Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
41/08.0TBSTB.E1
Relator: ELISABETE VALENTE
Descritores: PRISÃO PREVENTIVA
PRISÃO PREVENTIVA ILEGAL
ABSOLVIÇÃO EM JULGAMENTO
RESPONSABILIDADE CIVIL
OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAR
PRESSUPOSTOS
Data do Acordão: 10/14/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
Não estão verificados os pressupostos constitutivos da obrigação de indemnizar requeridos pelo preceito mencionado supra, em caso de prisão preventiva quando ocorre absolvição em julgamento, sendo que o mesmo não permite, de forma alguma, uma aplicação que chegue ao automatismo da concessão da indemnização só porque à prisão preventiva se seguiu a absolvição. (sumário da relatora)
Decisão Texto Integral:
Acordam os juízes da secção cível do Tribunal da Relação de Évora:

1 – Relatório.

A… (A), solteiro, natural da freguesia da Sé, Concelho de Évora, portador do cartão de cidadão n.º … e residente na Rua da …, em Évora, intentou contra Estado Português (R), representado pelo Ministério Público, acção declarativa a pedir a condenação do R no pagamento de € 10.080,00 (dez mil e oitenta euros) a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais em virtude da responsabilidade extracontratual do Estado, nomeadamente por prisão injustificada ao longo de 12 meses, por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia e por se ter provado que não praticou o crime tendo sido absolvido.
Após a realização da audiência, foi proferida sentença, que julgou a acção improcedente, por não provada, e absolveu o R do pedido.
Inconformado com a sentença, pelo A foi interposto recurso contra a mesma, apresentando as seguintes as conclusões do recurso (transcrição):
“(A)O tribunal a quo concluiu o seguinte: Nestes termos e face ao exposto, considera-se, por falta de alegação e prova, que não estão preenchidos os pressupostos legais de que a lei faz depender a indemnização prevista no artigo 225.º/1, al. b) do Código do Processo Penal, sendo improcedente o pedido do Autor alicerçado nesta norma.
(B) Em primeiro lugar, cumpre realçar que o Réu não contestou, pelo que deveriam ter sido dado como provados os factos alegados na petição inicial e, subsequentemente, ter sido o Réu condenado no pagamento do peticionado. Assim não s e entendendo,
(C) O artigo 6.º impõe ao juiz o dever de gestão processual.
(D) O artigo 186.º, n.º 2, al. a), determina os casos em que é inepta a petição inicial, designadamente por falta de causa de pedir;
(E) O artigo 590.º, n.º 4 determina que incumbe (…) ao juiz convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada (…).
(F) O tribunal a quo não fez nenhuma daquelas coisas, tendo concluído que ocorreu uma falta de alegação dos factos essenciais para a causa de pedir e que, por isso, devia a acção em causa improceder.
(G) Pelo que, dúvidas inexistem, que incumpriu os deveres a que se encontrava o brigado.
(H) Entendendo que o Autor não havia alegado suficientemente, devia tê -lo notificado para proceder à densificação da sua alegação.
(I) Acresce que a deficiente ou insuficiente alegação de facto, não deveria conduzir à absolvição do pedido.
(J) Deveria, sim, conduzir à absolvição da instância nos termos do nos termos do n.º 2 do artigo 576.º e nos termos da al. b) do artigo 577.º do Código de Processo Civil.
(K) Acresce que o tribunal a quo entendeu ainda que não foi feita prova suficiente para provar o alegado.
(L) O que encerra uma contradição: se o alegado era insuficiente, então, não poderia ser feito prova sobre o que não foi alegado.
(M)Mas encerra uma segunda contradição que é: se não há audiência de julgamento que permita fazer prova sobre o que foi alegado, então, naturalmente, não iria ser feita prova sobre o que foi (ou não) alegado.
(N) Pelo que resta concluir que a sentença em causa contém diversos erros de direito e, em consequência, deve ser revogada e substituída por uma outra que não cometa os referidos erros de direito.
(O) Motivo pelo qual deverá o tribunal a quo condenar o Réu no pagamento da indemnização peticionada, porquanto não contestou e confessou os factos. Caso assim não se entenda, deverá aquela decisão ser revogada e ser ordenado que o tribunal a quo notifique o Autor para o aperfeiçoamento da sua petição. Caso assim não se entenda, deverão v/ Exas. Ordenar a revogação da sentença e, no limite, absolver o Réu da instância.
IV. DAS NORMAS VIOLADAS
Artigo 6.º, 186.º, n.º 2, al. b), artigo 590.º, n.º 4, artigo 576.º, n.º 2 e artigo 577.º, todos do Código de Processo Civil.
Nestes termos e nos demais de Direito que os Venerandos Desembargadores doutamente suprirão,
a) deverão os Venerandos Desembargadores dar provimento ao presente recurso de apelação, revogando a sentença proferida e proferido em sua substituição acórdão que condene o Réu no peticionado; caso assim não se entenda,
b) deverão os Venerandos Desembargadores, revogar a sentença recorrida e ordenar que o tribunal a quo notifique o Autor para suprir a falta de alegação.
Desta maneira se fazendo a tão costumada JUSTIÇA».
Nas contra-alegações, o recorrido concluiu o seguinte (transcrição):
“A falta de contestação pelo R. dos factos alegados pelo A. não conduz necessariamente à condenação daquele nos exatos termos pretendidos pelo A., mas apenas que os factos alegados por este devem ser dados como provados – o que foi feito.
O tribunal a quo tem de realizar a devida ponderação dos factos provados, e apreciar se dos mesmos resulta, ou não, a verificação dos pressupostos de que depende a ação de responsabilidade civil extracontratual intentada contra o Estado.
No caso em concreto, o tribunal a quo considerou, e bem, salvo melhor opinião em contrário, que não se verificam os pressupostos do erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia a privação da liberdade infligida sobre o A. (cfr. artigo 225.º, n.º 1, b) do CPP) e, como tal, considerou que não se verificam os requisitos da responsabilidade civil extracontratual do Estado, pelo que não há existe obrigação de indemnizar, concluindo pela improcedência do pedido.
No mais, veja-se que o A., nem na motivação, nem nas conclusões do recurso, demonstra, ou sequer tenta demonstrar, que a factualidade dada como provada preenche todos os pressupostos do direito que invoca.
Alega ainda o A. que o tribunal a quo ao concluir, pela falta de alegação e prova, na P.I., dos elementos necessários ao preenchimento do conceito de erro grosseiro (previsto no artigo 225.º, n.º 1, b) do CPP), deveria ter convidado o A. ao aperfeiçoamento ou, no limite, absolvido da instância (por ineptidão da P.I.).
Porém, o tribunal a quo entendeu que os elementos constantes dos autos são suficientes para se pronunciar sobre o pedido, uma vez que não se vislumbram outros elementos que pudessem ser alegados pelo A. que implicassem entendimento diverso (em conformidade com o que parece ser o entendimento espelhado pelo próprio A. no seu articulado).
O tribunal a quo apreciou dos factos alegados pelo A; do despacho de aplicação da medida de coação, que entendeu como correto; verificou que a única incongruência que o A. aponta ao mesmo é o facto de, a final, ter sido absolvido, e, não havendo outros factos que o A. pudesse alegar que implicassem entendimento diverso, entendeu, e bem, que estava em condições de decidir, o que fez, pela improcedência do pedido.
Assim, entendemos que, salvo melhor opinião em contrário, não merece qualquer reparo a sentença proferida.
Nestes termos, negando provimento ao recurso e mantendo a sentença recorrida, Vs. Exªs. afirmarão a justiça!»
Dispensados os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do objecto recursório, cumpre apreciar e decidir.
Foram considerados provados na 1.ª instância os seguintes factos:
1) O Autor foi sujeito à medida de coacção de prisão preventiva por decisão proferida a 19.06.2018, no processo que correu termos sob o n.º 490/18.5PBEVR no Juízo Central Cível e Criminal de Évora – Juiz 2.
2) O Autor e o seu filho, N…, foram apresentados a primeiro interrogatório Judicial indiciados pela prática de um crime de homicídio qualificado sob a forma tentada, previsto e punido pelos artigos 131.º, 132.º, n.º 1 e n.º 2, alínea h), 22.º, 23.º e 73.º do Código Penal e 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, e de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea c), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro.
3) No despacho judicial de aplicação de medida de coacção (que se considera aqui integralmente reproduzido), o Exmo. Juiz fundamentou a forte indiciação dos factos consubstanciadores da prática dos crimes referidos em 2), com base em:
- “Relatório de diligências iniciais (fls. 13 a 17); Relatório de urgência do Hospital do Espírito Santo de Évora (fls. 19 a 20); Reportagem fotográfica efectuada no local onde ocorreram os factos (fls. 21 a 30);
Autos de inquirição das testemunhas M… (fls. 31 a 33), I… (fls. 34 a 36), R… (fls. 37 a 39), J…(fls. 46 a 48) e M… (fls. 49 a 52); - Autos de apreensão do chapéu e de uma camisola de R…, bem como de um cartucho deflagrado e de duas buchas plásticas de cartucho de caça (fls. 40 e 41); - Auto de interrogatório do arguido A… perante a Polícia Judiciária (fls. 65 a 67); - Auto de interrogatório do arguido N… perante a Polícia Judiciária (fls. 70 a 72); - Auto de notícia da PSP de Évora, relatando os factos ocorridos no Bairro do Escurinho, em Évora (fls. 73 a 75); - Informação do Núcleo de Armas e Explosivos da Polícia de Segurança Pública de Évora (fls. 95 a 97); - Documentação clínica (fls. 123 a 124v).”
4) E a forte indiciação dos factos encontra-se fundamentada nos seguintes termos:
- “A indiciação de que os factos se passaram conforme descrito assenta no essencial nos depoimentos do próprio ofendido e dos seus familiares …. Contudo, os depoimentos destas testemunhas, quando comparados com os das testemunhas familiares dos arguidos …, merecem crédito muito maior. Com efeito, J…, apesar de afirmar que esteve presente no local, não viu nem ouviu qualquer tiro. Por seu turno, embora tenha ouvido disparos, M… referiu que estes terão sido feitos pelo próprio ofendido. Ora, é incontestável que foram disparados tiros na direcção de R… e que este foi por eles atingido, conforme resulta da supra referida reportagem fotográfica e dos elementos clínicos referidos. Logo, ao contrário dos depoimentos das testemunhas J… e M…, os depoimentos de M…, de R… e de I…merecem grande crédito, sendo que conjugados com os outros elementos probatórios referidos permitem adjectivar os indícios de fortes.”
5) No que respeita aos perigos a que alude o art. 204.º do Código do Processo Penal, o despacho judicial de aplicação de medida de coacção refere:
- “Ora, entende o Tribunal que na situação em apreço se verifica em relação a qualquer dos arguidos perigo para a perturbação do inquérito, nomeadamente perigo para a aquisição e conservação da prova, bem como, face às circunstâncias do crime e personalidade de cada um dos arguidos, perigo de que estes continuem a actividade criminosa, o que se mostra especialmente premente no que respeita ao crime de homicídio qualificado na forma tentada (mas já não em relação ao crime de detenção de arma proibida).
Com efeito, no que tange ao perigo de perturbação do inquérito, conforme já tivemos oportunidade de referir, nos presentes autos mostra-se especialmente relevante a prova testemunhal. Assim, e fazendo um juízo de prognose, é de antever que a investigação venha a sofrer importantes entraves no caso de os arguidos poderem movimentar-se e comunicar livremente quer com as testemunhas já ouvidas, quer sobretudo com testemunhas que ainda não tenham sido ouvidas, nomeadamente pessoas que não sejam familiares dos arguidos ou do ofendido e que tenham presenciado os factos. Com efeito, ensina-nos a experiência judiciária na comarca que em meios fechados conotados com a delinquência, como é o caso do Bairro do Escurinho, funciona uma regra social de omertà, também – mas não só – devido ao receio de represálias quanto a quem fale com as autoridades. Por outro lado, há que não esquecer que os arguidos agiram com grande energia criminosa, sendo que a animosidade entre os arguidos e o ofendido tem vindo num crescendo, o que também aumenta grandemente o perigo de que os arguidos voltem a atentar contra a vida de Rui Rodrigues ou de seus familiares, nomeadamente o seu filho I….”
6) No que concerne à inexistência de outras medidas preventivas que acautelem os perigos assinalados, o despacho judicial dispõe:
- “Com efeito, não olvidando que a prisão preventiva é uma medida de ultima ratio, não se vislumbra que qualquer das outras previstas no Cód. de Proc. Penal pudesse fazer face aos perigos mencionados, com especial realce para o perigo de continuação da actividade criminosa. É verdade que a obrigação de permanência na habitação, que tem natureza subsidiária relativamente às restantes medidas de coacção à excepção da prisão preventiva, mostra-se adequada para arguidos que dêem alguma garantia de autolimitarem a sua circulação. Todavia, esta regra não pode ser seguida quando o crime em causa seja susceptível de ser praticado a partir do interior da habitação, como se verifica no caso concreto. Com efeito, os arguidos residem a cerca de três dezenas de metros do ofendido (apenas um largo os separa), sendo que a aplicação de qualquer outra medida de coacção diferente da prisão preventiva não impediria que voltassem a atentar contra a vida de R…, nomeadamente quando este se encontrasse a passar na via pública ou mesmo no interior da sua habitação (veja-se que bastaria aos arguidos assomarem à janela de sua casa para disparar na direcção da casa de R…, sem que sequer existisse violação da medida de coacção de obrigação de permanência na habitação ou mesmo da própria vigilância electrónica que fosse aplicada).”
7) O Autor e o seu filho, N…, requereram a providência de habeas corpus, que foi indeferida pelo Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão proferido em 04/07/2018, por não se enquadrar em nenhum dos fundamentos taxativamente enunciados no art. 222.°/2, do CPP.
8) A medida de coacção de prisão preventiva foi mantida até 19.06.2019, altura em que, já em sede de audiência de julgamento, o Autor foi libertado.
9) No mesmo processo 490/18.5PBEVR, por acórdão de 01/07/2019, veio o Autor a ser absolvido da prática, em co-autoria e em concurso real, do crime de homicídio qualificado na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 131.º, 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea h), 22.º 23.º e 73.º, todos do Código Penal e artigo 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro e do crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea c), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, de que vinha acusado.
10) Na fundamentação de facto do acórdão referido em 4) lê-se:
- “No que concerne à conduta imputada aos arguidos A… e N… descrita nos pontos A) a M) não foi feita prova suficiente (…).”
“(…) Quedou-se, pois, o Tribunal na dúvida sobre a efectiva participação nos acontecimentos por parte dos arguidos A… e N…. Assim, em observância do princípio do in dubio pro reu, fixou-se a matéria de facto em sentido mais favorável à defesa dos arguidos.”
11) No acórdão referido em 4) encontra-se redigido uma declaração de voto vencido, por parte de um dos magistrados judiciais, membro do Tribunal Colectivo, que entendeu que a prova produzida era bastante para se considerar provada a matéria respeitante à intervenção do Autor e do arguido N… na prática dos crimes de que vinham acusados, concluindo nos seguintes termos “Assim sendo, considero que, ressalvado o devido respeito, todos os arguidos deveriam ter sido condenados pela prática dos crimes imputados na douta acusação.”
12) O Autor viveu a privação da sua liberdade em solidão, deprimido, com profundas saudades da sua família e amigos, envergonhado perante a cidade onde vive e sem dinheiro para lhes poder telefonar ou comprar, para si, produtos essenciais.
13) E ficou impedido de exercer as suas actividades profissionais habituais, enquanto trabalhador rural, deixando de auferir 7.080€.

2 – Objecto do recurso.

Questão a decidir tendo em conta o objecto do recurso delimitado pelo recorrente nas conclusões da sua alegação, nos termos do artigo 684.º, n.º 3 do CPC, por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso:
1.ª Questão – Saber se há cominatório pleno.
2.ª Questão – Saber se houve omissão do dever de convite ao aperfeiçoamento.
3.ª Questão - Saber se estão preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual do Estado, imputável à função jurisdicional

3 - Análise do recurso.

1.ª Questão – Saber se há cominatório pleno.

O recorrente alega que uma vez que o R não contestou, deveriam ter sido dados como provados os factos alegados na petição inicial e, subsequentemente, ter sido o R condenado no pagamento do peticionado.
Não tem razão.
Em primeiro lugar, importa referir que, como diz o R, basta a simples leitura do ponto III da sentença proferida, na parte relativa aos “FACTOS COM RELEVÂNCIA PARA A DECISÃO DA CAUSA”, para compreender que foram considerados como assentes os factos resultantes da falta de contestação do Ministério Público, quanto aos factos passíveis de serem provados por acordo, e pelos documentos juntos aos autos, quanto aos factos que apenas poderiam ser provados por documento autêntico, como é o caso do teor do despacho de aplicação de medida de coacção e do acórdão proferido no processo 490/18.5PBEVR.
O recorrente não infirma em concreto os factos considerados provados ou não os que deveriam ter sido dados como provados por confissão. Limita-se, de forma vaga e genérica a defender uma cominação e condenação no pedido automática, o que não tem acolhimento na lei.
Ora, o que a lei determina é que se considerem provados os factos, mas não as conclusões e muito menos o direito.
A causa é julgada “conforme for de direito” (n.º 2 in fine do art.º 567.º do CPC) e esse julgamento pode conduzir ou não à procedência da acção, já que há confissão dos factos, mas não do direito, estando-se perante o chamado efeito cominatório semi-pleno associado à revelia operante (Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, Coimbra, 2018, página 630).
Conforme se exarou no Acórdão do STJ de 26-11-2015 (Relator Lopes do Rego) proferido no processo 7256/10.9TBCSC.L1.S4 e publicado em www.dgsi.pt:
“2. O efeito cominatório semi-pleno, decorrente da situação de revelia operante da R./demandada, apenas determina que se devam ter por confessados os factos efectivamente alegados pelo demandante – cabendo ao juiz sindicar da suficiência e concludência jurídica da factualidade assente por confissão ficta, em termos do preenchimento ou não da fattispecie subjacente ao pedido deduzido.”
E, nesse aspecto, nada há que apontar à sentença.
Improcede, nesta parte, o recurso.


2.ª Questão – Saber se houve omissão do dever de convite ao aperfeiçoamento.

Por outro lado, o recorrente alega que se o tribunal considerava que na alegação faltavam factos essenciais para a causa de pedir, deveria ter sido convidado ao suprimento dessa deficiência por força do dever de gestão processual, previsto no art.º 6.º do CPC, o que não fez.
Em causa está a questão de saber se se impunha o convite ao aperfeiçoamento.
Nos termos do artigo 6.ᵒ, n.ᵒ 2 do Código de Processo Civil:
«[o] juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais susceptíveis de sanação, determinando a realização dos atos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de ato que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo».
De outra maneira: o juiz tem o dever de gestão processual, sendo ainda certo que «[…] pode, em qualquer altura do processo, ouvir as partes, seus representantes ou mandatários judiciais, convidando-os a fornecer os esclarecimentos sobre a matéria de facto ou de direito que se afigurem pertinentes e dando-se conhecimento à outra parte dos resultados da diligência»
Dispõe o art. 590º, nº 2, al. b) do CPC que “findos os articulados o juiz profere, sendo caso disso, despacho pré-saneador destinado a (…) providenciar pelo aperfeiçoamento dos articulados, nos termos dos números seguintes“. Por seu turno, o nº 4 do mesmo preceito estipula que “incumbe ao juiz convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido.”
Porém só existe este dever se a petição inicial for deficiente, ou seja, o convite ao aperfeiçoamento de articulados previsto no artigo 590.º, n.ºs 2, alínea b), 3 e 4 do CPC, não compreende o suprimento da falta de alegação de um núcleo de factos essenciais e estruturantes da causa de pedir.
Tal convite destina-se somente a suprir irregularidades dos articulados, designadamente quando careça de requisitos legais, imperfeições ou imprecisões na exposição da matéria de facto alegada.
As deficiências passíveis de suprimento através do convite têm de ser estritamente formais ou de natureza secundária, sob pena de se reabrir a possibilidade de reformulação substancial da própria pretensão ou da impugnação e dos termos em que assentam (artigos 590.º, n.º 6 e 265.º do CPC), o que afrontaria o princípio da estabilidade da instância, previsto no art.º 260.º do CPC, nos termos do qual, após a citação do réu, a instância estabiliza-se quanto ao objecto e às partes.
Como refere Remédio Marques, “Acção Declarativa à Luz do Código Revisto” (pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto), Coimbra Editora, Coimbra, 2007, página 340: «A principal limitação é que este novo articulado não pode conter «uma nova fisionomia factual» que implique uma «alteração substancial dos factos inicialmente apresentados e deficientemente expostos ou concretizados».
Ou dito de outra forma:
Trata-se apenas de suprir imprecisões ou insuficiência na exposição fáctica, mas sem alterar a estrutura fundamental da causa de pedir.
«Não serve para suprir omissões do núcleo de facto essencialmente estruturante da causa de pedir, ou seja, não pode o convite aperfeiçoamento servir para em extensão do prazo, suprir omissões no plano do ónus de alegação da matéria de facto segundo a previsão normativa de que depende o reconhecimento do direito.
Sob pena de subversão do processo o princípio da cooperação não pode ser aplicado sem ter em conta o princípio da auto-responsabilidade das partes, que não comporta ou justifica o suprimento por iniciativa por iniciativa do juiz de toda e qualquer omissão de factos estruturais da causa.» - vide Ac. STJ de 21.09.2006, proc. nº 2772/06 anotado por Miguel Teixeira de Sousa, «Limites da Cooperação do tribunal; Noção de nulidade processual» Cadernos de Direito Privado n.º 17 página 51.
O despacho de aperfeiçoamento não pode ser usado para além dos limites que a lei para ele traça, não sendo admissível a sua prolação nas situações em que resulta da petição inicial que a decisão a proferir será necessariamente de improcedência do pedido – vide neste sentido, Ac. da RP de 23/06/2015, in www.dgsi.pt.
Também concluem nesse sentido, A. Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, CPC Anotado, vol. I, 2.ª edição, Almedina, página 705, onde se pode ler:
“Coisa diversa afastada do âmbito do art. 590º nº 4 do CPC seria permitir à parte, na sequência desse despacho, apresentar ex novo um quadro fáctico até então inexistente, ou de todo imperceptível, restrição que aliás decorre do art. 590º nº 6 do CPC.”
Não cremos que se impusesse (ou imponha) o dever de convite ao aperfeiçoamento no caso dos autos.
Da leitura da petição inicial resulta claramente que o A baseia o seu direito na circunstância de ter cumprido prisão preventiva e posteriormente ter sido absolvido em julgamento.
A sua posição é de que tal ocorrência justifica o seu direito a indemnização.
Ora, esta causa de pedir é insusceptível de conduzir ao direito, mas este “vício” é estrutural, não é susceptível de ser suprido pelo aperfeiçoamento, pois não se trata de suprir imperfeição da exposição.
Da análise da petição inicial resulta claramente que o A entende que o seu direito decorre do facto de lhe ter sido aplicada a prisão preventiva e, posteriormente, ter vindo a ser absolvido.
É o próprio A quem assume que o (alegado) erro grosseiro de que padece o despacho proferido pelo Exm.º Sr. Juiz de Instrução Criminal que aplicou a medida de coacção – prisão preventiva – resulta da circunstância de, a posteriori, em sede de julgamento, ter sido absolvido.
É esta a sua tese.
Convidar a descrever as razões das quais resulta que não praticou o crime ou que actuou justificadamente seria convidar a mudar a sua causa de pedir.
É que não se trata de julgar a inconcludência do relato apresentado.
Não lhe cabe convidar a parte a apresentar um relato de onde resulte a procedência da acção, como que sugerindo a apresentação de uma nova factualidade.
Com efeito, na situação dos autos o relato da relação material controvertida apresentado pela parte é suficiente, pois permite um raciocínio silogístico que leva à conclusão que apresenta - a condenação no pedido.
O convite ao aperfeiçoamento no sentido de que o fundamento apresentado é insuficiente e deveria expor uma outra situação capaz de fundamentar o seu direito, corresponderia a um convite à apresentação ex novo um quadro fáctico até então inexistente, o que é legalmente inadmissível.
Pelo exposto, concluímos que não havia lugar ao convite e, por isso, improcede nesta parte o recurso.


3.ª Questão - Saber se estão preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual do Estado, imputável à função jurisdicional

Como já referimos no caso em apreço, vem o A intentar a presente acção de responsabilidade civil extracontratual contra o Estado, fundamentando o seu pedido no facto de lhe ter sido aplicada prisão preventiva e, posteriormente, em sede de audiência de discussão e julgamento, ter sido absolvido.
Em primeiro lugar, importa referir que este direito a indemnização pelo Estado tem um carácter excepcional e está guardado para as situações, ainda que não reconduzíveis a ilegalidades ou erros judiciários grosseiros, em que se constata, a final, a divergência essencial entre a realidade da vida e a realidade formal, tal como se projectou no processo, ou seja casos de prisão ilegal ou erro judiciário grosseiro, mas não abrange os casos em que os sistema actua normalmente e não se ultrapassa a dúvida que leva à absolvição do arguido.
Nos termos do disposto no art.º 225.º do Código do Processo Penal:
“1 - Quem tiver sofrido detenção, prisão preventiva ou obrigação de permanência na habitação pode requerer, perante o tribunal competente, indemnização dos danos sofridos quando:
a) A privação da liberdade for ilegal, nos termos do n.º 1 do artigo 220.º, ou do n.º 2 do artigo 222.º;
b) A privação da liberdade se tiver devido a erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia; ou
c) Se comprovar que o arguido não foi agente do crime ou actuou justificadamente.
2 - Nos casos das alíneas b) e c) do número anterior o dever de indemnizar cessa se o arguido tiver concorrido, por dolo ou negligência, para a privação da sua liberdade.” (negrito nosso)
Assim sendo, não basta a mera absolvição para que aquele que haja sido privado da sua liberdade possa, em acção de responsabilidade civil contra o Estado, ver os seus danos ressarcidos.
Necessário será que essa absolvição provenha da circunstância de se ter provado que o agente não cometeu o crime, ou que o cometeu ao abrigo de uma causa de justificação.
Como já antes referimos a “tese” do A é a de que o seu direito decorre do facto de lhe ter sido aplicada a prisão preventiva e posteriormente ter vindo a ser absolvido, defendendo que o erro grosseiro de que padece o despacho proferido pelo Exmo. Sr. Juiz de Instrução que aplicou a medida de coacção – prisão preventiva – resulta da circunstância de, a posteriori, em sede de julgamento, ter sido absolvido.
Como também já supra referimos, o fundamento do A não pode conduzir ao direito à indemnização.
O A não aponta nenhuma incongruência probatória ou factual manifesta por parte do Exm.º Juiz de Instrução ao proferir o despacho de aplicação de medida de coacção, acabando por concluir pela existência de “erro grosseiro” apenas pelo simples facto de, em sede de audiência de discussão e julgamento, ter sido absolvido da prática do crime de que vinha acusado.
Note-se que a sua alegação é bem expressiva da falta de qualquer elemento que possa reconduzir-se ao cariz subjectivo desta responsabilidade (ilicitude/culpa por parte do Juiz de Instrução que profere a decisão), condensando os seus argumentos numa única questão de cariz objectivo (e independente de qualquer ilicitude/culpa na decisão proferida na sequência do primeiro interrogatório judicial): a final, o A foi absolvido dos crimes de que vinha acusado.
Ora, é incorrecto pensar que isto é suficiente para o direito à indemnização.
Como já referimos, “o direito à indemnização pressupõe uma absolvição fundamentada no facto de o arguido não ter praticado o crime ou ter actuado justificando o facto” (vide A. Henriques Gaspar, Santos Cabral, Eduardo Maia Costa, António Mendes António Madeira e António da Graça, CPP anotado Almedina 2021, página 861), e não foi isso que aconteceu.
Com efeito, estamos perante um acórdão-crime de absolvição por dúvidas sobre a prática do crime, ou seja, o arguido foi absolvido apenas em obediência ao princípio “in dubio pro reo”, pelo que, face ao teor literal da alínea c), a indemnização só seria devida se o arguido provasse (na acção de indemnização) que efectivamente não praticou o crime ou que actuou justificadamente, o que não fez.
O mesmo é dizer que seria necessário que demonstrasse positivamente a sua inocência e que, como tal, afastasse as suspeitas de culpabilidade que sobre si recaiam.
Logo, a acção não pode deixar de improceder pois o A não conseguiu demonstrar, no caso sub judice, um dos pressupostos constitutivos do direito à indemnização de que se arroga titular, nestes autos, porquanto não comprovou não ter sido ele o agente do crime ou ter agido justificadamente, sendo que a razão que invoca para tal direito – ter sido preso preventivamente e depois absolvido do crime – não é uma razão válida para ter o direito a indemnização pelo Estado.
A circunstância de alguém ser sujeito a prisão preventiva, legal e judicialmente estabelecida e depois vir a ser absolvido em julgamento, sendo então libertado, por não se considerarem provados os factos que lhe eram imputados e que basearam aquela prisão, só por si, não possibilita o direito a indemnização – vide neste sentido, Acórdão do STJ de 01.06.2004, proferido no processo n.º 04A1572 (Relator: Azevedo Ramos) e disponível em www.dgsi.pt.
Pelo exposto, improcede o recurso.

4 – Dispositivo.

Pelo exposto, acordam as juízas da secção cível deste Tribunal da Relação em julgar totalmente improcedente o recurso, mantendo-se a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente.
Évora, 14.10.2021
Elisabete Valente
Ana Margarida Leite
Cristina Dá Mesquita