Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
4/22.2Y2STR.E1
Relator: EMÍLIA RAMOS COSTA
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO DA SEGURANÇA SOCIAL
ADMOESTAÇÃO
MEDIDA DA COIMA
Data do Acordão: 10/27/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I – A lei só deixa de vigorar se for revogada por outra lei, nos termos do art. 7.º do Código Civil, e nunca por desuso.
II – O Decreto-Lei n.º 433/82, de 27-10, regulamenta na íntegra o regime de coimas, nos seus arts. 17.º a 26.º e ainda no art. 51.º, pelo que não é possível considerar-se que existe uma situação de lacuna a preencher pelo Código Penal, nos termos do art. 32.º do citado Decreto-Lei.
III – A admoestação, ao invés da dispensa da coima, foi a solução encontrada para as situações de contraordenações leves e com reduzida culpa do arguido, quer para as contraordenações laborais, quer para as contraordenações gerais.
IV – O apuramento da situação económica da arguida apenas releva para a aplicação da coima entre o montante mínimo e o montante máximo, visto que estes limites têm de ser sempre respeitados, ressalvadas as exceções legalmente previstas.
V – Tendo sido aplicada à arguida a coima pelo seu montante mínimo, o apuramento da sua situação concreta, designadamente de eventuais dificuldades financeiras, em nada alteraria o valor de tal coima.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:
Secção Social do Tribunal da Relação de Évora[1]
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório
A recorrente M... (arguida) veio impugnar judicialmente a decisão do Instituto de Segurança Social que lhe aplicou uma coima no valor de €20.000,00, pela prática de uma contraordenação muito grave, p. e p. pelos arts. 11.º, n.º 1, 39.º-B, al. a), 39.º-E, al. a) e 39.º-H, n.º 1, als. d) e e), do Decreto-Lei n.º 64/2007, de 14-03, republicado em anexo ao Decreto-Lei n.º 33/2014, de 04-03.
O Tribunal de 1.ª instância, realizada a audiência de julgamento, por sentença proferida em 29-04-2022, julgou nos seguintes termos:
Face ao exposto, o Tribunal decide julgar improcedente a impugnação judicial da decisão administrativa apresentada pela recorrente M... e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida, nos seus precisos termos.
*
Custas pela recorrente que se fixam nos termos do artigo 8º do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa ao mesmo diploma.
*
Notifique e comunique à autoridade administrativa competente. (artigo 45º, nº 3 da Lei 107/2009 de 14 de Setembro).
Inconformada, veio a arguida M... interpor recurso da sentença, apresentando as seguintes conclusões:
A. A sentença recorrida não contem factos integradores da contra-ordenação pela qual a recorrente foi condenada, devendo ser tidas como meras conclusões desapoiadas as expressões sentenciais: (i) estrutura residencial; (ii) idosos.
B. Em todo o caso, os factos resultantes da apreciação da causa, mesmo que se tenham por pertinentes, não integram a tipicidade do art 2º do DL 64/2007, 14.03, republicado, a qual não referencia actividades de pessoas singulares em casa de morada de família: cidadãos e não entidades (ou seja, pessoas colectivas); estruturas (no sentido de infra-estruturas), e não moradas.
C. Depois, o absurdo da condenação da ora Recorrente, sem qualquer préstimo preventivo ou repressivo, justifica que, perante a inacção das autoridades, durante estes 5 anos de duração do pleito, o Tribunal de 2ª instancia desaplique, se necessário e conveniente, uma lei pontualmente em desuso.
D. Sem conceder, a recorrente argui a sentença recorrida de um vício negativo do conhecimento, coberto pela falácia de anotações pseudo-económicas, quando deveria ter concluído pela pobreza da arguida e incapacidade de suportar uma coima de uns gigantescos € 20 000,00.
E. Este vício, tem de ser imputado em benefício da ora Recorrente, dado como provado e in dúbio pro reu, precisamente o estado de compulsão à miséria, que resulta da condenação.
F. Por conseguinte, numa primeira linha, a coima tem de ser reduzida, de forma literal, a metade do montante da coima aplicada pela sentença recorrida.
G. Mas, numa segunda linha mais profunda e justa, o montante da coima terá de ser reduzido para o mínimo comum das contra-ordenações, ou, enfim, dispensada a coima, na qual a recorrente continua a não conceder.
H. Em suma, repete a ora Recorrente: Terá pois s.m.o. de ser reformada a sentença para que a Recorrente venha a obter absolvição, ou por aticidade da conduta, ou por carência de factos subsuntivos, ou por excesso de graduação da coima, ou por absurdo socio-normativo.
I. A sentença recorrida infringiu, as normas supletivas do CPP, a saber: do artº 2º do DL 64/2007, 14.03, republicado, artº 368/2.a) e b), e).
Julgando e decidindo de acordo com estas alegações V. Exªs. farão a costumada JUSTIÇA
O Ministério Público apresentou contra-alegações, pugnando, a final, pela improcedência do recurso, apresentando as seguintes conclusões:
1. Resultando da matéria dada como provada que, na data da fiscalização pelos serviços da segurança social a arguida/recorrente não possuía licença para a atividade de residência para idosos que levava a efeito a aplicação da respetiva coima, prevista e punida nos termos dos artºs 11º, 39º-B, alínea a) e 39º-E, alínea a) do Decº-Lei nº 64/2007 de 14/3, republicado pelo Decº-Lei nº 33/2014 de 4/3, era inevitável.
2. Invocar como causa de exclusão da sua ilicitude, como faz a recorrente, a sua alegada situação de pobreza ou o risco da sua insolvência, ou até invocar o direito de necessidade previsto no artº 34º do C. Penal é despropositado.
3. Face à matéria dada como provada pela douta decisão recorrida e pela sua fundamentação jurídica a mesma merece total confirmação porque nenhuma censura há que se possa fazer à mesma.
4. Nestes termos o recurso da recorrente deve ser julgado improcedente e a douta decisão recorrida merece total confirmação.
Assim decidindo estou certo, de que Vªs Exªs farão, JUSTIÇA !
O tribunal de 1.ª instância admitiu o recurso com subida imediata e nos próprios autos, tendo sido admitido tal recurso neste tribunal nos seus exatos termos, apenas se acrescentando o seu efeito como meramente devolutivo.
A Exma. Sra. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, pugnando pela improcedência do recurso, devendo ser mantida a sentença recorrida.
A recorrente não veio responder a tal parecer.
Admitido o recurso e colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar e decidir.
II – Objeto do recurso
Nos termos dos arts. 403.º e 412.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal, ex vi do art. 41.º, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27-10 (RGCO) e arts. 50.º, n.º 4 e 60.º da Lei n.º 107/2009, de 14-09, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da recorrente, ressalvada a matéria de conhecimento oficioso (art. 410.º, nºs. 2 e 3, do Código de Processo Penal).
No caso em apreço, as questões que importa decidir são:
1) Factos conclusivos na matéria factual;
2) Inexistência dos elementos típicos da contraordenação imputada à recorrente;
3) Desuso da norma condenatória; e
4) Diminuição do valor da coima ou dispensa da coima.
III. Matéria de Facto
A matéria de facto mostra-se fixada pela 1.ª instância, uma vez que o tribunal da relação, em sede contraordenacional laboral, apenas conhece da matéria de direito (art. 51.º, n.º 1, da Lei n.º 107/2009, de 14-09), com exceção das situações previstas no art. 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
A decisão da 1.ª instância considerou provados os seguintes factos:
A) A 19 de Janeiro de 2017, a recorrente mantinha em funcionamento estrutura residencial para pessoas idosas.
B) Na referida estrutura residencial encontravam-se 5 pessoas idosas.
C) Que pagavam valores entre os € 300,00 e os € 500,00 mensais.
D) O estabelecimento não é detentor da correspondente licença de utilização, emitida pela Câmara Municipal de Santarém para a resposta social de Estrutura Residencial para Pessoas Idosas.
E) Os idosos encontravam-se cuidados, com a higiene pessoal feita, devidamente vestidos e as instalações encontravam-se limpas e arrumadas e sem odores desagradáveis.
F) A recorrente sabia que carecia de obter a necessária licença para funcionamento da ERPI, mas não o quis fazer, com não fez.
E considerou não provados os seguintes factos:
1. Os idosos não se encontravam acolhidos pela recorrente, encontrando-se no local apenas como convidados a fim de conviverem.
2. Dois dos idosos acolhidos eram tios da recorrente.
IV – Enquadramento jurídico
1) Factos conclusivos na matéria factual
Considera a recorrente que na matéria de facto constam expressões conclusivas, a saber, “estrutura residencial” e “idosos”, que, por isso mesmo, não podem ser atendidas, impedindo-a de se defender, por ausência de elementos factuais.
É inquestionável que a matéria de facto deve incindir sobre factos, porém, não consta da legislação processual qualquer definição do que sejam os factos.
Conforme bem refere Alberto Augusto Vicente Ruço[2] “quando aludimos a factos, o senso comum, diz-nos que nos referimos a algo que aconteceu ou está acontecendo na realidade que nos envolve e percecionamos”.
De igual modo, referem Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora[3] que os factos “abrangem as ocorrências concretas da vida real”, tecendo ainda as seguintes considerações sobre este tema:
Dentro da vasta categoria dos factos (processualmente relevantes), cabem não apenas os acontecimentos do mundo exterior (da realidade empírico-sensível, diretamente captável pelas perceções do homem – ex propiis sensibus, visus et audictus), mas também os eventos do foro interno, da vida psíquica, sensorial ou emocional do individuo (v.g. vontade real do declarante (…); o conhecimento dessa vontade pelo declaratário; (…) o conhecimento por alguém de determinado evento concreto (…); as dores físicas ou morais provocadas por uma agressão corporal ou por uma injúria.
[…]
Anote-se, por fim, que a área dos factos (selecionáveis para o questionário) cobre, principalmente, os eventos reais, as ocorrências verificadas; mas pode abranger também as ocorrências virtuais (os factos hipotéticos), que são, em bom rigor, não factos, mas verdadeiros juízos de facto.
[…]
São realidades de uma zona empírica que se inscreve ainda na área da instrução da causa […]. Mas trata-se da zona imediatamente contígua à dos juízos de valor e à dos juízos significativo-normativos, que, integrando a esfera do direito, embora estritamente ligados ao circunstancialismo concreto pertencem já a uma outra jurisdição.

Deste modo, os factos meramente conclusivos, quando constituam “uma consequência lógica retirada de factos simples e apreensíveis[4]” podem ainda integrar o acervo factual, “apenas devendo considerar-se não escritos se integrarem matéria de direito que constitua o thema decidendum”. Por sua vez, na seleção da matéria de facto, deve excluir-se as proposições normativas ou os juízos jurídico-conclusivos, visto que para tal se mostra reservada a análise jurídica da questão.
Tudo o que for de excluir da matéria factual deverá ser eliminado[5] ou ter-se como não escrito[6].
Vejamos o caso concreto.
Constam dos factos provados A), B) e E) que:
A) A 19 de Janeiro de 2017, a recorrente mantinha em funcionamento estrutura residencial para pessoas idosas.
B) Na referida estrutura residencial encontravam-se 5 pessoas idosas.
E) Os idosos encontravam-se cuidados, com a higiene pessoal feita, devidamente vestidos e as instalações encontravam-se limpas e arrumadas e sem odores desagradáveis.

Relativamente às expressões “estrutura residencial”[7] ou “estabelecimento”[8], apesar de as mesmas incluírem em si uma conclusão, não deixam de constituir uma consequência lógica retirada de factos simples e facilmente apreensíveis, das quais resulta estarmos perante uma residência que possui uma estrutura que permite o acolhimento de pessoas idosas ou perante uma residência que funciona como um estabelecimento para acolhimento de pessoas idosas, pelo que devem considerar-se integrando a matéria factual. Atente-se que os factos provados B), C) e E) desenvolvem mais detalhadamente em que moldes tal estrutura se mostrava organizada.
Relativamente à expressão “idosos”, a mesma mostra-se utilizada no seu sentido corrente, e constitui, igualmente, uma consequência lógica retirada de factos simples e facilmente apreensíveis, pelo que deve considerar-se integrando a matéria factual.
Acresce que, aquando da impugnação judicial que interpôs da decisão administrativa condenatória, a recorrente, não só compreendeu o alcance de tal expressão, como a utilizou nessa impugnação, descrevendo as pessoas que foram encontradas nessa residência exatamente como “idosos”[9].
Pelo exposto, nesta parte, improcede a pretensão da recorrente.

2) Inexistência dos elementos típicos da contraordenação imputada à recorrente
Considera a recorrente inexistirem os elementos típicos da contraordenação que lhe é imputada por (i) as expressões “estrutura residencial” e “idosos” serem conclusivas; e (ii) as casas de morada de família e as pessoas singulares não se encontrarem abrangidas por tal contraordenação, em face do disposto no art. 2.º do Decreto-Lei n.º 64/2007, de 14-03, republicado em anexo ao Decreto-Lei n.º 33/2014, de 04-03.
Relativamente à primeira situação, uma vez que se considerou que tais expressões constituíam factos, nada mais há a mencionar.
Vejamos, então, a segunda situação.
Dispõe o art. 2.º do Decreto-Lei n.º 64/2007, de 14-03, republicado em anexo ao Decreto-Lei n.º 33/2014, de 04-03, que:
1 - O presente decreto-lei aplica-se aos estabelecimentos prestadores de serviços de apoio social estabelecidos em território nacional das seguintes entidades:
a) Sociedades ou empresários em nome individual;
b) Instituições particulares de solidariedade social ou instituições legalmente equiparadas;
c) Entidades privadas que desenvolvam atividades de apoio social.
2 - O presente decreto-lei aplica-se ainda aos prestadores de serviços de apoio social legalmente estabelecidos noutro Estado Membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu que desenvolvam as atividades previstas no artigo 4.º, no cumprimento do estabelecido no artigo 11.º do Decreto-Lei 92/2010, de 26 de julho.
3 - O presente decreto-lei não se aplica aos organismos da Administração Pública, central, regional e local, e aos estabelecimentos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.

Relativamente à designação “estabelecimento”, o que nele releva não é a situação onde o mesmo é exercido (se na casa de morada de família ou nas instalações de uma pessoa coletiva), antes sim a circunstância de nele se prestarem determinados serviços em troca de determinada remuneração, o que, no caso concreto, se mostra comprovado (factos provados B), C) e E)).
Relativamente às entidades que podem exercer a atividade de prestadores de serviços de apoio social, exatamente por se tratar de uma atividade remunerada, terá a mesma de se encontrar coletada nas finanças, pelo que, não se reportando a uma sociedade, a uma instituição particular de solidariedade social ou instituição legalmente equiparada, e a uma entidade privada que desenvolva atividades de apoio social, terá de ser um empresário em nome individual. No entanto, tal não significa que quem desenvolva tal atividade, fugindo ao seu contributo fiscal, passe a exercer esta atividade de forma legal.
Veja-se, aliás, que o art. 13.º deste Decreto-Lei refere expressamente proibições para pessoas singulares e para pessoas coletivas. E definitivamente esclarecedor é o art. 39.º-G deste Decreto-Lei que enuncia explicitamente que as coimas, como é o caso, são aplicadas quer às pessoas singulares, quer às pessoas coletivas, pelo que inexiste qualquer dúvida que o incumprimento da presente legislação se aplica a pessoas singulares, como é o caso da recorrente.
Deste modo, a contraordenação prevista nos arts. 11.º, n.º 1, 39.º-B, al. a), 39.º-E, al. a) e 39.º-H, n.º 1, als. d) e e), do Decreto-Lei n.º 64/2007, de 14-03, republicado em anexo ao Decreto-Lei n.º 33/2014, de 04-03, aplica-se quer a pessoas singulares quer a estabelecimentos que se encontrem a funcionar nas residências (casa de morada de família) dessas pessoas.
Assim, também neste aspeto falece a argumentação da recorrente.

3) Desuso da norma condenatória
Entende a recorrente que, uma vez que as autoridades nada fizeram, quer a título preventivo, quer a título repressivo, durante os 5 anos de duração do presente pleito, nada justifica a atual condenação, pelo que deverá ser desaplicada uma lei pontualmente em desuso.
Apreciemos.
Nos termos dos arts. 1.º e 3.º do Código Civil, são fontes imediatas do direito as leis e as normas corporativas, possuindo os usos valor jurídico apenas na medida em que não contrariem os princípios da boa-fé, mas apenas quando a lei o determine, prevalecendo igualmente as normas corporativas sobre os usos.
Por sua vez, nos termos do art. 6.º do Código Civil, a ignorância ou má interpretação da lei não justifica a falta do seu cumprimento, nem isenta as pessoas das sanções nela estabelecidas.
E, por fim, nos termos o art. 7.º do Código Civil, se não estivermos perante lei de vigência temporária, a lei só deixa de vigorar se for revogada por outra lei.
No caso em apreço, os arts. 11.º, n.º 1, 39.º-B, al. a), 39.º-E, al. a) e 39.º-H, n.º 1, als. d) e e), do Decreto-Lei n.º 64/2007, de 14-03, republicado em anexo ao Decreto-Lei n.º 33/2014, de 04-03, não se reportam a normas legais de vigência temporária e não foram revogadas por qualquer diploma legal, pelo que se encontram plenamente em vigor.
De referir ainda que a inoperância das instituições competentes na sua atuação de fiscalização do cumprimento da lei e de repressão de comportamentos violadores da lei apenas traduz um sistema de organização estatal pontualmente mal gerido e a necessitar de aperfeiçoamento, sendo tal situação, porém, completamente alheia ao modo de criação e revogação das leis num Estado de Direito Democrático como é o Estado Português.
Pelo exposto, apenas nos resta concluir pela improcedência, também nesta matéria, da pretensão da recorrente.

4) Diminuição do valor da coima ou dispensa da coima
Entende, por fim, a recorrente que a coima que lhe foi aplicada tem de ser reduzida para metade ou para o mínimo comum das contraordenações ou mesmo dispensada, uma vez que o tribunal a quo não apurou a sua situação económica, pelo que deve ser considerado, através do princípio do in dubio pro reu, que a recorrente vive numa situação de pobreza, sendo incapaz de suportar o valor da coima em que foi condenada.
Decidamos.
Dispõe o art. 39.º-B, al. a), do Decreto-Lei n.º 64/2007, de 14-03, republicado em anexo ao Decreto-Lei n.º 33/2014, de 04-03, que:
Constituem infrações muito graves:
a) A abertura ou o funcionamento de estabelecimento que não se encontre licenciado nem disponha de autorização provisória de funcionamento válida;

Estipula, por sua vez, o art. 39.º-E, al a), do Decreto-Lei n.º 64/2007, de 14-03, republicado em anexo ao Decreto-Lei n.º 33/2014, de 04-03, que:
Às infrações previstas nos artigos 39.º-B a 39.º-D são aplicáveis as seguintes coimas:
a) Entre 20 000,00 EUR e 40 000,00 EUR, para a infração muito grave referida na alínea a) do artigo 39.º-B;

Determina, ainda, o art. 39.º-G do Decreto-Lei n.º 64/2007, de 14-03, republicado em anexo ao Decreto-Lei n.º 33/2014, de 04-03, que:
1 - Os limites máximos e mínimos das coimas previstas no presente decreto-lei aplicam-se quer às pessoas singulares quer às pessoas coletivas, sendo reduzidos a metade quando aplicáveis a entidades que não tenham finalidade lucrativa.
2 - Em caso de reincidência, os limites mínimo e máximo da coima são elevados em um terço do respetivo valor.

Consagra, por fim, o art 39.º-I do Decreto-Lei n.º 64/2007, de 14-03, republicado em anexo ao Decreto-Lei n.º 33/2014, de 04-03, que:
1 - A determinação da medida da coima faz-se em função da gravidade da contraordenação, da culpa, da situação económica do agente e do benefício económico que este retirou da prática da contraordenação.
2 - Se o agente retirou da infração um benefício económico calculável superior ao limite máximo da coima, e não existirem outros meios de o eliminar, pode este elevar-se até ao montante do benefício, não devendo todavia a elevação exceder um terço do limite máximo legalmente estabelecido.

Dos citados artigos decorre, desde logo, que, atenta a contraordenação pela qual a recorrente se mostra condenada (art. 39.º-B, al. a), do Decreto-Lei n.º 64/2007, de 14-03, republicado em anexo ao Decreto-Lei n.º 33/2014, de 04-03), foi-lhe aplicada o montante mínimo previsto (art. 39.º-E, al a), do Decreto-Lei n.º 64/2007, de 14-03, republicado em anexo ao Decreto-Lei n.º 33/2014, de 04-03), sendo que apenas se mostra consagrada a redução do montante mínimo a metade quando tal contraordenação seja aplicável a entidades que não tenham finalidade lucrativa (art. 39.º-G, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 64/2007, de 14-03, republicado em anexo ao Decreto-Lei n.º 33/2014, de 04-03). Ora, atento o facto provado C), é manifesta a finalidade lucrativa da recorrente, pelo que tal redução não se mostra legalmente prevista.
De igual modo, não se mostra prevista a redução ao “mínimo comum das contraordenações”, visto que para as contraordenações previstas neste diploma a única redução prevista é a mencionada no citado art. 39.º-G, n.º 1.
Por último, quanto à dispensa da coima, para além de a recorrente não invocar qualquer disposição legal onde assente tal pretensão, tal regime não se mostra previsto nem no citado Decreto-Lei, nem na Lei n.º 107/2009, de 14-09[10], nem no Decreto-Lei n.º 433/82, de 27-10[11]. Por outro lado, como o Decreto-Lei n.º 433/82, de 27-10, regulamenta na íntegra o regime de coimas, nos seus arts. 17.º a 26.º e ainda no art. 51.º[12], não é possível considerar-se que existe uma situação de lacuna a preencher pelo Código Penal, nos termos do art. 32.º do citado Decreto-Lei. Atente-se que a admoestação, ao invés da dispensa da coima, foi a solução encontrada para as situações de contraordenações leves e com reduzida culpa do arguido, quer para as contraordenações laborais[13], quer para as contraordenações gerais[14]. Ora, como já mencionámos supra, a contraordenação pela qual a recorrente se encontra condenada, não só não é leve, como é muito grave.
De referir ainda que o apuramento da situação económica da recorrente apenas teria relevância se a coima aplicada tivesse sido superior ao mínimo legal, visto que o disposto no art 39.º-I do Decreto-Lei n.º 64/2007, de 14-03, republicado em anexo ao Decreto-Lei n.º 33/2014, de 04-03, sempre terá de respeitar os limites mínimos e máximos previstos nas respetivas contraordenações, ressalvadas as exceções previstas nesse mesmo artigo[15].
Ora, tendo sido aplicada à arguida a coima pelo seu montante mínimo, o apuramento da sua situação concreta, designadamente de eventuais dificuldades financeiras, em nada alteraria o valor de tal coima.
Nesta conformidade, improcede, também aqui, a pretensão da recorrente.
V - Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso improcedente, e, consequentemente, confirmar a sentença recorrida.
Custas a cargo da recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC (art. 8.º, n.º 7 e tabela III do Regulamento das Custas Processuais).
Notifique.
Évora, 27 de outubro de 2022
Emília Ramos Costa (relatora)
Moisés Silva
Mário Branco Coelho
__________________________________________________
[1] Relatora: Emília Ramos Costa; 1.º Adjunto: Moisés Silva; 2.º Adjunto: Mário Branco Coelho (arts. 418.º e 419.º do Código de Processo Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 13/2022, de 01-08).
[2] Prova e Formação da Convicção do Juiz, Coletânea de Jurisprudência, Almedina, 2016, p. 55.
[3] Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra Editora, pp. 406-408.
[4] Acórdão do TRC, proferido em 20-06-2018, no âmbito do processo n.º 13/16.0GTCTB.C1, consultável em www.dgsi.pt.
[5] Acórdão do STJ, proferido em 29-04-2015, no âmbito do processo n.º 306/12.6TTCVL.C1.S1, consultável em www.dgsi.pt.
[6] O já citado acórdão do TRC, proferido em 20-06-2018.
[7] Igual expressão utilizada nos acórdãos deste tribunal proferidos em 24-10-2019 no âmbito do processo n.º 1611/18.3T8TMR.E1; em 15-04-2021 no âmbito do processo n.º 2548/20.1T8FAR.E1; e em 08-10-2020 no âmbito do processo 1340/19.0T8TMR.E1.
[8] Expressão mencionada na decisão administrativa.
[9] Veja-se designadamente os arts. 12, 13 e 14 dessa impugnação.
[10] De aplicação subsidiária nos termos do art. 39.º-K, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 64/2007, de 14-03, republicado em anexo ao Decreto-Lei n.º 33/2014, de 04-03.
[11] De aplicação subsidiária nos termos do art. 60.º da Lei n.º 107/2009, de 14-09.
[12] Conforme acórdãos, do TRL proferido em 09-10-2019 no âmbito do processo n.º 2277/18.6T8BRR.L1-4; e do TRE proferido em 26-11-2013 no âmbito do processo n.º 3342/12.9TASTB.E1; consultáveis em www.dgsi.pt.
[13] Art. 48.º da Lei n.º 107/2009, de 14-09.
[14] Art. 51.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27-10.
[15] Na última parte do n.º 1 e no n.º 2 desse artigo.