de nulidade da sentença encontram-se previstas no n.º 1 do artigo 615.º do CPC, nos termos do qual é nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.
Não esclarecem os recorrentes o fundamento legal do último vício que arguiram, relativo aos meios de prova tidos em conta na sentença, nem se vislumbra que a alegação apresentada integre qualquer uma das indicadas causas de nulidade da sentença, pelo que improcede tal arguição.
Cumpre apreciar se a decisão recorrida enferma dos demais vícios arguidos pelos apelantes.
A primeira causa de nulidade invocada pelos recorrentes, prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. c), 1.ª parte, do CPC, verifica-se quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão, o que ocorre quando aqueles, seguindo um raciocínio lógico, devam conduzir a resultado decisório diverso.
Conforme explica José Lebre de Freitas (A Ação Declarativa Comum: À Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3.ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2013, p. 333), “(…) se, na fundamentação da sentença, o julgador segue determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decide noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição é causa de nulidade da sentença. Esta oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica, ou, muito menos, com o erro na interpretação desta: quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade (…)”.
Eventuais vícios da decisão sobre a matéria de facto não configuram, sem mais, a invocada causa de nulidade, desde logo porque, conforme explicam José Lebre de Freitas/Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º, 3.ª edição, Coimbra, Almedina, 2017, p. 734), “a invocação de vários dos vícios que a esta dizem respeito é feita nos termos do art. 640 e porque a consequência desses vícios não é necessariamente a anulação do ato (cf. os n.ºs 2 e 3 do art. 662)”.
A previsão do preceito em análise não se encontra preenchida com a situação invocada pelos recorrentes, relativa a supostas contradições detetadas no âmbito da fundamentação da decisão de facto e entre tal fundamentação e determinados factos instrumentais considerados assentes, a qual constitui fundamento de impugnação da decisão de facto, não sendo causa de nulidade da sentença.
A segunda causa de nulidade invocada pelos recorrentes, prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. d), 1.ª parte, do CPC, ocorre quando o juiz deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar, assim incumprindo o estatuído no artigo 608.º, n.º 2, 1.ª parte, do mesmo código, nos termos do qual “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras”.
Não esclarecem os recorrentes as concretas questões relativamente às quais entendem ter a sentença omitido pronúncia, baseando o invocado vício na não apreciação pelo Tribunal de 1.ª instância de questões suscitadas em requerimentos apresentados no decurso da audiência final. Assim, sustentam os apelantes que não foi apreciado requerimento que apresentaram no decurso da audiência final, no sentido da suspensão do julgamento com vista a permitir aos advogados arrolados como testemunhas requererem à Ordem dos Advogados autorização para prestarem depoimento sobre factos abrangidos pelo segredo profissional. Acrescentam que não foram apreciadas nos despachos proferidos todas as questões suscitadas nos requerimentos seguintes: quanto ao requerimento que apresentaram no sentido de não serem autorizados os depoimentos das indicadas testemunhas, foi proferido o despacho seguinte: “Uma vez que se desconhece se os Ilustres mandatários arrolados serão inquiridos sobre matéria sujeita a sigilo profissional, nada há, pelo menos por ora, a determinar. Quanto ao mais, entreguem-se oportunamente, as requeridas cópias aos embargantes. Notifique”; quanto à sugestão que apresentaram no sentido de dever o juiz arrolado como testemunha recusar a prestação de depoimento, foi proferido o despacho seguinte:Nada a determinar, uma vez que nada foi requerido, sendo certo que a apreciação da prova se fará em sede própria, na sentença que venha a ser proferida”.
A eventual falta de apreciação pelo Tribunal de requerimentos anteriormente apresentados não determina, por si só, a nulidade da sentença por omissão de pronúncia. Não resultando da alegação dos recorrentes que a sentença devesse apreciar e tenha omitido pronúncia sobre qualquer das questões anteriormente suscitadas nos aludidos requerimentos, a eventual omissão de apreciação de tais requerimentos não integra o vício imputado à decisão recorrida.
A alegação dos recorrentes configura a arguição de nulidades processuais cometidas nos autos, emergentes da eventual omissão da prática de atos que a lei prescreve, e não a omissão de pronúncia como vício da própria sentença recorrida.
A nulidade emergente da omissão de qualquer ato que a lei prescreva, a qual possa influir no exame ou na decisão da causa, deve ser arguida perante o Tribunal que omitiu o ato e não em sede de recurso. Acresce que, não configurando nulidade principal, a omissão invocada encontra-se sujeita ao regime de arguição fixado nos artigos 197.º e 199.º do CPC, do qual decorre, além do mais, a regra geral sobre o prazo de arguição das nulidades secundárias: se a parte estiver presente, por si ou por mandatário, no momento em que forem cometidas, podem ser arguidas enquanto o ato não terminar; se não estiver, dispõe para a arguição do prazo geral de 10 dias, contado desde o conhecimento de que foi cometida a nulidade. Tendo decorrido o prazo respetivo, sempre seria de considerar extemporânea a invocação da omissão, em sede do presente recurso de apelação.
Em conclusão, não enferma a sentença recorrida de qualquer das causas de nulidade arguidas pelos recorrentes.

2.2.3. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto
Os recorrentes, apesar de não impugnarem expressamente a decisão sobre a matéria de facto, põem em causa tal decisão constante da sentença recorrida, tecendo diversos considerandos sobre a prova produzida, bem como sobre a fundamentação da decisão de facto.
Sob a epígrafe Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, dispõe o artigo 640.º do CPC o seguinte:
1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.os 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.
Analisando as conclusões das alegações de recurso apresentadas, verifica-se que os recorrentes se limitaram a analisar criticamente determinados meios de prova, não especificando os concretos pontos de facto que consideram incorretamente julgados, assim não tendo dado cumprimento ao ónus previsto na alínea a) do n.º 1 do mencionado artigo 640.º.
A indicação dos pontos de facto que os recorrentes consideram incorretamente julgados não vem especificada, nem no corpo das alegações da apelação, nem nas respetivas conclusões, as quais sempre delimitam o âmbito do objeto do recurso, conforme resulta do disposto no artigo 635.º, n.º 4, do CPC.
As questões a decidir serão, além das de conhecimento oficioso, apenas as que constarem das conclusões, cabendo ao recorrente o ónus de as formular e de nelas incluir as questões que pretende ver reapreciadas. Não tendo os apelantes incluído a indicação dos concretos pontos de facto que consideram incorretamente julgados nas conclusões das alegações (nem sequer no corpo da alegação), verifica-se que não cabe à Relação conhecer de tal questão, dado não se tratar de matéria de conhecimento oficioso.
Explicando o sistema vigente quando o recurso envolva a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, afirma António Santos Abrantes Geraldes (Recursos no Novo Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2013, p. 126), além do mais, o seguinte: “Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões”.
Na jurisprudência recente do Supremo Tribunal de Justiça, no sentido de a falta de indicação, nas conclusões da alegação, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados, importar o incumprimento do ónus de alegação a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, podem indicar-se, a título exemplificativo, os acórdãos de 05-01-2016, proferido na revista n.º 36/09.6TBLMG.C1.S1 - 6.ª Secção, de 21-01-2016, proferido na revista n.º 145/11.1TCFUN.L1.S1 - 2.ª Secção, de 02-02-2016, proferido na revista n.º 2000/12.9TVLSB.L1.S1 - 1.ª Secção, de 03-05-2016, proferido na revista n.º 145/11.1TNLSB.L1.S1 - 6.ª Secção, de 31-05-2016, proferido na revista n.º 1572/12.2TBABT.E1.S1 - 1.ª Secção, de 02-06-2016, proferido na revista n.º 781/07.0TYLSB.L1.S1 - 7.ª Secção, de 05-08-2016, proferido na revista n.º 221/13.6TBPRD-A.P1.S1, de 14-02-2017, proferido na revista n.º 1260/07,1TBLLE.E1.S1 - 1.ª Secção, de 14-02-2017, proferido na revista n.º 462/13.6TBPTL.G1.S1 - 6.ª Secção, e de 02-03-2017, proferido na revista n.º 1574/11.6TBFLG.P1.S1 - 7.ª Secção, cujos sumários se encontram disponíveis para consulta em www.stj.pt.
O incumprimento, pelo recorrente, deste ónus de especificação dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, é cominado com a rejeição do recurso, na parte respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto, conforme decorre do estatuído no corpo do n.º 1 do citado artigo 640.º, assim se encontrando afastada a possibilidade de a Relação convidar ao aperfeiçoamento das alegações, de forma a suprir tal omissão.
No caso presente, verificado o incumprimento pelos recorrentes deste ónus, de indicação nas conclusões dos concretos pontos de facto que consideram incorretamente julgados, cumpre rejeitar o recurso, na parte respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto, conforme decorre do estatuído no corpo do n.º 1 do citado artigo 640.º.
Rejeita-se, assim, o recurso, na parte relativa à impugnação da decisão relativa à matéria de facto.

2.2.4. Efeito pretendido com a apelação
Nas alegações de recurso, os apelantes pedem seja anulada a audiência final e declarada nula a sentença proferida, o que foi apreciado e julgado improcedente em 2.2.1. e 2.2.2., não peticionando qualquer alteração da decisão recorrida, quer quanto à matéria de facto, conforme se concluiu em 2.2.3., quer quanto à matéria de direito.
Tal decorre claramente do pedido formulado nas alegações da apelação, com a redação seguinte:
Por tudo quanto ficou exposto, deve anular-se o julgamento por terem sido autorizados depoimentos em violação da Lei e da dignidade do nosso sistema judiciário, como anteriormente ficou demonstrado. A sentença, ao apoiar-se em tais depoimentos é nula. E é nula ainda por violação das alíneas c) e d) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC.
Analisando tal pedido, verifica-se que não é peticionada qualquer modificação da decisão recorrida, a apreciar na hipótese de improcedência dos dois pedidos de anulação formulados.
Dispõe o artigo 639.º, n.º 1, do CPC, que o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão, esclarecendo o n.º 2 do preceito as indicações que deverão constar das conclusões, nos casos em que o recurso versa sobre matéria de direito.
Explicam António Santos Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Luís Filipe Pires de Sousa[3] que “conforme ocorre com o pedido formulado na petição inicial, as conclusões devem corresponder à identificação clara e rigorosa daquilo que o recorrente pretende obter do tribunal superior, em contraposição com aquilo que foi decidido pelo tribunal a quo”, acrescentando que deve ser incluído, na parte final, o resultado procurado.
No caso presente, limitam-se os recorrentes a pedir a anulação da decisão recorrida, seja por efeito da peticionada anulação da audiência final, seja em consequência da procedência da arguição de nulidades da própria sentença, não peticionando, ainda que subsidiariamente, qualquer alteração da decisão.
Nesta conformidade, face à improcedência dos pedidos de anulação formulados, improcede a apelação.

Em conclusão:
I – Não tendo sido deduzido o incidente de impugnação da testemunha no momento processual previsto no artigo 515.º, n.º 1, do CPC – quando terminar o interrogatório preliminar –, fica precludida a possibilidade de ser suscitada, em sede de apelação da sentença, a questão da admissibilidade do depoimento em causa;
II – Eventuais contradições na fundamentação da decisão de facto, bem como entre tal fundamentação e factos instrumentais considerados assentes, não configuram, por si sós, causa de nulidade da sentença, constituindo fundamento de impugnação da decisão relativa à matéria de facto;
III - A eventual falta de apreciação pelo tribunal de requerimentos anteriormente apresentados não determina, por si só, a nulidade da sentença por omissão de pronúncia;
IV – Se os recorrentes põem em causa a decisão sobre a matéria de facto, tecendo diversos considerandos sobre a prova produzida e sobre a fundamentação de tal decisão, mas não especificam nas conclusões, nem sequer no corpo da alegação, os concretos pontos de facto que consideram incorretamente julgados, cumpre rejeitar o recurso, na parte respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto, por incumprimento do ónus previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC.

3. Decisão

Nestes termos, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Custas pelos recorrentes.
Notifique.

Évora, 22-11-2018
Ana Margarida Leite
Cristina Dá Mesquita
Silva Rato

__________________________________________________
[1] Neste sentido, cf. Luís Filipe Pires de Sousa, Prova Testemunhal, Coimbra, Almedina, 2016, p. 267; António Santos Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Coimbra, Almedina, 2018, p. 567).
[2] No mesmo sentido, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de11-01-2001, proferido na revista n.º 3545/00 - 6.ª Secção (relator: Silva Salazar) – cujo sumário se encontra publicado em www.stj.pt) – entendeu-se que o recurso da sentença não é a altura própria para se pôr em causa o depoimento de uma testemunha: para tanto consagra a lei, nos artigos 636.º, 637.º, 640.º e 641.º do CPC, os incidentes da impugnação e da contradita, deduzíveis em plena audiência de julgamento e destinados a impedir a admissão da testemunha ou a abalar a credibilidade do seu depoimento.
[3] Ob. cit., p. 767-768.