Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
354/21.5T8BJA-A.E1
Relator: ANA MARGARIDA LEITE
Descritores: ATRIBUIÇÃO DA CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
ARRENDAMENTO
Data do Acordão: 03/30/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I – A casa de morada de família pode ser dada de arrendamento pelo tribunal a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, ainda que constitua bem próprio do outro cônjuge e prescindindo do consentimento deste, nos termos previstos no artigo 1793.º, n.º 1, do Código Civil;
II – Pertencendo a casa de morada de família exclusivamente a um dos ex-cônjuges, assiste ao outro ex-cônjuge legitimidade para formular o pedido de atribuição do gozo da mesma a título de arrendamento;
III - A constituição por decisão judicial de uma relação de arrendamento relativa à casa de morada de família pressupõe que tal tenha sido pedido pelo cônjuge com legitimidade para o efeito;
IV – Mostra-se inconcludente a pretensão, deduzida pela requerida na reconvenção, no sentido de lhe ser atribuída a título gratuito a casa de morada de família pertencente ao outro ex-cônjuge, considerando que o efeito jurídico pretendido não decorre de qualquer norma legal;
V - Estando em causa um bem próprio do outro cônjuge, não se vislumbra preceito legal que conceda ao ex-cônjuge o direito a exigir a atribuição da casa de morada de família a título gratuito.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 354/21.5T8BJA-A.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Beja
Juízo de Família e Menores de Beja


Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:


1. Relatório

Por apenso à ação de divórcio sem consentimento de um dos cônjuges instaurada por (…) contra (…), convolada para divórcio por mútuo consentimento, no âmbito da qual foi decretado o divórcio entre ambos, deduziu (…) o presente incidente contra (…), requerendo, pelos motivos que expõe, que a casa de morada de família, imóvel que constitui bem próprio do requerente, lhe seja atribuída ou, caso assim se não entenda, seja celebrado contrato de arrendamento, com o prazo máximo de 2 anos, mediante o qual a requerida passe a pagar ao requerente uma renda mensal não inferior a € 1.500,00.
Realizada tentativa de conciliação, não foi obtido acordo entre os ex-cônjuges.
A requerida contestou, opondo-se ao peticionado pelo requerente e deduzindo reconvenção, pedindo lhe seja atribuída, a título gratuito, a casa de morada de família, pelos motivos que expôs.
Por despacho de 11-05-2022, foi comunicado às partes que o estado do processo permitia a prolação de decisão final.
Foi realizada audiência prévia.
Por decisão de 29-11-2022, foi fixado o valor à causa e proferido despacho saneador, após o que se discriminou os factos considerados provados e se conheceu do mérito da causa, julgando-se procedente a pretensão deduzida a título principal pelo requerente e improcedente a reconvenção deduzida pela requerida, nos termos seguintes:
Em face do exposto, e ao abrigo das citadas disposições normativas, julgo procedente a providência de atribuição de casa de morada de família formulada por (…) e improcedente o pedido reconvencional formulado por (…).
*
Vencida na pretensão formulada, devem as respectivas custas ficar a cargo da requerida (artigos 527.º, n.os 1 e 2, do Código de Processo Civil).
*
Registe e notifique.
Inconformada, a requerida interpôs recurso desta decisão, pedindo seja revogada e terminando as alegações com as conclusões que se transcrevem:
I. É tempo de concluir, dando cumprimento ao artigo 639.º do CPC.
II. O presente recurso de apelação tem por objecto a insuficiência da matéria de facto, na parte em que omitiu matéria relevante que deve ser ampliada e em face dessa insuficiência conduziu a uma errada aplicação do direito.
III. Considera a Apelante que a matéria de facto provada não basta para fundamentar a solução de direito adoptada, julgando procedente o pedido do apelado, postergando prova essencial à boa decisão da causa e relevante para a decisão, e cujo apuramento conduziria possivelmente a uma solução legal distinta.
IV. Entende ainda a apelante que o Tribunal a quo, face à insuficiência da matéria de facto efectuou uma errada aplicação da lei substantiva ao presente processo, tendo proferido uma decisão arreigada dos princípios e pressupostos da lei, nomeadamente do artigo 1793.º do CC.
V. O Tribunal a quo assentou a sua fundamentação na falta de prova sobre os factos constitutivos do direito da aqui apelante, para concluir pela atribuição do uso da casa de morada de família ao apelado.
VI. A lei pretende que a casa de morada da família, decretado o divórcio ou a separação judicial de pessoas e bens, possa ser utilizada pelo cônjuge ou ex-cônjuge a quem for mais justo atribuí-la, tendo em conta, designadamente, as necessidades de um e de outro.
VII. Este critério geral, segundo nos quer parecer, não pode ser outro senão o de que a atribuição ou o direito ao arrendamento da casa de morada da família deve ser atribuído ao cônjuge ou ex-cônjuge que mais precise dela.
VIII. A necessidade do imóvel parece-nos ser, assim, o factor principal a atender.
IX. Na avaliação da premência da necessidade da casa deve o tribunal ter em conta, em primeiro lugar, justamente estes dois elementos, que mais expressivamente a revelam.
X. Haverá que considerar ainda as demais «razões atendíveis»: a idade e o estado de saúde dos cônjuges ou ex-cônjuges, a localização da casa relativamente ao local de trabalho de um e outro, o facto de algum deles dispor eventualmente de outra casa em que possa estabelecer a sua residência, etc.».
XI. O tribunal deve atribuir o direito de arrendamento da casa de morada de família ao cônjuge que mais precise dela, necessidade esta a inferir, por exemplo, da sua situação económica líquida, do interesse dos filhos, da idade e do estado de saúde dos cônjuges ou ex-cônjuges, da localização da casa em relação aos seus locais de trabalho, da possibilidade de disporem doutra casa para residência, e que só quando as necessidades de ambos os cônjuges ou ex-cônjuges forem iguais ou sensivelmente iguais haverá lugar para considerar a culpa que possa ser ou tenha sido efectivamente imputada a um ou a outro na sentença de divórcio ou separação judicial de pessoas e bens.
XII. Compete ao cônjuge que pretende que lhe seja atribuída a casa de morada de família alegar e provar que necessita mais que o outro da referida casa, sendo que a necessidade da habitação é uma necessidade actual e concreta (e não eventual ou futura), a apurar segundo a apreciação global das circunstâncias particulares de cada caso.
XIII. A norma do artigo 1793.º do Código Civil tem como objectivo fundamental proteger o ex-cônjuge mais atingido pelo divórcio quanto à estabilidade da habitação familiar.
XIV. Importa, pois, atender às necessidades de cada um dos cônjuges.
XV. Este é o primeiro facto que a lei manda considerar, havendo que ter em conta também, se for caso disso, a posição que cada um dos cônjuges fica a ocupar, depois da dissolução do casamento, em face do agregado familiar.
XVI. Tais pressupostos servem para ter como inquestionável e face à factualidade provada no que respeita às necessidades actuais de cada um dos então Requerentes, se tem por certo que a casa de morada de família deve ser atribuída a um ou a outro, independentemente de se tratar bem próprio deste ou comum.
XVII. As razões determinantes de tal decidir, terão que radicar na matéria factual considerada provada, de onde resulte as necessidades de cada uma das partes, o que o tribunal a quo manifestamente não fez.
XVIII. O Tribunal a quo limitou-se nos factos provados, a elencar os bens que a aqui Apelante possui, sem cuidar de saber sobre as necessidades de cada um dos ex-cônjuges, não tendo este sequer (Apelado) provado que necessita mais que a Apelante do referido imóvel, sendo que a necessidade da habitação é uma necessidade actual e concreta (e não eventual ou futura), a apurar segundo a apreciação global das circunstâncias particulares de cada caso.
XIX. O Tribunal a quo, não tendo realizado a audiência de discussão e julgamento, produzindo a prova testemunhal arrolada que lhe competia, não conheceu de elementos essenciais que o habilitasse a aferir qual dos dois ex-cônjuges tinha maior necessidade de continuar ou passar a residir no imóvel em questão;
XX. Sequer apreciou, avaliou e ponderou o teor dos documentos juntos à Oposição da Apelante, que revelam que o prédio sito em Beja, na Rua dos Açoutados, não possui qualquer condição de habitabilidade, pelo menos sem que sejam efectuadas profundas obras de remodelação.
XXI. Ou se a apelante ainda possui parte do dinheiro recebido em 2018 - Ponto K dos factos provados.
XXII. Ou se pode denunciar o contrato de arrendamento da fracção autónoma da qual é usufrutuária em Cascais - Ponto M, N e O dos factos provados.
XXIII. A insuficiência da matéria de facto, conduz, em nossa modesta opinião à errada aplicação da lei substantiva.
XXIV. O artigo 1793.º, n.º 1, do C. Civil fixa os critérios a que se deve atender para determinar qual dos cônjuges poderá continuar a habitar a casa, sendo que se entende que esses critérios ali enumerados de forma expressa são os mais importantes, por isso mesmo sendo expressamente indicados, sendo eles dois, a saber:
(i) as necessidades de cada um dos cônjuges, e
(ii) o interesse dos filhos do casal.
XXV. Nessa medida, apenas haverá que recorrer a outros critérios, em caso de dúvida ou de situação de igualdade entre ambos os cônjuges com o recurso àqueles, podendo alinhar-se entre estes critérios suplementares os que definem e caracterizam de forma mais ampla, como “razões atendíveis”, o quadro vivencial de cada um dos ex-cônjuges, com relevância para aquilatar relativamente a cada um deles a premência dessa necessidade, agora num sentido mais amplo.
XXVI. Sendo certo que a necessidade da habitação é uma necessidade atual e concreta (e não eventual ou futura), a apurar segundo a apreciação global das circunstâncias particulares de cada caso.
XXVII. No caso vertente não resulta de todo a premência da necessidade por parte do Apelado de lhe ser atribuído o direito ao uso da casa de morada de família.
XXVIII. Assim sendo, bem teria andado o tribunal recorrido se tivesse julgado procedente o pedido reconvencional da Apelante, nos precisos termos do peticionado na Oposição apresentada.»
O requerente apresentou contra-alegações, pronunciando-se no sentido da manutenção do decidido.
Face às conclusões das alegações da recorrente e sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso, cumpre apreciar as questões seguintes:
- da oportunidade do conhecimento do mérito da causa no despacho saneador;
- subsidiariamente, da reapreciação do mérito da causa.
Corridos os vistos, cumpre decidir.


2. Fundamentos

2.1. Decisão de facto
A 1.ª instância considerou provados os factos seguintes:
A. (…) e (…) contraíram matrimónio no dia 20 de Julho de 1991, com convenção antenupcial, sob o regime da separação de bens;
B. Após contraírem matrimónio, requerente e requerida passaram a residir na Herdade (…), Freguesia da Salvada, Beja, propriedade da mãe do requerente e na qual este trabalhava na agricultura.
C. No ano de 1995 foram residir num apartamento, sito em Beja, que ambos adquiriam.
D. No ano de 2000, o requerente e a requerida foram residir para o Monte (…).
E. Foi na casa do Monte (…) que o requerente e requerida estabeleceram a sua casa de morada de família.
F. Pela Ap. (…), de 1999/09/28 encontra-se inscrito a favor de (…), casado com (…), no regime da separação de bens a propriedade do prédio misto com a área de 51,575m2, denominado “Herdade do Monte (…)”, sito na freguesia de (…), concelho de Beja, composto a parte rústica por cultura arvense, oliveiras, habitação e dependência agrícola e terreno estéril; a parte urbana destinada a habitação e anexo para arrecadações, com a área de 481,90m2, incluída na parte rústica, descrito na Conservatória do Registo Predial de Beja sob o n.º …/19990928;
G. Em Outubro/Novembro de 2020 o requerente saiu de casa e deixou de viver no Monte (…);
H. Em 18 de Março de 2021 o requerente instaurou acção de divórcio sem consentimento do outro cônjuge;
I. A requerida continua a residir no Monte (…), e ali pretende continuar;
J. Pela Ap. (…), de 2011/04/13 encontra-se inscrita a favor de (…) a propriedade da fracção autónoma designada pela letra B do imóvel constituído em propriedade horizontal descrito na Conservatória do Registo Predial de Cascais sob o n.º …/19880802 – B, sito na Rua da (…), lote E, freguesia e concelho de Cascais;
K. Em 2018, a requerida e os irmãos venderam um imóvel pelo qual coube à requerida a quantia de € 200.000,00;
L. Por escritura pública de compra e venda, lavrada no cartório notarial de (…), a 1 de Fevereiro de 2019, a requerida adquiriu a propriedade do prédio urbano sito na Rua dos (…), freguesia de Beja (São João Batista), concelho de Beja, descrito na Conservatória do Registo Predial de Beja sob o n.º (…), da dita freguesia;
M. Pela Ap. (…), de 2020/11/18 encontra-se inscrita, em comum, e partes iguais, a favor de (…) e de (…), a nua propriedade da fracção autónoma designada pela letra A do imóvel constituído em propriedade horizontal descrito na Conservatória do Registo Predial de Cascais sob o n.º …/19880802 – A, sito na Rua da (…), freguesia e concelho de Cascais;
N. Pela Ap. (…), de 2020/11/18 encontra-se inscrito favor de (…), o usufruto da fracção autónoma designada pela letra A do imóvel constituído em propriedade horizontal descrito na Conservatória do Registo Predial de Cascais sob o n.º …/19880802 – A, sito na Rua da (…), freguesia e concelho de Cascais;
O. A requerida deu de arrendamento a fracção id. em N, em 1 de Janeiro de 2021, pelo qual aufere a renda mensal de € 1.000,000.

2.2. Apreciação do objeto do recurso
Está em causa nos presentes autos a atribuição ao requerente ou à requerida, na sequência da dissolução por divórcio do respetivo casamento, da casa de morada de família, a qual constitui bem próprio do requerente.
A 1.ª instância conheceu do mérito da causa no despacho saneador, tendo apreciado a pretensão deduzida pelo requerente, no sentido de lhe ser atribuída a casa de morada de família, que julgou procedente, bem como a pretensão formulada pela requerida em sede de reconvenção, no sentido de lhe ser a mesma atribuída a título gratuito, que considerou improcedente, o que vem questionado na apelação, defendendo a recorrente que o estado do processo não permitia a apreciação de tais pedidos sem a produção de prova.
Invoca a apelante a insuficiência da matéria de facto considerada provada para a apreciação do mérito da causa, sustentando que não foi produzida prova sobre factualidade que considera relevante, a qual teria determinado uma diversa decisão do pleito.
A justificar tal alegação, afirma que a 1.ª instância atribuiu a casa de morada de família ao apelado em resultado da falta de prova de factos constitutivos do direito invocado pela apelante, sendo que não foi produzida a prova pela mesma apresentada, não tendo sido realizada a audiência final.
Defende a recorrente que o conhecimento do mérito da causa exigia a produção de prova que permitisse aferir qual dos ex-cônjuges tem maior necessidade de residir no imóvel em questão, o que não foi efetuado; acrescenta que não foi produzida prova que permitisse esclarecer, designadamente, o seguinte: se o prédio sito em Beja, na Rua dos (…), tem condições de habitabilidade sem a realização de profundas obras de remodelação; se a apelante ainda possui parte do dinheiro a que alude a alínea K da factualidade provada; se a apelante pode denunciar o contrato de arrendamento da fração autónoma a que aludem as alíneas M, N e O da matéria provada, sita em Cascais e de que é usufrutuária.
Vejamos se lhe assiste razão.
Definindo as finalidades do despacho saneador, dispõe o n.º 1 do artigo 595.º do Código de Processo Civil que se destina a: a) Conhecer das exceções dilatórias e nulidades processuais que hajam sido suscitadas pelas partes, ou que, face aos elementos constantes dos autos, deva apreciar oficiosamente; b) Conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma exceção perentória.
Prevê a alínea b) do citado preceito o conhecimento do mérito da causa no despacho saneador, se o estado do processo o permitir, sem necessidade de mais provas.
Esta desnecessidade de mais provas verificar-se-á, entre outras situações, quando não existam factos controvertidos, estando em causa unicamente matéria de direito, mas também nos casos em que da factualidade controvertida não resulte o efeito jurídico pretendido pela parte que a alegou, não assumindo tal matéria de facto relevo à luz das várias soluções plausíveis da questão de direito. Nestes casos, perante a inconcludência do pedido, não se podendo retirar da matéria de facto alegada o efeito jurídico pretendido, esclarece José Lebre de Freitas (A Ação Declarativa Comum: À Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3.ª edição, Coimbra Editora, 2013, pág. 183) que “é inútil produzir prova sobre os factos alegados, visto que eles nunca serão suficientes para a procedência do pedido”.
Verificando que determinados factos alegados pela apelante na contestação (cfr., a título exemplificativo, os artigos 56.º, 57.º, 60.º, 61.º, 62.º, 69.º e 70.º do indicado articulado) não foram considerados provados, cumpre averiguar da necessidade de produzir prova sobre tal factualidade.
Invocando o artigo 1793.º do Código Civil, pretende a apelante lhe seja atribuída, a título gratuito, a casa de morada de família, a qual pertence ao seu ex-cônjuge.
Sob a epígrafe Casa de morada da família, dispõe o citado artigo 1793.º o seguinte:
1. Pode o tribunal dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada da família, quer esta seja comum quer própria do outro, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal.
2. O arrendamento previsto no número anterior fica sujeito às regras do arrendamento para habitação, mas o tribunal pode definir as condições do contrato, ouvidos os cônjuges, e fazer caducar o arrendamento, a requerimento do senhorio, quando circunstâncias supervenientes o justifiquem.
3 - O regime fixado, quer por homologação do acordo dos cônjuges, quer por decisão do tribunal, pode ser alterado nos termos gerais da jurisdição voluntária.
Permite este preceito que o tribunal dê de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada de família, ainda que esta constitua bem próprio do outro cônjuge e prescindindo do consentimento deste, o que configura a constituição de uma relação de arrendamento por decisão judicial, imposta ao respetivo proprietário com o objetivo de defender a estabilidade da habitação familiar, tendo em conta os interesses dos cônjuges e dos filhos.
Se é certo que o divórcio dissolve o casamento, dúvidas não há de que algumas das obrigações que o matrimónio gera entre os cônjuges poderão perdurar após a cessação do vínculo conjugal, como é o caso, designadamente, da obrigação de alimentos entre ex-cônjuges e da atribuição da casa de morada da família.
Analisando o regime emergente da indicada norma, considerou o Tribunal Constitucional no acórdão n.º 127/2013, de 27-02-2013 (publicado em www.tribunalconstitucional.pt), o seguinte: (…) trata-se de norma conformadora do estatuto jurídico de um bem (aquele em que a família estabeleceu o centro da vida familiar) por ter sido afectado pelos cônjuges a uma determinada finalidade que se entende exigir protecção especial, no contexto da relação familiar e por causa dela, mesmo depois da dissolução do vínculo. Não se trata de um sacrifício imposto ao titular em nome de uma genérica hipoteca social da propriedade, mas de manter uma situação emergente dos efeitos do casamento e que vai para além dele. Aliás, os direitos de cada um dos cônjuges sobre o bem em que o casal estabelece o centro da vida familiar sofrem compressão noutros aspectos, designadamente, na alienação ou oneração (artigo 1682.º-A do Código Civil), na disposição do direito ao arrendamento (1782.º-B) do Código Civil)”.
Reportando-se ao pedido de atribuição do gozo da casa de morada de família a título de arrendamento, formulado nos termos deste artigo, explica Rute Teixeira Pedro (CÓDIGO CIVIL: Anotado, Coord. Ana Prata, volume II, Coimbra, Almedina, 2017, pág. 704), em anotação ao citado preceito, o seguinte: “Se o pedido proceder, será constituído um contrato de arrendamento entre os cônjuges ou ex-cônjuges (se entretanto o divórcio for decretado), pelo qual um deles assume a posição de senhorio e o outro a posição de arrendatário, tendo o último o direito de gozar a coisa para fins habitacionais mediante o pagamento ao primeiro de um valor a título de renda. (…) Caberá ao tribunal, mediante audição das partes, a definição das cláusulas deste contrato, nomeadamente a previsão da duração do mesmo e a fixação do valor da renda a pagar (…)”.
No caso presente, encontra-se assente que requerente e requerida estabeleceram a respetiva vida familiar no imóvel em causa, pertencente ao requerente, no qual habitaram juntos desde 2000 até à separação do casal, ocorrida em outubro/novembro de 2020, aí tendo continuado a requerida a habitar.
Porém, a requerida não peticionou a constituição de relação locatícia que lhe permitisse continuar a habitar, após o divórcio, na casa de morada de família pertencente ao seu ex-cônjuge, conforme possibilita o preceito que invoca, o que sempre pressuporia o pagamento ao requerente de uma quantia a título de renda. Não tendo a requerida formulado qualquer pedido de atribuição do gozo da casa de morada de família a título de arrendamento, afastada se encontra a possibilidade de constituição de relação locatícia nos termos do citado artigo 1793.º, dado que tal depende da formulação de pedido por parte do ex-cônjuge com legitimidade para o efeito, no caso, a requerida.
Pretende a apelante, pelo contrário, lhe seja atribuída a casa de morada de família a título gratuito, pretensão que se mostra inconcludente, considerando que o efeito jurídico pretendido não decorre de qualquer norma legal, designadamente do invocado artigo 1793.º.
Afirma José Lebre de Freitas (ob. cit., pág. 47) que a inconcludência jurídica consiste na “situação em que é alegada uma causa de pedir da qual não se pode tirar, por não preenchimento de qualquer previsão normativa, o efeito jurídico pretendido, improcedendo a acção com consequente absolvição do réu do pedido”.
Ora, estando em causa um bem próprio do outro cônjuge, não se vislumbra preceito legal que conceda ao ex-cônjuge o direito a exigir a atribuição da casa de morada de família a título gratuito. Por outro lado, verificando que a requerida não peticionou a constituição de relação locatícia, afastada se encontra a possibilidade de lhe ser dada pelo tribunal de arrendamento a casa de morada de família, nos termos permitidos pelo artigo 1793.º.
Face à inconcludência do pedido reconvencional formulado, mostra-se desnecessária a produção de prova sobre a demais factualidade alegada pela requerida na contestação, considerando a manifesta improcedência da reconvenção e a consequente procedência do pedido de atribuição da casa de morada de família deduzido pelo requerente, na qualidade de proprietário do imóvel.
Nesta conformidade, cumpre manter a decisão recorrida, ainda que com fundamentação parcialmente diversa, assim improcedendo a apelação.

Em conclusão: (…)

3. Decisão

Nestes termos, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmar a decisão recorrida, com fundamentação parcialmente diversa.
Custas pela recorrente.
Notifique.
Évora, 30-03-2023
(Acórdão assinado digitalmente)
Ana Margarida Carvalho Pinheiro Leite
(Relatora)
José Manuel Barata
(1.º Adjunto)
Cristina Dá Mesquita
(2.ª Adjunta)